domingo, 13 de outubro de 2013

O homem que expulsava demônios

A Rua Sarmento de Oliveira era a única para o percurso de Carlos Borba da Vila Ramiro Galvão até a Escola Ernesto Alves, onde ele cursava a terceira série do Segundo Grau. Era uma ruazinha estreita e comprida como sermão de padre. Carlos Borba percorria redondos três quilômetros para chegar de casa até a referida escola. No meio do caminho, havia um campinho do milagre. Tratava-se de um terreno baldio, murado, onde uma antiga moradia de madeira fora demolida, e onde somente sobravam algumas poucas e velhas laranjeiras. O portão de acesso era de precários fios de arame farpado, amarrados apenas para impedir eventual entrada de cavalos ou vacas que, geralmente, andavam soltos pela rua e pelos demais terrenos baldios. Numa altura do ano, este local passou a ostentar uma placa de que ali funcionava um lugar de bênção e de curas divinas. Carlos passava todas as noites por ali, no seu itinerário de ir e de voltar da escola. Depois de alguns dias, Carlos começou a observar que, ali, um pastor pregava para três a quatro pessoas, através de uma potente caixa de som. Parecia tratar-se de entusiástica pregação para imensa multidão, mas Carlos estranhava os gritos vociferantes do pastor, insistindo sobre o poder de Deus e a cavilosa ação do demônio para tão pouca gente a escutá-lo. Gradualmente o grupo tornou-se maior e já agregava cerca de 10 a 15 pessoas. Carlos se impressionava com algumas jovens bem trajadas que rodeavam o pastor e lhe alcançavam apetrechos, toalha para enxugar o suor e, a cada pouco, com a Bíblia aberta sobre as mãos, passavam no meio da dúzia de pessoas, que ali escutavam o pastor, para arrecadar a coleta. Quando falava do valor do dízimo e dos benefícios que uma grande oferta para Deus poderia trazer como retorno de graças aos fiéis, o pastor não deixava de mencionar a possibilidade de sorte para ganhar um carro importado, um apartamento de luxo na avenida principal da cidade e casa na praia. As moças iam passando a Bíblia para que os pobres viventes colocassem o dinheiro sobre a Bíblia. Ao perceber que poucos colocavam dinheiro, o pastor apresentava apelos mais incisivos e convincentes, a fim de que todos depositassem o máximo possível sobre as bíblias. Carlos percebeu que muitos tiravam as únicas notas de trocados que possuíam na carteira e as depositavam sobre a Bíblia. Outros, ou mais espertos ou, talvez, sem dinheiro, baixavam a cabeça e faziam de conta que não se sensibilizavam com os apelos do pastor. Passado o ritual de três a quatro voltas com as Bíblias para a coleta, o assunto virava mais sério. O pastor gritava enfaticamente que no meio dos fiéis havia pessoas possessas pelo demônio. Os argumentos e gritos patéticos se tornavam cada vez mais fortes até que alguém entrava em estado de transe. Nesta hora o teatro se tornava empolgante, ainda mais quando o dito diabo baixava e derrubava adolescentes sensíveis e perturbadas. Costumavam jogar-se no chão, se reviravam, se retorciam sobre as raízes de uma velha laranjeira, e, o que mais despertava a voluptuosidade visual de Carlos, era espreitar as pernas e as calçinhas destas jovens que se retorciam e espumavam e gritavam palavras sem nexo. O pastor tinha prática para explorar o fato e fazê-las ficar bom tempo, certamente para gerar comoção nos demais, e de repente soltava os gritos muito fortes de que, pelo seu poder, o demônio saísse da jovem e o nome de Deus voltasse a reinar em sua vida. Ele fazia suas secretárias levantar a jovem, e ele, colocando as mãos sobre a cabeça jogava-a de volta sobre o chão, enquanto brandia que o demônio a deixasse. Todos pareciam atônitos diante dos presumidos poderes perversos do diabo. Carlos, no entanto, prendia-se mais aos contorcionismos das jovens hipnotizadas porque não seria em qualquer lugar que poderia ver cenas de meninas neste tipo de movimentos. As secretárias do pastor, fazendo os “Raps” ao longo de todo o corpo das induzidas ao estado de transe, davam a impressão de que com tais ritos ajudavam o pastor a soltar as unhas do capeta encravadas no corpo das jovens e facilitar ao missionário de Deus o golpe derradeiro da expulsão daquele presumido e atrevido invasor, que, inadvertidamente, resolveu entrar em corpos já contabilizados para o rebanho das ovelhas de Deus. Carlos Borba era um moço muito inteligente, esperto e, também, malandro. Era um músico nato que tocava diversos instrumentos. Em poucas