terça-feira, 28 de janeiro de 2014

As três corocas do capeta



Um dos conceitos mais ambíguos da nossa língua é o que envolve diabo, capeta, demônio ou chifrudo, e que alguns delineiam como “inimigo” a ser destroçado e vencido.
 Sem as fontes seguras e diretas do maligno, valho-me do conceito de que demônio, (capeta, diabo, chifrudo, e outros sinônimos), é tudo quanto divide, separa e desintegra. Com este significado, olho para três corocas. Uma mais piedosa e puritana do que a outra, mas, as três também disputam entre si a precedência e parecem encontrar-se empatadas na extraordinária capacidade de inventar fofocas, intrigas e futricas. São católicas que presumem ser muito mais santas que o papa ou qualquer dos inúmeros santos e santas proclamados nos altares.
Nas ruas da cidade de Morocó, a disputa pelas eventuais ovelhas a serem protegidas e salvas, leva doze distintas entidades religiosas a machucar o ouvido pela intensidade dos sons acima do tolerável à audição, e com insinuantes promessas de sessões especiais de curas, milagres, libertações e alcance de tudo quanto possa ser desejado para a plenitude da felicidade e do bolso recheado de dinheiro. Insinuam especialmente os poderes contra o maligno, advindos e mediados por pastor afamado de outra cidade do país e chegado para a manifestação dos poderes de Deus, através de poderes secretos que somente ele domina.
 Ao lado desta manifestação diabólica que separa, divide e logra muita gente, um pouco mais contida e acuada, encontra-se uma comunidade católica, que também quer constituir-se instrumento e sacramento de salvação, segundo o projeto de Jesus Cristo.
À parte das disputas de lugares e de mediações por onde a suposta força divina encontra secretos fluídos e poderes exotéricos e hegemônicos sobre satanás, trava-se no interior da comunidade católica uma disputa ferrenha em torno de honra e de precedência das três corocas. Longos anos ofereceram-lhes uma fantástica capacidade de dividir, de separar e de arrumar confusão em torno de minudências.
 Uma, constituiu-se dona dos panos, das toalhas, das flores e dos objetos do altar. E ai se alguém mexer na ordem de algum destes objetos! É assunto para exaltação da voz e muitos resmungos.
 A outra descobriu os poderes secretos de se constituir dona dos comentários e da escolha de quem pode e de quem não pode proclamar uma leitura. Eventual leitor de outro partido político é visto como capeta que jamais pode requerer tal serviço à comunidade. Também é dona dos cantos: podem ser cantados somente os cantos lentos e lamuriosos da renovação carismática que ela entoa. Eventual ousadia de sugestão para outro canto menos intimista, recebe rechaço com imediata censura verbal.
 A terceira coroca descobriu outro patamar de status que faltava para completar a manifestação viva do capeta: é dona do serviço de coroinha e ministra da eucaristia. O enorme terço enrolado nas mãos atrapalha o serviço do altar, mas a dona coroinha, não arreda o pé da sua instância de poder, que, na verdade, não soma e nem acrescenta coisíssima nenhuma à qualidade de fé da referida comunidade.

Possivelmente a única forma de combater a prepotência do poder das três corocas, vai ser a de chamar, um dia, todos os pastores milagreiros e libertadores através de curas divinas, para ver se, juntos, conseguem potencializar a milhares de Megawats de fé, um “Show Satanás” e mandar esta força do capeta para longe das três corocas. Aí sim, poderia o fruto do milagre transluzir algo de agregador nestas beatas das muitas formalidades e aparências exteriores: poderia a humilde consciência fazê-las perceber que funções nos rituais litúrgicos devem ser efetuadas como serviço e não como um poder tirânico e despótico.

