Resenha
O
diálogo entre Razão (Filosofia), Fé e Ciência apresenta uma longa história de
muitas dificuldades. Em alguns momentos ocorreram polarizações pouco respeitosas
de cada um destes ricos campos da cultura. Atualmente o tema parece estar menos
significativo devido à fragmentação da cultura e da autonomia da ciência,
postura que evidentemente pode inquietar sob muitos aspectos éticos, religiosos
e filosóficos.
Procuramos
salientar que uma postura do “emocionar-se” na memória da cultura matrística
anterior à patriarcal indo-européia e européia, contem a potencialidade de
levar a um sentimento mais lúdico e criativo, e que, com certeza, fará bem
enorme ao diálogo entre Fé, Razão e Ciência. A ancestralidade humana e pessoal
da condição essencial de sobrevivência ainda permite recriar a partir dos
subsolos inconscientes de arquétipos culturais antigos a re-valorização de
outro modo de lidar com as coisas e as pessoas, e, com virtualidades efetivas
de enriquecimento do diálogo entre os campos que mais caracterizam nossa
cultura.
Palavras-chave: Razão (Filosofia); Fé; Ciência; Emocionar-se;
Brincar (traço matrístico).
Introdução
A história
dos últimos três milênios revela desencontros constantes e até acirrados no relacionamento
entre fé, razão e ciência. Seria a longa ancestralidade pré-cultural
indo-européia capaz de oferecer uma luz com perspectivas mais matrísticas, isto
é, mais plausíveis para a cultura e o entendimento de co-inspiração destes
ricos elementos da organização humana no planeta?
A antiga contraposição de fé e razão,
ainda não satisfatoriamente equacionada, encontra novos ingredientes
desafiadores na atualidade: como situar os dois campos diante do espantoso
avanço da ciência e da revanche pragmática da emoção subjetiva?
Parece que a Boa Nova da Salvação
anunciada por Jesus Cristo não caiu pronta do céu. Basta observar que, da forma
como nós a lemos e a interpretamos, representa redação penosamente articulada
entre duas grandes heranças culturais.
Vivemos atualmente
algo similar ao cristianismo primitivo envolvendo fé, razão, ciência, e mais uma
dimensão que eclode das sociedades pré-patriarcais indo-européias, mas, com uma
virtualidade muito plausível de constituir-se em caminho mediador para as
rígidas fronteiras de controle de cada um destes ricos ingredientes culturais: trata-se
de um elemento que foi central nas sociedades matrísticas pré- patriarcais, - um
“emocionar”, - capaz de propiciar maior capacidade de brincar.
A capacidade de brincar é certamente
a herança biológica mais expressiva da nossa condição humana e cultural. Basta
observar que na evolução biológica a capacidade de brincar e de lidar ludicamente
com os fatos do entorno familiar e social, bem como do meio-ambiente, é
anterior ao raciocinar, ao ato de fé e à capacidade científica. Como nosso
quadro cultural decorre do cruzamento da linguagem com situações e fatos que
mais emocionam em torno dos saltos da ciência, e, dentro destes referenciais de
cultura, foram aprendidos, imitados e socializados, os modos próprios de “emocionar-se”
distantes do “brincar”.
A abafada e desacreditada capacidade
de brincar, poderia certamente constituir importante mediação para equilibrar
mais estas diferentes formas de olhar o mundo, a vida social e as pessoas e
suas conquistas filosóficas, teológicas e científicas.
Do
emocionar-se decorre a capacidade de brincar, capacidade tão marcante, intensa
e expressiva nos primeiros anos de vida, mas, que, gradualmente, é diminuída,
controlada, abafada e reprimida no processo de educação. Distante da capacidade
de brincar, os adultos tendem a proceder com traços altamente sérios, sisudos, rançosos,
controladores, perseguidores, e, profundamente propensos a mover-se na vida pelo
desejo de controlar, de incorporar, de hierarquizar e de dividir tudo em função
dos interesses e desejos, sejam eles movidos por fé, por razão ou pela ciência.
Uma dimensão mais lúdica indica que as rígidas
fronteiras entre fé, razão e ciência poderiam ceder lugar para uma vizinhança
mais amistosa e capaz de co-inspirar a todas as partes.
