O título
desperta de imediato, duas possíveis intelecções comuns e naturalmente
evidentes: que não se pode brincar com a vida, pois deve ser levada a sério, e
que, quem brinca se envolve com algo específico da fase infantil, e, portanto, inadequado
para a vida adulta. Em outras palavras, adulto precisa ser sisudo, preocupado e
determinado.
Ainda quando
o ato de brincar é pensado positivamente, tende a ser relativizado ao estágio da
infância ou à prática de atividades lúdicas e esportivas. Neste perfil positivo
também se sobressaem pelo menos três entendimentos muito distintos:
a)
Brincar
com os outros, que geralmente envolve chacota e alguém do grupo é transformado
em “bode expiatório” para o deleite e a gozação dos demais. Até mesmo as piadas
e anedotas tendem ao uso da exploração de sutis formas discriminadoras contra
as vítimas dos grupos sociais;
b)
Outra
situação é a de que o presumido jogo de diversão, passatempo ou entretenimento
(jogos, torneios, campeonatos, corridas, olimpíadas...), na verdade, constitui
guerra de disputas acirradas em que se precisa dominar e subjugar o adversário.
Para isso vale tudo, desde torcida organizada, apelação à força bruta e até aos
procedimentos altamente desleais, ofensivos e, acima de tudo, sorrateiramente discriminatórios
e antiéticos.
c)
Entende-se,
ainda, que o ato de brincar constitui algo precípuo da vida dos filhos e, por
isso, os pais e professores são orientados de múltiplas formas sobre o modo de
proceder para uma adequada orientação.
No vasto repertório relativo ao ato de brincar são também
amplíssimas as orientações técnicas, as formas sugeridas, os agentes indicados,
os modos insinuados, as categorias estabelecidas, os referenciais, os conselhos
e as orientações sobre como seguir as regras. Tampouco faltam orientações
legislativas sobre o direito de brincar, sobre os lugares para brincar, sobre
os tipos de brinquedo mais indicados, sobre os lugares e os espaços mais
eficazes para brincar, sobre projetos e artes de brincar, e sobre agentes de
ocupação e brinquedo nas festas e eventos os mais variados.
À parte destas considerações, encontramos também vasta
literatura sobre entendimentos muito distintos relativos ao ato de brincar.
Livros, palestras, sites de Internet, disketes e DVDs querem ensinar como
brincar e como entreter as crianças da melhor e mais saudável forma. Tudo isso
não é certamente material para ser jogado fora. Entretanto, cabe uma pergunta:
porque tanta regra e parafernália para brincar normalmente só para crianças?
Parece que pela linguagem freudiana tudo isso estaria
envolvendo uma evasão da realidade, próprio da idade infantil, a fim de dar
fluxo à fantasia como uma das manifestações de desejo de sobrevivência. No
entanto parece, igualmente, que o ato de brincar envolve atividades mais vitais
e mais amplas do que a fantasia representa para o ser humano: no brincar a
criança explora o ambiente, adquire informações, desenvolve habilidades de
psico-motricidade, mas, ao lado destas dimensões cognitivas e de aprendizagem, cabe
observar que é no ato de brincar que uma criança mais se integra ao
meio-ambiente familiar e social. Humberto Maturana e Gerda Werden Zöller em “Amar e Brincar – os fundamentos esquecidos do humano” sustentam que o
brincar é essencial para a sobrevivência de uma criança. Se a mãe e o entorno
não propiciam certo limiar de capacidade no brincar com a criança, ela
simplesmente não sobrevive.
A criança, ao brincar, descobre a plenitude do seu existir.
Brincar constitui, pois, um estado interior que gera experiências subjetivas. É
dali que decorre um novo significado para o ato de brincar dos adultos.
Se atividades lúdicas
são consideradas saudáveis, embora nem sempre para todos os envolvidos, porque
se brinca descarregando tensões, raivas, mágoas e outros sentimentos sádicos
sobre vítimas expiatórias que passam a ser gozados, muito mais saudáveis se
tornam quando nos livram dos bloqueios e das cargas de tensão através da
catarse.
