quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O sujeito lambisgóia



Michel, quando ainda era menino pequeno, recebeu pelo menos uma dúzia de apelidos. De vez em quando as pessoas mais próximas, até demonstravam dó, pois sabiam que Michel era fruto de um ambiente familiar, no qual se mentia e se exagerava ao máximo em tudo quanto era narrado. Nada era pequeno e nada era insignificante.
Na boca do parentesco de Michel, um fato banal e rotineiro adquiria ar de algo extraordinário. Esta ancestralidade propiciou a Michel uma rara inteligência para fazer fatos comuns adquirir empolgação. Era colheita fora do comum, era chuva de proporções diluvianas, era briga de correr sangue por oito dias e era prejuízo que implicava em milhões, quando os valores, na verdade, não passavam de alguns reais.
Como sabia tudo um pouco melhor e com mais detalhes do que os outros, os colegas passaram a considerar Michel um presunçoso, que facilmente diminuía os colegas, pois, sempre sabia algo mais do que eles a respeito de alguns detalhes de fatos dos quais sequer havia participado.
Um dia, um colega seu, o Marcos, não se sabe de onde e como chegou ao termo, aplicou mais um apelido ao Michel: Lambisgóia. Quando foram bater no Dicionário para saber o que o termo significava, perceberam que o termo realmente conferia com os traços mais proeminentes e explícitos da vida de Michel: pretensioso, intrometido e mexerico da vida alheia.
No estudo, Michel deixava todo mundo para trás, pois, assim como sabia mentir, assim também sabia assimilar conteúdos e sempre se saía muito bem nas provas. No jogo de futebol, sabia falar, encenar, mandar, orientar, mas não passava de um legítimo perna-de-pau. Era péssimo tanto para chutar, quanto para driblar e dar passes. Em compensação, sabia comentar, como ninguém, todos os lances.
Próximo da formatura na Faculdade, a turma de Michel resolveu fazer uma reserva de dinheiro para passar alguns dias na praia. Tudo se encaminhou conforme o planejado e ao chegarem à beira do mar, todos encantados com a imensidão das borbulhantes e ruidosas águas do mar, Michel já se pôs a frente dos demais para explicar como se tinha que lidar com as ondas do mar. Como se fosse um velho marinheiro, acostumado aos segredos do Oceano Atlântico, foi dando exemplos de como agir na hora que viesse uma onda, mas, ao dar o exemplo, veio uma onda e o levou de roldão. Nas águas rasas, os demais, apavorados com o repentino sumiço de Michel, viram logo as pernas brancas fazerem um giro pelo ar, noutro instante apareceu o dorso avermelhado e por fim, o pum-pum branco de quem havia perdido a sunga. Logo mais, meio cambaleante, a tosse o fez expirar água salgada pelo nariz, pela boca e, na impressão, até pelos olhos, ele, conseguiu finalmente firmar-se de pé e aos gritos pedia ajuda para procurar a “hapa” (Sequer consegui pronunciar “chapa” (a dentadura) que se esvaíra na cruel esfrega que levou das ondas do mar. Ao ver que ninguém o socorria, meteu a mão para esconder os documentos genitais, e, todo desajeitado saiu em disparada rumo à hospedagem, que por sorte ficava a 50 metros de distância. Enquanto corria, podia perceber-se que as costas, os joelhos e os cotovelos estavam ensangüentados devido aos esfregões que levou no turbilhão das ondas e da areia. Desta vez, ninguém conseguiu gozá-lo, pois, ao chegarem à hospedagem, ele havia se vestido, ajuntado seus apetrechos e, muito rapidamente, se esvaído daquele ambiente. Dias depois, no retorno, encontraram Michel cheio de grau, com nova prótese dentária, como se nada lhe tivesse acontecido. Nem então perdeu a característica de lambisgóia, pois não evidenciou qualquer sinal de se ter afetado por algo menos grandioso do que suas interpretações sobre as coisas e os fatos.


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