quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Mito e Religião

De todos os fenômenos da cultura humana
o mito e a religião são os mais refratários a
uma análise puramente lógica... Se algo existe
que seja característico do mito é o fato de
ser ‘inexplicável’. Ernst Cassirer[2]

Resumo: O entendimento clássico de mito e religião como efeito de crendice, superstição ou  Mana, força natural meramente circunscrita ao ambiente social de um grupo humano, tornou-se relativo diante dos estudos de Rudolf Otto, Georges Dumézil e Mircea Eliade, porquanto constataram que uma experiência hierofância implica em contato com a transcendência, o que confere um modo peculiar de ver o mundo, as pessoas e as coisas. Uma pessoa religiosa cria uma cosmovisão religiosa, na qual as coisas deste mundo servem de referência e de sinal do Transcendente.
Palavras-chave: Mito. Religião. Hierofanias. Ritos. Transcendência.


Introdução

A razão deste texto é a de mostrar que a presença do mito na religião não reduz seu significado na vida humana, mas, ao contrário, o eleva porque, religiosos ou não, somos seres míticos. Trata-se de uma ponderação que tenta mostrar que a Antropologia Cultural, ao se debruçar sobre mitos e religião presta um elevado serviço para tornar a religião mais coerente e eficaz no que se propõe.
A abordagem do tema decorreu da constatação de que na manifestação do senso comum, religião e mito são incompatíveis. Por outro lado, explicações clássicas como as de Durkheim e outros parecem não corresponder ao real fenômeno do mito e da religião na cultura humana. O desejo de elucidar esta contradição levou-nos a uma revisão bibliográfica com hermenêutica de certas evidências que ultrapassam as clássicas noções de Mito e Religião, como a de Comte, Durkheim e Malinoski.
Ao lado das reflexões teológicas que partem de dados revelados para ponderar sobre os fundamentos da religião, dos mitos, da vida, da natureza e da razão da existência, a Antropologia Cultural, também se ocupa com o estudo das manifestações do campo religioso e, movida pelo intento de aprofundar o conhecimento da cultura humana, não consegue deixar de lado a religião e os mitos, porque tanto o mito quanto a religião constituem manifestações muito expressivas da cultura.

1 - O que o mito tem a ver com a religião?

Já ocorreu período histórico, sobretudo a partir do Positivismo, em que este estudo antropológico supôs ter todos os elementos científicos para silenciar a religião e os mitos, e, deixá-los como meros estágios de um passado já superado pela Filosofia e pela Ciência. Atualmente, parece que este estudo segue menos arrogante e mais sensível ao entendimento do fenômeno religioso, presente em todos os povos humanos. A Antropologia Cultural, por sua vez, não se move para desbancar a Teologia, mas, para entender como os fenômenos religiosos incidem na vida das pessoas, como entidades religiosas orientam pessoas para lidar com a vida, e, também, como as pessoas religiosas experimentam o Sagrado ou o Transcendente, através de hierofanias.[3]
 Embora as análises nem sempre correspondam aos agrados das hermenêuticas teológicas, uma leitura antropológica da religião exerce, todavia, e com certeza, um elevado préstimo para que entidades religiosas possam fazer revisões no seu modo de proceder e fornecer razões plausíveis à sua existência.
Quaisquer fenômenos humanos ou da natureza, tanto antigos quanto os de nossos dias, podem receber explicações míticas e religiosas. Para os que se norteiam pela concepção científica a resposta imediata, talvez seja esta: nem mito e nem religião, porque a ciência explica a única forma segura para estudar a causa, a origem e o finalismo das coisas.
 Todas as culturas e todos os tipos de conhecimento se empenham para encontrar formulações seguras, mas, apesar de todos os avanços técnicos, científicos e dos demais campos da cultura humana, bem como das muitas explicações religiosas, permanece muito viva uma inquietude sobre o passado, o presente e o futuro: foi tudo assim como a ciência está explicando? Não se encontram também estas explicações impregnadas de mitos? Como foi mesmo o surgimento da vida humana e dos demais seres deste planeta, e, existem outros seres parecidos aos humanos ou com manifestações culturais que expressam seu mundo de vida? Qual a razão e o sentido desta existência, e, como é a vida para além da morte?
