De todos os fenômenos da cultura humana
o mito e a religião são os mais refratários a
uma análise puramente lógica... Se algo existe
que seja característico do mito é o fato de
ser ‘inexplicável’. Ernst Cassirer[2]
Resumo: O entendimento clássico de mito e religião como efeito
de crendice, superstição ou Mana, força
natural meramente circunscrita ao ambiente social de um grupo humano, tornou-se
relativo diante dos estudos de Rudolf Otto, Georges Dumézil e Mircea Eliade, porquanto
constataram que uma experiência hierofância implica em contato com a
transcendência, o que confere um modo peculiar de ver o mundo, as pessoas e as
coisas. Uma pessoa religiosa cria uma cosmovisão religiosa, na qual as coisas
deste mundo servem de referência e de sinal do Transcendente.
Palavras-chave: Mito. Religião. Hierofanias. Ritos. Transcendência.
Introdução
A razão deste texto é a de mostrar que a presença do mito na religião não reduz seu significado na vida humana, mas, ao contrário, o eleva porque, religiosos ou não, somos seres míticos. Trata-se de uma ponderação que tenta mostrar que a Antropologia Cultural, ao se debruçar sobre mitos e religião presta um elevado serviço para tornar a religião mais coerente e eficaz no que se propõe.
A abordagem do tema decorreu da constatação de que na manifestação do senso comum, religião e mito são incompatíveis. Por outro lado, explicações clássicas como as de Durkheim e outros parecem não corresponder ao real fenômeno do mito e da religião na cultura humana. O desejo de elucidar esta contradição levou-nos a uma revisão bibliográfica com hermenêutica de certas evidências que ultrapassam as clássicas noções de Mito e Religião, como a de Comte, Durkheim e Malinoski.
Ao lado das reflexões
teológicas que partem de dados revelados para ponderar sobre os fundamentos da
religião, dos mitos, da vida, da natureza e da razão da existência, a
Antropologia Cultural, também se ocupa com o estudo das manifestações do campo
religioso e, movida pelo intento de aprofundar o conhecimento da cultura
humana, não consegue deixar de lado a religião e os mitos, porque tanto o mito
quanto a religião constituem manifestações muito expressivas da cultura.
1 - O que o mito tem a ver com a
religião?
Já ocorreu período
histórico, sobretudo a partir do Positivismo, em que este estudo antropológico
supôs ter todos os elementos científicos para silenciar a religião e os mitos,
e, deixá-los como meros estágios de um passado já superado pela Filosofia e
pela Ciência. Atualmente, parece que este estudo segue menos arrogante e mais
sensível ao entendimento do fenômeno religioso, presente em todos os povos
humanos. A Antropologia Cultural, por sua vez, não se move para desbancar a
Teologia, mas, para entender como os fenômenos religiosos incidem na vida das
pessoas, como entidades religiosas orientam pessoas para lidar com a vida, e,
também, como as pessoas religiosas experimentam o Sagrado ou o Transcendente,
através de hierofanias.[3]
Embora as análises nem sempre correspondam aos
agrados das hermenêuticas teológicas, uma leitura antropológica da religião
exerce, todavia, e com certeza, um elevado préstimo para que entidades
religiosas possam fazer revisões no seu modo de proceder e fornecer razões
plausíveis à sua existência.
Quaisquer fenômenos
humanos ou da natureza, tanto antigos quanto os de nossos dias, podem receber
explicações míticas e religiosas. Para os que se norteiam pela concepção
científica a resposta imediata, talvez seja esta: nem mito e nem religião,
porque a ciência explica a única forma segura para estudar a causa, a origem e
o finalismo das coisas.
Todas as culturas e todos os tipos de
conhecimento se empenham para encontrar formulações seguras, mas, apesar de todos
os avanços técnicos, científicos e dos demais campos da cultura humana, bem
como das muitas explicações religiosas, permanece muito viva uma inquietude
sobre o passado, o presente e o futuro: foi tudo assim como a ciência está
explicando? Não se encontram também estas explicações impregnadas de mitos?
Como foi mesmo o surgimento da vida humana e dos demais seres deste planeta, e,
existem outros seres parecidos aos humanos ou com manifestações culturais que
expressam seu mundo de vida? Qual a razão e o sentido desta existência, e, como
é a vida para além da morte?