Da
arqueologia anterior à nossa cultura européia ainda sobrevivem pequenos sinais
de uma cultura matrística, isto é, persistem predisposições de maior
sensibilidade e disposição para colaborar, especialmente nas mulheres, e ainda,
não movida pela obsessão compulsiva de controlar, possuir e para isso, dominar,
espoliar, extorquir e guerrear a fim de satisfazer desejos insaciáveis.
Abordaremos
primeiramente aspectos da herança filosófica grega e do sincretismo gnóstico,
que se constituíram em forças patriarcais dominadoras para a incipiente
emergência do pensamento cristão e de sua maneira de considerar a fé diante da
primazia da filosofia e do conhecimento gnóstico da época. Depois salientamos
como na Idade Média o pensamento cristão chegou à síntese de que tudo, ciência,
ética, filosofia, organização jurídica, estética, etc. deveriam concorrer para
o caminho da Igreja católica, rumo à felicidade eterna fé. Em rápidas idéias mostramos também como a
ciência tomou um rumo autônomo e gerou uma grande fragmentação não só dos ramos
das muitas ciências, mas também uma quebra de fronteiras entre os distintos
campos da ciência e outras manifestações da cultura como fé e filosofia. Por
fim, damos ênfase à possível recuperação da capacidade de brincar como mediação
capaz de situar a vida para além dos quadros culturais, que, infelizmente apontam
para progressivo desequilíbrio, tanto da vida humana quanto dos sistemas de
vida no planeta.
1 – Entre o Húmus da
Filosofia Helênica e a Chuva do Gnosticismo
Parece que a
forma como os cristãos tiveram que lidar entre orientações ambivalentes de dois
quadros míticos, filosóficos, mágicos, religiosos, místicos e culturais, remete
para posturas muito humildes e modestas diante do que atualmente se argumenta,
teológica e filosoficamente, na pretensão do anúncio da “Boa Nova” da salvação
do Evangelho de Jesus Cristo.
Os primeiros
cristãos não obtiveram de forma mágica e imediata a possibilidade de
desdenharem lacunas da razão filosófica grega e tampouco a cultura grega
apresentava fortes argumentações para combater a concepção de mundo cristã com
seus imprecisos conteúdos de salvação eterna.
O ambiente
cultural da emergência do pensamento cristão estava impregnado simultaneamente
pela cultura grega e, por outro quadro cultural, o da GNOSE, muito pragmático,
mas, fruto de um ecletismo entre elementos culturais masdeístas, babilônicos,
de judaísmo heterodoxo, e, até mesmo, de religiões mistéricas gregas e de
filosofia helenista.
Não foi certamente à toa que alguns
padres da Igreja consideravam a Gnose uma Hidra de cem cabeças, que, sob alguns
aspectos, se mostrou perturbadora dos valores religiosos cristãos de forma muito
intensa até o século XIII, mas, que ainda faz emergir resquícios na
argumentação de grande quadro religioso brasileiro, especialmente, no discurso
teológico pentecostal e neopentecostal.
Utilizamos uma imagem, a do húmus e
da chuva, para ilustrar aquele momento de difícil escolha, e que atingiu apenas
parcialmente seus objetivos, pois, certas tendências, sobretudo as patriarcais,
se impuseram na prática cristã e hoje, com outro húmus e outra chuva de um modo
diferente de emocionar-se da cultura recente, tendem a nos trazer alguns
impasses.
O pensamento cristão teve que engendrar-se
entre o rico húmus da cultura helênica e a intensa chuva do quadro cultural
gnóstico. E hoje, onde poderia estar um novo componente capaz de despertar
outro modo de emocionar-se para afetar a cultura com valores menos dominadores?
1.1 – A herança
cultural helênica
A maçã
tentadora para os primeiros cristãos vinha de dois lados: de um lado, já
mergulhados no mundo cosmopolita helenizado, um modo de vida (“modus vivendi”)
que cultivava a espiritualidade já a partir da Filosofia, tal como ocorreu com os
Estóicos e Epicuristas. Encontrariam ali uma larga motivação para uma
espiritualidade ascética, que veio marcar profundamente a vida monástica
cristã. O pensamento filosófico grego, sobretudo o do período clássico tardio,
oferecia um simpático itinerário espiritualista: as palavras da fé, meditadas
pela razão, podiam ser memoradas pelo coração.
O itinerário
espiritualista grego oferecia a Orígenes a condição de dividir a filosofia em
três saberes e a três graus de ascese espiritual: a) A ÉTICA – ligada à
purificação; b) A FÍSICA – ligada à suspensão do sensível; c) A TEOLOGIA –
vinculada à contemplação do Criador do Universo.