A catarse que leva a
extravasar nosso mundo interior e subjetivo, por onde circulam em alta rotação
muitos medos, ajuda a clarear e definir melhor a própria identidade pessoal.
Trata-se, pois, de algo muito significativo, porque se deixa de encobrir o
mundo interior para destacar o que se considera importante na perseguição de
outras pessoas, através de humor, de sátira ou de gozação.
O ato de colocar outra pessoa na berlinda para gerar risos e
situações hilárias e de chacota é um brincar que normalmente distancia e rompe,
uma vez que a vítima do grupo, ou seu “bode expiatório” se sente ridicularizado
e diminuído seja pelo apelido ou pela forma de explorar um cacoete, um traço
físico ou outro modo genuíno de ser. Para ele, tal procedimento não diverte.
Pode-se observar que toda a gozação que acontece à custa da miséria alheia,
mesmo que seja divertida, perde a dimensão da ludicidade.
Por outro lado, brincar a partir de uma dimensão mais interna
e subjetiva não significa ludicidade narcizista, no sentido de auto-encantamento,
pois a história antiga conta que Narcizo ao se perceber espelhado nas águas
paradas de um lago, ficou tão encantado consigo que resolveu casar-se consigo
mesmo.
Haveria alguma outra razão para maior capacidade de brincar
na vida dos adultos?
Primeiramente os adultos revelam algo estranho em relação à
fase infantil. Foram gradualmente induzidos a se tornarem sérios e, na medida em
que os anos de escolarização foram aumentando, foi na mesma proporção
diminuindo a capacidade de brincar como estado de espírito e de consciência.
Marcas de uma antiga ancestralidade indo-européia acabaram
desenvolvendo um traço cultural muito peculiar e forte que consiste numa
estruturação tríplice: dominar, controlar e apropriar-se. Desta herança
cultural européia decorreram muitas características comuns dos ambientes
socializantes: primeira, a de estabelecer hierarquias e divisas diante dos que
são considerados inimigos e que devem ser perseguidos, distanciados, ou então,
incorporados ou eliminados.
Desta peculiaridade
temos um triste retrospecto de guerras, de disputas por áreas ou bens
simbólicos e materiais, e, um processo altamente predatório, mesmo movido por
lutas de independência e de autonomia. Disto sempre sobra profunda amargura
para diversidades biológicas e culturais. Quantos grupos humanos são forçados a
assimilar a cultura dominante e a renunciar às suas riquezas vindas de longa
ancestralidade?
O resultado deste modo hegemônico de socialização e de
inserção das pessoas nos ambientes culturais direcionados para determinados
tipos de emoção, - que passam a ser assimilados e imitados, - deixa-nos diante
de tanto desperdício, tanta destruição quer da natureza ou de lares e até mesmo
de ambientes culturais. Vemos muitos processos de exclusão e de injustiça. Por
fim, este modo de nos emocionar específico de conquistadores, valoriza
eminentemente a emoção do raciocinar para controlar. Com isso, o mundo
subjetivo se torna um vulcão prestes a eclodir a qualquer instante e por pouca
coisa.
Possivelmente uma das melhores perspectivas, tanto para a
vida pessoal quanto coletiva, seja a de recuperar novamente um lado perdido na
arqueologia da história humana, e também do itinerário pessoal da infância de
cada pessoa: a de brincar com os limites, com as desgraças, as perdas e os
fracassos, e por isso mesmo, encontrar prazer em colaborar, em estar presente
na vida dos outros de formas simples, leves e menos hierarquizadas.
Então, com certeza, poderá voltar o dinamismo de uma força
dinâmica dos longos anos do início da nossa vida, capaz de reativar a
capacidade de brincar com o próprio passado, incluindo também seus fiascos,
deslizes, quedas e tantas situações silenciadas, disfarçadas e reprimidas que
atrapalham a psique e a auto-imagem. Brincar com todas as marcas negativas do
passado ajudará a sentir menos peso do inconsciente e de sub-consciente no
dia-a-dia da vida e a viver um estado de espírito mais hilário e descomplicado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário