segunda-feira, 23 de setembro de 2013

UM TESTE DE PATERNIDADE

Dona Benta, uma senhora alta, gorda e faladeira, sabia apreciar os mínimos detalhes de qualquer pessoa que visse, e costumava emitir comentários dos mais aturdidos a respeito de qualquer vivente da vizinhança. Parecia captar as coisas pelo cheiro. Tinha um vozeirão raro de se ouvir, e, como era pessoa altamente emotiva, conseguia folgadamente chorar, sorrir, brincar e revelar extravagâncias em apenas um minuto.

Do muito que dona Benta sabia falar da vida alheia, nasceram também muitos episódios para deixá-la acabrunhada. Parte da sua capacidade apreciativa das condutas alheias era estimulada por seu marido, Nando, homem irônico, pachola, e, por isso mesmo, muito debochador da vida alheia.

O casal teve, depois de três meninos, razão especial para comemorar o nascimento de uma menina. Era festa, choro, emoção e muito frenesi em torno que viria a ser esta menina. O pai pode acalantá-la pouco tempo, porque um câncer na garganta o fulminou em poucos meses depois do nascimento da menina Zuzi.

Dona Benta, ainda mais choramingona do que antes, oscilava entre responsabilidade na condução do andamento da família e lamúrias diante das dificuldades que enfrentava. Era grito e choro de manhã até noite adentro. Os meninos, embora arteiros, foram crescendo e, aos poucos, criando juízo para assumir as lidas da produção de leite, de aves e de porcos.

A menina sabe-se lá se por excesso de proteção ou de liberdade para fazer artes com os meninos, quando se tornou adolescente, começou a mostrar que não tinha queda para os estudos, mas, um extraordinário pendor para estar no meio da rapaziada. Sempre trajada da calça jeans, botina e chapéu, começou a despertar suspeitas de apresentar alguma anomalia hormonal, ou genética ou psíquica. Dona Benta, a instância suprema da moral e dos bons costumes do povoado, teve que amargar alguma indireta e algum motejo a respeito da conduta de sua pupila dos olhos.

Sem demora o assunto se inverteu e começou a correr conversa de que Zuzi, a excelsa realização de dona Benta, dava sinais de ser “Maria Sapatão”. Aí sim, saía troça de todo jeito em torno dos hábitos da menina. A fama foi se alargando e todos conheciam Zuzi como namoradeira de outras meninas. Por onde Zuzi andava, estava sempre rodeada por um séquito de diversas colegas, e gostava de freqüentar os bares para beber cerveja e falar de formas extravagantes para chamar atenção de todo mundo. Sobretudo em festas, ficava bêbada e, então, as lágrimas do choro da dona Benta tinham que formar um córrego escorregadiço para arrastar a menina para casa.

Quando toda a comunidade já parecia estar acostumada com a sapiência de que Zuzi era “Maria Sapatão”, eis que ela começou a evidenciar que estava grávida. O fato, além de propiciar os mais fartos comentários, impreterivelmente enveredava sobre a possível paternidade. Por mais que todo mundo comentasse o inusitado assunto e se metesse a bisbilhotar a vida de Zuzi com o intuito de descobrir o esplendoroso pai da criança, ninguém conseguia fornecer pistas concretas. Alguns gozavam que dentre as meninas do seu grupo poderia alguma estar enganando a torcida. Supinamente as investigações direcionavam-se mais para os rapazes. Feitas todas as sondagens possíveis e imagináveis, evidenciou-se algo concreto: não foi nenhum rapaz da redondeza.

Restava, então, mais uma alternativa: uma devassa entre os presumíveis homens casados. Dias, semanas e meses não chegaram a evidências plausíveis a respeito do misterioso homem de família que poderia ter engravidado Zuzi. Ela, por seu turno, aproveitou o ensejo para avivar ainda mais o suspense do pai secreto, sem fornecer a mais ínfima indicação do possível nome desta façanha.

Enquanto o suspense rondava os ares e ocupava as conversas, um velho senhor chegou a uma ponderação de bom-senso: como havia suspeita mais destacada sobre dois homens, sugeriu que todos esperassem mais alguns meses até conseguirem ouvir a forma da criança falar. Caso ela utilizasse a palavra “Ansim” - em vez de “assim”, - então, o pai seria o velho matreiro, o alemão Fritz, homem falso até por cima da cabeça, pois era notável pela sua atrevida astúcia. Dizia-se que sua esposa tremia as duas mãos por efeito da doença de Parkinson, de tanto bater nele por sempre estar metido a garanhão caçador de mulheres. Sua aparência, todavia, era a de um santo extraordinariamente devoto e piedoso, especialmente na regência do coral e na forma como rezava alto, postado no primeiro banco da Igreja para cair na vista dos demais que vinham àquele local. Por outro lado, se a menina utilizasse a repetição do cacoete “né”, neste caso, seria o recém casado Pedro Borba, pai de duas pequenas crianças.

Passado mais de um ano sem dados definitivos sobre a paternidade, e como ninguém se preocupava com possível exame de DNA e nem Zuzi reclamava explicitamente alguma ajuda do pai para manter a criação da filha, o melhor exame seria o indicado pelo velho ancião Marciano.


Num belo dia, alguém soltou a conversa de que ouviu a menina dizer “né”. Aí, sim! O assunto percorreu rapidamente a região, e, finalmente, o misterioso caso chegava a um desfecho: o pai seria mesmo o senhor Pedro Borba, o já pai de duas outras meninas. Com mais uns dias de fofoca generalizada, delineou-se finalmente o grande mistério: o pai biológico da menina de Zuzi era de fato Pedro Borba. O documento confirmatório foi uma briga fenomenal com a esposa, que tomou suas duas filhas, e foi morar na casa de seus pais. Terminado o suspense, confirmou-se o exame de paternidade e tudo voltou a outros assuntos de conversa. Talvez nem dona Benta tenha suposto passar por tanta e sequiosa espera de resultados.

OS PAROLADORES DA DEUSA

Quando repicam para muitos lados,
Fortes emoções de mensagem religiosa,
Exaure-se ao auge dos populistas agrados,
O lídimo poder da aparecida deusa poderosa.

Pretensos homens redentoristas,
No milagre da deturpação de um sinal,
O exploram com poderes salvacionistas,
Capazes de eliminar todo tipo de mal.

A insinuação do milagre trás retorno sem precedente,
E na onda da inusitada prosperidade,
Para ninguém atrever-se a ser concorrente,
A todos apelam para maior generosidade.

Vozes trêmulas, moduladas e piedosas,
Insinuando um clima de elevada comoção,
Escondem as manipulações sorrateiras e ardilosas,
Dos fundamentos da nossa religião.

Na vulgar manipulação da fé para a emoção,
Encobrem o duro desafio dos apelos da cruz,
Oferecendo falsa e deturpada noção,
Da fé isenta do que causou a morte de Jesus.

Laureado por décadas de divulgação,
Enaltecem o santuário pelo espantoso fervor popular,
Como se fosse da fé, espontânea manifestação,
De quem pretende sua vida salvar.

Na sina de um processo de alienação,
Repetem, como na antiga Betel, a indecência,
Do sentimento religioso explorado por Jeroboão,
Como sendo de Deus a melhor benemerência.

Não seria mais sensato avivar a memória,
De Maria, a humilde mãe de Jesus:
Servidora modesta, exemplar e sem glória,

E, que, ainda hoje, como modelo reluz?

O ZÉ DA FILOSOFIA VOLUPTUOSA

Nos idos tempos do pleno rigor da ditadura militar brasileira, muitas lidas foram cerceadas. No entanto, não foram controladas todas as lidas humanas e nem as volúpias que se manifestavam efusivamente na vida de muitos jovens alunos de segundo grau em salas de aula.

Na histórica cidade de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, cultivava-se em 1970 um verdadeiro orgulho em torno do Colégio Estadual Ernesto Alves. A fama da boa qualidade, no entanto, não ostentava questões mais sutis que se passavam em salas de aula, envolvendo olhares, interpretações e deduções.

Uma das professoras, a de Filosofia, fora agraciada por extraordinária beleza física: morena de excepcionais fontes de fascínio estava condecorada, com todos os méritos, pelo título de Miss Piscina do Rio Grande do Sul. Para os alunos, o corpo da bela professora propiciava muito mais raciocínios lógicos e filosóficos do que suas monótonas e abstratas explicações sobre Demócrito, Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxágoras, Anaxímenes, Sócrates, Platão e Aristóteles.

Como na época o auge da moda era o da mini-saia, esta constituía a vestimenta preferida das moças e das jovens senhoritas. Um detalhe tornava os mistérios da atração ainda mais insinuantes. Especialmente as professoras gostavam de vestir-se com saias de couro. Isso dava um acréscimo peculiar e de status ao bom gosto da moda. Para os alunos do segundo ano do Curso Científico, este detalhe adquiria outra nuance filosófica muito valiosa. Ao contrário das outras saias curtas e justas, as de couro, ficavam mais rígidas e abertas. Esta característica gerava disputas dos rapazes em torno dos lugares para assentar-se na sala de aula, a fim de obter os melhores lances de visualização do que se manifestava sob as sombras destas saias de couro. Nada se tornava mais emocionante do que o momento em que as professoras decidiam escrever algo no quadro, sobretudo, quando iniciassem as primeiras linhas escritas o mais próximo possível da margem superior. Nesta hora, o agraciado de ocupar a primeira classe do lado esquerdo da sala se considerava privilegiado por visões altamente filosóficas, pois apareciam as calçinhas das professoras e além da interpretação da cor, vinham alguns comentários sobre outros aspectos anatômicos visualizados naquele instante. Se não era por informação oral, pelo menos seguiam circulando alguns bilhetes pela sala, a fim de informar os detalhes observados com as devidas hermenêuticas.

Se muitas professoras despertavam olhares mais rígidos sobre certas partes do corpo, a de Filosofia gerava suspenses de respiração toda vez que ameaçava escrever algo no quadro. Por certo tempo, muitos alunos vinham mais cedo para assegurar a primeira carteira no lado esquerdo da sala. A disputa foi se tornando mais acirrada e o Zé, que se manifestava o mais voluptuoso, e que, seguidamente não era o primeiro a chegar no tempo de assegurar o lugar privilegiado para as melhores visualizações, resolveu comprar a exclusividade do espaço, prometendo, aos demais colegas, pagar-lhes uma janta num restaurante. Topada a proposta, o Zé se tornou o informante em torno das curiosidades mais agudas a respeito do que se manifestava sob as saias de couro.

