quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Ética na prática docente

Ethics concern in the practice Teaching
Ir. José Kolling e Pe. João Inácio Kolling[1]

RESUMO
O artigo busca referência no mote aristotélico de vida boa como fim da ética, confrontando uma ética de princípios tradicionais instituídos, diante de uma sociedade plural e líquida. Esse mote precisa da complementação de mais dois outros eixos: o da solicitude a fim de que a vida boa aconteça com e para os outros; e, que se desenvolva nas instituições justas que permitam estas mediações. Como o alcance da vida boa não decorre apenas da estima que uma pessoa manifesta a si mesma, mas está sempre implicada na relação com as outras pessoas, então se torna fundamental o outro elemento ético: o da solicitude.

ABSTRACT
The article seeks to reference the motto Aristotelian Good Life as the end of ethics confronting a set of traditional principles in the face of a pluralistic society. This theme requires the complementation of two other axes: the concern to the good life happens to and others and which develops in just institutions that develop these mediations. As the range of the good life doesn’t elapse only from the estimates that a person manifests  itself, but is always implicated in relationships with other people, then it becomes another key ethical element : the concern.
PALAVRAS CHAVES: Ética, Solicitude, Docência, relação pedagógica
ethics, concern, teaching, teaching relationship


Considerações Iniciais

            Uma imagem bíblica muito antiga, envolvendo a conversa entre Aarão e Moisés, presta-se para ilustrar uma situação que hoje se vivencia diante dos impasses éticos no ambiente escolar, e que apresenta um dilema similar: ou normas para adequação à vida controlada e dependente no Egito (a escravidão), ou normas capazes de facilitar uma difícil travessia para levar a algum outro modo de vida.
            A tendência mais fácil é a de adequar-se aos parâmetros éticos vigentes. Pensar em algo novo implica em fascínios, mas, também, num enfrentamento de medos, de inseguranças. Correr este risco, pode não oportunizar os melhores resultados, mas, certamente, será mais gratificante do que submeter-se ao conformismo sem esperanças. Nesta perspectiva, a solicitude em torno de relacionamento pelo menos respeitoso entre docentes e alunos, é assunto que merece muitas ponderações a fim de que, a travessia deste momento histórico de ineficácia das normas éticas tradicionais, possa remeter a relações que não diminuam e nem aniquilem as virtualidades das outras pessoas e, tampouco, a proceder de modos que as vítimas, sejam docentes ou alunos, percam a estima de si e a solicitude para estar bem com os outros e para os outros.
 O antigo mote aristotélico da vida boa, como fim da ética, ainda continua a constituir-se num horizonte digno de ser buscado. Vida boa, para Aristóteles, implicava em qualidade de vida manifesta no agir humano, envolvendo especialmente consciência, liberdade, capacidade de escolha, de decisão, e, de práticas com responsabilidade, o que faz um ser humano tornar-se um agente moral na busca da virtude: não prazer e nem riqueza, mas a atividade guiada pela razão, o que requer hábitos de constância no agir, um estado intermediário entre excesso e defeito (VÁSQUEZ, 2003, p. 272-273). Este horizonte da virtude, todavia, segundo Paul Ricoeur, precisa da complementação de mais dois outros eixos: o da solicitude a fim de que a vida boa aconteça com e para os outros; e, que se desenvolva em instituições justas que permitam estas mediações (ROCHA, p.3). A solicitude, por conseguinte, não significa fazer tudo o que se pensa como possível de ser feito e nem tampouco, boicotar tudo quanto possa ser inovado, mas, um especial desvelo para que as pessoas possam entender o contexto em que vivem e neles criar sentidos para a existência.
É na difícil relação com e para os outros do mundo plural de nossos dias que os docentes se vêem interpelados para encontrar níveis, pelo menos razoáveis de vida boa em sala de aula. Aristóteles já observava que as virtudes não eram geradas nem pela natureza e nem contra a natureza, mas, que a natureza nos conferia a capacidade de recebê-las, de aprimorá-las e amadurecê-las pelo hábito (ARISTÓTELES, 2007, p.67). Este agir, sob o signo do que se considera bom, segundo Paul Ricoeur, não pode ser fruto de um modo de agir que vise somente um fim e, nem tampouco uma ação sob o signo do dever, mas, a motivação maior terá que ser a de propiciar bons encontros. Portanto, adquire importância especial a intencionalidade que visa viver bem com e para os outros, e que, conforme La Salle significa aprender a bem viver (LA SALLE, 1998). Como o alcance da vida boa não decorre apenas da estima que uma pessoa manifesta a si mesma, mas está sempre implicada na relação com as outras pessoas, então se torna fundamental o outro elemento ético: o da solicitude (RICOEUR,1995, p.163).