Na prática, o mito e a
religião visam chegar ao mesmo ponto de alcance da ciência: explicar o porquê
da vida, das coisas e dos fatos que acontecem. Por isso, é importante captar da
religião e dos mitos a sua versatilidade e os seus princípios dinâmicos, uma
vez que, segundo Cassirer, o mito “depende
de um modo definido de percepção. Se o mito não percebesse o mundo de forma
diferente, não poderia julgá-lo ou interpretá-lo em sua maneira específica”.[4]
Torna-se, pois, fundamental entender que o mito não se fundamenta no pensamento,
como geralmente se pressupõe, mas, no sentimento. O mesmo acontece com a
religião, porque sua coerência está mais ligada aos sentimentos do que a regras
lógicas.
É também importante
considerar que o mito não constitui um amontoado de idéias desorganizadas e
confusas, mas, constitui a valorização de um modo de percepção da realidade
envolvente.[5]
A forma mais antiga de
interpretação do mundo e do universo foi a da “cosmovisão” religiosa. Mesmo
mesclada e permeada de mitos, constituiu uma forma de interpretação da
realidade envolvente.
Uma sondagem de opinião
feita na cidade de Lucas do Rio Verde – MT, por alunos de Pedagogia em 2011,
constatou que a noção predominante de mito, nesta cidade, envolve dois
conceitos diferentes, mas não relacionados ao conceito antropológico. Ou se
entende mito como história banal e sem merecimento de crédito, ou se refere a
uma pessoa idolatrada, veiculada pela comunicação televisiva. Assim, um cantor,
músico ou ator de TV passa a ser chamado de mito.
Existem muitas e reais
dificuldades para classificar os mitos. De um lado, deve-se isto à sua grande
variedade de formas. Por outro lado, sem homogeneidade, também a interpretação
se torna difícil, porque o mito geralmente se transmite por via oral e não
segue os esquemas racionais e teóricos de pensamento. Sua lógica, além de
desafiar o pensamento e as formas científicas de análise, não se enquadra no
campo de entendimento destas áreas.
Vejamos primeiramente algo
da história do conceito de mito. Na cultura grega, nos livros de Homero, o mito
aparece como discurso. Em tempos posteriores passou a ser interpretado como
fábula ou narração que envolve maravilhas. Aos poucos, o mito passou a ser
visto como uma história. Podia envolver uma tragédia ou o enredo de uma
comédia. Com isso, se consagrou a conotação de que mito é uma história que
envolve fatos extraordinários nas quais, seres superiores aos humanos,
manifestam suas intervenções. Disto resultou uma interpretação de que os mitos
são ilusões ou ficções que envolvem mentiras.
Interpretar os mitos
nesta perspectiva pode constituir-se em erro crasso. Igualmente pode
constituir-se em erro pensar que mito se constitua apenas de questão antiga,
primitiva e confusa. Mesmo para povos muito antigos e primitivos, os mitos não
constituíram fábulas, contos ou histórias falsas, mas, histórias verdadeiras,
de profundo significado, porque, através delas se relacionaram com o mais
elevado nível do seu ser, o que, por sua vez, lhes deu razão para a existência,
além de entendimento a respeito do que os rodeava e do que acontecia com eles
mesmos.
Se observarmos o
pensamento racional e científico, neles também encontramos explicações mágicas
e míticas. Ainda que numa concepção
restrita de mito, Raymond Aron, por exemplo, salienta diversos, como o mito da
esquerda, o mito da revolução, o mito do proletariado, o mito do otimismo
político e até o da intelectualidade.[6]
Sigmund Freud também criou um mito, na mesma perspectiva, ao sustentar que a
psicanálise era capaz de resolver todos os problemas e deixar feliz quem se
submetesse a esta terapia.
O mito, todavia, no geral, não se enquadra nos
esquemas lógicos, pois apresenta uma lógica própria e um sentido. Ele não pode
ser avaliado pela apresentação conceitual, ou seja, no que apresenta na sua
forma descritiva ou redacional, pois tem outro modo de apresentar a percepção
da realidade. Ao contrário da forma científica, que é objetiva e analítica, o
mito é natural, espontâneo e vivencial, dentro do mundo dramático do jogo das
forças. Por isso, o mito envolve elementos emotivos como alegria, dor,
angústia, exaltação, etc. Os fatos não aparecem vagos, neutros ou indiferentes.
São movidos ou por forças maléficas ou de bondade; ou são hostis ou
acolhedoras, atraentes ou repugnantes. De forma geral, os mitos envolvem
histórias dos deuses, que justificam bondades, violências, lutas e dores.
Mircea Eliade oferece um
conceito muito valioso de mito: “é sempre
a narração de uma criação”. Nesta narrativa se conta como as coisas
começaram a ser ou como foram efetuadas.[7]
“O mito revela a sacralidade absoluta
porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade das obras
deles. Em outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas
irrupções do sagrado no mundo”.[8]
Os mitos só aparentemente
envolvem crenças abstratas e dogmáticas, pois seu conteúdo resulta de ações.
Não procede nem de representações e nem de imagens. Assim, uma relação mítica
com a natureza, por exemplo, não é nem teórica e nem interesseira, mas,
simplesmente simpática. É uma relação afetiva cordial. Para melhor corresponder
a esta relação, os seres humanos religiosos se valem dos ritos, forma conatural
ao ser humano que leva a expressar simbolicamente experiências culturais e
religiosas.
Como forma de expressar
os mitos e as convicções religiosas, o rito organiza as experiências de formas
a lhes mostrar sentido e como mediação para um agir prático. Segundo Terrin:
“Rito poderia ser entendido como uma ação simbólica que
organiza a experiência de sentido do homem no mundo, onde a ênfase, porém,
tende a recair mais sobre a ação e organização prática do que sobre a simbólica
da ação”.[9]
O rito não constitui uma
mediação meramente religiosa e mítica, mas também está presente em todas as
formas culturais. Geralmente envolve a capacidade de debruçar-se sobre tudo
quanto envolve a vida e apontar respostas para aquilo que a condição humana
apresenta como exigência ou necessidade. Uma das mais importantes funções do
mito é a de mediar conflitos e ameaças que põem em risco a capacidade de
convivência de grupos humanos. Conseguem pacificar espíritos exaltados. Segundo
Terrin, há pelo menos três tipos de ritos religiosos:
a) Os ritos apotropaicos - que levam a
buscar proteção e força. No Cristianismo, por exemplo, tinha, na sua fase
inicial, a função de espantar os demônios e de proteger o meio-ambiente contra
infestações maléficas;
b) Os ritos eliminatórios - que levam a
afastar o mal ou as forças negativas ou de pecado, com o intento de mandá-las
embora e de imunizar-se contra elas;
c) Os ritos de purificação - que visam
distanciar o elemento considerado perigoso. Envolve o jogo do afastamento, bem
como experiências de culpa e de impurezas a serem purificadas através de
jejuns, de mortificações e de sacrifícios expiatórios. Costumam envolver
símbolos como água, fogo e abluções.[10]
Outra função de destaque
dos ritos no campo mítico religioso é o de confirmar estratificações sociais,
ajustando os membros de uma sociedade e legitimando a confirmação de níveis
distintos.
Constata-se, por
conseguinte, que os mitos e a religião se cruzam de forma sutil e se
exteriorizam nos ritos e explicações relativas à origem da vida e do seu
sentido.
De acordo com Luis José
González, o mito apresenta diversas peculiaridades muito interessantes, que
revelam sua estreiteza com a religião:
a) É uma história sagrada – que envolve personagens sobrenaturais e
que atuaram de forma maravilhosa nas origens: sua ação move o mundo e o
fundamenta;
b) É uma história verdadeira – porque expressa uma vivência concreta
em torno de realidades vivenciadas; diz o que aconteceu e como o fenômeno se
manifestou. Para não-crentes esta realidade envolvendo o sobrenatural é tida
como irreal e falsa. No entanto, para a pessoa religiosa, o sagrado é uma
realidade que é a mais real e verdadeira.
c) É história de uma criação – pois descreve como uma nova realidade
apareceu, ou, como o divino irrompeu no mundo.
d) É uma história exemplar – porque oferece um modelo para um agir
humano. Quando se imita o que foi manifestado pelos seres superiores, chega-se
à perfeição.
e) É uma história que confere poder – ao fornecer a origem das
coisas, ensina como preservá-las e cuidá-las. Por exemplo, uma doença, uma
planta ou animal. O mito confere poder sobre eles. Trata-se de um conhecimento
vivido e não exterior e objetivado. Assim, o conhecimento de uma história se
torna exotérica, pois, seu segredo somente é transmitido através da iniciação e
acompanhado de poder.
f) É uma história vivencial – porque é vivida. Ao sentir-se
envolvida pelo poder sagrado a pessoa lembra acontecimentos e os atualiza.