Na aula de Filosofia, como a professora era limitadíssima em discussão e em ponderações filosóficas, ocupava-se eminentemente em escrever frases isoladas no quando e pedia que os alunos as copiassem. Evidentemente que o Zé, não conseguia copiar nada, mas, num belo dia, enquanto a professora escrevia as primeiras linhas no alto do quadro e oferecia uma visualização panorâmica do que se apresentava sob a saia de couro, o Zé estalou os dedos para pedir a palavra à professora e perguntou:

- Professora! Posso dizer uma frase bem filosófica?

- Pode, sim, - toda gentil - respondeu a professora!

Foi então que Zé soltou sua tergiversação filosófica, provavelmente fruto do que via, e falou:

- Professora, onde sua saia termina, o pensamento continua, enquanto efetuou um gesto de elevação das mãos!

A professora, mesmo morena, avermelhou-se instantaneamente, baixou o olhar sobre a saia, apertou-a com as mãos para aproximá-la mais das protuberantes coxas, desandou num choro, e saiu rapidamente da sala.
Poucos minutos depois, estava na sala a coordenadora pedagógica para uma conversa séria. Depois dos xingamentos iniciais, alguns colegas partiram para a defesa do Zé e informaram a coordenadora a respeito do que acontecia com todas as professoras e, até mesmo com ela, quando se inventava a fazer desenhos gráficos sobre o quadro. A coordenadora se aquietou mais e, de repente, sem maiores ponderações, aparentemente também surpresa com a fonte das principais elucubrações filosóficas despertadas naquela sala de aula, saiu. A respeito do que aconteceu depois disso, foram efeitos práticos muito rápidos. Somente a imaginação poderia aproximar os fundamentos últimos desta realidade para uma interpretação filosófica do que engendrou os acontecimentos, mas, objetivamente, a bela professora de Filosofia nunca mais apareceu na sala de aula, e, em seu lugar, veio um professor, por sinal, altamente feio e desajeitado. Ademais, as outras professoras nunca mais foram vistas na sala de aula com saias de couro.


Dias depois começaram as lamentações a respeito do peso e das repercussões do raciocínio filosófico do Zé. Produziu um estrago enorme para os floreios imaginários e os devaneios em torno dos conteúdos que mais despertavam atenção às professoras. O Zé não honrou as promessas, e, as ponderações filosóficas se tornaram ainda mais abstratas.

O OVO DA SENHORITA BRIAN

O atual salto estratosférico dos avanços nos múltiplos campos do conhecimento, aliado às inusitadas tecnologias já disponíveis para levar uma vida com menos dores, com diminuição de sofrimentos, e, gradualmente, com mais momentos prazerosos, - certamente bem antes de 2070, - terá extirpado da face da Terra a necessidade de mulheres terem que suportar profunda alteração do corpo para gestar durante nove meses e, ainda, se submeter às dores de parto, aos momentos de amamentação, de banhos e de troca de fraldas, sem falar da perda de sono para acalmar choros que podem revelar mil intentos do seu querido bebê. Tudo isso acontecerá pelos efeitos de ovos artificiais, impregnados com todos os nutrientes devidamente balanceados para uma gestação perfeita e enriquecidos por alterações no código genético para ampliar a beleza, a imunidade contra doenças e muni-lo de predisposições atléticas, além de assegurar assepsia, integridade máxima e o atendimento até mesmo de gostos subjetivos e dimensões da voga cultural relativa ao corpo perfeito. Aliados a estas predisposições, centros de criação e educação se incumbirão da tarefa de criação e de educação, encargo que uma vez era precípua da mãe.

A Senhorita Brian, produto de fecundação “In Vitro”, absorveu muitos traços do meio-ambiente, sobretudo, o das elevadas pretensões da sua mãe, que a todo custo quis ter uma filha vistosa e amorosa, mais do que inteligente e trabalhadora. Criada no ambiente de obsessiva compulsão por um corpo sedutor, fascinante, atlético, curado, sarado e desincumbido, Brian já nem aprendeu a cultivar inquietações em torno de possíveis desconfortos de maternidade. Ficou relegado aos memoriais do passado o desconforto de gestar filhos e as atinentes e duras lidas cotidianas para educá-los.

A realidade, já totalmente outra dos tempos considerados de antanho, lá dos anos de 2010 a 2015, já se encontra imune até de certas cólicas e desconfortos decorrentes da condição feminina, pois, a ingestão de comprimidos causadores de efeitos prazerosos permitirá a coleta dos óvulos que serão levados a centros de genética e ali serão avaliados, aprimorados, e, os melhores, serão instalados em ovos artificiais. Afinal, fazer a evolução humana chegar ao estágio dos ovíparos seria uma regressão a um estado inferior, pois implicariam em algo similar a ter que agüentar a insinuação dos galos a todo instante, a sempre tomar no mesmo lugar e ainda a ter que fazer extraordinário esforço para ejetar os ovos. A lida com os ovos artificiais será o baluarte da vida facilitada pela tecnologia humana.

Toda a emissora de óvulos possuirá o amparo da Lei que lhe dará o direito de escolher o lugar onde guardá-los, já não mais misturados num recipiente congelado, mas em ovos selecionados e enriquecidos que podem ser guardados em qualquer parte. Podem, inclusive, ser levados para casa. Foi o que a Senhorita Brian resolveu fazer com um de seus ovos. Disto, todavia, decorreu um encadeamento novelesco, no ano de 2070.

Tudo começou num ato imprevisto: um “garanhãozinho”, metido em assaltos, invadiu numa segunda-feira de manhã, bem cedo, o luxuoso apartamento da senhorita Brian, quando ela ainda tentava acordar a aurora dos seus olhos para um novo dia, e, como ele estava interessado na apropriação de jóias, encontrou no mesmo cofre, um ovo da senhorita Brian, que ela conservava ali com especiais cuidados, pois desejava vê-lo fecundado pelo galã majestoso, elegante, inteligente, musculoso e amoroso que era Rufo, homem em torno do qual acalentava os mais elevados sonhos na perspectiva de que fosse partilhar sua genética e qualificar ainda mais o fruto do seu ovo de especial primazia.

A audácia do “garanhãozinho”, que inadvertidamente se antecipou na fecundação, proporcionou uma frustração profunda na senhorita Brian e ela, rapidamente, acionou a equipe do Centro de Genética para uma penosa tentativa de evitar o andamento da fecundação. A mobilização intensa da equipe de genética desencadeou um trabalho contra o tempo e conseguiu reverter o quadro da fecundação efetuada pelo “garanhãozinho” e, orgulhosamente, devolver a genuína originalidade do óvulo no ovo da senhorita Brian. Para a grata satisfação da senhorita, o ovo estava ali, íntegro e apto para ser fecundado por uma genética de pedigree mais nobre e mais elevado nos parâmetros da classe “A” masculina. O preço da reversão da fecundidade, embora mais caro do que o esperado devolveu a serenidade à senhorita Brian, pois o Centro Técnico de Genética pelo menos lhe permitiu voltar ao quadro homeostático anterior.

Eufórica com a recuperação do seu ovo predileto, a senhorita Brian resolveu investir na reforma do seu luxuoso apartamento a fim de assegurar mais segurança para sua virtualidade de prole, mantida no ovo. Tudo feito sob medidas de segurança e sob muitos controles eletrônicos poderia finalmente a senhorita Brian voltar à tranqüilidade de acalentar uma aceleração da procura do jovem Rufo, com vistas a lhe apresentar a proposta que imaginava vir a ser prontamente atendida: o majestoso iria fecundar a genética especial do seu ovo.

Quando tudo parecia encaminhar-se para um final feliz, eis que um imprevisto de suspenses e ansiedades toma conta da vida da senhorita Brian. Rufo, o homem dos seus encantos morreu num acidente de vôo supersônico. A tragédia obrigou senhorita Brian a efetuar um doloroso e incerto procedimento para encontrar outro parceiro ideal a fim de fecundar seu ovo. Mais um capítulo de sonhos e de desencantos. Finalmente apareceu um novo e possível parceiro para o projeto do seu ovo. Ele aproximava-se em muitos traços de Rufo e segundo captou de diferentes fontes informativas, chama-se Rid, com feição jovem e porte atlético. A senhorita Brian vai ao seu encontro e leva uma resposta altamente decepcionante: ele declarou queda para outra condição de gênero e não se dignou assumir responsabilidades em função de paternidade de filhos. Mais um capítulo se desencadeia em torno do fracasso, dos conselhos de amigas e da recuperação de forças para voltar a procurar um fecundante para seu ovo.

Antes mesmo de encontrar um presumido fecundante a senhorita Brian viu-as às voltas com outra grave ameaça ao potencial do rebento de sua vida. A empregada ao fazer limpeza, quis tirar o pó das jóias e num descuidado manuseio do ovo da senhorita Brian, deixou-o cair no chão. Agora, sim, tudo parecia ruir de alto a baixo. Ao saber do ocorrido, a senhorita novamente acionou a equipe Técnica de Genética para ver se conseguia restaurar o invólucro do ovo e re-implantar todos os ingredientes necessários para assegurar a integridade do óvulo implantado no ovo. Outro capítulo se desenrola.


Por fim, como os pretendidos bonitões não deram à senhorita Brian a alegria de fecundar seu ovo, ela acabou escolhendo um varredor de rua, homem rústico, um tanto mal ajeitado, mas, positivo, otimista e de bem com a vida. Atendida na solicitação, a senhorita Brian pode finalmente interpretar-se mãe, como as outras, e levou o ovo a uma instituição para ser acompanhado, e depois de romper-se a casca para o nascimento do pretendido filho, vê-lo e deixá-lo sob a guarda a fim de ser tratado e cuidado com todos os requintes de nutrientes para tornar-se  musculoso, forte e dadivoso.

O LOBO MAU

Há dias atrás o senhor conhecido como “Seu Zé”, com aparência preocupada, falou: Não sei se conto ou se confesso, pois, já matei cinco lobos, e continuam a aparecer outros para comer os carneiros e as galinhas, lá na Fazenda.

Mesmo que os lobos, sobretudo os guarás, constituam uma espécie em extinção e, apesar da legislação proibitiva do abate desta espécie de animais, eles continuam sendo vítimas de um antigo preconceito de que são maus, e pela característica de seu modo de caçar para sobreviver, encontram na vida sedentária das Fazendas o que já não encontram nas matas do cerrado. Diante dos avanços agro-industriais, os lobos estão categoricamente fadados ao extermínio completo.

Há milhares de anos os lobos vêm sendo discriminados por um preconceito humano por uma razão simples: gostam de algumas iguarias alimentares que os seres humanos apreciam em seus confinamentos como carneiros e galinhas. Só este gosto peculiar os rotulou como “lobos maus” e, conseqüentemente, como inimigos dos seres humanos.