1 INTERPELAÇÕES DA SOLICITUDE NO AMBIENTE ESCOLAR

            Estamos num momento histórico em que fatos novos, sobretudo na bioengenharia e na tecnociência, acabam gerando uma pluralidade de novos desafios, e estes interpelam para além das tradicionais explicações a respeito do que pode e do que não pode ser feito a partir de explicações abstratas, metafísicas e independentes do cotidiano da nossa vida, distantes da lida diária que apresenta interferência dos artefatos da tecnociência (PEGORARO, 2002, p. 21). Se de um lado não é conveniente uma postura restritiva a tudo quanto uma ciência faz mediante dogmatismos filosóficos ou religiosos, tampouco é conveniente que a ciência, como vem fazendo desde Galileu, se conduza pelos ditames de fazer tudo quanto é imaginável, com a suposição de que os seres humanos se constituam em mero processo bioquímico, mecânico e psicológico. Portanto, “nem tudo pode e nem nada pode” (PEGORARO, 2002, p.36).
Neste contexto, o tema de ética na docência não encontra em muitas restrições éticas e nem nos ditames da tecnociência as respostas adequadas para problemas recentes ainda não equilibradas pela mediação da virtude. A pluralidade de comportamentos em nossos dias mostra o quanto a ética encontra dificuldades para sustentar uma normatividade única para a sociedade, seja ela heterônoma, autônoma, do emotivismo, do pragmatismo utilitarista ou simplesmente da provisória e fugaz ética do instante. Diante das incipientes buscas éticas para um bem viver nesta pluralidade, certamente se torna auspiciosa a perspectiva dos parâmetros da ética da solicitude, apontada por Paul Ricoeur e que, aqui, desejamos direcionar para uma modesta indicação para lidas mais virtuosas entre professores, direção da escola e alunos, ou seja, uma disposição estabelecida para buscar uma mediania entre ações e paixões, numa prudente determinação da razão. Segundo Aristóteles, este meio termo entre os extremos levaria a não pecar nem pelo excesso e nem pela deficiência (ARISTÓTELES, 2007, p.77).
 Por conseguinte, a busca de discernimento para levar em conta a importante intuição de Paul Ricoeur, exige uma capacidade a ser cultivada, a fim de o agir efetivo no ambiente escolar possa ir além do discurso inepto de pios conselhos, mesmo que bem intencionados, e evitar que os referenciais éticos se tornem meramente ornamentais e se mostrem ineficazes para mediar e diminuir as tensas relações entre docentes, alunos e direção das escolas.

