Em muitos lugares criaram-se hábitos alimentares a respeito do que deve
ser feito nas quartas-feiras de cinzas e nas sextas-feiras santas. Uns vão
pescar para garantir o consumo de carne de peixe, outros vão ao mercado para
assegurar bacalhau de boa qualidade, que, ao lado de outros tipos da farta
oferta de pescados deve propiciar uma refeição capaz de fazer os olhos levar ao
âmago dos apetites a melhor predisposição para saborear um prato delicioso e
bem regado com vinhos especiais.
Na quebra do
cotidiano das refeições costumeiras dos outros dias, a justificativa da
penitência com jejum, pode oportunizar, na verdade, mais do que nos outros dias,
o momento de saborear iguarias muito deliciosas e que nem seriam possíveis de
serem consumidas na saudável alimentação diária.
Apesar da
antiga tradição religiosa judaico-cristã, o ritual de evitar o consumo de
carnes vermelhas, e substituí-las por variados modos de preparo da carne de
peixe, pode não configurar a menor aproximação ao jejum e penitência,
recomendados para tais dias.
Afinal, o
que um cardápio sugestivo, atraente, saboroso e saudável tem a ver com
penitência e jejum? Seria, porventura, uma privação para alargar a
sensibilidade em torno dos que carecem das calorias necessárias da alimentação
diária, e por isso, tornar-se disponível para algum gesto mais solidário e de
partilha?
O
esvaziamento do significado do jejum, ao longo de muitos séculos anteriores a
Cristo, já havia levado muitos profetas a questionar os jejuns, porquanto
tinham perdido a razão fundante de sensibilidade para maior solidariedade.
Insistiam no jejum e na penitência do coração para se tornarem meios de uma
qualidade de vida mais aprimorada. O profeta Joel, por exemplo, queria que o
povo fizesse algo em torno de uma calamidade, porque os gafanhotos haviam
devastado todas as plantações. O jejum deveria produzir algo no sentimento e na
fé das pessoas.
Jesus Cristo
foi ainda mais objetivo ao remeter os discípulos ao cerne da penitência: nada a
ver com a hipocrisia de apresentar uma aparente atitude de privação a fim de
mostrar uma prática religiosa que não levasse a quaisquer sinais de justiça. Na
verdade, parece que muito pouca gente escutou esta interpelação e, mesmo em
nossos dias, segue-se um ritual escrupuloso em torno do que comer e do como
penitenciar-se através de posturas e motivações sombrias e tristonhas. Podem
tais procedimentos apenas coçar a própria vaidade para justificar a aparente
imagem de pessoa virtuosa e boa.
Se o jejum
ritual não leva à interioridade, certamente vai prestar-se para uma auto-ilusão
que pouco ou nada sensibiliza diante dos que não tem alimentação suficiente e
do perverso sistema econômico que há muito tempo enterrou a noção do direito de
todos. Que o jejum possa pelo menos simbolizar alguma intuição em torno da
interpelação profética de que “jejum e esmola” não aumentem o egoísmo cego
diante da pobreza humana, cultural e social. Que o ritual de abnegação possa,
por conseguinte, despertar intuições para gestos humanitários.