O desejo de conservar as galinhas, os carneiros e outros animais domesticáveis da Fazenda, para as finalidades do seu dono e, não as dos lobos, oferece uma rica analogia para entender nossa sociedade de controle. Os lobos, desde tempos remotos, se constituíram em concorrentes rivais em torno do mesmo interesse de consumo de parte do que se produz na Fazenda. Ocorre, porém, uma diferença notável: se o dono abate uma galinha, sente-se grato pelo alimento que a dádiva divina ou da natureza lhe concedeu. Por isto, frui o saboroso alimento com um sentimento satisfação.

Se o dono da Fazenda mata o lobo, o sentimento já não é o mesmo do que ocorre com a galinha. Afinal, matando um lobo, elimina um concorrente e sente-se vitorioso e mais poderoso no controle dos seus animais domésticos. Interessante é que o lobo mesmo não atacando o dono da Fazenda, passa a ser considerado inimigo do Fazendeiro, porque quer as mesmas galinhas e os mesmos carneiros para o seu alimento. Por que o Fazendeiro pode e o lobo não pode apossar-se da carne produzida pela natureza?

A passagem da vida nômade para a sedentária, certamente abriu este traço cultural que já vem se perpetuando há cerca de quatro a cinco mil anos: o direito de matar quem ameaça o foco de interesses. Assim como no controle de alguns animais, evitando que sejam transformados em natural alimento para concorrentes, os seres humanos acharam-se no direito de eliminar tudo quanto representa “lobo mau” nas relações consumistas do mercado. Nesta relação, muito mais predadora do que a dos lobos, impõe-se em nosso sistema social o ditame da dominação e da subordinação. Sob esta ordem, os verbos predominantes da comunicação são os de controlar, dominar, e neutralizar tudo quanto possa vir a constituir eventual risco destrutivo dos interesses.  

Quem ameaça os interesses, é transformado em inimigo ou “lobo mau”. Como inimigo, merece ameaça, perseguição e morte. Ele sempre é razão de guerra. Como os interesses são produzidos e, ao mesmo tempo decorrentes de encantamentos em torno das idealizações projetadas, já não se espera segurança da espontânea produção de animais e de plantas, mas, se interfere na bio-engenharia para acelerar ainda mais a produção. O olhar unidirecional aponta a necessidade de abundância e a urgente necessidade de protegê-la cada vez mais contra os “lobos maus” que possam, mesmo num momento de muita fome, desejar parte desta acumulação. Como não há limites no desejo de assegurar o necessário, os “os lobos maus”, que aprendam a comer folhas e a sobreviver com o oxigênio!

Na sociedade o sistema acumulativo leva a rechaçar e a perseguir quem possa ameaçar os desejos, e aumenta-se a atenção em torno dos eventuais atrevidos, inimigos potenciais, a fim de que sejam eliminados, ou pelo menos, sob ameaças, mantido a distância quilométrica. A emoção em torno da defesa do que foi apropriado é o argumento suficiente para matar quem possa pretender parte da apropriação deste fruto da emoção desejada: isso é meu! Daí porque em todos estes milhares de anos, fala-se muito da miséria e da fome, mas não se muda a barreira criada em torno do declarado “inimigo”. Afinal, sua morte representa alegria da conquista e de aumento de poder e já não é mais pensada como homicídio.

Grande parte dos seres humanos é perseguida para que não tenha acesso à alimentação normal. O natural ato de proteger implica em outro, que é o da desconfiança. E a simples suspeita de que alguém é “lobo mau” já justifica exclusão de morte e todo arsenal de guerra contra ele.

Para assegurar o êxito da guerra, seja a da provocação, da difamação ou da real eliminação, cria-se o complexo messiânico: é preciso admoestar, corrigir e convencer a todos para que sejam submissos e aceitem ser orientados no bom caminho; que morram de fome, mas que não comam as “galinhas da Fazenda”. A desconfiança aumenta em relação aos que não se submetem, pois, a autonomia, seja ela política, civil ou religiosa, já irradia pelos olhos o perfil do “lobo mau”. Na linguagem religiosa o “lobo mau” esconde sob a pele a ação demoníaca o “chifrudo”. Disso decorre a evidente justificativa de que tudo precisa ser hierarquizado e que a ordem desta hierarquização precisa contar impreterivelmente com a obediência. Tudo deve estar fundamentado na autoridade e na subordinação desta autoridade, e por ela ser conduzida nos rumos do “bem”.

As galinhas não podem ficar sob a tutela dos lobos, ainda que os donos das Fazendas as matem de forma similar. Competir e caçar os “lobos maus’ passa a constituir a ordem máxima e da maior excelência, na competição por mais prosperidade e progresso de nossos dias. Na “grande Fazenda” dos carneiros e das galinhas, (ambiente social) não há lugar para quem pensa diferente, seja, no quadro religioso, político ou sócio-cultural.

O lobo que precisa da carne das galinhas para sobreviver, não tem mais este direito. Este direito foi assumido pelo Fazendeiro, seu rival de luta, de autoridade e de poder, que é capaz de controlar os outros a fim de que fiquem submissos aos ditames do que a sua verdade, nascida de um encantamento emocional, lhe indica.

O GAUDÉRIO DE PASSO FUNDO

João Inácio Kolling

Se o conhecidíssimo cantor gauchesco Teixerinha teve o mérito de promover e tornar a cidade de Passo Fundo conhecida em todo país, através do canto que, um tanto maldosamente conhecido como “mi priguntaram si sou gaúcho”, elevou também a autoestima dos traços culturais típicos daquela simpática cidade. Por esta influência, e talvez por outras razões, era comum que os pais se referissem aos seus filhos, chamando-os de gaudérios. Significava imponência, coragem, virilidade, enfrentamento e, acima de tudo, sujeito muito macho.

Pedro Dantas começou a chamar seu primogênito de gaudério desde o dia do nascimento. Possivelmente projetava, no menino, o gaúcho valente e destemido que pretendia ser. Pedro era um daqueles gaúchos, que, na identidade das vestes e dos aparatos típicos de gaúcho, se sentia importante e elevado na auto-estima. Mesmo sem cavalo, sem fazenda e sem gado, por onde andasse, sempre ia de botas, bombachas, lenço vermelho no pescoço e um chapéu de beijar santo de parede.

Quem visse Pedro certamente pensaria que se tratasse de um gaúcho daqueles de guaiaca forrada de muito dinheiro. Ledo engano. Era um pobre funcionário de Frigorífico. Seu menino, super mimado, e, sendo cotidianamente chamado de gaudério, aprendeu cedo a valer-se do título para fazer todo tipo de estripulia. Quando alguém ia à casa de Pedro, o tema central da conversa impreterivelmente acabava girando em torno das travessuras e traquinagens que o menino aprontava. Ao ouvir cotidianamente estes elogios, o menino também constatou que na medida em que aprontava suas maluquices, se tornava mais importante diante dos pais e assegurava a centralidade das conversas com os visitantes.

Mal estava desmamado o menino e já andava passando, a todo instante, as mãos na área genital, imitando seu pai e, presumidamente, dando a entender que era macho daqueles bem respeitados. Antes mesmo de poder ostentar algum surgimento de fiapos de bigode, este menino, gordo, parrudo e comilão, se impunha no ambiente da meninada como machão.

Num belo dia apareceu um mágico na cidade e foi anunciado pelo rádio que faria uma série de apresentações mágicas. Tratava-se de um argentino realmente prendado para esta área de artes e seu sotaque espanhol e, um pouco aportuguesado, ajudava a criar um clima especial para os suspenses que despertava com seus truques. Uma platéia enorme ria e se divertia de forma efusiva e extasiante.

Repentinamente o mágico pediu para fazer um truque com o menino mais macho da cidade. Mais de trinta saltaram rapidamente sobre o palco. Com muita gozação e jeito, o mágico foi efetuando uma eliminatória, pois, não queria qualquer macho, mas o macho da cidade. O menino do Pedro Dantas acabou sendo o selecionado. Sentiu-se o máximo diante do auditório lotado. O mágico soube explorar, com aguda sensibilidade, o honroso título e lhe falou que iria fazer sumir uma dúzia de ovos de forma misteriosa. O menino, já mais sério e atento, ficou com o olhar fixo sobre a caixinha de ovos. O mágico retirou-os um por um e, depois de poucos e rápidos gestos, estes ovos tinham desaparecido. Encenou, então, uma busca destes fragmentos galináceos. Mexeu em caixas e pessoas e ninguém visualizou onde poderiam estar estes ditos ovos. Subitamente o mágico levantou a suspeita de que os ovos deveriam estar com o menino. Este todo metido a valente assegurou, e com toda pompa, que não estava com os ditos ovos. O mágico continuou insistindo e, de repente, falou que iria pelo menos revistá-lo. Passou a mão nas costas e sobre o peito sem indícios relativos aos ovos.

Diante do suspense, o mágico olhou para a platéia, e numa aparente preocupação pelo sumiço dos ovos, disse que teria que verificar as partes baixas do menino. Passou a mão no ganchinho do zíper e abriu a braguilha da calça e foi puxando um ovo após outro. O delírio da platéia foi tão intenso que o dito gaudério, estático, embasbacado com a cena, num frêmito de fuga, saltou para o lado do palco e com mais um pulo sumiu através da janela. O tombo de mais de dois metros o tornou leve como um gato e rápido como a serelepe para cruzar a praça e desaparecer no rumo da casa dos pais.


O episódio prestou-se para dois importantes benefícios na vida deste gaudério: o gaudério macho para mais de metro, virou um menino acuado e discreto e nunca mais foi visto a passar acintosa e ostensivamente as mãos nos bagos.

NORMATIVIDADE TECNOLÓGICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

João Inácio Kolling[1]

Resumo: A normatividade tecnológica apresenta dupla procedência. Ao lado da legislação dos órgãos sociais controladores e delimitadores a respeito do que pode e o que não pode ser feito, bem como sobre o que, necessariamente, precisa ser observado na utilização das TICs (Tecnologias de informação e comunicação), existe também um poder de barganha e de legislação indireta de normatividade a partir dos grupos que produzem tais tecnologias. Esta dupla fonte de incidência sobre o ambiente escolar tolhe praticamente todas as possibilidades de professores planejarem programas educacionais. 
Palavras-chave: TICs. Normatividade. Controle social. Poder decisório. A verdade dos controladores.


Introdução

Existem dois tipos de normatividade na educação escolar: um, é o das regras e dos limites estabelecidos pelos órgãos de controle social, através de leis, decretos, portarias e normas; o outro tipo de normatividade decorre da própria tecnologia aplicada na educação escolar.