2 DIFICULDADES PARA UMA  ÉTICA DE SOLICITUDE NO AMBIENTE ESCOLAR

Vivemos um quadro educacional escolar que facilmente escorrega para apreciações e lamúrias em torno da docência: fala-se de agressividades, de apatia, de desatenção, de desrespeito, de insuficiência de conteúdos aprendidos, de salários pouco animadores e de cobranças de múltiplas procedências e naturezas. Que mediações poderiam levar este quadro para melhores relações?
O conformismo a um círculo de análises pessimistas alargará ainda mais o elevado nível de desgaste afetivo-emocional dos docentes e que os induz a se tornarem vítimas da conhecida doença de “Burnout”, ou da inevitável resignação. Apesar das evidentes dificuldades convém buscar um horizonte ético plausível de alguma transcendência diante deste quadro de muitos empecilhos para um bom relacionamento entre professores, direção da escola e alunos.
A atividade docente, de fato, apresenta algumas peculiaridades especiais e que tornam os docentes um tanto refratários às cobranças de posturas de solicitude ética:
a)    Ética a ser assumida como um código de regras, ou, como um modo de proceder - A função docente nas escolas não goza da mesma condição do exercício de outras profissões importantes como medicina, agronomia, advocacia, etc., que possuem um código de ética. Pode-se questionar a pertinência daqueles códigos, ou os fundamentos que os estabeleceram e os sustentam. Entretanto, o desrespeito a alguma norma pode implicar em perda dos direitos de exercício daquela profissão e a observância do código implica em direitos e em defesa da categoria. O mesmo não acontece no campo da educação escolar, pois, não existe código ético definido sobre o que o docente pode e o que não pode fazer e, nem tampouco, um código que lhe assegura proteção e amparo.
Seria a docência uma atividade profissional atípica, fora dos parâmetros da profissão? Quando o já minguado status da docência vem sendo desconstituído sistematicamente, como cultivar uma perspectiva altruísta e de entusiasmo em torno de certas valorações éticas, isto é, algo que possa ser bom, certo, correto e justo? Ademais, como nos ambientes escolares se preparam futuros profissionais, seria a ética dos docentes mera mediação de repassar normas sincréticas já estabelecidas na legislação educacional?
b)   Ética tradicional diante das exigências de um sistema de produção tecnicista - O atual quadro cultural cientificista, interessado precipuamente em determinadas valores humanos, com critérios objetivos de avaliação, não parece estar disposto a tolerar que atitudes e valores morais sejam mesclados aos conteúdos obrigatórios de estudo. Ou seria esta ética a aplicação embutida na legislação educacional e nos regimentos das entidades educadoras?
c)    O dilema diante das cobranças - Os docentes tornaram-se alvo de cobranças que excedem sua capacidade efetiva. De um lado, são cobrados para serem reformadores de atitudes desrespeitosas manifestadas pelos alunos; tornam-se uma espécie de bode espiatório responsável pelas não aprendências, que leva a muitos reclamos e poucos afagos; ao mesmo tempo, os docentes não possuem condições de induzir para fins democráticos quando seu domínio de determinado conteúdo, repassado aos alunos, representa alto potencial de poder da instituição, porque o número de aprovados em vestibulares públicos, impreterivelmente, fala mais alto do que qualquer regra que queira pensar o bem-estar de todos os alunos, e que queira pensar em fraternidade, em justiça, em democracia, em cidadania e em formação de valores humanos. Todo o eticamente bom teria que ser, também, politicamente bom para não ficar restrito ao mero discurso vazio.
d)   O peso dos valores simbólicos - Um ambiente educativo escolar se constitui numa vistosa prateleira de oferta de bens culturais, simbólicos e materiais. Estes bens ultrapassam a capacidade de deliberação do docente, porque a força de barganha de acesso a cursos que apresentam valor simbólico mais prestigiado para um status econômico ou social ascendente, já procede da família e os próprios interesses dos alunos decorrem de discursos éticos que lhes foram proferidos muitíssimas vezes pelos pais, pelos colegas e por outras pessoas próximas, antes de chegarem às salas de aula. Neste caso, o que significaria para um docente apontar uma vida de valores de bom relacionamento? Como lidar com a situação de um futuro já projetado e definido pelos adultos para os filhos alunos, independente de suas escolhas pessoais?
                        Muitos alunos, antes mesmo de escolherem uma instituição já foram influenciados e motivados pelas influências de sua estratificação social. Portanto, o ambiente não influenciável pela docência escolar já estabeleceu um perfil de relacionalidade almejada para determinados interesses.  
e)    A situação existencial dos docentes - O docente convidado a gestar valores éticos no seu procedimento educacional ainda se vê envolvido num outro dilema: quando o rendimento econômico da sua atividade docente está aquém do razoável para que sua vida seja digna, como não estacionar no enquadramento da mecanicidade que o obriga a prestar conta dos mínimos procedimentos do que faz em sala de aula, que o obriga a corrigir muitas provas e a adequar-se a uma infinidade de exigências da instituição e o risco, caso não seja eficiente nestas tarefas, de ver-se dispensado. Esta irrelevância do seu agir, impreterivelmente produz tédio, ansiedade e desânimo, mas que, por sua vez, precisam ser disfarçados. Nesta coação, o docente vai encontrar reais dificuldades para se capacitar mais, para encontrar razoável equilíbrio existencial, para evitar desestruturação no ambiente doméstico e social e, ainda, para encontrar condições materiais razoáveis ao digno exercício de sua função. Docentes não podem entrar no jogo da apatia dos alunos desinteressados; não podem entrar no clima das agressões simbólicas que sofre dos alunos, não podem expressar medo diante das ameaças físicas, não podem mostrar fragilidade e insatisfação com a instituição e, nem mesmo, fazer uma catarse soltando estes assuntos em qualquer ambiente. Em decorrência, os docentes, com o turbilhão das situações que precisam ruminar sem exteriorizar indícios, acabam implodindo de dentro para fora. Por certo tempo eles conseguem salvar pelo menos uma aparência exterior, mas, de repente, a estrutura interna demolida, já não suporta a fachada exterior e eles implodem em depressão ou somatização de doenças variadas.
f)     Docência diante das exigências do mercado capitalista - A docência, vista como atividade que precisa gerar dividendos, de forma geral, depende da concepção de que a instituição escolar deve ser uma empresa lucrativa, e a docência acaba em mercadoria na disputa do sistema de mercado e, por isso, o docente não consegue inserir-se na comunidade à qual pertence. O docente torna-se um funcionário, numa escala hierarquizada, onde vive a instrumentalidade de ter que propiciar hierarquizações que possam promover as capacidades humanas e técnicas mais talentosas. Ele se constata uma mercadoria, que precisa gerar mercadoria de boa qualidade, para uma demanda competitiva. Precisa corresponder como prolongamento das relações domésticas, tanto para agradar, quanto para despertar o máximo desenvolvimento científico e, sequer pode queixar-se da cobrança que procede dos pais e dos próprios alunos.
Acreditamos que este quadro, aparentemente desalentador, não é fatalmente determinista e, apesar destas e outras dificuldades, pode ser transformado através das solicitações da ética da solicitude para um viver bem que Aristóteles já visualizava no tempo do período clássico grego.