Este húmus
helenista ofereceu um belo arcabouço para estruturar diversas instâncias do
pensamento cristão: a SOPHIA, a DIDACHÉ, a DOUTRINA, o MAGISTÉRIO e a SCIENTIA.
Este conjunto de recursos facilitou o QUERIGMA cristão e permitiu elevar sua
THEOLOGIA à universalidade e à cidadania universal na cultura ocidental.
1.2 – A herança
cultural gnóstica
E o que a
tentadora maçã da Gnose oferecia, por outro lado, à incipiente articulação dos
seguidores de Jesus Cristo?
A Gnose
oferecia um caminho rico de razões, tanto para as esperanças, quanto para as
interrogações dos primeiros cristãos porque lhes oferecia, não apenas um
arcabouço, mas uma moldura cognitiva para tornar-se o depósito da fé: eles,
como tantos neo-pentecostais de nossos dias, estavam constituídos em portadores
da revelação superior por um caminho novo: nem pela mediação da graça, ou da doação,
e nem pelo caminho ascético e de crescimento para a conquista da perfeição.
Simplesmente, por uma iluminação ou inspiração imediata.
Enquanto o
pensamento grego oferecia o patamar mais elevado para a Teologia, a Gnose, ao
contrário, praticamente a dispensava e a tornava inferior ao ato de conhecer.
De posse do mundo superior, o gnóstico também inferiorizava o mundo terreno,
pois, mesmo nascido na condição inferior da Terra, considerava-se renascido
para o superior.
Do acesso ao
mundo superior, decorriam, por outro lado, diversas conseqüências muito
marcantes: desprezo ao mundo, ao corpo, especialmente à sexualidade que nele se
explicitava, desprezo ao jogo, ao lúdico e, até as mediações das divindades
inferiores que poderiam intervir para o alcance do Deus supremo. Assim, a
tarefa de um bom gnóstico consistia em proferir oráculos para antecipar o
aguardado da escatologia. A gnose ao mesmo tempo centrou no indivíduo a
instância da divinização. Isto trazia uma tensão para quem vivia sob o quadro
cultural judaico: onde ficaria o demiurgo bíblico e a Lei, se apenas as
instâncias celestes importam para a vida?
Este pano de
fundo estaria muito presente na elaboração das escrituras cristãs e com a
apologética da teologia posterior.
2 – Dificuldades entre
fé e razão na Idade Média
O pensamento cristão da Idade Média estabeleceu um conflito: para os
cristãos a origem, bem como o sentido da vida e a condição da existência do ser
humano, dependia dos dados da revelação de Jesus Cristo. No antagonismo desta
idéia estava o pensamento de adeptos do pensamento grego que desejavam
estabelecer os parâmetros da filosofia para a conduta moral, religiosa e ética.
Para os
expoentes do pensamento cristão, mesmo separando os campos da fé e da razão, a
primazia estava com a fé e entendiam que a razão deveria servir à fé. Tampouco faltaram
no interior do pensamento cristão defensores que apostavam na exclusividade da
fé, postura sintetizada na expressão “Sola Fides” (Somente a fé).
Defensores
da tradição filosófica grega, por sua vez, sustentaram que a racionalidade era
condição necessária para vencer preconceitos, subordinações e atrelamentos
irracionais. Memória muito antiga do período clássico da filosofia grega dava a
segurança de que a filosofia foi fundamental para superar a manipulação da fé
do contexto religioso das narrativas de Homero e Hesíodo, cerca de 800 anos
antes de Cristo. Por outro lado, o pensamento cristão, baseado na fé, não
estava totalmente isento de interesses ideológicos.
2.1 – Agostinho de
Hipona
Agostinho de
Hipona (Santo Agostinho) foi fundamental para o pensamento cristão. Constatou
que não poderia haver fé sem pensamento. Com isso, reconhecia o valor da
filosofia, pois entendia que a inteligência, em vez de eliminar a fé, possuía a
virtualidade de esclarecê-la e de clarificá-la. Portanto, para “crer” haveria
uma inerente necessidade de se “compreender”.
Como a razão se manifestava antes da fé,
Agostinho reconheceu que ela tinha estreito vínculo com a fé. Desta forma, se o
conhecimento racional se mostrava importante para a vida humana, havia, contudo,
um acréscimo: Jesus Cristo veio para restaurar a condição humana decaída sob um
império da razão. Concedia, assim, um papel relevante à filosofia: interpretar
a Escritura.