Nisto o mito constitui uma extraordinária experiência religiosa. Ao se reportar
a momentos grandiosos atualiza a partilha desta presença divina.[11]
Luis José González também
salienta que o mito propicia uma importante função social: ele interpreta a
ordem e o sentido da natureza (realidades abertas e misteriosas); faz passar do
caos para a ordem a fim de tornar expressiva e vivente a ordem do cosmos.
Constata-se,
por conseguinte, que mito e religião envolvem um campo comum no qual se procura
entender o porquê da vida, da convivência e do sentido humano. Por isso, não é
inferior e nem superior à religião, mas se encontra atuante nas religiões,
assim como também continua vivo e presente das pesquisas científicas. Tanto a
religião quanto a ciência não suportam o vazio do não entendimento de uma
realidade que se manifesta. Por isso, dão o salto para a origem e afirmam como foi
e o que decorre de tal fato. E se eventualmente uma explicação mítica é
considerada inútil ou sem razão de ser, é imediatamente substituída por outra.
Portanto, o mito é uma realidade que integra a condição humana. Se por exemplo
consideramos a explicação bíblica do paraíso e da criação, vemos que se trata
de um mito de um significado profundo e religioso, assim como é mítica a
explicação científica do “Big-Bang” de uma explosão que teria gerado o mundo e
as condições da vida.
Cabe
uma pergunta: seria presença do mito nas manifestações religiosas algo negativo
e ruim? Certamente não. O mito integra o mundo sagrado e quando alguém vive o
mundo religioso vai agir de uma forma determinada e vai tentar induzir outras
pessoas a viver desta forma. Geralmente nestas explicações é que se manifesta o
mito para levar as pessoas a agir daquele modo. No apelo aos recursos e
símbolos para encantar em favor desta concepção religiosa do mundo,
introduzem-se mediações míticas. Per exemplo, no cristianismo, o mito não se
encontra na doutrina, mas no modo como as pessoas tentam passar para frente o
que acreditam no cristianismo.
2 – O que a religião tem a ver com o mito?
A religião depende da capacidade
humana de estabelecer hierarquia de valores e perceber que certas opções
humanas e conseguem captar um sentido para o mundo e suas relações. O tema
“religião” é muito amplo e muito variado e varia muito de um momento histórico
para outro, precisamente porque se reordena conforme as leituras que faz dos
acontecimentos.
Segundo
Argote a religião apresenta pelo menos quatro características gerais e,
geralmente os elogios ou críticas atingem apenas uma destas características:
a) Possui um sistema de crenças
decorrentes de um modo de crer o que a leva a estabelecer dogmas ou regras
doutrinais, mesmo não explícitas;
b) Envolve um conjunto de práticas
rituais para expressar o que vive e o que crê. São os elementos cultuais;
c) Tem implicações áticas e místicas que
caracterizam seus horizontes comunitários;
d) Envolve relações interpessoais e
sociais, motivadas por seus valores religiosos.[12]
A religião implica em fé,
mas, nem toda fé religiosa implica em religião, pois a religiosidade popular,
por exemplo, depende mais de influências sociológicas e culturais e do núcleo
ético de grupos humanos e envolve mais uma realidade interior.
A fé, embora seja
elemento imprescindível da vida, quando religiosa, visa estabelecer comunhão e
comunicação com o Sagrado. Através da religião pode a pessoa mover-se na
relação com o absoluto por razões muito variadas, como medo, submissão, busca
de segurança, de forças, de equilíbrio diante de acontecimentos, de adoração,
etc.
Como o mito, a religião tampouco
se constitui num mero aglomerado de ritos, de sentimentos e de regras
doutrinais em torno de inseguranças humanas, mas, constitui, eminentemente, uma
reação à realidade transcendente. Esta reação depende de uma “cosmovisão”
religiosa, que, por sua vez, confere à pessoa religiosa um modo de
relacionamento com as outras pessoas, as coisas, e lhe permite conferir sentido
valioso à existência. A fé se torna o elemento fundamental desta “cosmovisão”
que concede sentido, segurança e valor.
Ocorrem
muitas discussões em torno da etimologia da palavra “religião”. Poderia derivar
da palavra latina “religare” (reatar ou religar), ou da palavra “reeligere”,
que daria uma conotação mais próxima de ser eleita e escolhida. Diante da
dúvida, o importante é considerar o conceito emitido por Ullmann, de que a
religião constitui “a relação do ser
humano ao fundamento da sua própria natureza e sentido”.[13]
Tal relação acontece de forma especial na relação com o transcendente ou com o
Criador. Constata-se, pois, que a religião não se ocupa de uma realidade
estranha ao mito, embora tenha traços específicos. Mito e religião, na estreiteza
com o transcendente querem transcender o “caos” para que possa reinar “ordem”
(cosmos) tanto nas coisas como nas pessoas e sua relação com as instâncias
transcendentes.
O mito, segundo González,
constitui o núcleo da vida religiosa, pois a religião também capta miticamente
a vida em sua unidade e totalidade.[14]
Para uma pessoa religiosa a natureza nunca é simplesmente natural, mas está
impregnada e perpassada pelo sobrenatural.
Eliade constatou outro elemento importante da
religião: envolve a pessoa religiosa numa única história que interessa: a
História Sagrada, revelada pelos mitos: “o
homem só se torna verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos,
imitando os deuses”.[15]
Nesta imitação, costumam ser repetidos os atos divinos ou os gestos por eles
deixados. O remeter-se à origem vai apontar a história verdadeira. Assim,
também as festas religiosas constituem uma atualização de um fato primitivo
através dos quais os deuses e os seres humanos, a eles ligados, fazem a
história tornar-se História Sagrada.
Para Ernst Cassirer não é
possível, na condição humana, estabelecer um limite onde o mito termina e onde
a religião começa, porque os dois fenômenos se originam da vida:
Em todo o curso de sua história, a religião permanece
indissoluvelmente ligada a elementos míticos e repassada deles. Por outro lado,
até em suas formas mais grosseiras e rudimentares, o mito contém motivos que,
em certo sentido, antecipam os ideais religiosos mais elevados que vieram
depois. Desde o início, o mito é uma religião em potencial.[16]
Nos dois últimos séculos
surgiram diversas teorias antropológicas para explicar a religião. Umas se
ocuparam da história das religiões e como se desenvolvem; outras, da
fenomenologia, averiguando como se manifestam externamente; outras estudaram o
perfil psicológico ou psíquico das manifestações religiosas; e outras ainda, os
efeitos sócio-culturais de entidades religiosas. Boa parte das análises colocou
a religião como campo a ser combatido pela ciência. Especialmente os simpáticos
da dedução de que existem três estados de pensamento lógico segundo Augusto
Comte, encontraram particular estímulo para deduzir que o tempo da religião
ficou relegado ao passado.
Ao afirmar que o estado teológico teria sido o
segundo da cultura humana, depois da fase mítica – ambos já superados pelo
atual, o científico e positivo da Sociologia, - a religião estaria dispensada
da vida de nossos dias, uma vez que o conhecimento experimental acharia
explicação e solução dos problemas que inquietam a consciência religiosa da humanidade.
Até mesmo os estudos comparativos entre
diferentes etnias reforçavam a ótica Comtiana e endossavam os pré-julgamentos
de que todas eram iguais na manifestação religiosa como expressão de algo
rudimentar e como mero resquício da humanidade antiga, e ainda, como
decorrência dos sentimentos agregadores dos grupos humanos.
No entanto, a
universalidade das manifestações religiosas, presente em todos os povos da
Terra, e estudos mais apurados acabaram revelando outras dimensões mais
significativas que as de Comte.
a) Augusto Comte – considerou a história em três
estágios: 1) o mítico; 2) o
religioso; 3) o positivo científico. Este seria a
superação da religião, considerada como a
adolescência da humanidade.
b) Syr Edward Tylor - No seguimento da ótica positivista
entendeu que religião é
crença no sobrenatural, mas é constituída por mera
resposta mental diante dos
sonhos, medos e mistérios da vida.
Sir Edward Tylor foi o primeiro grande expoente da
Antropologia a apresentar
explicações sobre a origem da religião. Definiu a
religião como “crença no
sobrenatural”, pois deduziu que a religião decorre de
respostas mentais a certas coisas
misteriosas que a vida apresenta, tais como
sonhos, doenças, morte e que, a partir
dali, leva a acreditar em seres espirituais.
Chamou este processo de animismo, pois os
seres espirituais se apresentam de
múltiplas formas, como espírito de plantas, de
animais, almas, fantasmas,
demônios, anjos, deuses, etc.
c) Hoebel Frost – religião é simples efeito de “Mana”. Segundo
Hoebel Frost, todas
as religiões teriam manifestações de animismo e “mana”.
Pelo fato da condição física e
humana não conseguir inibir estes espíritos de
seres espirituais, passariam a ser
considerados sobrenaturais.[17]
d) Durkheim – religião
é fruto de questões sociais, como pertença, lealdade,
solidariedade, que seriam
produzidos através de ritos. O ritual seria a essência da
religião. O sagrado
seria mera consciência coletiva; Religião é algo natural da vida
humana porque
nasce da vida coletiva; Igreja é apenas a união de uma comunidade
moral.
e) Malinoski
– com Durkheim, também no espírito cientificista moderno,
destacaram como
fundamento da religião a participação do público como processo de
coesão,
pertença, lealdade e solidariedade em torno de questões sociais estabelecidas.
Durkheim viu no ritual a essência da religião. É o ritual que gera a
solidariedade e a
crença coletiva. Nesta ótica, o indivíduo isolado procura a
religião e, através dos ritos,
se integra ao grupo social. Os rituais sagrados
e as crenças constituiriam apenas uma
simbologia da sociedade. Dali também
nasceria uma separação de “sagrado” (o
sobrenatural, extraordinário e fora
deste mundo, gerador de horror e de senso de
mistério) e “profano” (o natural,
a rotina, o mundo prático e a convivência familiar
comum). O sagrado, para
Durkheim, estaria constituído apenas pela consciência
coletiva.
Ocorreu também uma febre de análises
sociológicas, a partir de Durkheim e de
seus seguidores, que restringiram a
religião a um mero efeito de “Mana” e de
“Totem”. Concluíram que a “Mana”
constituía uma força anônima e impessoal, como
centro dos fenômenos religiosos
e, que era capaz de animar a vida religiosa de um clã;
Já o “Totem”
constituiria a expressão e a forma de simbolizar a “Mana” ou, esta força
regedora
do grupo humano.[18]
f) Friedrich Schleiermacher – teólogo, por exemplo, concluiu que
a religião
nasce da condição de dependência humana e da constatação de que
existem poderes
superiores a ela, e que a tornam dependente do divino.
g) Rudolf Otto
foi notável ao mudar o enfoque do estudo das religiões. Deixou de
lado toda a
polêmica positivista e cientificista, bem como a procura de explicações
racionais da religião, e passou a focar o modo como uma pessoa religiosa
experimenta
o Sagrado, essência mais íntima de todas as religiões. Esta nova
luz para o
entendimento da religião apontou que o campo das hierofanias (a
forma como alguém
experimenta a manifestação do Sagrado) e que envolve o
“Numinoso” (divino) ou
“Santo” com duas reações contrárias simultâneas: atração
e curiosidade, com medo e
pavor (“Tremendum Fascinans”). Nas conclusões de
Otto, o sagrado sempre se
manifesta como potência completamente distinta das
forças naturais e, como
fenômeno, se torna perceptível ao ser humano.