3 ÉTICA DA SOLICITUDE

O termo solicitude comporta uma porção de significados, tais como: boa vontade; desejo de atender do melhor modo possível uma solicitação feita; desvelo; zelo para prestar um favor ou uma assistência; atenção; delicadeza; consideração do outro; cuidado constante e atenção inquieta. (DICIONÁRIO AURÉLIO, 1319) Para o enfoque ético, tornam-se particularmente significativos a consideração do outro e a atenção inquieta. Normalmente a docência implica nesta difícil tarefa, mas, para fazer um cerco psicológico que vise aniquilar qualquer comportamento estranho, ou por formas de enquadramento na conduta geral ou para aplicação de sanções. Com isso, o docente tende a avaliar o aluno por deduções psicológicas e a classificá-lo segundo motivações afetivas. Decorrem de tal análise, duas conseqüências distintas e até antagônicas, mas, que se mostram muito visíveis e, com enormes implicações na relação:
a)    Desejo de conduzir a vida do aluno e mostrar-lhe o caminho que possa redimi-lo da conduta considerada inadequada, ou imprópria; equivale a um debruçar-se sobre o aluno, considerado infeliz, para lhe transmitir o calor humano peculiar da cultura; por isso, o docente coage, seduz e delimita a liberdade do aluno.
b)    Instrumentalizar seu pensamento para os interesses da sociedade tecnocrata e, chantageá-lo em vista deste horizonte. Esta instrumentalização do espírito do aluno apela para uma antecipação prematura da liberdade que o aluno possa desfrutar um dia ao ser promovido para níveis sociais e simbólicos mais elevados. As duas formas cerceiam a liberdade e não atingem as razões das interpelações dos alunos no que expressam através do seu rosto. Cabe, então, uma conotação de solicitude mais próxima de atenção inquieta, porque sempre é desconfortável e, porque toda a reação expressa a partir do rosto dos alunos é uma interpelação que pode remeter o docente a uma relação respeitosa em vez de resistente e movida por mecanismos de enquadramento.
O simples pressuposto de uma sociedade plural, fluída, de inovações, de mudanças rápidas e profundas, já descarta a pertinência de uma ética unitária, como a tradicional, para orientar a sociedade. Que postura ética poderia, neste caso, ainda se constituir num referencial plausível para estes tempos de transição do ambiente escolar, quando tudo se torna provisório? Entendemos que possa ser a da ética da solicitude na relação de professores e direção da escola com os alunos.
Em que aspectos uma ética da solicitude poderia tornar-se uma mediação mais eficaz do que as orientações da ética metafísica tradicional para docência escolar? Além de não lhe fornecer regras pré-estabelecidas a respeito do que se pode e do que não se pode fazer, implica, fundamentalmente, numa modalidade de reação diante do que lhe aparece, sem encomenda e sem solicitação, através da expressão facial dos alunos. Quer na apatia, na agressividade, na inquietude, no silêncio, nos olhares carentes, desejosos de acolhida ou de amparo, ou de distância e de rejeição, o docente, querendo ou não querendo, é afetado e impelido para determinados modos de reação. Precisamente no modo de reagir, a ética da solicitude abre uma perspectiva rica e alentadora para procedimentos éticos que possam aprimorar a relação no ato pedagógico.
 Na definição de Paul Ricoeur, a solicitude é união íntima entre a visão ética e a carga afetiva dos sentimentos (MEIRIEU, 2002, p.70). Significa, pois, lidar com o rico campo da expressão dos sentimentos. Os alunos interpelam constantemente os docentes a lhes expressar uma injunção de juízos morais. Estes juízos podem induzir os docentes à mera defesa narcisista, ou induzir por meio de ameaças coercitivas, de repreensões, de censuras visuais ou verbais, mas, mesmo assim, todas estas formas de reação, tendem a revelar impulsões brutas no docente, com vistas a rechaçar as múltiplas formas de interpelação que lhes foram manifestadas por alunos. Solicitude significa, por conseguinte, uma postura de não deixar-se manipular pelos alunos, mas, tampouco, de manipulá-los segundo o ditame das compulsões que resultam dos sentimentos brutos, feridos ou interpelados:
No quadro geral da ética ricoeuriana, a solicitude, em relação à estima de si, requer que uma ação seja considerada boa apenas quando for praticada em favor de outrem... Assim, longe de ser impulsionada pelo desejo egoísta ou pelo culto exacerbado do eu, a solicitude, de outro modo, avança no sentido do reconhecimento mútuo e na perspectiva da vida boa com e para o outro em instituições justas (ROSSATO, p.6).
A solicitude docente implica numa inquietude e também numa preocupação a respeito do futuro de quem interpela. Este outro pode interpelar pela postura não verbal ou pela fala, pelo olhar, ou pelo silêncio de muitas expressões, mas interpela esperando algo diferente. O importante é que este algo diferente não seja negado e possa decorrer dele mesmo, sem tentativas de interferência dominadora. A solicitude, portanto, implica numa capacidade responsável de manifestar compaixão diante das interpelações dos alunos, e, ao ser afetado pelas interpelações, desejar que possam levar os interpelantes a conduzir sua vida. Nesta vontade de fazer algo por eles e, não no lugar deles, o docente vai sempre constatar sua literal incapacidade de ajudá-los sem sua participação. Tudo quanto o docente deseja de bom para o aluno, deve, na verdade ser conquistado pelo aluno e não porque o docente lhe cobrou este desejo. Assim, a solicitude se constitui numa atitude ética básica que permite que os seres humanos possam evoluir na capacidade psíquica e social através dos processos de interação e aprendizagem.