Nossa abordagem vai ocupar-se brevemente destes aspectos sem, contudo, ponderar sobre os incontáveis decretos normativos. Visa mais uma análise do que, de forma mais sutil e sorrateira, atua sobre o condicionamento da atividade pedagógica. A partir de uma perspectiva filosófica e, no âmbito da linha 04 de pesquisa da Faculdade La Salle de Lucas do Rio Verde, - sobre “Identidade e Cultura”, - pretendemos salientar que no espaço escolar, sob a égide das TICs, ocorrem mínimas possibilidades para intuições criativas do agir pedagógico.

O espaço escolar se encontra sob rígido sistema de controle e de ação, procedente de fontes exteriores ao ambiente escolar. Pode uma escola estabelecer bonitas e boas metas, mas o que prevalece, são aspirações alienígenas ao ambiente escolar.


1.    A definição dos conteúdos

Uma pergunta óbvia a respeito de quem define os conteúdos irá, com certeza, remeter-nos a professores. No entanto, a definição procede de um ambiente político ideológico que não é o da escola e nem o das peculiaridades da cultura local. Mesmo quando os professores são convidados a estruturar o conteúdo e a metodologia, precisam seguir normas pré-estabelecidas a respeito do que os alunos podem e devem conhecer independente do seu passado e do quanto já o dominam.

Parte desta presença alienígena procede da normatividade oficial do governo. Outra parte procede das Tics (Tecnologias da informação e comunicação)[2]. Estas se encontram de tal forma estruturadas e imbricadas que não abrem espaço para o que lhes é externo e, por isso mesmo, impõem um discurso homogeneizante. É como imaginar uma piscina num navio: o nadador opta por nadar na direção sul, mas, o navio o leva ao rumo norte. Assim, torna-se muito difícil manter a tecnologia a serviço do ensino de algo peculiar, pois o “navio tecnológico” se impõe sobre o método da “piscina escolar”. O cotidiano de uma ambiente escolar, com valores específicos do seu ambiente social, passa a ser sublevado pelos valores da tecnologia educacional. Disto resulta uma evidente inversão: a tecnologia já não está a serviço do processo de ensino-aprendizagem, mas, molda e conforma a prática educacional à sua própria dinâmica. Nesta reconfiguração, o trabalho docente torna-se refém da tecnologia da educação.


2.    A fonte do poder decisório

Segundo Michel Focault o estudo da genealogia das relações de saber e poder permite concluir que a construção do saber é uma resultante do poder estabelecido nas sociedades. A legitimação deste poder costuma ocorrer através de dois procedimentos:
a) Pelo Direito: que costuma estabelecer regras jurídicas para delimitar o poder;
b) Pela Verdade: através dos discursos legitimadores que reconduzem ao poder.
Disto decorre uma pergunta: como se consegue exercer o poder? Mediante produção e afirmação de verdades. Como pressuposto do poder, está uma lógica da autonomia dos discursos relativos à verdade. Quando os discursos são considerados verdadeiros, então, acabam gerando dispositivos de poder: na sociedade ocorre certo tipo de procedimentos que exorcizam o risco de outros poderes com vistas a disfarçar a materialidade que está em jogo, um discurso controlado, selecionado, redistribuído para refrear algo que possa ser diferente.[3]

Ao discurso atribui-se o poder de dizer a verdade oculta, de anunciar o futuro e de ver o que os outros por si mesmos não conseguem atingir. Por isso Focault entende que a verdade é implantada através de muitas coerções, capazes de regulamentar o poder. Assim, cada sociedade implanta esquemas e políticas de verdade. Para tanto seleciona, escolhe e faz funcionar certo tipo de discurso a fim de induzir uma distinção do que é considerado verdadeiro e do que é afirmado como falso. Escolhem-se até mesmo os melhores caminhos para valorizar o que é tido como verdade, o que, por sua vez, reforça o estatuto dos que podem afirmar o que é eficaz e verdadeiro.[4]

A verdade, ou melhor, a sua afirmação, está estreitamente ligada a sistemas de poder que a produzem e, pelos efeitos do poder, induzem para que seja reproduzida. Assim, numa escola, uma disciplina não constitui tudo quanto pode ser dito sobre qualquer assunto ou coisa e o que pode ser aceito, mas, constitui uma forma de controle através do discurso que estabelece limites e regras a respeito do que pode e do que não pode ser dito[5].

Também não pode passar despercebido o exagero e a exacerbação das justificativas de que o poder das forças microeletrônicas seja capaz de gerir mudanças sociais e levar a sociedade a ser mais justa e solidária. Há uma visão determinista que tende a atribuir às TICs um poder regulador da economia, capaz de sanar tudo quanto possa não estar no melhor nível de êxito do sistema capitalista. Sob a apregoada sociedade da informação pode estar sendo desfocado o velho problema das desigualdades sociais, pois, nem todos terão os mesmos recursos de acesso às informações veiculadas. Por outro lado, isso não significa negar o alto e elevado potencial que as TICs representam como ferramentas para atos educativos, mesmo que ainda estejam sendo usadas no âmbito de formas mais tradicionais e conservadoras de programação escolar. Significa, por conseguinte, que não é preciso ser “tecnólatra” (perceber nas TICs poderosa arma libertadora para gerar progresso na cultura, na educação, na ciência e na economia) e, tampouco, “tecnófobo” que recusa a tecnologia e a vê como nefasta contra os bons costumes e as riquezas da cultura[6]. As TICs, na verdade, são frutos da cultura.

Um efeito visível das TICs certamente não está na polarização que lhes atribui, de um lado, a capacidade de gerar novo sistema de acumulação, ou, de outro lado, de ver nelas a superação de todas as mazelas econômicas e políticas da nossa sociedade excludente, mas, é o de afetar menos o desgaste muscular com a correspondente valorização da intelectualidade. De fato, ocorrem mudanças expressivas no campo laboral, nas formas de gerenciamento e de produção. Mesmo assim, as TICs não são portadoras de valor intrínseco, a partir de si mesmas, mas têm seu valor relacionado com instituições e convenções sociais. Elas ajudam a reproduzir a base material da nossa sociedade e, em razão disto, tornam-se objeto de tantas e de tão acirradas disputas políticas.


                                3- O controle através da normatividade social

Os mecanismos de imposição do poder não procedem apenas dos grupos que fabricam Hardware e Software, mas, também das práticas do controle social. A sociedade apresenta sistemas coercitivos de fiscalização que atingem muitas instâncias da vida coletiva. Basta lembrar o controle que exerce sobre presídios, fábricas, espaços religiosos e também sobre as escolas. Em todos estes âmbitos, procura adequar indivíduos às regras estabelecidas. Assim, as pessoas ficam sujeitas aos imperativos dos que detêm poderes nas instituições sociais.

O que seria do devoto que não quisesse subordinar-se diante da autoridade eclesiástica, ou do presidiário que não quisesse acatar as ordens policiais ou ainda do operário que não quisesse trabalhar para os interesses do patrão?

A tendência é a de que os detentores do poder justifiquem a necessidade de comportamentos disciplinados, de modos que, o discurso da autoridade precisa ser silenciosamente ouvido e acolhido. Da mesma forma, justifica-se que a disciplina torna o indivíduo menos contestador e muito mais dócil, pois lhe permite domesticar os eventuais impulsos capazes de incitar possíveis revoltas.

As forças de controle social esperam dos indivíduos nada menos do que a capacidade de produzir resultados que possam ser benéficos à sociedade, com procedimentos apaziguados, mas ativos, isto é, que não fiquem muito no ócio. E para que possam produzir bem, até mesmo o final de semana passa a ser divulgado como período de apatia e de esforços físicos mínimos, estimulando-se apenas o ato de ligar e desligar o televisor e fixar os olhos e a atenção sobre o que aparece na sua tela, a fim de estejam em boas condições de serviço produtivo na segunda-feira.

Existe um controle quase onisciente sobre os indivíduos a partir dos sistemas dos organismos sociais e que procuram tirar destes indivíduos toda a capacidade contestadora. Ao lado deste olho onisciente, criou-se um sistema “panóptico” (do olho que enxerga tudo) e que projeta uma idéia moral, como a atribuída por longo tempo do pensamento cristão ao olhar de Deus: teria a capacidade de perceber e de conhecer de antemão tudo o que pode vir a ser importante e bom para os indivíduos. Assim, justifica-se a imposição rigorosa de regras com vistas a gerar comportamentos uniformes em todos aqueles que se encontram vigiados, sejam alunos, empregados ou prisioneiros.

Sob este quadro, o poder “panóptico” dos sistemas de controle social tende a massificar para o anonimato e será muito pouco provável que escolas, por exemplo, possam educar para inovações na cultura. O próprio sistema de controle já existe para evitar que possam surgir sobressaltos que venham a suplantar seu domínio. Neste paradoxo de controlar as aspirações individuais através da normatividade, como pressupor que entidades educacionais venham a orientar para o que possa desestabilizar a sociedade?

O papel preponderante do controle social vem sendo incrementado precisamente através dos recursos dos modernos meios de informação e de comunicação social. Consegue tal alcance, invertendo o foco da espionagem. Se um indivíduo espiona o que não lhe é permitido, é levado a se pensar como imoral, porque está invadindo a privacidade alheia. E para continuar a sentir tal sentimento de culpa, é levado a invadir a privacidade dos programas tipo “Big Brother”, sem ser considerado um criminoso, que invade a privacidade de um grupo de pessoas desconhecidas em relação a tudo quanto fazem num determinado confinamento. Estes indivíduos são, todavia, transformados em objetos observáveis para despertar prazer mediante olhares inadvertidos de concupiscência. Só que o culpado parece ser o espectador sentado no sofá. Para sentir o alívio deste peso, os mecanismos de controle do poder logo indicam o que em tudo isso destoa do padrão estabelecido e o espectador passa a ser o juiz a julgar o ato. Quem na verdade faz isso, são as câmaras oniscientes da própria sociedade.

Concluindo, podemos destacar que a normatividade tende a falar mais alto do que a criatividade e a inovação. Se o discurso valoriza sobremaneira estes últimos aspectos, esconde, com certeza, o cerceamento que permite margens muito estreitas de efetivas inovações no ambiente escolar.

As TICs realmente aceleram processos já existentes. Também aceleram novas maneiras de entender a realidade, novas formas de linguagem e novas formas de ler, de escrever e de comunicar-se. Deste modo, afetam a subjetividade tanto de professores como de alunos e alteram as formas tradicionais de pensar a experiência.

