quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Cordialidade e Etiqueta

            Com certeza, já antes dos nossos tempos modernos, fatores variados levaram pessoas a entrar em estados de ansiedade e depressão, apesar de todas as formas de pertença e de praxes sociais.
 O fenômeno da urbanização moderna traz, todavia, além da fantástica rapidez e multiplicação dos signos de comunicação, uma cordialidade artificial, equivalente a etiquetas sociais e que predispõem fatores depressivos relacionados à perda do sentido da vida. Na Antropologia tal fenômeno passa a ser interpretado como tédio, uma nova doença urbana.
            Segundo o Logoterapeuta alemão Victor Frankl, a grande doença do nosso tempo, já não decorre tanto dos desajustes de estágios do nosso passado, mas muito mais da falta de um horizonte de fé e de sentido para o futuro distante. A doença da maioria das pessoas está na sua incapacidade de se projetar para além do momento presente de crise, depressão, qualquer outra dificuldade, ou da inércia para sair de uma situação estabelecida.
Diante da rapidez e da fugacidade dos pequenos momentos de felicidade em nossa vida, podemos perceber que o tédio pode estar diluído em todos eles.
O tédio não resulta, apenas, da frustração diante das idealizações de felicidade, mas emerge, atualmente, da grande multiplicação dos signos de linguagem e de imagens, através da eletrônica e da informática, ou da tele-informática.
O tédio parece, por conseguinte, resultar de um sentimento de saturação. Quando se tem a sensação de saber tudo sobre tudo, surge um sentimento de mal-estar, porque já não há mais expectativa ou empolgação por novidade, surpresa, ou algo inusitado e novo.
Sobra, então, o sentimento enfadonho de desconforto e de não suportar o que está por acontecer. Tal situação, estreitamente ligada a um tipo de entendimento cultural, repassado pela educação ambiental, dissolve o ator social e, por conseguinte, engrandece o mundo fechado do indivíduo em sim mesmo (“narcizismo solipsista”) que faz os indivíduos se subsumirem na vivência do agora, de forma autônoma, mesmo que seja criativa, mas, num horizonte de dependência a um quadro consumista que a vida urbana desperta. Por isso já se usa na Sociologia um novo conceito para explicar a vida dos sujeitos urbanos. Eles vivem uma “anomia” subjetiva. Quando Emile Durkheim interpretou a sociedade da revolução industrial como anômica, ou doente, apontava como causa a falta de regras sociais e regras mais rígidas... Hoje contamos com inúmeros códigos de regras sociais a ponto que qualquer atitude pode ser justificada ou condenada. Em contrapartida, vivemos a anomia subjetiva, isto é, estamos rodeados de pessoas que querem todos os direitos imagináveis, todas as regalias, todas as vantagens, mas que não admitem nenhuma regra e nenhuma cobrança sobre o seu modo de agir e pensar. Afinal, os outros precisam ser instrumentos para propiciar este desmesurado desejo. Tanto no que tem quanto no que são capazes de produzir, precisam favorecer tal aspiração subjetiva, a fim de que não sofra percalços.
O que poderia, por conseguinte, uma aglomeração urbana, como a da nossa simpática cidade, significar ante a histórica predominância do mundo tradicional das fazendas e sítios de interior, a ponto de gerar o tédio?
            A cidade, tida por muitos como a grande revolução do mundo ocidental, vem processando uma série de transformações de cunho antropológico. Aparecem, ali, características muito diferentes do que aquelas típicas do mundo rural.
Lá, o reconhecimento do parentesco, da vizinhança e da comunidade, era (e ainda é) marcado pela cordialidade. Há muitos rituais de saudação e de expressão da cordialidade, como os gestos de pedir a bênção aos adultos e mais velhos, dar-lhes um abraço ou beijo de saudação, etc.
No meio urbano, este traço vem sendo substituído, paulatinamente, pela etiqueta. Esta característica de agregação social separa por níveis de status, de veste, de cargos, de tipos de profissões e de reflexos do poder aquisitivo (“É o seu Fulano e a senhora Beltrana!”). Convidam-se apenas certas pessoas para ocupar espaços nos palanques públicos, mas também os tomadores de pinga dos bares não aceitariam partilhar o trago com certas pessoas engravatadas e vestidas no rigor social do destaque das modas.