3.1. Armadilhas da ética da solicitude
         Uma postura ética de solicitude não está isenta de perigosas armadilhas como as do amor-paixão e a da simulação de indiferença afetiva.
            O risco do amor-paixão leva o docente a perder a medida e, por isso, pode fascinar-se com a expectativa de que o bom relacionamento forneça respostas adequadas às suas inquietações. Isso, no entanto, implicaria em fracasso educativo, porque acabaria induzindo o aluno a uma dependência. Pode igualmente manifestar-se o inverso, isto é, o aluno vir a estabelecer o docente como um salvador que faz tudo para redimi-lo. Tal relação levaria o docente a um ato possessivo e acabaria encurralando o aluno dependente.
            Quanto à indiferença afetiva, a solicitude não pode anular a vontade de conhecer melhor os alunos a fim de conhecer sua história e seu mundo subjetivo, precisamente para conseguir perceber as diferenças. Segundo Meirieu, a resistência está ligada ao fato de que ninguém pode agir no lugar do outro, decidir a aprender ou escrever por ele, romper com suas representações ou pôr em questão sua herança cultural; ninguém pode decidir sobre a liberdade do outro (MEIRIEU, 2002, p. 288).
            Isto também significa que não compete ao docente adestrar os alunos e, sob o pretexto de formação, lidar com eles como se fossem objetos em processo de fabricação para se tornarem peças importantes numa demanda tecnológica do mercado.