Na prática, o mito e a religião visam chegar ao mesmo ponto de alcance da ciência: explicar o porquê da vida, das coisas e dos fatos que acontecem. Por isso, é importante captar da religião e dos mitos a sua versatilidade e os seus princípios dinâmicos, uma vez que, segundo Cassirer, o mito “depende de um modo definido de percepção. Se o mito não percebesse o mundo de forma diferente, não poderia julgá-lo ou interpretá-lo em sua maneira específica”.[4] Torna-se, pois, fundamental entender que o mito não se fundamenta no pensamento, como geralmente se pressupõe, mas, no sentimento. O mesmo acontece com a religião, porque sua coerência está mais ligada aos sentimentos do que a regras lógicas.
É também importante considerar que o mito não constitui um amontoado de idéias desorganizadas e confusas, mas, constitui a valorização de um modo de percepção da realidade envolvente.[5]
A forma mais antiga de interpretação do mundo e do universo foi a da “cosmovisão” religiosa. Mesmo mesclada e permeada de mitos, constituiu uma forma de interpretação da realidade envolvente.
Uma sondagem de opinião feita na cidade de Lucas do Rio Verde – MT, por alunos de Pedagogia em 2011, constatou que a noção predominante de mito, nesta cidade, envolve dois conceitos diferentes, mas não relacionados ao conceito antropológico. Ou se entende mito como história banal e sem merecimento de crédito, ou se refere a uma pessoa idolatrada, veiculada pela comunicação televisiva. Assim, um cantor, músico ou ator de TV passa a ser chamado de mito.
Existem muitas e reais dificuldades para classificar os mitos. De um lado, deve-se isto à sua grande variedade de formas. Por outro lado, sem homogeneidade, também a interpretação se torna difícil, porque o mito geralmente se transmite por via oral e não segue os esquemas racionais e teóricos de pensamento. Sua lógica, além de desafiar o pensamento e as formas científicas de análise, não se enquadra no campo de entendimento destas áreas.
Vejamos primeiramente algo da história do conceito de mito. Na cultura grega, nos livros de Homero, o mito aparece como discurso. Em tempos posteriores passou a ser interpretado como fábula ou narração que envolve maravilhas. Aos poucos, o mito passou a ser visto como uma história. Podia envolver uma tragédia ou o enredo de uma comédia. Com isso, se consagrou a conotação de que mito é uma história que envolve fatos extraordinários nas quais, seres superiores aos humanos, manifestam suas intervenções. Disto resultou uma interpretação de que os mitos são ilusões ou ficções que envolvem mentiras.
Interpretar os mitos nesta perspectiva pode constituir-se em erro crasso. Igualmente pode constituir-se em erro pensar que mito se constitua apenas de questão antiga, primitiva e confusa. Mesmo para povos muito antigos e primitivos, os mitos não constituíram fábulas, contos ou histórias falsas, mas, histórias verdadeiras, de profundo significado, porque, através delas se relacionaram com o mais elevado nível do seu ser, o que, por sua vez, lhes deu razão para a existência, além de entendimento a respeito do que os rodeava e do que acontecia com eles mesmos.
Se observarmos o pensamento racional e científico, neles também encontramos explicações mágicas e míticas.  Ainda que numa concepção restrita de mito, Raymond Aron, por exemplo, salienta diversos, como o mito da esquerda, o mito da revolução, o mito do proletariado, o mito do otimismo político e até o da intelectualidade.[6] Sigmund Freud também criou um mito, na mesma perspectiva, ao sustentar que a psicanálise era capaz de resolver todos os problemas e deixar feliz quem se submetesse a esta terapia.