Se as TICs tendem a direcionar para certas opções sociais e culturais, direcionam segundo técnicas oriundas da própria cultura para o controle social. Disto decorre um evidente risco: o de imaginar que o progresso técnico produza por si mesmo um desenvolvimento humano e social.

Geralmente não se explicitam os pressupostos das normatividades tecnológicas que não apontam o tipo de sujeitos, de sociedade e de projetos culturais que querem desencadear. Portanto, uma grande e vistosa parafernália de TICs no ambiente escolar não significa que automática e necessariamente ocorram avanços educacionais porque além da apropriação e do domínio das TICs, supõem-se que professores queiram usá-los para despertar pessoas livres e responsáveis e não apenas uma grande homogeneidade de seres subservientes, atrelados a grupos de controle.

                       BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Raquel Goulart. Tecnologia e educação: trabalho e formação docente. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v25n89/22617.pdf
BITTENCURT, Renato Nunes. A sociedade de controle e seu indiscreto olhar normativo. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/094/94bit
CHAVARRIA, Fátima. A Importância das TIC no Processo de Desenvolvimento Curricular. Disponível em: http://elisacarvalho.no.sapo.pt/pdf  
CHAVES, Eduardo. Tecnologia da Educação: conceitos básicos. Disponível em: http://pt.shawong.com/social-ciences
ESTERHUYSEN, Anriette. A Sociedade da Informação de quem? Disponível em: http://unesdoc.unesco.org.
FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso (trad. de Edmundo Cordeiro e Antônio Bento). Disponível em: http://pt.scribt-com.doc/2520353
LOPES, Gills. A Cibersociedade anárquica: análise do uso das TIC nos conflitos internacionais do século XXI à luz da Escola Inglesa de Relações Internacionais. Disponível em: http://www.mundialistas.com.br    
LOPES, Ruy Sardinha. As TICs e a Nova economia para além do Determinismo Tecnológico. Disponível em: Doc838(As TICs e a Nova Economia para além do Determinismo Tecnológico).pdf - Adobe Reader
PELAEZ, Víctor. Biopoder e regulação da tecnologia: o caráter normativo da análise de risco dos OGMs. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/asoc/v7n2/24692/pdf
RIVAS, Teobaldo. Docência no ensino superior e tecnologia. Disponível em: http://teobaldorivas.com/2011/05/17
Teorias normativas da estrutura dos media. In: Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Ed., 2003 – 2011. [Consult. 2011-07-15]. Disponível em: http://infopedia.pt/$teorias-normativas-da-estrutura-dos-media  




[1]  Texto já disponível no site das Faculdades La Salle de Lucas do Rio Verde – MT.
[2]  A Tecnologia constitui o acervo de tudo quanto se inventou com artefatos técnicos e métodos capazes de estender a capacidade física, sensório-motora e psíquica com vistas a facilitar o trabalho e as relações interpessoais. A Tecnologia em Educação é mais ampla que a informática e a sala de aulas, pois envolve a conexão da informática com a Internet, o que a alarga com a acessibilidade ao rádio, televisão, vídeo, cinema, etc.
[3]  No livro a Ordem do Discurso, p. 2
[4]  Idem, p. 10.
[5]  Por isso Focault escreveu que “penso que, através do ódio que o povo tem da justiça, dos juízes, dos tribunais, das prisões, não se deve ver apenas a idéia de outra justiça melhor e mais justa, mas antes de tudo a percepção de um ponto singular em que o poder se exerce em detrimento do povo” (p. 44).
[6]  Será, pois, de suma importância perceber que, no âmbito das TICs, como em tantos outros âmbitos da organização humana, existem donos e controladores de políticas e de normatividades.

FÉ E RAZÃO EM TEMPOS DE CIÊNCIA – é possível diálogo edificante?

Dr. João Inácio Kolling[1]
Resenha

O diálogo entre Razão (Filosofia), Fé e Ciência apresenta uma longa história de muitas dificuldades. Em alguns momentos ocorreram polarizações pouco respeitosas de cada um destes ricos campos da cultura. Atualmente o tema parece estar menos significativo devido à fragmentação da cultura e da autonomia da ciência, postura que evidentemente pode inquietar sob muitos aspectos éticos, religiosos e filosóficos.

Procuramos salientar que uma postura do “emocionar-se” na memória da cultura matrística anterior à patriarcal indo-européia e européia, contem a potencialidade de levar a um sentimento mais lúdico e criativo, e que, com certeza, fará bem enorme ao diálogo entre Fé, Razão e Ciência. A ancestralidade humana e pessoal da condição essencial de sobrevivência ainda permite recriar a partir dos subsolos inconscientes de arquétipos culturais antigos a re-valorização de outro modo de lidar com as coisas e as pessoas, e, com virtualidades efetivas de enriquecimento do diálogo entre os campos que mais caracterizam nossa cultura.

Palavras-chave: Razão (Filosofia); Fé; Ciência; Emocionar-se; Brincar (traço matrístico).



Introdução
           
A história dos últimos três milênios revela desencontros constantes e até acirrados no relacionamento entre fé, razão e ciência. Seria a longa ancestralidade pré-cultural indo-européia capaz de oferecer uma luz com perspectivas mais matrísticas, isto é, mais plausíveis para a cultura e o entendimento de co-inspiração destes ricos elementos da organização humana no planeta?

A antiga contraposição de fé e razão, ainda não satisfatoriamente equacionada, encontra novos ingredientes desafiadores na atualidade: como situar os dois campos diante do espantoso avanço da ciência e da revanche pragmática da emoção subjetiva?

Parece que a Boa Nova da Salvação anunciada por Jesus Cristo não caiu pronta do céu. Basta observar que, da forma como nós a lemos e a interpretamos, representa redação penosamente articulada entre duas grandes heranças culturais.

Vivemos atualmente algo similar ao cristianismo primitivo envolvendo fé, razão, ciência, e mais uma dimensão que eclode das sociedades pré-patriarcais indo-européias, mas, com uma virtualidade muito plausível de constituir-se em caminho mediador para as rígidas fronteiras de controle de cada um destes ricos ingredientes culturais: trata-se de um elemento que foi central nas sociedades matrísticas pré- patriarcais, - um “emocionar”, - capaz de propiciar maior capacidade de brincar.

A capacidade de brincar é certamente a herança biológica mais expressiva da nossa condição humana e cultural. Basta observar que na evolução biológica a capacidade de brincar e de lidar ludicamente com os fatos do entorno familiar e social, bem como do meio-ambiente, é anterior ao raciocinar, ao ato de fé e à capacidade científica. Como nosso quadro cultural decorre do cruzamento da linguagem com situações e fatos que mais emocionam em torno dos saltos da ciência, e, dentro destes referenciais de cultura, foram aprendidos, imitados e socializados, os modos próprios de “emocionar-se” distantes do “brincar”.

A abafada e desacreditada capacidade de brincar, poderia certamente constituir importante mediação para equilibrar mais estas diferentes formas de olhar o mundo, a vida social e as pessoas e suas conquistas filosóficas, teológicas e científicas.

Do emocionar-se decorre a capacidade de brincar, capacidade tão marcante, intensa e expressiva nos primeiros anos de vida, mas, que, gradualmente, é diminuída, controlada, abafada e reprimida no processo de educação. Distante da capacidade de brincar, os adultos tendem a proceder com traços altamente sérios, sisudos, rançosos, controladores, perseguidores, e, profundamente propensos a mover-se na vida pelo desejo de controlar, de incorporar, de hierarquizar e de dividir tudo em função dos interesses e desejos, sejam eles movidos por fé, por razão ou pela ciência.

Uma dimensão mais lúdica indica que as rígidas fronteiras entre fé, razão e ciência poderiam ceder lugar para uma vizinhança mais amistosa e capaz de co-inspirar a todas as partes.

Da arqueologia anterior à nossa cultura européia ainda sobrevivem pequenos sinais de uma cultura matrística, isto é, persistem predisposições de maior sensibilidade e disposição para colaborar, especialmente nas mulheres, e ainda, não movida pela obsessão compulsiva de controlar, possuir e para isso, dominar, espoliar, extorquir e guerrear a fim de satisfazer desejos insaciáveis.

Abordaremos primeiramente aspectos da herança filosófica grega e do sincretismo gnóstico, que se constituíram em forças patriarcais dominadoras para a incipiente emergência do pensamento cristão e de sua maneira de considerar a fé diante da primazia da filosofia e do conhecimento gnóstico da época. Depois salientamos como na Idade Média o pensamento cristão chegou à síntese de que tudo, ciência, ética, filosofia, organização jurídica, estética, etc. deveriam concorrer para o caminho da Igreja católica, rumo à felicidade eterna fé.  Em rápidas idéias mostramos também como a ciência tomou um rumo autônomo e gerou uma grande fragmentação não só dos ramos das muitas ciências, mas também uma quebra de fronteiras entre os distintos campos da ciência e outras manifestações da cultura como fé e filosofia. Por fim, damos ênfase à possível recuperação da capacidade de brincar como mediação capaz de situar a vida para além dos quadros culturais, que, infelizmente apontam para progressivo desequilíbrio, tanto da vida humana quanto dos sistemas de vida no planeta.
  


1 – Entre o Húmus da Filosofia Helênica e a Chuva do Gnosticismo

Parece que a forma como os cristãos tiveram que lidar entre orientações ambivalentes de dois quadros míticos, filosóficos, mágicos, religiosos, místicos e culturais, remete para posturas muito humildes e modestas diante do que atualmente se argumenta, teológica e filosoficamente, na pretensão do anúncio da “Boa Nova” da salvação do Evangelho de Jesus Cristo.

Os primeiros cristãos não obtiveram de forma mágica e imediata a possibilidade de desdenharem lacunas da razão filosófica grega e tampouco a cultura grega apresentava fortes argumentações para combater a concepção de mundo cristã com seus imprecisos conteúdos de salvação eterna.

O ambiente cultural da emergência do pensamento cristão estava impregnado simultaneamente pela cultura grega e, por outro quadro cultural, o da GNOSE, muito pragmático, mas, fruto de um ecletismo entre elementos culturais masdeístas, babilônicos, de judaísmo heterodoxo, e, até mesmo, de religiões mistéricas gregas e de filosofia helenista.

Não foi certamente à toa que alguns padres da Igreja consideravam a Gnose uma Hidra de cem cabeças, que, sob alguns aspectos, se mostrou perturbadora dos valores religiosos cristãos de forma muito intensa até o século XIII, mas, que ainda faz emergir resquícios na argumentação de grande quadro religioso brasileiro, especialmente, no discurso teológico pentecostal e neopentecostal.[2]

Utilizamos uma imagem, a do húmus e da chuva, para ilustrar aquele momento de difícil escolha, e que atingiu apenas parcialmente seus objetivos, pois, certas tendências, sobretudo as patriarcais, se impuseram na prática cristã e hoje, com outro húmus e outra chuva de um modo diferente de emocionar-se da cultura recente, tendem a nos trazer alguns impasses.