No tempo de
Agostinho ainda se assimilava o pensamento grego como relevante para a Teologia,
porque ajudava a diminuir o efeito das superstições e das formas religiosas
politeístas. Mesmo assim, conciliar noções básicas da filosofia grega com a
crença na ressurreição da carne, exigia um malabarismo todo especial. Por isso
Agostinho distinguia três tipos de Teologia:
a) Mítica - A dos poetas antigos com suas
histórias religiosas;
b) Política – A do Estado;
c) Natural – A dos filósofos, porque estes,
especialmente os platônicos apresentavam muitas afirmações sérias e sólidas a
respeito de Deus. Deste modo Agostinho pensava que o Filósofo deveria ser um
verdadeiro amante de Deus.
Depois de longo tempo de predomínio
do pensamento agostiniano no interior da Igreja Católica, já na alta Idade Média,
começou a prevalecer o pensamento aristotélico e diante desta Filosofia, a fé
era vista como estranha ao corpo da Filosofia.
A tentativa
de especulação, vinda desde o século II da era cristã, encontrava em Agostinho
explicações razoáveis sobre a existência de Deus, mas, nem por isso os tempos
posteriores a ele ficaram sossegados com sua conciliação de fé e razão. Mesmo
que Agostinho tivesse adaptado o pensamento platônico aos princípios da Igreja,
muitas pessoas pendiam mais para idéias filosóficas helenistas antigas,
especialmente a partir da recuperação do pensamento aristotélico.
Foi neste momento que apareceu Tomás
de Aquino para apresentar uma distinção nítida entre fé e filosofia: a
filosofia dependeria da luz natural da razão, enquanto que a fé dependia de
instância superior da revelação e da visão sobrenatural das coisas, o que se
encontrava explicitado nas Escrituras e na doutrina da Igreja.
A nova divisão entre Filosofia,
fundada somente na razão ao lado da Fé, sobrenatural, fundada na Revelação,
passaria para a história teológica e filosófica posterior a primazia da fé e da
Revelação, como caminhos para conhecer Deus e o sobrenatural.
Com o
surgimento das Universidades Medievais, a partir do século VIII, persistiu a
preocupação em torno da relação entre fé e razão. Só mais tarde, no século
XIII, diante do florescimento do Aristotelismo, especialmente pela influência
árabe de Avicena e Averróis, Tomás de Aquino se tornou notável através da
adaptação da metafísica aristotélica à doutrina da Igreja Católica.
Se Agostinho
havia conciliado fé e razão, Tomás de Aquino, ao contrário, separou os dois
campos, mas, subordinou a razão à fé, mesmo admitindo que a razão tenha
capacidade de alcançar as verdades de Deus. Na prática, prevaleceu a conhecida
expressão: “Philosophiae ancilla Theologiae” (isto é, a Filosofia é serva da
Teologia).
Da separação
de campos da Fé e da Filosofia, efetuada por Tomás de Aquino, originaram-se
muitas reações: de um lado o Nominalismo, que passou a negar a Razão e a dar
ênfase exclusiva à Fé e à Revelação; outra forma exagerada surgiu com o
Jansenismo, na França, que passou a colocar o Fideísmo acima de tudo, no
sentido de que a graça se opõe à razão humana. Além do desprezo da Razão,
passou-se ao cego apego à Fé.
O longo
período de hegemonia do pensamento cristão começou a sofrer intensa adversidade,
especialmente nos séculos XVII e XVIII: o argumento mais forte sustentava a
necessidade de dar maior suporte à razão para combater a tirania do pensamento
da Igreja Católica. Este processo de reação contra o pensamento cristão teve
sua culminância no surgimento do Iluminismo (com a Aufhebung e Aufklärung), ou
seja, a crença de que a razão teria todas as capacidades de resolver todos os
problemas humanos, de clarear e elevar a condição humana. Entendia-se que o
pensamento cristão mantinha a humanidade presa ao estágio juvenil e que se
fazia necessária uma emancipação para a vida adulta e livre.