palavras, era um moço gozador e muito divertido. Numa sexta-feira de noite, Carlos programou gazear as duas últimas aulas e convidou alguns colegas de classe para irem com ele até o dito campinho do milagre. Assim que lá chegaram, estava no auge mais uma cena do dito diabo encarnado em duas jovens. A cena era de arrepiar. Elas gritavam, pareciam espumar pela boca, se jogavam de um lado para outro e num estranho entrecruzamento de pernas e braços, tudo levava a crer que o chifrudo realmente andava solto naquele terreiro. Assim que o pastor terminou a suposta expulsão, fez um meneio de olhos para as secretárias passarem a Bíblia, a fim de recolher as pródigas coletas. Retornaram com poucas notas sobre as Bíblias. Foi então que o pastor falou categoricamente: mais gente da platéia está possessa pelo demônio. A grande surpresa dos acompanhantes de Carlos Borba foi a de constatar que o colega foi caminhando no rumo do pastor até chegar a um metro de distância. O pastor o interpelou: o que você está sentindo? - Respondeu Carlos: Pastor, eu sinto uma vontade de matar, de fazer coisa ruim, de judiar das pessoas, de roubar e de fazer coisa feia! - Isto é o demônio! Gritou o pastor. Em nome de Deus, que este demônio te jogue sobre o chão! Carlos, no entanto, permaneceu ali, estático como um poste, girava o olho para os lados, olhava na direção dos colegas, e o pastor não conseguia fazê-lo cair no chão! O pastor explicou que se tratava de um demônio muito resistente e esperto. Chamou as secretárias e nem seus “Raps” amoleciam as juntas para fazê-lo cair. A cena foi se alongando e a força milagrosa do pastor simplesmente não derrubava a Carlos Borba. Todo mundo olhava atônito, especialmente seus colegas. Tudo indicava que a força do diabo, pelo menos desta vez, não estava a fim de submeter-se aos gritos do pastor e, por sua parte, conseguia sustentar Carlos Borba de pé, imperturbável, diante dos poderes de Deus. Quando após longos minutos de nervosismo e de aparente incapacidade do pastor submeter o capeta ao seu comando hipnotizador, Carlos deu a impressão de que seu corpo ia amolecendo e ele, lentamente, parecia uma águia baixando vôo de cócoras sobre o chão. O silêncio invadiu o ambiente e até o pastor ficou parado e estático por instantes. Quando já se esperava que, como aquelas jovens adolescentes, Carlos iria, enfim, bater pernas pelo ar, espumar pela boca e a soltar gritos estranhos e ininteligíveis, ele, na verdade, estava fazendo uma esperta encenação. Começou a bombear com a mão esquerda como se estivesse acionando uma bomba manual, daquelas antigas de encher pneu de caminhão, e, assim que ia bombeando, foi se firmando e subindo até ficar novamente ereto e ainda, com um olhar todo debochado, começou a olhar em redor com um escancarado e sarcástico sorriso. Aí, apareceu outro tipo de capeta: começou um murmúrio e uma agitação tão repentina de pessoas querendo saltar por cima do Carlos Borba que ele se viu pequeno para derrubar as secretárias do pastor a fim de abrir uma rota que lhe permitisse saltar o muro lateral, e como um capeta, rapidamente desapareceu de vista na escuridão da noite. Enquanto isso, o pastor, já armado de um revólver 38, abriu alas no meio da rota que dava ao portão de entrada e saiu rua afora atrás do dito sujeito endemoninhado. Os colegas de Carlos aproveitaram o tumulto para também sumir rapidamente do espaço e rumar para suas casas. Carlos encontraria um problema pela frente: como passar por ali na segunda-feira de noite na hora de ir até a Escola. Como era esperto, mandou um colega ir um pouco à sua frente e verificar como o ambiente se encontrava. De fato, estava ali o pastor esperando a passagem do seu Carlos Borba, com seu revolver 38 na mão. O colega deu sinal ao Carlos e este fez um desvio de mais de três quilômetros, mas, como ao lado da Escola existia uma Delegacia de Polícia, registrou queixa contra o pastor, afirmando que este o esperava com um revólver 38. Os policiais se deslocaram até o local e prenderam o pastor. A única coisa que se conseguiu saber sobre o desfecho do episódio foi uma notícia do jornal local que destacou como manchete de primeira página: “Preso pastor por porte ilegal de arma e por charlatanice”. Assim, terminou o campinho do milagre e as laranjeiras puderam ver-se novamente livres dos efeitos colaterais que as diatribes do chifrudo causavam às suas raízes expostas.

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