O pensamento cristão teve que engendrar-se entre o rico húmus da cultura helênica e a intensa chuva do quadro cultural gnóstico. E hoje, onde poderia estar um novo componente capaz de despertar outro modo de emocionar-se para afetar a cultura com valores menos dominadores?

1.1 – A herança cultural helênica

A maçã tentadora para os primeiros cristãos vinha de dois lados: de um lado, já mergulhados no mundo cosmopolita helenizado, um modo de vida (“modus vivendi”) que cultivava a espiritualidade já a partir da Filosofia, tal como ocorreu com os Estóicos e Epicuristas. Encontrariam ali uma larga motivação para uma espiritualidade ascética, que veio marcar profundamente a vida monástica cristã. O pensamento filosófico grego, sobretudo o do período clássico tardio, oferecia um simpático itinerário espiritualista: as palavras da fé, meditadas pela razão, podiam ser memoradas pelo coração.

O itinerário espiritualista grego oferecia a Orígenes a condição de dividir a filosofia em três saberes e a três graus de ascese espiritual: a) A ÉTICA – ligada à purificação; b) A FÍSICA – ligada à suspensão do sensível; c) A TEOLOGIA – vinculada à contemplação do Criador do Universo.

Este húmus helenista ofereceu um belo arcabouço para estruturar diversas instâncias do pensamento cristão: a SOPHIA, a DIDACHÉ, a DOUTRINA, o MAGISTÉRIO e a SCIENTIA. Este conjunto de recursos facilitou o QUERIGMA cristão e permitiu elevar sua THEOLOGIA à universalidade e à cidadania universal na cultura ocidental.

1.2 – A herança cultural gnóstica

E o que a tentadora maçã da Gnose oferecia, por outro lado, à incipiente articulação dos seguidores de Jesus Cristo?

A Gnose oferecia um caminho rico de razões, tanto para as esperanças, quanto para as interrogações dos primeiros cristãos porque lhes oferecia, não apenas um arcabouço, mas uma moldura cognitiva para tornar-se o depósito da fé: eles, como tantos neo-pentecostais de nossos dias, estavam constituídos em portadores da revelação superior por um caminho novo: nem pela mediação da graça, ou da doação, e nem pelo caminho ascético e de crescimento para a conquista da perfeição. Simplesmente, por uma iluminação ou inspiração imediata.

Enquanto o pensamento grego oferecia o patamar mais elevado para a Teologia, a Gnose, ao contrário, praticamente a dispensava e a tornava inferior ao ato de conhecer. De posse do mundo superior, o gnóstico também inferiorizava o mundo terreno, pois, mesmo nascido na condição inferior da Terra, considerava-se renascido para o superior.

Do acesso ao mundo superior, decorriam, por outro lado, diversas conseqüências muito marcantes: desprezo ao mundo, ao corpo, especialmente à sexualidade que nele se explicitava, desprezo ao jogo, ao lúdico e, até as mediações das divindades inferiores que poderiam intervir para o alcance do Deus supremo. Assim, a tarefa de um bom gnóstico consistia em proferir oráculos para antecipar o aguardado da escatologia. A gnose ao mesmo tempo centrou no indivíduo a instância da divinização. Isto trazia uma tensão para quem vivia sob o quadro cultural judaico: onde ficaria o demiurgo bíblico e a Lei, se apenas as instâncias celestes importam para a vida?

Este pano de fundo estaria muito presente na elaboração das escrituras cristãs e com a apologética da teologia posterior.



2 – Dificuldades entre fé e razão na Idade Média

O pensamento cristão da Idade Média estabeleceu um conflito: para os cristãos a origem, bem como o sentido da vida e a condição da existência do ser humano, dependia dos dados da revelação de Jesus Cristo. No antagonismo desta idéia estava o pensamento de adeptos do pensamento grego que desejavam estabelecer os parâmetros da filosofia para a conduta moral, religiosa e ética.

Para os expoentes do pensamento cristão, mesmo separando os campos da fé e da razão, a primazia estava com a fé e entendiam que a razão deveria servir à fé. Tampouco faltaram no interior do pensamento cristão defensores que apostavam na exclusividade da fé, postura sintetizada na expressão “Sola Fides” (Somente a fé).

Defensores da tradição filosófica grega, por sua vez, sustentaram que a racionalidade era condição necessária para vencer preconceitos, subordinações e atrelamentos irracionais. Memória muito antiga do período clássico da filosofia grega dava a segurança de que a filosofia foi fundamental para superar a manipulação da fé do contexto religioso das narrativas de Homero e Hesíodo, cerca de 800 anos antes de Cristo. Por outro lado, o pensamento cristão, baseado na fé, não estava totalmente isento de interesses ideológicos.

2.1 – Agostinho de Hipona

Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) foi fundamental para o pensamento cristão. Constatou que não poderia haver fé sem pensamento. Com isso, reconhecia o valor da filosofia, pois entendia que a inteligência, em vez de eliminar a fé, possuía a virtualidade de esclarecê-la e de clarificá-la. Portanto, para “crer” haveria uma inerente necessidade de se “compreender”.

Como a razão se manifestava antes da fé, Agostinho reconheceu que ela tinha estreito vínculo com a fé. Desta forma, se o conhecimento racional se mostrava importante para a vida humana, havia, contudo, um acréscimo: Jesus Cristo veio para restaurar a condição humana decaída sob um império da razão. Concedia, assim, um papel relevante à filosofia: interpretar a Escritura.

No tempo de Agostinho ainda se assimilava o pensamento grego como relevante para a Teologia, porque ajudava a diminuir o efeito das superstições e das formas religiosas politeístas. Mesmo assim, conciliar noções básicas da filosofia grega com a crença na ressurreição da carne, exigia um malabarismo todo especial. Por isso Agostinho distinguia três tipos de Teologia:
a) Mítica - A dos poetas antigos com suas histórias religiosas;
b) Política – A do Estado;
c) Natural – A dos filósofos, porque estes, especialmente os platônicos apresentavam muitas afirmações sérias e sólidas a respeito de Deus. Deste modo Agostinho pensava que o Filósofo deveria ser um verdadeiro amante de Deus.

Depois de longo tempo de predomínio do pensamento agostiniano no interior da Igreja Católica, já na alta Idade Média, começou a prevalecer o pensamento aristotélico e diante desta Filosofia, a fé era vista como estranha ao corpo da Filosofia.

A tentativa de especulação, vinda desde o século II da era cristã, encontrava em Agostinho explicações razoáveis sobre a existência de Deus, mas, nem por isso os tempos posteriores a ele ficaram sossegados com sua conciliação de fé e razão. Mesmo que Agostinho tivesse adaptado o pensamento platônico aos princípios da Igreja, muitas pessoas pendiam mais para idéias filosóficas helenistas antigas, especialmente a partir da recuperação do pensamento aristotélico.

Foi neste momento que apareceu Tomás de Aquino para apresentar uma distinção nítida entre fé e filosofia: a filosofia dependeria da luz natural da razão, enquanto que a fé dependia de instância superior da revelação e da visão sobrenatural das coisas, o que se encontrava explicitado nas Escrituras e na doutrina da Igreja.

2.2 – Tomás de Aquino

A nova divisão entre Filosofia, fundada somente na razão ao lado da Fé, sobrenatural, fundada na Revelação, passaria para a história teológica e filosófica posterior a primazia da fé e da Revelação, como caminhos para conhecer Deus e o sobrenatural.

Com o surgimento das Universidades Medievais, a partir do século VIII, persistiu a preocupação em torno da relação entre fé e razão. Só mais tarde, no século XIII, diante do florescimento do Aristotelismo, especialmente pela influência árabe de Avicena e Averróis, Tomás de Aquino se tornou notável através da adaptação da metafísica aristotélica à doutrina da Igreja Católica.

Se Agostinho havia conciliado fé e razão, Tomás de Aquino, ao contrário, separou os dois campos, mas, subordinou a razão à fé, mesmo admitindo que a razão tenha capacidade de alcançar as verdades de Deus. Na prática, prevaleceu a conhecida expressão: “Philosophiae ancilla Theologiae” (isto é, a Filosofia é serva da Teologia).

Da separação de campos da Fé e da Filosofia, efetuada por Tomás de Aquino, originaram-se muitas reações: de um lado o Nominalismo, que passou a negar a Razão e a dar ênfase exclusiva à Fé e à Revelação; outra forma exagerada surgiu com o Jansenismo, na França, que passou a colocar o Fideísmo acima de tudo, no sentido de que a graça se opõe à razão humana. Além do desprezo da Razão, passou-se ao cego apego à Fé.

O longo período de hegemonia do pensamento cristão começou a sofrer intensa adversidade, especialmente nos séculos XVII e XVIII: o argumento mais forte sustentava a necessidade de dar maior suporte à razão para combater a tirania do pensamento da Igreja Católica. Este processo de reação contra o pensamento cristão teve sua culminância no surgimento do Iluminismo (com a Aufhebung e Aufklärung), ou seja, a crença de que a razão teria todas as capacidades de resolver todos os problemas humanos, de clarear e elevar a condição humana. Entendia-se que o pensamento cristão mantinha a humanidade presa ao estágio juvenil e que se fazia necessária uma emancipação para a vida adulta e livre.

Ainda hoje persiste este embate, mas já podemos delinear uma perspectiva menos aguerrida e mais sintética: nem demais para o céu e nem demais para a terra! Constata-se que a vida humana sob a regência do Iluminismo não se mostrou tão eficaz quanto pretendia ser. Se muita gente estava alienada sob o domínio da fé cristã, continuam hoje em proporções iguais, ou maiores, os alienados pelo sistema produtivo que privilegia apenas pequenas parcelas da humanidade.

Diversas correntes agnósticas e ateístas se juntaram no combate ao pensamento católico e à sua Teologia. Feuerbach, por exemplo, considerava a religião mera hipostatização (projeção) dos desejos humanos para instâncias divinas e que, por sua vez, passariam a controlar e submeter os seres humanos. Marx chegou à conclusão de que a religião estava constituída em ópio do povo, isto é, estava sendo uma droga alienante. Freud atribuiu ao fenômeno religioso uma fuga infantil da realidade e Nietzsche, uma mera projeção dos fracos na vida. A culminância positivista, atéia e anti-religiosa passou a defender que a religião não tinha mais sentido.