 O mito, todavia, no geral, não se enquadra nos esquemas lógicos, pois apresenta uma lógica própria e um sentido. Ele não pode ser avaliado pela apresentação conceitual, ou seja, no que apresenta na sua forma descritiva ou redacional, pois tem outro modo de apresentar a percepção da realidade. Ao contrário da forma científica, que é objetiva e analítica, o mito é natural, espontâneo e vivencial, dentro do mundo dramático do jogo das forças. Por isso, o mito envolve elementos emotivos como alegria, dor, angústia, exaltação, etc. Os fatos não aparecem vagos, neutros ou indiferentes. São movidos ou por forças maléficas ou de bondade; ou são hostis ou acolhedoras, atraentes ou repugnantes. De forma geral, os mitos envolvem histórias dos deuses, que justificam bondades, violências, lutas e dores.
Mircea Eliade oferece um conceito muito valioso de mito: “é sempre a narração de uma criação”. Nesta narrativa se conta como as coisas começaram a ser ou como foram efetuadas.[7] “O mito revela a sacralidade absoluta porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade das obras deles. Em outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo”.[8]
Os mitos só aparentemente envolvem crenças abstratas e dogmáticas, pois seu conteúdo resulta de ações. Não procede nem de representações e nem de imagens. Assim, uma relação mítica com a natureza, por exemplo, não é nem teórica e nem interesseira, mas, simplesmente simpática. É uma relação afetiva cordial. Para melhor corresponder a esta relação, os seres humanos religiosos se valem dos ritos, forma conatural ao ser humano que leva a expressar simbolicamente experiências culturais e religiosas.
Como forma de expressar os mitos e as convicções religiosas, o rito organiza as experiências de formas a lhes mostrar sentido e como mediação para um agir prático. Segundo Terrin:
“Rito poderia ser entendido como uma ação simbólica que organiza a experiência de sentido do homem no mundo, onde a ênfase, porém, tende a recair mais sobre a ação e organização prática do que sobre a simbólica da ação”.[9]
O rito não constitui uma mediação meramente religiosa e mítica, mas também está presente em todas as formas culturais. Geralmente envolve a capacidade de debruçar-se sobre tudo quanto envolve a vida e apontar respostas para aquilo que a condição humana apresenta como exigência ou necessidade. Uma das mais importantes funções do mito é a de mediar conflitos e ameaças que põem em risco a capacidade de convivência de grupos humanos. Conseguem pacificar espíritos exaltados. Segundo Terrin, há pelo menos três tipos de ritos religiosos:
a)      Os ritos apotropaicos - que levam a buscar proteção e força. No Cristianismo, por exemplo, tinha, na sua fase inicial, a função de espantar os demônios e de proteger o meio-ambiente contra infestações maléficas;
b)      Os ritos eliminatórios - que levam a afastar o mal ou as forças negativas ou de pecado, com o intento de mandá-las embora e de imunizar-se contra elas;
c)      Os ritos de purificação - que visam distanciar o elemento considerado perigoso. Envolve o jogo do afastamento, bem como experiências de culpa e de impurezas a serem purificadas através de jejuns, de mortificações e de sacrifícios expiatórios. Costumam envolver símbolos como água, fogo e abluções.[10]
Outra função de destaque dos ritos no campo mítico religioso é o de confirmar estratificações sociais, ajustando os membros de uma sociedade e legitimando a confirmação de níveis distintos.
Constata-se, por conseguinte, que os mitos e a religião se cruzam de forma sutil e se exteriorizam nos ritos e explicações relativas à origem da vida e do seu sentido.