Os rituais cotidianos

Uma grande variedade de rituais cotidianos possui a virtualidade de oferecer sentido à vida e dar gosto à existência. Desde o modo de saudar os que já se levantaram antes de nós, como pedir bênção aos pais, ou dar um abraço nos membros da família, podem, além da formalidade, encher-nos com uma riqueza humana que não se compra em lugar nenhum. 
 Uma longa ancestralidade da vida de aldeias e de pequenas comunidades rurais deixou como herança uma grande riqueza de rituais diários envolvendo a acolhida dos visitantes, o prazer de lhes ajudar em algo, o modo de servir refeições e muitos rituais em torno das refeições e momentos festivos, enfim, alegria da cordialidade, prazer de ver outras pessoas satisfeitas. 
 Desde algumas décadas atrás, diversos rituais cotidianos começaram a ficar de lado ou a desaparecer do ambiente familiar. Muita gente rezava antes e depois das refeições e já não reza mais; em muitas casas somente se iniciava uma refeição quando todos estivessem sentados em torno da mesa; da mesma forma sumiram rituais em torno das rodas de chimarrão, do cafezinho e dos momentos específicos para partilhar impressões relativas a acontecimentos ou emoções importantes. 
 A compactação do tempo e do espaço, sensação experimentada com a aceleração das ofertas de informações e com o aumento de desejos em torno de incontáveis possibilidades, introduziu a noção de que o tempo é muito curto, fugaz, passageiro e que passa como uma miragem que repete sempre o mesmo comando: ser rápido, apressar mais o passo, a refeição e o tempo para chegar ao serviço ou à meta desejada... 
Esta compressão se torna parecida com um turbilhão de altíssima velocidade, acionada pela força nuclear da alta rotatividade das comunicações virtuais. No entanto, quando tudo parece ser instantâneo, e o fluxo das novidades para serem degustadas, provadas e vivenciadas se apresenta como interminável, acaba se impondo a sensação de que tudo quanto é rotineiro, repetitivo ou da simbologia de tempos passados, já constitui assunto superado.
 Provavelmente este tempo acelerado vai implantar rituais próprios que possam vir a preencher muitos aspectos do sentido da vida das pessoas. Por enquanto, porém, parece que se produz um aumento de pessoas aquinhoadas atrás de mil coisas e novidades, mas sem rotinas capazes de preencher a vida, com coisas muito pequenas, mas, muito grandes para propiciar gosto e satisfação ao que se faz.
 Embora a vida nos coloque entre duas polaridades, a da estabilidade e segurança e a da novidade e do risco, precisamos encontrar um equilíbrio razoável para controlar os riscos (como os das aventuras e jogos radicais), as incertezas (falhas humanas e mecânicas) com a liberdade do novo e da aventura. Tal insegurança nos remete para uma arte não muito fácil: como nos socializar com adequado controle dos riscos e avançar na busca de novas emoções mais radicais e para além dos limites estabelecidos? Os rituais certamente constituem o fator capaz de estabelecer um equilíbrio razoável.
 Assim, como o desejo de muita adrenalina, emoção nova e forte, obriga a lidar com medos e com nervosismos, carecemos de fatores de coesão para decolar, voar e aterrissar. Em outras palavras, precisamos de coesão comunitária para não ficar apenas no êxtase, e, para poder partilhar e ponderar sobre os riscos. Aparece então a necessária rotina de contar e recontar os fatos. 
Certamente a fadiga psíquica não se manifestará quando há rituais que permitem a cada indivíduo perceber que ele não é uma ilha isolada e independente, mas, inserido num grupo social, onde ele percebe que o especial e o fora do comum não são mais importantes do que o trivial e o extremamente comum. 
 Para certos conceitos de nossos dias as mínimas coisas de cada dia e os pequenos rituais de cada dia não são importantes. Muitas pessoas foram socializadas para rotinas como lavar louça, limpar o chão, cuidar da limpeza e da higiene de crianças, e estas rotinas podem ser altamente significativas como sinais simbólicos de interesse, consideração e atenção às pessoas envolvidas.
 Há pessoas que até desejam compulsivamente a rotina do amor, no pressuposto de que outras pessoas as façam felizes, mas, nas mínimas alterações destas rotinas já são levadas a se sentir ameaçadas e passam a agredir ou a defender-se.
 Assim como as festas rompem o cotidiano das rotinas, os rituais cotidianos quebram o enfado do dia-a-dia. Portanto, “um viva!” aos rituais cotidianos pelo bem que fazem ao equilíbrio da vida! Ao contrário do que Erik Freire escreveu, de que “Rotinas são para tolos. Cotidianos são para cegos” (fixurmind.wordpress.com/2007/08/24), acredito que os ritos tiram a banalização e o vazio da vida e eles nos fazem perceber que não somos meras máquinas para executar tarefas, ganhar muito e acumular bens. Ao lado dos símbolos, os ritos cotidianos preenchem a vida, apontam o sentido da festividade e indicam perspectivas para além da morte.

<center>INDIFERENÇA SISUDA</center>

    O entorno da vida cotidiana, Virou o veneno que dimana, A endurecer os sentimentos, Perante humanos proventos.   Cumplicidad...