Na história de cada religião, desde a
mais simples até as mais complexas, há um
acúmulo ou um grande acervo de
hierofanias, ou seja, manifestações de realidades
sagradas que, por sua vez,
nunca aparecem em estado puro, mas sempre vêm
acompanhadas ou mediadas por
objetos, mitos ou símbolos, ritos, pessoas, plantas
lugares, etc. As
hierofanias sempre estão constituídas de três elementos: 1 – a
realidade
invisível e o objeto mediador constituído de sacralidade (pedra, árvore ou
fato); 2 – a realidade invisível, a experiência do totalmente outro (ou transcendência,
céu ou supra-terreno); 3 – o mediador que revela o “totalmente
outro”, por exemplo, Jesus Cristo como mediação da manifestação do amor de
Deus
h) Marcel Mauss e Henri Hubert – Mauss, sobrinho de Durkheim, e seu
companheiro Hubert,
estudaram a função social do sagrado e concluíram que seria o
“TOTEM”.
Introduziram a importância do simbolismo que é expresso no rito.
i) Renê Girard – viu que o sagrado se fundamenta na violência
(envolvendo a morte
da vítima emissária). O centro do sagrado é o sacrifício.
Através dele procuram-se
eliminar as rivalidades, os desencontros e as disputas
entre as pessoas.
j) Dumézil e Mircea Eliade - Observaram que o sagrado não fica
circunscrito a
um grupo humano, mas, é experimentado pela transcendência do
INEFÁVEL (que a
linguagem não consegue explicar). Sagrado está no dinamismo da
estruturado
consciente.
Georges Dumézil e Eliade constataram que existem outros
fatores para tornar
totalmente além da vida e que incide sobre ela. Dumézil e Eliade
perceberam este
processo nos estudos comparativos das religiões, especialmente,
a partir dos povos
indoeuropeus. Segundo Eliade, compete ao historiador das
religiões o estudo dos fatos
religiosos e o que revelam.
k) Harwey Cox
ajudou a alargar o entendimento da religião num sentido mais amplo
do que o da dependência, ao constatar que a experiência do divino envolve festividade
e fantasia, que faz a pessoa religiosa abstrair-se das preocupações do meio ambiente e
do passado, o que lhe confere exuberância e transbordamento. Estas realidades
permitem à pessoa religiosa constatar que outros “mundos” são possíveis, ou seja, que
podem transcender seu momento atual para realidades novas.
do que o da dependência, ao constatar que a experiência do divino envolve festividade
e fantasia, que faz a pessoa religiosa abstrair-se das preocupações do meio ambiente e
do passado, o que lhe confere exuberância e transbordamento. Estas realidades
permitem à pessoa religiosa constatar que outros “mundos” são possíveis, ou seja, que
podem transcender seu momento atual para realidades novas.
Os estudos da história das religiões de Rudolf
Otto, de Georges Dumézil e de Mircea Eliade acima mencionados, têm ainda apontado
para outro aspecto muito importante e bem diverso: o sagrado não é uma força
humana circunscrita a um grupo humano, mas, é experimentado pela sua
transcendência. Por isso, o sagrado, como coração da religião, se opõe ao
profano. O sagrado ao ser experimentado como algo inefável, ultrapassa a
capacidade explicativa humana, porque a linguagem não consegue expressar a
grandeza da experiência. Dumézil e Eliade também observaram que a religião
depende mais do “Logos” do que da “Mana”, pois, o sagrado sempre é entendido
como soberano e como absoluto que incide sobre a vida humana e lhe aponta um
caminho.
Na perspectiva destes
dois pensadores, que aprofundaram as importantes constatações de Rudolf Otto,
uma religião é muito mais do que sua doutrina e suas formas rituais e de celebração,
pois, implica numa determinada visão de mundo, de pessoa humana e do próprio
transcendente. Disto decorrem as formas diversificadas como as religiões
experimentam o sagrado, ou o divino. Além da doutrina, dos ritos e das práticas
de uma religião, esta também cria vocabulário específico para suas celebrações
litúrgicas. Em outras palavras, o sagrado não é uma força impessoal que rodeia
um grupo humano, mas é um dinamismo da estrutura de consciência das pessoas
religiosas. Por isso, estas pessoas apresentam muitas modalidades de vivência
do sagrado.