De acordo com Luis José González, o mito apresenta diversas peculiaridades muito interessantes, que revelam sua estreiteza com a religião:
a) É uma história sagrada – que envolve personagens sobrenaturais e que atuaram de forma maravilhosa nas origens: sua ação move o mundo e o fundamenta;
b) É uma história verdadeira – porque expressa uma vivência concreta em torno de realidades vivenciadas; diz o que aconteceu e como o fenômeno se manifestou. Para não-crentes esta realidade envolvendo o sobrenatural é tida como irreal e falsa. No entanto, para a pessoa religiosa, o sagrado é uma realidade que é a mais real e verdadeira.
c) É história de uma criação – pois descreve como uma nova realidade apareceu, ou, como o divino irrompeu no mundo.
d) É uma história exemplar – porque oferece um modelo para um agir humano. Quando se imita o que foi manifestado pelos seres superiores, chega-se à perfeição.
e) É uma história que confere poder – ao fornecer a origem das coisas, ensina como preservá-las e cuidá-las. Por exemplo, uma doença, uma planta ou animal. O mito confere poder sobre eles. Trata-se de um conhecimento vivido e não exterior e objetivado. Assim, o conhecimento de uma história se torna exotérica, pois, seu segredo somente é transmitido através da iniciação e acompanhado de poder.
f) É uma história vivencial – porque é vivida. Ao sentir-se envolvida pelo poder sagrado a pessoa lembra acontecimentos e os atualiza. Nisto o mito constitui uma extraordinária experiência religiosa. Ao se reportar a momentos grandiosos atualiza a partilha desta presença divina.[11]
Luis José González também salienta que o mito propicia uma importante função social: ele interpreta a ordem e o sentido da natureza (realidades abertas e misteriosas); faz passar do caos para a ordem a fim de tornar expressiva e vivente a ordem do cosmos.
            Constata-se, por conseguinte, que mito e religião envolvem um campo comum no qual se procura entender o porquê da vida, da convivência e do sentido humano. Por isso, não é inferior e nem superior à religião, mas se encontra atuante nas religiões, assim como também continua vivo e presente das pesquisas científicas. Tanto a religião quanto a ciência não suportam o vazio do não entendimento de uma realidade que se manifesta. Por isso, dão o salto para a origem e afirmam como foi e o que decorre de tal fato. E se eventualmente uma explicação mítica é considerada inútil ou sem razão de ser, é imediatamente substituída por outra. Portanto, o mito é uma realidade que integra a condição humana. Se por exemplo consideramos a explicação bíblica do paraíso e da criação, vemos que se trata de um mito de um significado profundo e religioso, assim como é mítica a explicação científica do “Big-Bang” de uma explosão que teria gerado o mundo e as condições da vida.
            Cabe uma pergunta: seria presença do mito nas manifestações religiosas algo negativo e ruim? Certamente não. O mito integra o mundo sagrado e quando alguém vive o mundo religioso vai agir de uma forma determinada e vai tentar induzir outras pessoas a viver desta forma. Geralmente nestas explicações é que se manifesta o mito para levar as pessoas a agir daquele modo. No apelo aos recursos e símbolos para encantar em favor desta concepção religiosa do mundo, introduzem-se mediações míticas. Per exemplo, no cristianismo, o mito não se encontra na doutrina, mas no modo como as pessoas tentam passar para frente o que acreditam no cristianismo.

2 – O que a religião tem a ver com o mito?

            A religião depende da capacidade humana de estabelecer hierarquia de valores e perceber que certas opções humanas e conseguem captar um sentido para o mundo e suas relações. O tema “religião” é muito amplo e muito variado e varia muito de um momento histórico para outro, precisamente porque se reordena conforme as leituras que faz dos acontecimentos.
            Segundo Argote a religião apresenta pelo menos quatro características gerais e, geralmente os elogios ou críticas atingem apenas uma destas características:
     a)      Possui um sistema de crenças decorrentes de um modo de crer o que a leva a estabelecer dogmas ou regras doutrinais, mesmo não explícitas;
     b)      Envolve um conjunto de práticas rituais para expressar o que vive e o que crê. São os elementos cultuais;
      c)      Tem implicações áticas e místicas que caracterizam seus horizontes comunitários;
      d)      Envolve relações interpessoais e sociais, motivadas por seus valores religiosos.[12]
A religião implica em fé, mas, nem toda fé religiosa implica em religião, pois a religiosidade popular, por exemplo, depende mais de influências sociológicas e culturais e do núcleo ético de grupos humanos e envolve mais uma realidade interior.