Como iria reagir a Igreja Católica?

Com a segurança dada pela concepção escolástica de que o conhecimento natural (filosofia) deveria levar ao sobrenatural de Deus através da Teologia, aferrou-se nesta postura pietista de uma radical crítica à racionalidade e a decorrente secularização.

Enquanto que Tomás de Aquino foi notável na capacidade de diálogo com o pensamento filosófico mais vigoroso da sua época, para fazer uma extraordinária síntese: a “Summa Theológica” com elementos tanto da filosofia hebréia quanto da árabe e aristotélica, a Teologia moderna, distante desta característica não se mostrou capaz de dialogar sistematicamente nem com a filosofia e nem tampouco com a Tecnociência. A defesa implacável da Doutrina Católica desviou a capacidade de um discernimento crítico ante tudo de novo que se apresentava. Assim, o pensamento cristão não soube captar da síntese tomista as necessárias luzes para outras novas sínteses.



3 – Fé e Razão diante da Ciência

De algum tempo para cá a antiga contraposição entre Razão e Fé, perdeu relevância porque nova polarização passou a ocupar as atenções. Os rápidos saltos da ciência, mesmo engendrados a partir de muitos séculos de fé e razão, passaram a relegar tanto a Filosofia quanto a Teologia. A partir do mito moderno de que o homem moderno podia viver feliz apenas com o suporte do conhecimento científico, acabou, por sua vez, criando uma inquisição parecida ao combater sistematicamente tudo o que ameaça sua hegemonia: a queima das bruxas acontece de maneira mais subliminar e sutil, mas, em nome da ciência e de seus ditames, milhões de seres humanos também são queimados nos fogos da exclusão e negação.

Assim como o pensamento moderno quis emancipar-se da autoridade e da doutrina católica por defender violentamente suas argumentações teológicas, parece que necessitamos de uma avaliação e de nova síntese diante do nosso tempo.

A violência gerada para estabelecer felicidade moderna, vive a contradição do que almejou: o rumo autônomo da ciência tanto em relação à Filosofia quanto à Teologia, fez com que a fragmentação da ciência em incontáveis ramos e sub-ramos, e, mesmo sendo fruto histórico da racionalidade, se revela tão irracional que ameaça de instabilidade tanto na dimensão emocional quanto na dimensão religiosa das pessoas. Porque lida somente com dados disponíveis, pouco ou nada se preocupa com o sentido da vida e da sua condição, porque já não consegue mais estabelecer sínteses e apenas avança sobre deduções de dados disponíveis.

Assim a ciência estabelece uma nova ruptura com a vida humana. Esta ruptura se direciona para dois sintomas evidentes: com o avanço da racionalidade científica e objetividade procuram as pessoas refúgio na sua subjetividade, o que afeta tanto a ética quanto a religião porque envolve sorrateiramente toda a riqueza da vida comunitária. Assim, encontramo-nos na iminência de uma fé restrita ao intimismo subjetivista do indivíduo e às buscas mágicas e imediatistas para solucionar os problemas que ali se manifestam.

Quando cientistas não respeitam nem ética e nem direitos humanos, nem passado, nem memória cultural, passam a lidar com os seres humanos como com qualquer coisa que existe, fazendo deles mero objeto de experimentação e de aproveitamento dos dados deduzidos. Esta autonomia representa evidentemente grave perigo de desrespeito profundo ao ser humano, à biosfera e aos sistemas que permitem a existência humana. Quando a ciência se move por obsessiva ganância, até mesmo os grandes avanços científicos ficam restritos ao desfrute de muito poucas pessoas e geram alto desequilíbrio nos eco-sistemas e na vida humana.

Como fica a fé diante deste quadro técnico-científico?

Podemos alargar o entendimento desta relação com uma noção importante, escrita por Urbano Zilles e que salienta um dado da Teologia católica: a fé e a ciência, duas formas de conhecimento, não se excluem e tampouco se opõe ou se substituem, mas, pode uma, no exercício da sua função crítica, cobrar mais rigor dos argumentos da outra.[3]

O referido autor também salienta que um cientista não deixa de ser cientista por causa da fé, mas, tampouco o crente relega sua fé por causa da ciência, pois, mesmo distintas, fé e ciência, podem complementar-se. Numa imagem comparativa, a fé anda nas estradas racionais e estas apresentam limites que precisam ser conhecidos pela fé e, como esta não se constitui apenas em produto da estrada racional, convém lembrar que ela também depende da graça de Deus. Nisto se destaca a clássica frase de São Pedro: temos que dar as razões da nossa esperança (1Pd 3,15). Zilles ainda complementa esta distinção ao afirmar que se a ciência não comprova a existência de Deus, tampouco consegue comprovar a sua não existência. A fé não depende apenas de proposições apresentadas como verdadeiras pela ciência, mas se constitui num ato pessoal de resposta a Deus como sentido último da existência.[4]



4 – EMOÇÃO

Nosso momento histórico não vem demonstrando registro de grandes polêmicas em torno dos três campos que incidem fortemente sobre a sociedade. Talvez por efeitos do relativismo e dos refúgios subjetivistas, o tema não se encontra no cerne das grandes inquietações humanas. Mesmo assim, existiria algum elemento que, à imagem do cimento, seja capaz de “ligar e dar solidez” aos componentes da Fé, da Razão e da Ciência?

Na ótica de Humberto Maturana e de Gerda Werden Zöller nossa ancestralidade biológica apresenta um componente bem anterior ao raciocinar, ao ter fé e ao agir cientificamente. Trata-se da capacidade de se emocionar. É do cultivo desta capacidade que se gestam fluxos de desejos, idéias, valores e símbolos, capazes de orientar a vida de forma satisfatória.

Nós seres humanos, não somos animais racionais. Nós, seres humanos, somos animais que utilizam a razão, a linguagem, para justificar nossas emoções, caprichos, desejos.”[5]

No livro A Ontologia da Realidade, Maturana destaca que as emoções constituem um fenômeno peculiar do reino animal, mas,

Nós seres humanos não somos animais racionais (...) somos animais linguajantes emocionais que usamos as coerências operacionais da linguagem para justificar nossas preferências e nossas ações no processo, e, sem nos darmos conta disso, nos cegamos para o fundamento emocional de todos os domínios racionais que trazemos à mão.”[6]

De acordo com Winnicott existe entre a subjetividade e a expressão objetiva um espaço potencial no qual ocorre um fenômeno transicional (trânsito entre a subjetividade, que representa a “lei da mãe” e o mundo objetivo e estruturado, símbolo da “lei do pai”. É neste espaço que ocorre o “jogo jogante”, ou seja, a vida em seu movimento criativo, que torna um indivíduo capaz de produzir algo bom para si e para os outros.[7] É também ali que se manifesta a “linguagem do coração” que, para a existência humana, é muito mais ampla do que o mundo objetivo e estruturado.

Para Maturana a condição biológica básica do ser humano é a dependência do amor e, a capacidade social decorre desta dependência, sobretudo no modo de convivência e de integração com outras pessoas e com o entorno do ambiente. Desta origem básica do amor também decorre que os seres humanos necessitam, ao longo de toda a sua existência, sinais e gestos de amor. Interferências negativas na vivência do amor constituiriam a maior parte das doenças, tanto físicas quanto psíquicas. Assim, o eixo articulador da existência humana com sentido acontece no entrelaçamento diário de razão e emoção porque a razão sempre depende de um estado emocional. Por isso, o que nos torna realmente peculiares é a do uso da linguagem e do seu entrelaçamento com o “emocionar” (um verbo substantivado usado por Maturana).

Gerda Werden Zöller ao apontar uma saída para o nosso tempo aponta a possibilidade de uma “sociedade matrística”, nem machista e nem feminista e nem controladora: simplesmente uma sociedade onde homens e mulheres centram sua vida na cooperação não centralizada. Para tal sociedade a condição feminina apresenta por natureza maior propensão para participar e criar condições a fim de que haja menos controle e autoridade. Nesta condição também se melhora o conceito de sério com diminuição do cansaço, da sisudez, do ranço, das dores e dos sofrimentos desnecessários. Sobra, então, muito mais condição para viver de forma mais leve, alegre, criativa e hilária.

Os mencionados autores Maturana e Zöller destacam que do clima lúdico e criativo depende a sobrevivência de uma criança. Eles evidentemente não estão se referindo a programas lúdicos, que certamente são benéficos, mas, ao brincar como um agir lúdico e criativo. Por conseguinte, a percepção de como nos emocionamos – basta ver como uma criança nos seus primeiros meses de vida reage captando por osmose o modo de ser da mãe e dos demais familiares, - nos leva, além de internalizar este ambiente do início da vida, a nos marcar indelevelmente com maior ou menor capacidade de emocionar-nos com nosso entorno e nosso meio-ambiente.

E se observamos a cultura humana, o que a leva a mudar e tornar-se diferente? Não está nos seus fundamentos o “ato de emocionar-se” em torno de algo novo e inédito? Um modo coletivo de nova e grande emoção leva à criação de algo novo. Portanto, é no ato do “modo de emocionar-se” que pode estar presente mais paixão, raiva, revanchismo ou vingança. O ato de conversar, todavia, exerce um papel fundamental para a explicitação da capacidade de emocionar-se:

“A palavra conversar vem da união de duas raízes latinas: cum, que quer dizer com e versare que quer dizer dar voltas com o outro (...) o que ocorre no dar volta juntos dos que conversam, e o que acontece com as emoções, a linguagem e a razão?”[8]

Por isso, Maturana também deduziu que:

O humano é vivido no conversar, no entrelaçamento da linguagem e do emocionar que é o conversar. Além disso, o humano se vive em redes de conversações que constituem culturas e também se vive nos modos de vida que as culturas constituem como dimensões relacionais, que descrevemos como dimensões psíquicas, espirituais ou mentais.”[9]

Tal perspectiva de entendimento da importância da emoção na vida humana permitiu a Maturana concluir que a ética não tem seu fundamento na razão, mas na emoção. Por isso, o papel fundamental do ato de conversar:

Considero central para a compreensão do humano, tanto na saúde como no sofrimento psíquico ou somático, entender a participação da linguagem e das emoções no que, na vida cotidiana, conotamos com a palavra conversar.”[10]

Se na raiz do ato de emocionar-se está uma elevada capacidade de brincar como elemento “fundador” de um “estado de espírito” diante das coisas, alguém que sabe brincar, no sentido lúdico e criativo, vai exteriorizar outro tipo de “estado de consciência. Com certeza, uma atitude lúdica diante das inquietações religiosas, filosóficas e científicas, levará a um modo de agir muitíssimo diferente de quem se pensa sério e rigoroso em seus procedimentos de fé de razão e de conhecimento científico.

O modo de conversação permite delinear muito nitidamente o efeito cultural patriarcal em relação ao matrístico: enquanto que na conversação patriarcal predomina a apropriação, na matrística, prevalece a participação; enquanto que na cultura patriarcal a sexualidade feminina é associada à procriação, na matrística, decorre da sensualidade e da ternura de homens e mulheres; enquanto que na cultura patrística a luta e a guerra são consideradas formas naturais de convivência, inclusive com graduações e condecorações de valores e de virtudes; na matrística, a excelência se manifesta na cooperação e no companheirismo para a boa convivência; enquanto que na cultura patriarcal o místico é experimentado como subordinação a uma autoridade transcendente e cósmica, na cultura matrística o místico constitui participação consciente para fazer acontecer e conservar harmonia na existência ao longo do ciclo entre vida e morte; enquanto que na cultura patrística os deuses sempre são assimilados como autoridades que estabelecem normas arbitrárias e exigem incondicional submissão, na cultura matrística, deusas evocam a conservação da existência sem apelo a autoridades e poderes; enquanto na cultura patriarcal o pensamento é linear e assimilado como submissão da autoridade diante do que é diferente, na cultura matrística, o pensamento é sistêmico e aberto ao diferente; enquanto que na cultura patrística as relações dependem da autoridade, dependência e controle, na cultura matrística, baseiam-se na cooperação, no acordo e na co-inspiração; enquanto que na cultura patriarcal a mulher é subordinada ao homem, na cultura matrística não ocorre nem oposição entre homem e mulher e nem subordinação.[11]

Nos diversos modos de conversação facilmente se evidencia o tipo de perspectiva cultural patrística ou matrística, como:
a) Coordenar ações presentes e futuras;
b) Lamuriar-se ou pedir desculpas pela não sustentação de acordos e promessas;
c) Ponderar sobre desejos e expectativas;
d) Mandar e levar a obedecer;
e) Caracterizar, atribuir e avaliar;
f) Queixar-se por expectativas não alcançadas ou por promessas falsas ou deixadas sem cumprimento;
g) Ou, então, conversa de co-inspiração, na qual a coordenação de ações e emoções leva ao desejo de um empreendimento em comum e nele se realiza e se funde o respeito mútuo, o que aufere dignidade e liberdade para ações responsáveis.[12]

Parece que um modelo muito evidente de quem quer orientar-se na fé, na razão e na ciência, precisa ser sisudo, sério, controlador e, mais do que tudo, radical e polarizado na sustentação do que quer insinuar. Com isso, toda a riquíssima ampliação da vida na fase infantil motivada pela capacidade de emocionar-se, vai gradualmente sendo substituída pelo conceito de seriedade e de rigor. E quais são as principais decorrências deste deslocamento? As pessoas pouco se entendem a si mesmas e, menos ainda, conseguem ajustar-se razoavelmente às outras.

Se a criança aprende no “ato de emocionar-se” diante do mundo circundante, não estaria nesta capacidade a perspectiva de um jogo mais leve entre fé, razão e ciência?

Se o primeiro estágio da vida humana está impregnado de fatores emocionantes, como fatores de interação e de adaptação social, os estágios que seguem, vão, gradualmente, afastando as pessoas desta peculiaridade. Um olhar retrospectivo sobre passado histórico das nossas origens leva a constatar que longa tradição patriarcal da ancestralidade européia – herança patriarcal indo-européia - levou a uma condição humana extremamente difícil de convivência, porque ao invés de alargar-se a capacidade de brincar, fruir e sentir-se impregnado pelos encantos da fé, da razão, ciência e da convivência, faz prevalecer a ato de dominar, de controlar, de competir predatoriamente, e, de agir com autoritarismo e desrespeito elementar às pessoas e à diversidade biológica e ambiental, além do desrespeitar os mais básicos direitos humanos.



5 – Ponderações Finais

A conseqüência da gradual ocultação da capacidade lúdica e criativa se mostra manifesta nas informações diárias sobre destruições, desperdícios, terrorismos, injustiças, procedimentos de exclusão social e pelo profundo medo subjetivo dos indivíduos. Tudo isso, numa sociedade inteligente, crente e conhecedora de insondáveis situações, e que se auto-interpreta como altamente civilizada.

Se os avanços da fé, da razão e da ciência gestam tal quadro de mal-estar, não seria oportuno voltar a valorizar algo tão infantil, mas tão grandioso que é o brincar para fruir melhor as amizades, a convivência, a natureza e o sentido da vida, especialmente, com os progressivos avanços na filosofia, na fé e na ciência. Porque não dançar como a criança pequena que se entusiasma ao perceber olhares de atenção e expressões de encantamento pelo que é capaz de avançar no alargamento da sua existência?

Assim, diante do criador e de todas as belas conquistas do campo teológico, filosófico e científico, poderíamos sentir-nos como crianças encantadoras e encantadas com o valor que o entorno familiar lhe concede. No ato de “brincar criativamente”, com certeza, poderão advir mais luzes para as grandes inquietações humanas e luzes menos alienadas, menos deslumbradas pela retórica vazia, mas, altamente mais auto-respeitosas e essenciais à capacidade de respeitar as outras pessoas.



5 – BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Antonio. A relação protensiva entre Fé e Razão na Filosofia medieval. In:
www.lusosofia.net, 2003.
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida – uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo:
Cultrix, 1996.
MATURANA, Humberto. A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. A Árvore do Conhecimento. Campinas, SP: Editorial
Psy II, 1995.
MATURANA, Humberto e WERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e Brincar – fundamentos esquecidos do
humano. São Paulo: Palas Athena, 2004.
SILVA, Dantom G. P. 67 Proposições sobre a biologia do amor. (dansilva@pr.gov.br).
SOUZA, Wladimir Ferreira de. Winnicott & Maturana: um diálogo possível? In: www.uerj.br,
publicado em 06/05/2008.
WINNICOTT, D. W. Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais. In: O Brincar e a Realidade.
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1975.
ZILLES, Urbano. Fé e Razão na Filosofia e na Ciência. Porto Alegre: PUC, REVISTA TRIMESTRAL,
v35, no. 149, set 2005, p. 457-479.





[1] pe.joaoinacio@gmail.com
[2] O movimento pentecostal abre uma importante tensão ante a tendência de institucionalização religiosa. Ao pressupor que a difusão dos carismas pode manifestar-se em qualquer pessoa e em qualquer lugar, desloca o tradicional entendimento católico da revelação de Deus. Não o entende relacionado ao momento histórico, do qual a Sagrada Escritura é uma das expressões, mas pressupõe que este processo se realiza no dia-a-dia da fé das pessoas carismáticas. Tal deslocamento pode nos indicar uma suspeita de que se trate duma possível tendência a uma nova institucionalização, através da caracterização de certos gestos, de certos ritos e de certo modo de louvar e invocar a Deus.
No interior da Igreja Católica ocorre, todavia, outra estranha adaptação: os carismáticos, mesmo inspirados no movimento pentecostal e neopentecostal, mantêm-se estritamente ligados à institucionalização e querem restaurá-la ou renová-la pelo carisma de suas experiências. É encantador que o Espírito Santo possa se manifestar em pessoas de classe média e também em pessoas mais simples e humildes, ainda mais, rotuladas com significado pejorativo de “leigas”. De um lado, trata-se de algo inusitado que elas possam recuperar voz e vez no interior da Igreja. Representa até mesmo uma simpática perspectiva para futuros concílios, pois, com certeza, muitos destes leigos imbuídos de Espírito Santo deveriam fazer parte deste conclave para o bem de toda a Igreja.
É certo que muitas destas vozes encontraram um eco muito mais simpático do que muitas belas idéias da erudição oficial e muitas vezes até moralizante através dos Documentos Magisteriais da Igreja. Entretanto, como ficaria nesta perspectiva carismática a antiga recitação do “Creio”, na Igreja una, santa e apostólica? Quem teria mais eficácia sob as luzes do Espírito Santo de Deus? Caberia a quem a tarefa de cura e libertação?
A centralidade do culto católico passa pela sacramentalidade. Tanto curas quanto batismos no Espírito são vistos como decorrência do sacramento do Batismo, porque neste sacramento já se aufere ao batizando o dom do Espírito Santo. Da herança pentecostal, porém, veio para o interior da Igreja Católica um conceito distinto: a cura está ligada ao culto, como atividade do Espírito Santo e como manifestação de sinal do Reino. Decorre desta concepção a tendência de extremo rigor e a propensão de mapear o cotidiano das pessoas e exigir delas certas identificações simbólicas e rígidos modos de rezar, de cantar e até de ornar-se com bricolagens religiosas.  Não representa tal quadro incorporador um esvaziamento da significação dos sacramentos? (Extraído de um texto que redigi sobre o Movimento Carismático, não publicado, p. 4-5)
[3] ZILLES, Urbano. Fé e Razão na Filosofia e na Ciência. Porto Alegre: PUC: Revista Trimestral, v 35, no. 149, Set. 2005, p. 474.
[4] Idem, ibidem, p. 476.
[5] MATURANA, Humberto. Formação humana e capacitação, p. 186, cf. SILVA, Dantom G. P.(dansilva@pr.gov.br), atualizado em 03/02/2009.
[6] ______________________ . A Ontologia da Realidade, p. 319. O referido autor também salienta que: “freqüentemente nos dizem que precisamos controlar nossas emoções e nos comportar de maneira racional, principalmente quando somos crianças ou mulheres. Quem nos fala assim quer que nos comportemos de acordo com alguma norma de sua escolha (...) quando negamos nossas emoções nenhum raciocínio pode pagar o sofrimento que geramos em nós mesmos ou nos outros (Idem, p.167).
[7]  WINNICOTT, D. W. Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais. In: O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1975, p.26. Segundo Wladimir f. de Souza, Winnicott também destaca que um bebê só progride no princípio do prazer para o da realidade e do sentido se existe uma mãe suficientemente boa (não necessariamente a biológica) que o ajude a diminuir gradualmente a intolerância às frustrações e aos fracassos de adaptação. (WWW.revisipsi.uerj.br publicado em 06/05/2008).
[8] MATURANA, Humberto, no livro A Ontologia da Realidade, p. 48.
[9] Idem, p. 121.
[10]  MATURANA, Humberto, no livro A Ontologia da Realidade, p. 167.
[11]  MATURANA, Humberto e ZÖLLER, Gerda Werden. Amar e Brincar – fundamentos esquecidos do humano, p. 75-76.
[12]  MATURANA, Humberto. A Ontologia da Realidade, p. 280-283.

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