domingo, 13 de outubro de 2013

O Valete de Espada

Apenas algumas pessoas muito próximas da família e parentes do seu Joaquim sabiam que este era seu nome de batismo. Todos o conheciam somente e apenas pelo apelido de Valete de Espada. O Valete de Espada, já ancião de mais de sessenta anos, misturava uma série de traços filosóficos e esquizofrênicos. Agregava também algumas manias, além de uma doença toda especial e peculiar que era a de não possuir nenhuma propensão para o trabalho, isso, já desde há algumas décadas. Era um homem baixote, gordo, careca, rosto liso que aparentava excelente estado de saúde e era um fino contador de piadas e de anedotas. Financeiramente as coisas iam de mal a pior na casa de seu Valete de Espada. Se não fosse o trabalho dos filhos na lavoura, seu Valete de Espada não teria o pão de cada dia desde muito tempo. Muita gente nasceu, cresceu e se tornou adulta ouvindo seguidos comentários relativos aos estranhos procedimentos do Valete de Espadas. Volta e meia aparecia algum fato digno de ocupar as conversas. Por vezes, eram anedotas contadas por ele e, por outras vezes, eram assuntos envolvendo suas doenças, supostamente gravíssimas, que nenhum médico, benzedor ou curandeiro conseguia diagnosticar. Por onde o Valete de Espadas andasse só se ouviam conversas animadas e de muita gozação. Diziam que a doença dele somente aparecia na hora de ter que trabalhar, mas, a toda hora, a vizinhança era convocada para uma novena a fim de não deixar o velhote bem humorado morrer sozinho. A esposa do Valete de Espada, mãe de uma dúzia de filhos, parecia não possuir voz. Talvez porque seu Valete de Espadas não lhe deixava voz e vez, ela se conformou à quietude. Resignada, parecia encontrar no silêncio a resposta aos estranhos comportamentos do seu marido. No entanto, nem sempre a quietude era manifestação natural. Seguidamente passava semanas a fio sem falar uma única palavra com seu bem amado. Numa destas manifestações, o Valete de Espada, por mais que tentasse reatar a dissonância criada a partir de uma discussão ferrenha, não conseguia fazê-la falar. Tudo quanto tentava, há semanas, não a fazia falar e nem emitir o menor sinal sonoro de reação. Desta vez se magoou com intensidade excepcional. Num dia, porém, enquanto ela se esmerava na lavação de roupa no córrego, e não era pouca roupa a ser lavada, viu seu Valete de Espada, em pleno dia, com luz solar intensa, andando ao lado do córrego e, cada vez mais próximo do lugar onde ela lavava a roupa. Ela percebeu que ele demonstrava procurar algum pequeno objeto perdido, mas, estranhamente, com a luz de lanterna em pleno sol de meia-manhã. O Valete de Espada ciscava no chão, ajoelhava-se, esfalfava suavemente algumas folhas com os dedos e foi se aproximando gradualmente da dona Raimunda, que lavava roupa, mas, atenta ao que ele fazia. Repentinamente ela exclamou: - O que você está fazendo ali seu bobalhão? Valete de Espada, num sorriso largo e contente como se estivesse jogando baralho, replicou: Achei! Até que enfim, achei! Estava muito afoito à procura da sua voz! Desligou a lanterna e foi sentar-se na varanda da casa, pois ajudá-la ou tomar a iniciativa para efetuar algum outro serviço estava fora do seu programa de vida. Enquanto os anos foram se passando o Valete de Espada foi se tornando vítima de outra doença: tudo virava festa e euforia quando falassem em programar um jogo de baralho e tudo virava em síndrome de morte iminente quando alguém falasse de parar o jogo, mesmo depois de uma noite inteira de jogatina, pois os companheiros precisavam ir para casa a fim de tratar os animais, porquanto era início de outro dia de serviço. Esta enfermidade tornava-se triste e divertida ao mesmo tempo. Em diversas ocasiões, assim que parava o jogo de baralho, o Valete de Espada ficava agudamente enfermo e necessitava de urgente internação hospitalar. Nem remédio, nem atenção de médico ou de enfermeiras, conseguiam despertar a necessária terapêutica para que o Valete de Espada voltasse a melhorar de saúde. Até se tornou rotineiro o anúncio pelo rádio de que seu Valete de Espada se encontrava em estado gravíssimo. Nas muitas visitas que era feitas ao Valete de Espada, descobriu-se, aos poucos, que um remédio era infalível para fazê-lo sair rapidamente do Hospital: bastava uma proposta de jogo de canastra e falar que alguns amigos o aguardavam para o jogo, que o velho Valete de Espada não demorava a sair do Hospital. O problema, todavia, vinha na hora de alguém falar que precisava encerrar o jogo. Aí, sim, vinha a ladainha de queixas referentes às dores agudas no peito e a lamúria se tornava tão intensa que não restava alternativa melhor do que carregá-lo e transportá-lo rapidamente ao Hospital. Não faltaram propostas para manter o velho Valete de Espada no astral rotineiro e na exuberância do seu conhecido bom humor. Bastaria à vizinhança fazer um rodízio e jogar baralho dia e noite, porque neste caso, o velho não somente ficaria saudável, mas também contaria muitas anedotas e emitiria muitos belos comentários sobre as jogadas de canastra. Alguns até iniciaram um programa regular de vistas ao Valete de Espada, mas assim que apontavam razões que os fariam ir para casa, o velho já entrava no delírio da morte e num dia desses, após uma noite de jogo, o velho de fato morreu na hora em que os companheiros anunciaram a necessidade de terem que encerrar o jogo. Sobrou-lhes um pouco de sentimento de culpa, mas, também a satisfação de terem contribuído para o prolongamento dos dias de vida de um obcecado jogador de baralho, o velho Valete de Espada.

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