A fé, embora seja elemento imprescindível da vida, quando religiosa, visa estabelecer comunhão e comunicação com o Sagrado. Através da religião pode a pessoa mover-se na relação com o absoluto por razões muito variadas, como medo, submissão, busca de segurança, de forças, de equilíbrio diante de acontecimentos, de adoração, etc.
Como o mito, a religião tampouco se constitui num mero aglomerado de ritos, de sentimentos e de regras doutrinais em torno de inseguranças humanas, mas, constitui, eminentemente, uma reação à realidade transcendente. Esta reação depende de uma “cosmovisão” religiosa, que, por sua vez, confere à pessoa religiosa um modo de relacionamento com as outras pessoas, as coisas, e lhe permite conferir sentido valioso à existência. A fé se torna o elemento fundamental desta “cosmovisão” que concede sentido, segurança e valor.
            Ocorrem muitas discussões em torno da etimologia da palavra “religião”. Poderia derivar da palavra latina “religare” (reatar ou religar), ou da palavra “reeligere”, que daria uma conotação mais próxima de ser eleita e escolhida. Diante da dúvida, o importante é considerar o conceito emitido por Ullmann, de que a religião constitui “a relação do ser humano ao fundamento da sua própria natureza e sentido”.[13] Tal relação acontece de forma especial na relação com o transcendente ou com o Criador. Constata-se, pois, que a religião não se ocupa de uma realidade estranha ao mito, embora tenha traços específicos. Mito e religião, na estreiteza com o transcendente querem transcender o “caos” para que possa reinar “ordem” (cosmos) tanto nas coisas como nas pessoas e sua relação com as instâncias transcendentes.
O mito, segundo González, constitui o núcleo da vida religiosa, pois a religião também capta miticamente a vida em sua unidade e totalidade.[14] Para uma pessoa religiosa a natureza nunca é simplesmente natural, mas está impregnada e perpassada pelo sobrenatural.
 Eliade constatou outro elemento importante da religião: envolve a pessoa religiosa numa única história que interessa: a História Sagrada, revelada pelos mitos: “o homem só se torna verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, imitando os deuses”.[15] Nesta imitação, costumam ser repetidos os atos divinos ou os gestos por eles deixados. O remeter-se à origem vai apontar a história verdadeira. Assim, também as festas religiosas constituem uma atualização de um fato primitivo através dos quais os deuses e os seres humanos, a eles ligados, fazem a história tornar-se História Sagrada.
Para Ernst Cassirer não é possível, na condição humana, estabelecer um limite onde o mito termina e onde a religião começa, porque os dois fenômenos se originam da vida:
Em todo o curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos e repassada deles. Por outro lado, até em suas formas mais grosseiras e rudimentares, o mito contém motivos que, em certo sentido, antecipam os ideais religiosos mais elevados que vieram depois. Desde o início, o mito é uma religião em potencial.[16]
Nos dois últimos séculos surgiram diversas teorias antropológicas para explicar a religião. Umas se ocuparam da história das religiões e como se desenvolvem; outras, da fenomenologia, averiguando como se manifestam externamente; outras estudaram o perfil psicológico ou psíquico das manifestações religiosas; e outras ainda, os efeitos sócio-culturais de entidades religiosas. Boa parte das análises colocou a religião como campo a ser combatido pela ciência. Especialmente os simpáticos da dedução de que existem três estados de pensamento lógico segundo Augusto Comte, encontraram particular estímulo para deduzir que o tempo da religião ficou relegado ao passado.
 Ao afirmar que o estado teológico teria sido o segundo da cultura humana, depois da fase mítica – ambos já superados pelo atual, o científico e positivo da Sociologia, - a religião estaria dispensada da vida de nossos dias, uma vez que o conhecimento experimental acharia explicação e solução dos problemas que inquietam a consciência religiosa da humanidade.