            Enquanto que, no meio rural, as instituições do trabalho, da família, da religião, da política, etc., são tidas como fatores de realização e bem-estar, na cidade, estas fontes de realização, ou de felicidade, são propugnadas, endeusadas e apontadas nas variadas formas de conquista e de lazer.
Os valores tão específicos de realização das comunidades rurais, como formas de vivência da religião, modos de envolvimento político e o estilo de vida familiar, na vida urbana, perdem seu significado e, em seu lugar, aparece muito evidenciado o lugar do lazer.
 Ao tempo livre atribui-se a correspondência, pelo menos nas argumentações discursivas, do paradisíaco sonho de liberdade, a possibilidade de expressão do corpo e as práticas que induzem a prazer.
Nos ambientes rurais, a tradição exercia papel fundamental na organização da vida. Ali eram valorizadas, primordialmente, certos práticas culturais, como o do respeito aos mais velhos, respeito às autoridades, o privilégio do social sobre o individual, etc.
Naquele quadro, a religião era vista como fator de coesão e de pertença social; a família tinha uma importância fundamental na vida, no trabalho e na comunidade.
O lazer não era visto pela sua dimensão pessoal, mas pela dimensão coletiva.[2]
            No quadro do mundo rural, todas as pessoas tinham que trabalhar a partir da intimidade do lar e sob o controle dos mais velhos.
Na cidade, processa-se uma mudança significativa em relação ao trabalho, porque ele passa a ser visto não como inerente à realização humana, mas, como mera mediação para o alcance de condições de lazer.
 Muitos suportam o trabalho porque idealizam o que vem depois: festa, bebidas, passeios, encontros, comilanças e outros passatempos.
            O lazer vem sendo insinuado como sendo a mais bem elaborada produção da civilização humana e como o maior propiciador de felicidade. É o grande símbolo do pensamento. Basta lembrar o incremento que se dá ao turismo, às viagens, às praias.
 As férias de fim-de-ano, os pacotes de excursões, as viagens ao exterior, aos campos, aos balneários, tudo parece pintar um grandioso quadro de felicidade. O endeusamento destas fontes de lazer parece evidenciar que nele se idealiza uma velha concepção maniqueísta e que estabelece dois pólos opostos: um, que orienta para escolher o do bem, que é o lazer, e o outro, que deve ser rejeitado, que é o cansaço do trabalho.
O lazer começa a povoar todo o imaginário coletivo em torno das possibilidades de viajar, conhecer, conquistar, desfrutar... Em função disto, organiza-se muito espaço de tempo para “malhação”, exercícios e “curtição”, numa nova forma de instauração do velho mito da eterna juventude.
A atribuição, que uma vez era dada ao campo religioso para o alcance da felicidade e realização dos seres humanos, agora, é, supostamente, fornecida pelos incontáveis atributos que o lazer pode propiciar nas cidades.
Tal deslocamento abre uma ambigüidade: uns procuram esta realização num certo tipo de programa musical, outros em caminhadas, outros ainda em esportes, teatro, cinema, etc., e o que os atrai via de regra, nem chega a ser uma opção pessoal, mas a mera aproximação de gostos similares, despertados pelos meios de comunicação de massa.[3]
            A idealização do lazer, produzida por classes dominantes e privilegiadas para o sonho dos pobres e dos que não tem acesso ao lazer, parece repetir a velha estratégia do tempo mitológico grego, no qual a aristocracia dispunha de “rapsodos” (poetas cantadores), para cantar ao povo os versos que enalteciam a aristocracia, visando fazer com que todos viessem a sonhar com a dita “aristocracia” e suportar o pesado fardo do trabalho escravo...
Como muitos não aceitam a resignação, tentam um acesso imediato às condições privilegiadas do lazer através de roubos, jogatinas, apostas em loterias, negócios obscuros, assaltos, contravenções e golpes econômicos.
Afinal, se o trabalho é tão humilhante e mal remunerado, porque não buscar o lazer de forma mais fácil e a qualquer preço, já que é apregoado como sinônimo de felicidade? Entretanto, mesmo que alguém atinja condições de lazer por vias fáceis, persistirá ali uma contradição: o que aparentemente deveria constituir-se em algo saudável, se torna altamente controvertido porque se limita a uma ostentação banal de modas e modismos consumistas e que leva muita gente à beira dos limites de uma vertigem de fama, de beleza, de ousadia, muito próximos da loucura e do suicídio.
As corridas noturnas dos “filhinhos de papai”, o uso e abuso do álcool, o excesso de comilanças e o consumo de outras drogas, tanto as legalmente permitidas quanto as proibidas, significam um evidente mecanismo de morte e auto-destruição.
Tudo isso, em vez de felicidade, aponta muito mais para a experiência do tédio, da desesperança, da falta de gosto pela vida, da ausência de bom-senso, do que para sentimentos de felicidade e se mostram mais propensos para o velho adágio romano do “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Mas será que lazer é apenas comer, beber e curtir sensações físicas agradáveis?
 Revela-se um triste quadro de uma vida manipulada para comer e beber. Afinal, o que se oferece num calçadão, e no sem número de bares e lanchonetes?
            Ainda que a felicidade seja buscada, freneticamente nas mil oportunidades de lazer, ele direciona eminentemente para o tédio, porque os tipos de praxes sociais são causadores deste sentimento de saturação.
Se não levamos em consideração este quadro amplo, veremos que muitos sonhos acalentados com grandes expectativas de felicidade, na verdade, propiciam vazio, decepção, desesperança e tédio.
            O estabelecimento de um patamar muito elevado e fictício para o lazer, como viagens, programas e encontros, leva a não dar valor a importantes fontes e fatores de prazer, geradores de momentos de felicidade, mas que não advêm daquelas tão destacadas do campo do lazer.
Tais fontes, decorrentes de um modo de conduzir-se na vida, poderiam preencher muito mais o tempo cronológico e a concepção do lazer, não como o de algumas práticas, mas como o rumo ou sentido, em função do qual se conduz a vida.
            O mito de que os produtos não terminam para a sociedade consumista, mais impede do que propicia os fatores de realização pessoal: a simples submissão ao que é distinto e inédito no momento, com vistas a encontrar maior gozo e maior número de fatores de excitação da adrenalina no sangue, revela indivíduos à busca de si mesmos, todavia manipulados pelos excitantes que a própria sociedade condena, mas, lhe apresenta com persuasão todos os dias.
Tal insinuação contínua de experimentação de tudo quanto provoca sensações consumistas desvia a chance de haurir fonte de prazer em incontáveis outras formas que estão além do ato de “curtir”.
            Nesta busca, gera-se uma crise de identidade porque a auto-imagem e a atuo-estima dependem precisamente da percepção de que outros gostam de nós e nos estimam.
A clareza em torno de nós mesmos depende da relação, ou seja, do modo como a hetero-imagem nos afeta. Portanto, o presumido mundo de indivíduos fechados sobre si mesmos na busca de felicidade, não pode efetivar-se por uma razão muito simples: o fator que desencadeia sensações de felicidade está truncado porque depende do bom relacionamento com outros.
            Se mulheres agricultoras uma vez conseguiam organizar-se na vida com 13 ou 15 filhos, uma mulher, na cidade, tendo um ou dois, já não suporta o cansaço por estar levando seu pimpolho de um lugar para outro, para preencher-lhe o dia e até os sonhos da noite: aulas, cursinho de dança, de música, de natação, de ginástica, de inglês e de informática...
As crianças já revelam, pela sua forma de olhar, a saturação de tudo isso. Neste processo de saturação, está, igualmente, em jogo uma rivalidade fora do comum e uma verdadeira obsessão de corrida à precocidade.
Parece que o único assunto interessante para as conversas é o de poder contar vantagens relativas ao que o “filhinho” e a “filhinha” já conseguem fazer com menos idade do que outras crianças.[4]
Mais do que educação para uma normal e sadia relação, está em jogo uma acirrada rivalidade da ótica iluminista de superação e que pressupõe o rebaixamento dos outros para a auto-ascensão.
 
 



[2]   CAMARGO, Luis Octávio de Lima. Quando o lazer se transforma em tédio. In: CULTURA VOZES, ano 87, vol. 87, no. 6, nov./dez. de 1993, p. 5-6.
[3]   Idem, p. 7-8.
[4]  Diante desta rivalidade, torna-se oportuno o lembrete de um ditado popular: “Deus perdoa sempre; as mulheres e os homens, de vez em quando, mas a natureza, não perdoa nunca”. A Biologia também sustenta que toda precocidade sempre implica em antecipação do fim, até mesmo na questão sexual, da genialidade ou de habilidades psico-motoras...

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