domingo, 13 de outubro de 2013

Um contágio psíquico coletivo

Quando ainda não se falava nos psicólogos russos Vygotski e Lúria e suas descobertas de psicologia sócio-histórica a respeito de que a maior parte das doenças psíquicas resultava do ambiente social, o orientador de noviciado, padre Pedro Freitas, já costumava interpretar muitas características supostamente mórbidas e patológicas como sendo mero efeito de sugestão coletiva. O noviciado estava programado para ser levado a cabo na pequena, bonita, pacata e ordeira cidade de Catuípe, na região missioneira do Rio Grande do Sul. O primeiro candidato, o Paulo, veio algumas horas antes dos seis outros colegas que constituiriam o grupo de noviços naquele ano de 1975. O que logo despertou atenção particular de Paulo foi um hábito estranho ao seu código de posturas em ambiente coletivo. Tratava-se de algo inédito, pois a todo instante via pessoas coçarem seus glúteos. Seria isto um hábito cultural daquela boa gente? Como chegou num dia de domingo, foi até o salão paroquial e constatou que, ali, grande quantidade de pessoas estava jogando baralho. Muitos homens e mulheres, numa algazarra rutilante e alegre diante das jogadas de Truco, de Canastra e “Três Sete”. A primeira constatação de Paulo foi a de perceber que os homens cada vez que batiam forte na mesa ou jogavam alguma carta com boas gargalhadas, já desciam a mão para a região dos glúteos e ficavam se coçando. Que hábito mais estranho! Bateu o olho para os lados e logo constatou que também as mulheres pareciam viciadas no mesmo cacoete. Vieram seus colegas e, já no dia seguinte, alguns começaram a apresentar sinais de erupção na pele, nos braços, no rosto e, especialmente nas partes mais sensíveis do corpo. No terceiro dia, estavam todos eles num intenso “coça-coça”, e todos se interpelavam a respeito do que poderia causar tanta alergia e tão rapidamente afetar a todos eles na mesma proporção. De manhã cedo, ao levantar, a gozação tomava conta de todo grupo, pois, um mais do que os outros apresentava suas manchas com pruridos e muita coceira pelo corpo. Como o assunto se tornou central nas conversas, o mestre Pedro Freitas logo começou a interpretar o fato: seria um fato de contágio intersubjetivo decorrente de insegurança e medo. Mesmo assim, alguns falavam da possibilidade de pelo menos contratar algumas pessoas para ajudar a coçar o corpo, porque duas mãos se mostravam literalmente insuficientes para a imensa tarefa do coçar o corpo todo. Para Pedro Freitas, tratava-se simplesmente de uma alergia de fundo psicológico. Quanto mais ele apelava para insistir que era questão psíquica, mais crescia a área afetada por erupção da pele em cada um dos novos noviços. Na hora do almoço, Paulo sentiu uma súbita fisgada num dos glúteos e, ao saltar rapidamente da cadeira para verificar do que se tratava, viu um bichinho chatinho correndo sobre a palha do assento da cadeira. Tratava-se de um percevejo. Imediatamente falou alto: acho que descobri o fator psicológico da alergia! Como aquela cadeira, todas as outras da casa, como as do salão paroquial foram feitas de madeira, com os assentos de palha trançada: muito anatômicas e confortáveis. O mestre logo o repreendeu. Paulo, no entanto, puxou a cadeira um pouco para o lado, deu uma palmada sobre o assento, e viu caírem algumas dúzias de percevejos. O assunto tomou conta do almoço e os demais até o mestre, surpresos, também constataram a fonte da alergia psicológica ao verificarem suas cadeiras. Ninguém mais almoçou, pois o assunto, entre gozação e tentativa de eliminar os invasores ocupou a todos, uma vez que todas as cadeiras apresentaram extraordinária povoação de percevejos. No meio das muitas centenas de percevejos correndo apressadamente para se refugiar em algum cantinho, alguém foi ao quarto, verificar os colchões que, na época, ainda eram de palha e crina de cavalo. As bordas das costuras laterais estavam crivadas de milhares de parentes daqueles que habitavam nas cadeiras. Tinha percevejos nas frestas dos lastros e até nos armários. Paulo logo se lembrou do estranho hábito constatado no salão paroquial e propôs que alguém o acompanhasse até lá para verificar se naquelas cadeiras também existiam desses estranhos hospedeiros. Bastou uma palmada sobre o assento da primeira cadeira que já caíram algumas dúzias dos indesejáveis viventes. Uma varredura mais geral levou à dedução de que, entre o salão e a residência do Noviciado, deveria existir uma população de alguns milhões de percevejos. Por mais que o mestre encontrasse dificuldades para justificar sua tese psicológica, mais aumentava a gozação no grupo, pois, afinal, tudo tinha fundo psicológico, até mesmo o lugar onde os percevejos mais avançavam para seus ataques de sucção de sangue. Paulo conseguiu pelo menos certificar-se de que os intensos “coça-coças” de homens e mulheres não constituía um hábito educacional de contágio coletivo, mas uma reação coletiva diante de um sintoma de atrevidos e minúsculos fincões atacando em lugares um tanto indiscretos para coceiras mais ostensivas. Resultou a conclusão de que o contágio psicológico nem sempre decorre de influências intersubjetivas e que nem toda explicação a respeito de fenômenos especiais nos glúteos chegam lá, somente pelas seqüelas dos eflúvios de desequilíbrios psíquicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

    Criativa e super-rápida na inovação, A era digital facilita a vida e a ação, Mas enfraquece relacionamentos, E produz humanos em...