 Até mesmo os estudos comparativos entre diferentes etnias reforçavam a ótica Comtiana e endossavam os pré-julgamentos de que todas eram iguais na manifestação religiosa como expressão de algo rudimentar e como mero resquício da humanidade antiga, e ainda, como decorrência dos sentimentos agregadores dos grupos humanos.
No entanto, a universalidade das manifestações religiosas, presente em todos os povos da Terra, e estudos mais apurados acabaram revelando outras dimensões mais significativas que as de Comte.
a)  Augusto Comte – considerou a história em três estágios: 1) o mítico; 2) o
religioso; 3) o positivo científico. Este seria a superação da religião, considerada como a
adolescência da humanidade.
b)     Syr Edward Tylor - No seguimento da ótica positivista entendeu que religião é
crença no sobrenatural, mas é constituída por mera resposta mental diante dos 
sonhos, medos e mistérios da vida. 
Sir Edward Tylor foi o primeiro grande expoente da Antropologia a apresentar
explicações sobre a origem da religião. Definiu a religião como “crença no
sobrenatural”, pois deduziu que a religião decorre de respostas mentais a certas coisas
misteriosas que a vida apresenta, tais como sonhos, doenças, morte e que, a partir
dali, leva a acreditar em seres espirituais. Chamou este processo de animismo, pois os
seres espirituais se apresentam de múltiplas formas, como espírito de plantas, de
animais, almas, fantasmas, demônios, anjos, deuses, etc.
c)       Hoebel Frost – religião é simples efeito de “Mana”. Segundo Hoebel Frost, todas
as religiões teriam manifestações de animismo e “mana”. Pelo fato da condição física e
humana não conseguir inibir estes espíritos de seres espirituais, passariam a ser
considerados sobrenaturais.[17]
d) Durkheim – religião é fruto de questões sociais, como pertença, lealdade,
solidariedade, que seriam produzidos através de ritos. O ritual seria a essência da 
religião. O sagrado seria mera consciência coletiva; Religião é algo natural da vida
humana porque nasce da vida coletiva; Igreja é apenas a união de uma comunidade
moral.
e)  Malinoski – com Durkheim, também no espírito cientificista moderno,
destacaram como fundamento da religião a participação do público como processo de
coesão, pertença, lealdade e solidariedade em torno de questões sociais estabelecidas.
Durkheim viu no ritual a essência da religião. É o ritual que gera a solidariedade e a
crença coletiva. Nesta ótica, o indivíduo isolado procura a religião e, através dos ritos,
se integra ao grupo social. Os rituais sagrados e as crenças constituiriam apenas uma
simbologia da sociedade. Dali também nasceria uma separação de “sagrado” (o
sobrenatural, extraordinário e fora deste mundo, gerador de horror e de senso de
mistério) e “profano” (o natural, a rotina, o mundo prático e a convivência familiar
comum). O sagrado, para Durkheim, estaria constituído apenas pela consciência
coletiva.
Ocorreu também uma febre de análises sociológicas, a partir de Durkheim e de
seus seguidores, que restringiram a religião a um mero efeito de “Mana” e de
“Totem”. Concluíram que a “Mana” constituía uma força anônima e impessoal, como
centro dos fenômenos religiosos e, que era capaz de animar a vida religiosa de um clã;
Já o “Totem” constituiria a expressão e a forma de simbolizar a “Mana” ou, esta força
regedora do grupo humano.[18]
f)      Friedrich Schleiermacher – teólogo, por exemplo, concluiu que a religião
nasce da condição de dependência humana e da constatação de que existem poderes
superiores a ela, e que a tornam dependente do divino.
g)   Rudolf Otto foi notável ao mudar o enfoque do estudo das religiões. Deixou de
lado toda a polêmica positivista e cientificista, bem como a procura de explicações
racionais da religião, e passou a focar o modo como uma pessoa religiosa experimenta
o Sagrado, essência mais íntima de todas as religiões. Esta nova luz para o
entendimento da religião apontou que o campo das hierofanias (a forma como alguém
experimenta a manifestação do Sagrado) e que envolve o “Numinoso” (divino) ou
“Santo” com duas reações contrárias simultâneas: atração e curiosidade, com medo e
pavor (“Tremendum Fascinans”). Nas conclusões de Otto, o sagrado sempre se
manifesta como potência completamente distinta das forças naturais e, como
fenômeno, se torna perceptível ao ser humano.