3.2. Solicitude como exigência ética
            Como agir para que os alunos não sejam ignorados e nem descartados; que não sofram e, quando isso acontece, que possam expressar isso aos olhos do docente? Philippe Meirieu chama este ato expressivo de Momento Pedagógico, porque o rosto do aluno pode expressar ódio, raiva e desconforto ou meiguice, atenção e acolhida, ou ainda, aflição, pânico e medo, e este sentimento fala mais que a sua palavra. O rosto da pessoa sempre fala, mesmo dormindo ou se fazendo de surdo-mudo.
       A experiência pedagógica é fundamentalmente, experiência da resistência do outro ao projeto que eu desenvolvo sobre ele: o outro nunca deseja realmente aquilo que eu gostaria; ele não quer aprender necessariamente aquilo que eu programei para ele, nem curvar-se às estratégias de aprendizagem que eu lhe proponho (MEIRIEU, 2002, p. 288).
O docente também pode manifestar-se surdo à fala do rosto dos alunos e simplesmente ficar indiferente. Pode esquivar-se e se escorar nas suas certezas e seguranças intelectuais, sem se importar com o que acontece no ambiente. A vulnerabilidade que se expressa nestes rostos requerem solicitude por parte do docente. Assim como o rosto pode mostrar grandeza, na vulnerabilidade, ele pode também expressar claro abuso contra a dignidade de outras pessoas. Tal expressão, mesmo que muitas vezes doentia, se constitui num apelo para uma atenção que pode mudar a perspectiva de vida, pois, a vulnerabilidade já é um anseio de ser ajudado e de receber atenção.
O ato de voltar-se para o rosto vulnerável a fim de ajudá-lo, é que se constitui num ato ético e nunca está isento de ambigüidades e dilemas. Nestes mundos que se cruzam, pode prevalecer a força manifesta, ora de um e ora de outro; pode dar ao docente a condição de dizer o que fazer e pode investir também o aluno do poder de agredir, de exigir ou de pretender mandar. Pode também o interesse focar-se meramente no erro ou na atitude detectada e pode igualmente entrar em jogo uma razão mais profunda que aponte um sentido de vida para além desta vulnerabilidade.
A solicitude, por sua vez, introduz um novo tipo de relação que torna possível restituir o equilíbrio entre as partes, inicialmente desiguais... Com a solicitude, o dar terá de perder a força centrada na expectativa de receber e o receber não poderá mais carregar a obrigatoriedade e o peso de ter que restituir algo (ROSSATO, p.5).
A solicitude, por sua vez sela um compromisso de uma necessária reversão da relação inicial que, de forma geral, tende a mostrar-se desigual. Disto emerge o grande potencial da solicitude: enfim, ela possibilita estimar “o si mesmo com um outro e um outro como  a si mesmo”(ROSSATO, p.5).

4 EPÍLOGO

A interpelação de uma ética da solicitude remete a constatar que a resistência do outro pode ser um convite para aproximar-se mais dele, não para aniquilar sua manifestação através do poder exercido sobre ele, mas, do poder que o aluno exerce sobre o docente.
Significa para o docente que, em vez de efetuar uma quebra da resistência do aluno, efetue a quebra da própria resistência e, precisamente disto, emerge a dignidade do agir ético: a capacidade de oferecer ao outro este encontro. Caso contrário, o docente vai aniquilar o outro ao desejar submetê-lo ao pensamento, ou aniquilar-se a si mesmo como vítima expiatória diante da resistência que ele expressa. O docente pode fazer sua palavra dominar e, submeter, sempre que se constata desapontado pelo aluno. Ao impor sua visão sobre o aluno, o docente o transforma numa relação mercantilizada. Por isso, o momento pedagógico, no suporte de uma ética da solicitude, oportuniza ao docente remeter-se a si mesmo, e, constatar que sua forma de veicular o conhecimento, na disciplina que apresenta, realmente não promove o aluno ao nível das suas expectativas ou exigências. Assim, o momento pedagógico se torna condição básica da educação ética em vista da não manipulação do aluno. É difícil? Com certeza, pois o ato de educar não vai estribar-se pela segurança e pelo domínio do conteúdo, mas, pela impotência reconhecida diante do aluno. Aparentemente, isto poderia significar que o docente deva submeter-se a um determinismo fatalista, mas, é nesta relação que o poder pedagógico muda de instância, ao permitir que o aluno assuma o seu próprio lugar e que a oferta do saber o ajuda a ser ele mesmo.
O rosto do aluno, ao expressar qualquer forma de resistência, oportuniza, por conseguinte, uma postura ética ao docente: ele mesmo, ao se interpelar sobre o saber, percebe que não se basta a si mesmo com tudo quanto sabe. Trata-se de uma exigência ética muito mais difícil do que o ditame da ética tradicional.


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[1] Ir. José Kolling é doutor em Educação;  Pe. João Inácio Kolling é doutor em Filosofia e Ciências da Educação. Texto já disponível no site das Faculdades La Salle de  Lucas do Rio Verde, MT.

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