Ainda hoje
persiste este embate, mas já podemos delinear uma perspectiva menos aguerrida e
mais sintética: nem demais para o céu e nem demais para a terra! Constata-se
que a vida humana sob a regência do Iluminismo não se mostrou tão eficaz quanto
pretendia ser. Se muita gente estava alienada sob o domínio da fé cristã,
continuam hoje em proporções iguais, ou maiores, os alienados pelo sistema
produtivo que privilegia apenas pequenas parcelas da humanidade.
Diversas
correntes agnósticas e ateístas se juntaram no combate ao pensamento católico e
à sua Teologia. Feuerbach, por exemplo, considerava a religião mera
hipostatização (projeção) dos desejos humanos para instâncias divinas e que,
por sua vez, passariam a controlar e submeter os seres humanos. Marx chegou à
conclusão de que a religião estava constituída em ópio do povo, isto é, estava
sendo uma droga alienante. Freud atribuiu ao fenômeno religioso uma fuga
infantil da realidade e Nietzsche, uma mera projeção dos fracos na vida. A
culminância positivista, atéia e anti-religiosa passou a defender que a religião
não tinha mais sentido.
Como iria
reagir a Igreja Católica?
Com a
segurança dada pela concepção escolástica de que o conhecimento natural
(filosofia) deveria levar ao sobrenatural de Deus através da Teologia,
aferrou-se nesta postura pietista de uma radical crítica à racionalidade e a
decorrente secularização.
Enquanto que
Tomás de Aquino foi notável na capacidade de diálogo com o pensamento
filosófico mais vigoroso da sua época, para fazer uma extraordinária síntese: a
“Summa Theológica” com elementos tanto da filosofia hebréia quanto da árabe e
aristotélica, a Teologia moderna, distante desta característica não se mostrou
capaz de dialogar sistematicamente nem com a filosofia e nem tampouco com a
Tecnociência. A defesa implacável da Doutrina Católica desviou a capacidade de
um discernimento crítico ante tudo de novo que se apresentava. Assim, o
pensamento cristão não soube captar da síntese tomista as necessárias luzes
para outras novas sínteses.
3 – Fé e Razão diante
da Ciência
De algum
tempo para cá a antiga contraposição entre Razão e Fé, perdeu relevância porque
nova polarização passou a ocupar as atenções. Os rápidos saltos da ciência,
mesmo engendrados a partir de muitos séculos de fé e razão, passaram a relegar
tanto a Filosofia quanto a Teologia. A partir do mito moderno de que o homem
moderno podia viver feliz apenas com o suporte do conhecimento científico,
acabou, por sua vez, criando uma inquisição parecida ao combater
sistematicamente tudo o que ameaça sua hegemonia: a queima das bruxas acontece
de maneira mais subliminar e sutil, mas, em nome da ciência e de seus ditames,
milhões de seres humanos também são queimados nos fogos da exclusão e negação.
Assim como o pensamento moderno quis
emancipar-se da autoridade e da doutrina católica por defender violentamente
suas argumentações teológicas, parece que necessitamos de uma avaliação e de
nova síntese diante do nosso tempo.
A violência gerada para estabelecer
felicidade moderna, vive a contradição do que almejou: o rumo autônomo da ciência
tanto em relação à Filosofia quanto à Teologia, fez com que a fragmentação da
ciência em incontáveis ramos e sub-ramos, e, mesmo sendo fruto histórico da
racionalidade, se revela tão irracional que ameaça de instabilidade tanto na
dimensão emocional quanto na dimensão religiosa das pessoas. Porque lida
somente com dados disponíveis, pouco ou nada se preocupa com o sentido da vida
e da sua condição, porque já não consegue mais estabelecer sínteses e apenas
avança sobre deduções de dados disponíveis.
Assim a
ciência estabelece uma nova ruptura com a vida humana. Esta ruptura se
direciona para dois sintomas evidentes: com o avanço da racionalidade
científica e objetividade procuram as pessoas refúgio na sua subjetividade, o
que afeta tanto a ética quanto a religião porque envolve sorrateiramente toda a
riqueza da vida comunitária. Assim, encontramo-nos na iminência de uma fé
restrita ao intimismo subjetivista do indivíduo e às buscas mágicas e
imediatistas para solucionar os problemas que ali se manifestam.
Quando
cientistas não respeitam nem ética e nem direitos humanos, nem passado, nem
memória cultural, passam a lidar com os seres humanos como com qualquer coisa
que existe, fazendo deles mero objeto de experimentação e de aproveitamento dos
dados deduzidos. Esta autonomia representa evidentemente grave perigo de
desrespeito profundo ao ser humano, à biosfera e aos sistemas que permitem a
existência humana. Quando a ciência se move por obsessiva ganância, até mesmo
os grandes avanços científicos ficam restritos ao desfrute de muito poucas
pessoas e geram alto desequilíbrio nos eco-sistemas e na vida humana.
