domingo, 13 de outubro de 2013

O motorista cortês

Padre Constante empreendeu durante longos anos seus trabalhos pastorais deslocando-se de uma comunidade para outra, montado no lombo de um burro. Dedicado e serviçal, mereceu a complacência da comunidade, que resolveu comprar-lhe um carro. Tratou-se de um carro e tanto, uma Rural Willis, considerado o carro mais sofisticado para estradas difíceis de serem percorridas. Tarefa ingente, demorada e muito desafiadora, foi padre Constante aprender a dirigir. De tanto firmar-se no estribo dos arreios sobre o burro, perdeu a sensibilidade para acelerar e diminuir a aceleração. Outra dificuldade inerente a quem aprende a dirigir, com idade na beira dos cinqüenta anos, foi a de não dar-se conta de que era possível fazer mudanças. Foi este o motivo de padre Constante fundir o motor depois de três meses de uso da Rural Willis. Na verdade, ocorreu só um pequeno detalhe, saiu de uma comunidade rural distante a cerca de 50 quilômetros e andou na primeira marcha até chegar à casa. Assim que chegou à garagem, começou a volatilizar-se uma nuvem de fumaça e vapor emergindo das frestas do capô. Depois de desligada a chave de partida, o carro não deu mais o menor sinal de nova partida. Estava fundido o motor. Não restou alternativa melhor do que retificar o motor. Dias depois, outro detalhe da falta de reflexo causou efeitos colaterais. A sensibilidade não estava suficientemente apurada para perceber as sutis e estreitas faixas de deslizamento da alavanca para o engate das marchas. Já traumatizado com a fundição do motor, o empenho pelas constantes mudanças fez com que padre Constante se esmerasse ainda mais nesta ingente tarefa de efetuar muitas mudanças de marcha, já que a rural apresentava três marchas: conseguiu quebrar a alavanca de mudanças da preciosa Rural Willis. Alguns mais debochados até tentaram calcular a força muscular do padre para conseguir, no empenho de engatar esmeradamente mais marchas, quebrar aquela reforçada alavanca de aço. Parecia que o cérebro do padre ao volante funcionava por acionamento de gavetas, cujo acionamento costumava provocar rangidos. Toda vez que saía de algum lugar, o carro parecia empacar como o burro: os pneus lavravam o chão, a aceleração do motor chegava à rotação máxima e levantava uma nuvem de poeira; e o ruído do motor se tornava ensurdecedor, pois acelerava ao máximo e demorava a soltar a embreagem. Quando, finalmente a soltava, soltava-a supinamente e o carro chegava a dar uns pinotes como se quisesse imitar o burro, toda vez que saía de algum lugar. Padre Constante ainda contava com outra dificuldade nesta passagem de adequação da tecnologia do muar para o automotor. Como se manter esse carrão devidamente alinhado na estrada? A opção dele implicava no azar dos que tinham que cruzar por ele, pois ele tomava e meio da estrada e não olhava para os lados em hipótese alguma. Os outros que se danassem ao ter que adentrar-se nas valetas laterais e ficar atolados ou se enveredar para o meio do mato ou de alguma lavoura. Mesmo que qualquer cruzamento com padre Constante nas estradas implicasse em elevados risco para outros transeuntes nas estradas, ele era, contudo, generoso para oferecer carona a pessoas. Costumava sair lotado das comunidades onde celebrava. Os agraciados com a carona sempre conseguiam avivar fartos assuntos para comentar os riscos e os perigos de morte que correram. Aos poucos, o reflexo se tornou um pouco mais acurado e padre Constante, de vez em quando olhava para os lados, e saudava quem estivesse perto da estrada. Esta forma mais cortês levou-o a perceber, certo dia, que uma moça estava na beira da estrada, possivelmente esperando ônibus ou alguma carona. Padre Constante freou bruscamente sua Rural e pediu à moça se queria carona. Toda pintada e cheirosa, a moçoila fugia um pouco dos padrões das moças que ele encontrava nas comunidades. Andou um trecho, e como ela não iniciasse qualquer assunto de conversa, padre Constante tomou a iniciativa e perguntou: - Onde é que você quer ir? A moça, com um olhar sorrateiro, redargüiu: - Ah! Isso depende do hotel que você quiser escolher! Padre Constante demorou um pouco até que a informação fosse processada em seu cérebro, e, quando veio o retorno, perguntou secamente: - Você é puta? E num sotaque de alemão puxado, falou imediatamente: “Téce chá!”. Enquanto isso, já outro comando do cérebro o fez frear o carro, de modos que a moça só não voou para fora porque a porta estava fechada, mas foi parar contra o pára-brisa. Enquanto o carro ia balançando de um lado a outro devido à frenagem brusca, pediu que abrisse o trinco da porta e saltasse rapidamente do carro. A moça só deu um sorriso, e desceu sem falar mais nada. Ao chegar à residência, padre Constante, possivelmente com o psiquismo ainda voltado para o episódio que o envolveu com a moçoila, não encontrou o necessário reflexo psicomotor para frear no momento de entrar na garagem e, em decorrência, o pára-choque da frente acabou indo mais longe do que deveria ir, e arrancou algumas tábuas da parede dos fundos da garagem sem, contudo, causar maiores danos ao carro.

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