Pudemos constatar que os
estudos que visam o entendimento da Religião deram saltos enormes, mas, ainda
resta muito a ser estudado, tanto no homem religioso e no modo como vive a
Religião, quanto na forma como experimenta o Sagrado. A identificação do
Sagrado como “Mana” feita a partir das teorias de Comte e do positivismo, e das
concepções evolucionistas acabaram servido de aporte para que outros estudiosos
das religiões como Georges Dumézil e Eliade chegassem a entendimentos mais
amplos e significativos de tudo quanto envolve mitos e Religião. Eles apontaram
para outra perspectiva a de que o homem religioso não se guia por estruturas
meramente sociais, mas, envolve o Sagrado presente na estrutura de consciência
da pessoa religiosa. Deste modo, ao invés de constituir-se num sujeito alienado
o homem religioso é um sujeito normal. Ao envolver-se do Sagrado, a pessoa se
situa no mundo com um determinado modo de motivações para transformar o caos em
cosmos e estabelecer hierarquia de valores para que isto aconteça.
Pudemos constatar,
igualmente, que a Religião, mesmo permeada com a riqueza dos mitos, não se
exaure nesta relação, uma vez que a Religião também está permeada pela
espiritualidade, aspecto merecedor de um estudo mais específico.
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Paulo: Cultrix, 1985, p. 364.
MALDONADO, Luis. La
violência de lo sagrado – crueldad versus oblatividad o el ritual del
sacrifício. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1974.
MELO, Luiz Gonzaga de. Antropologia
Cultural.Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1982.
RIES, Julien. Lo
Sagrado em la historia de la humanidad.Madrid: Ediciones Encuentro, 1988.
TERRIN, Aldo Natale. O
RITO – Antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo: Paulus,
2004.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Antropologia Cultural. Porto Alegre: Esc. Sup. de Teologia São Lourenço de Brindes, 1983.
[1] Texto já disponível no site das Faculdades La
Salle de Lucas do Rio Verde-MT.
[2] CASSIRER, ERNST. Antropologia Filosófica, p.
121.
[3] Modos como as pessoas religiosas sentem e
experimentam o “Sagrado”.
[4] Idem, p. 127.
[5] Se, por exemplo, olhamos para o modo como um
homem primitivo olha a natureza, não o faz como um naturalista e nem como um
curioso de novidades intelectuais e nem mesmo como um interessado técnico ou,
meramente utilitarista e pragmático. Não se trata, para ele, de um objeto de
conhecimento e, nem tampouco de um interesse para finalidades práticas, pois,
sua relação com a natureza é meramente simpática. Ele participa com profunda
solidariedade da vida da natureza. Tampouco se pensa privilegiado neste
ambiente. Simplesmente participa dele. (Cassirer, op. cit. p. 135-136).
[6] Em seu livro Mitos e Homens.
[7]
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano – a
essência das religiões, p. 80.
[8]
Idem, p. 81.
[9]
TERRIN, Aldo Natale. O RITO –
Antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004, p.162.
[10]
Idem, p. 37-40.
[11] ALVAREZ, González José Luis e outros. Antropologia – perspectiva latinoamericana,
(na parte II: Repuestas a la pregunta por el hombre – El problema de las
cosmovisiones). Bogotá: Universidad Santo Tomás, 1990, p. 43 ss.
[12]
ARGOTE, Germán Marquínez e PEREZ, Teresa Houghton, no capítulo Valores
Religiosos, p.311, In: ARGOTE e outros. El hombre latinoamericano y sus
valores. Bogotá: Editorial Nueva America, 1991.
[13]
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Antropologia
Cultural. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de
Brindes, 1983, p. 168.
[14] ALVAREZ, González, op. cit. p. 46.
[15] ELIADE, Mircea, op. cit. p.84.
[16]
CASSIRER, Ernst, op. cit. p. 143.
[17] HOEBEL, Adamson E. e FROST, Evellet L. Antropologia Cultural e Social. São
Paulo: Cultrix, 1985, p. 364.
[18] O assunto da “Mana” é polêmico e não há nem
muita certeza e nem muita clareza sobre seu real significado. De forma geral,
vem sendo associado a homens possuidores de qualidades excepcionais, como
gurus, xamãs e guerreiros e, também de poderes que emanam de rochas, animais,
árvores e até de armas.
[19] RIES, Julien. Lo Sagrado em la historia de la humanidad, p. 72-73.
[20] Significa o que é indizível, ou, uma
experiência que não se consegue expressar por palavras.
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