Como fica a
fé diante deste quadro técnico-científico?
Podemos alargar
o entendimento desta relação com uma noção importante, escrita por Urbano
Zilles e que salienta um dado da Teologia católica: a fé e a ciência, duas
formas de conhecimento, não se excluem e tampouco se opõe ou se substituem, mas,
pode uma, no exercício da sua função crítica, cobrar mais rigor dos argumentos
da outra.
O referido
autor também salienta que um cientista não deixa de ser cientista por causa da
fé, mas, tampouco o crente relega sua fé por causa da ciência, pois, mesmo
distintas, fé e ciência, podem complementar-se. Numa imagem comparativa, a fé
anda nas estradas racionais e estas apresentam limites que precisam ser
conhecidos pela fé e, como esta não se constitui apenas em produto da estrada
racional, convém lembrar que ela também depende da graça de Deus. Nisto se
destaca a clássica frase de São Pedro: temos que dar as razões da nossa
esperança (1Pd 3,15). Zilles ainda complementa esta distinção ao afirmar que se
a ciência não comprova a existência de Deus, tampouco consegue comprovar a sua
não existência. A fé não depende apenas de proposições apresentadas como
verdadeiras pela ciência, mas se constitui num ato pessoal de resposta a Deus
como sentido último da existência.
4 – EMOÇÃO
Nosso
momento histórico não vem demonstrando registro de grandes polêmicas em torno
dos três campos que incidem fortemente sobre a sociedade. Talvez por efeitos do
relativismo e dos refúgios subjetivistas, o tema não se encontra no cerne das
grandes inquietações humanas. Mesmo assim, existiria algum elemento que, à
imagem do cimento, seja capaz de “ligar e dar solidez” aos componentes da Fé, da
Razão e da Ciência?
Na ótica de
Humberto Maturana e de Gerda Werden Zöller nossa ancestralidade biológica
apresenta um componente bem anterior ao raciocinar, ao ter fé e ao agir
cientificamente. Trata-se da capacidade de se emocionar. É do cultivo desta
capacidade que se gestam fluxos de desejos, idéias, valores e símbolos, capazes
de orientar a vida de forma satisfatória.
“Nós seres humanos, não somos animais
racionais. Nós, seres humanos, somos animais que utilizam a razão, a linguagem,
para justificar nossas emoções, caprichos, desejos.”
No livro A Ontologia da Realidade,
Maturana destaca que as emoções constituem um fenômeno peculiar do reino
animal, mas,
“Nós seres humanos não somos animais
racionais (...) somos animais linguajantes emocionais que usamos as coerências
operacionais da linguagem para justificar nossas preferências e nossas ações no
processo, e, sem nos darmos conta disso, nos cegamos para o fundamento
emocional de todos os domínios racionais que trazemos à mão.”
De acordo com Winnicott existe entre a
subjetividade e a expressão objetiva um espaço potencial no qual ocorre um
fenômeno transicional (trânsito entre a subjetividade, que representa a “lei da
mãe” e o mundo objetivo e estruturado, símbolo da “lei do pai”. É neste espaço
que ocorre o “jogo jogante”, ou seja, a vida em seu movimento criativo, que
torna um indivíduo capaz de produzir algo bom para si e para os outros.
É também ali que se manifesta a “linguagem do coração” que, para a existência
humana, é muito mais ampla do que o mundo objetivo e estruturado.
Para Maturana a condição biológica básica do
ser humano é a dependência do amor e, a capacidade social decorre desta
dependência, sobretudo no modo de convivência e de integração com outras
pessoas e com o entorno do ambiente. Desta origem básica do amor também decorre
que os seres humanos necessitam, ao longo de toda a sua existência, sinais e
gestos de amor. Interferências negativas na vivência do amor constituiriam a
maior parte das doenças, tanto físicas quanto psíquicas. Assim, o eixo
articulador da existência humana com sentido acontece no entrelaçamento diário
de razão e emoção porque a razão sempre depende de um estado emocional. Por
isso, o que nos torna realmente peculiares é a do uso da linguagem e do seu
entrelaçamento com o “emocionar” (um verbo substantivado usado por Maturana).
Gerda Werden Zöller ao apontar uma
saída para o nosso tempo aponta a possibilidade de uma “sociedade matrística”,
nem machista e nem feminista e nem controladora: simplesmente uma sociedade
onde homens e mulheres centram sua vida na cooperação não centralizada. Para
tal sociedade a condição feminina apresenta por natureza maior propensão para
participar e criar condições a fim de que haja menos controle e autoridade.
Nesta condição também se melhora o conceito de sério com diminuição do cansaço,
da sisudez, do ranço, das dores e dos sofrimentos desnecessários. Sobra, então,
muito mais condição para viver de forma mais leve, alegre, criativa e hilária.
Os mencionados autores Maturana e Zöller destacam
que do clima lúdico e criativo depende a sobrevivência de uma criança. Eles
evidentemente não estão se referindo a programas lúdicos, que certamente são
benéficos, mas, ao brincar como um agir lúdico e criativo. Por conseguinte, a
percepção de como nos emocionamos – basta ver como uma criança nos seus
primeiros meses de vida reage captando por osmose o modo de ser da mãe e dos
demais familiares, - nos leva, além de internalizar este ambiente do início da
vida, a nos marcar indelevelmente com maior ou menor capacidade de
emocionar-nos com nosso entorno e nosso meio-ambiente.
E se
observamos a cultura humana, o que a leva a mudar e tornar-se diferente? Não
está nos seus fundamentos o “ato de emocionar-se” em torno de algo novo e
inédito? Um modo coletivo de nova e grande emoção leva à criação de algo novo.
Portanto, é no ato do “modo de emocionar-se” que pode estar presente mais
paixão, raiva, revanchismo ou vingança. O ato de conversar, todavia, exerce um
papel fundamental para a explicitação da capacidade de emocionar-se:
“A palavra conversar vem da união de duas
raízes latinas: cum, que quer dizer com e versare que quer dizer dar voltas com o outro (...) o que
ocorre no dar volta juntos dos que
conversam, e o que acontece com as emoções, a linguagem e a razão?”
Por isso,
Maturana também deduziu que:
“O humano é vivido no conversar, no
entrelaçamento da linguagem e do emocionar que é o conversar. Além disso, o
humano se vive em redes de conversações que constituem culturas e também se
vive nos modos de vida que as culturas constituem como dimensões relacionais,
que descrevemos como dimensões psíquicas, espirituais ou mentais.”
Tal
perspectiva de entendimento da importância da emoção na vida humana permitiu a
Maturana concluir que a ética não tem seu fundamento na razão, mas na emoção.
Por isso, o papel fundamental do ato de conversar:
“Considero
central para a compreensão do humano, tanto na saúde como no sofrimento
psíquico ou somático, entender a participação da linguagem e das emoções no
que, na vida cotidiana, conotamos com a palavra conversar.”
Se na raiz
do ato de emocionar-se está uma elevada capacidade de brincar como elemento “fundador”
de um “estado de espírito” diante das coisas, alguém que sabe brincar, no
sentido lúdico e criativo, vai exteriorizar outro tipo de “estado de
consciência. Com certeza, uma atitude lúdica diante das inquietações
religiosas, filosóficas e científicas, levará a um modo de agir muitíssimo
diferente de quem se pensa sério e rigoroso em seus procedimentos de fé de
razão e de conhecimento científico.
O modo de
conversação permite delinear muito nitidamente o efeito cultural patriarcal em
relação ao matrístico: enquanto que na conversação patriarcal predomina a
apropriação, na matrística, prevalece a participação; enquanto que na cultura
patriarcal a sexualidade feminina é associada à procriação, na matrística,
decorre da sensualidade e da ternura de homens e mulheres; enquanto que na
cultura patrística a luta e a guerra são consideradas formas naturais de
convivência, inclusive com graduações e condecorações de valores e de virtudes;
na matrística, a excelência se manifesta na cooperação e no companheirismo para
a boa convivência; enquanto que na cultura patriarcal o místico é experimentado
como subordinação a uma autoridade transcendente e cósmica, na cultura
matrística o místico constitui participação consciente para fazer acontecer e
conservar harmonia na existência ao longo do ciclo entre vida e morte; enquanto
que na cultura patrística os deuses sempre são assimilados como autoridades que
estabelecem normas arbitrárias e exigem incondicional submissão, na cultura
matrística, deusas evocam a conservação da existência sem apelo a autoridades e
poderes; enquanto na cultura patriarcal o pensamento é linear e assimilado como
submissão da autoridade diante do que é diferente, na cultura matrística, o
pensamento é sistêmico e aberto ao diferente; enquanto que na cultura
patrística as relações dependem da autoridade, dependência e controle, na
cultura matrística, baseiam-se na cooperação, no acordo e na co-inspiração;
enquanto que na cultura patriarcal a mulher é subordinada ao homem, na cultura
matrística não ocorre nem oposição entre homem e mulher e nem subordinação.
Nos diversos
modos de conversação facilmente se evidencia o tipo de perspectiva cultural
patrística ou matrística, como:
a) Coordenar
ações presentes e futuras;
b) Lamuriar-se
ou pedir desculpas pela não sustentação de acordos e promessas;
c) Ponderar
sobre desejos e expectativas;
d) Mandar
e levar a obedecer;
e) Caracterizar,
atribuir e avaliar;
f) Queixar-se
por expectativas não alcançadas ou por promessas falsas ou deixadas sem
cumprimento;
g) Ou,
então, conversa de co-inspiração, na qual a coordenação de ações e emoções leva
ao desejo de um empreendimento em comum e nele se realiza e se funde o respeito
mútuo, o que aufere dignidade e liberdade para ações responsáveis.
Parece que
um modelo muito evidente de quem quer orientar-se na fé, na razão e na ciência,
precisa ser sisudo, sério, controlador e, mais do que tudo, radical e
polarizado na sustentação do que quer insinuar. Com isso, toda a riquíssima
ampliação da vida na fase infantil motivada pela capacidade de emocionar-se,
vai gradualmente sendo substituída pelo conceito de seriedade e de rigor. E
quais são as principais decorrências deste deslocamento? As pessoas pouco se
entendem a si mesmas e, menos ainda, conseguem ajustar-se razoavelmente às
outras.
Se a criança
aprende no “ato de emocionar-se” diante do mundo circundante, não estaria nesta
capacidade a perspectiva de um jogo mais leve entre fé, razão e ciência?
Se o
primeiro estágio da vida humana está impregnado de fatores emocionantes, como
fatores de interação e de adaptação social, os estágios que seguem, vão,
gradualmente, afastando as pessoas desta peculiaridade. Um olhar retrospectivo
sobre passado histórico das nossas origens leva a constatar que longa tradição
patriarcal da ancestralidade européia – herança patriarcal indo-européia -
levou a uma condição humana extremamente difícil de convivência, porque ao invés
de alargar-se a capacidade de brincar, fruir e sentir-se impregnado pelos
encantos da fé, da razão, ciência e da convivência, faz prevalecer a ato de
dominar, de controlar, de competir predatoriamente, e, de agir com autoritarismo
e desrespeito elementar às pessoas e à diversidade biológica e ambiental, além
do desrespeitar os mais básicos direitos humanos.
5 – Ponderações Finais
A
conseqüência da gradual ocultação da capacidade lúdica e criativa se mostra manifesta
nas informações diárias sobre destruições, desperdícios, terrorismos,
injustiças, procedimentos de exclusão social e pelo profundo medo subjetivo dos
indivíduos. Tudo isso, numa sociedade inteligente, crente e conhecedora de
insondáveis situações, e que se auto-interpreta como altamente civilizada.
Se os avanços da fé, da razão e da
ciência gestam tal quadro de mal-estar, não seria oportuno voltar a valorizar
algo tão infantil, mas tão grandioso que é o brincar para fruir melhor as
amizades, a convivência, a natureza e o sentido da vida, especialmente, com os
progressivos avanços na filosofia, na fé e na ciência. Porque não dançar como a
criança pequena que se entusiasma ao perceber olhares de atenção e expressões
de encantamento pelo que é capaz de avançar no alargamento da sua existência?
Assim, diante do criador e de todas
as belas conquistas do campo teológico, filosófico e científico, poderíamos
sentir-nos como crianças encantadoras e encantadas com o valor que o entorno
familiar lhe concede. No ato de “brincar criativamente”, com certeza, poderão
advir mais luzes para as grandes inquietações humanas e luzes menos alienadas,
menos deslumbradas pela retórica vazia, mas, altamente mais auto-respeitosas e
essenciais à capacidade de respeitar as outras pessoas.
5 – BIBLIOGRAFIA
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