Na história de cada religião, desde a mais simples até as mais complexas, há um
acúmulo ou um grande acervo de hierofanias, ou seja, manifestações de realidades
sagradas que, por sua vez, nunca aparecem em estado puro, mas sempre vêm
acompanhadas ou mediadas por objetos, mitos ou símbolos, ritos, pessoas, plantas
lugares, etc. As hierofanias sempre estão constituídas de três elementos: 1 – a
realidade invisível e o objeto mediador constituído de sacralidade (pedra, árvore ou
fato); 2 – a realidade invisível, a experiência do totalmente outro (ou transcendência,
céu ou supra-terreno); 3 – o mediador que revela o “totalmente
outro”, por exemplo, Jesus Cristo como mediação da manifestação do amor de Deus 
h)  Marcel Mauss e Henri Hubert – Mauss, sobrinho de Durkheim, e seu
companheiro Hubert, estudaram a função social do sagrado e concluíram que seria o
“TOTEM”. Introduziram a importância do simbolismo que é expresso no rito.
i)   Renê Girard – viu que o sagrado se fundamenta na violência (envolvendo a morte
da vítima emissária). O centro do sagrado é o sacrifício. Através dele procuram-se
eliminar as rivalidades, os desencontros e as disputas entre as pessoas.
j)   Dumézil e Mircea Eliade - Observaram que o sagrado não fica circunscrito a
um grupo humano, mas, é experimentado pela transcendência do INEFÁVEL (que a
linguagem não consegue explicar). Sagrado está no dinamismo da estruturado
consciente.
Georges Dumézil e Eliade constataram que existem outros fatores para tornar
religiosa uma pessoa, porque ela experimenta o sagrado como “inefável”,[20] que está
totalmente além da vida e que incide sobre ela. Dumézil e Eliade perceberam este
processo nos estudos comparativos das religiões, especialmente, a partir dos povos
indoeuropeus. Segundo Eliade, compete ao historiador das religiões o estudo dos fatos
religiosos e o que revelam.
k)    Harwey Cox ajudou a alargar o entendimento da religião num sentido mais amplo
do que o da dependência, ao constatar que a experiência do divino envolve festividade
e fantasia, que faz a pessoa religiosa abstrair-se das preocupações do meio ambiente e
do passado, o que lhe confere exuberância e transbordamento. Estas realidades
permitem à pessoa religiosa constatar que outros “mundos” são possíveis, ou seja, que
podem transcender seu momento atual para realidades novas.
Os estudos da história das religiões de Rudolf Otto, de Georges Dumézil e de Mircea Eliade acima mencionados, têm ainda apontado para outro aspecto muito importante e bem diverso: o sagrado não é uma força humana circunscrita a um grupo humano, mas, é experimentado pela sua transcendência. Por isso, o sagrado, como coração da religião, se opõe ao profano. O sagrado ao ser experimentado como algo inefável, ultrapassa a capacidade explicativa humana, porque a linguagem não consegue expressar a grandeza da experiência. Dumézil e Eliade também observaram que a religião depende mais do “Logos” do que da “Mana”, pois, o sagrado sempre é entendido como soberano e como absoluto que incide sobre a vida humana e lhe aponta um caminho.
Na perspectiva destes dois pensadores, que aprofundaram as importantes constatações de Rudolf Otto, uma religião é muito mais do que sua doutrina e suas formas rituais e de celebração, pois, implica numa determinada visão de mundo, de pessoa humana e do próprio transcendente. Disto decorrem as formas diversificadas como as religiões experimentam o sagrado, ou o divino. Além da doutrina, dos ritos e das práticas de uma religião, esta também cria vocabulário específico para suas celebrações litúrgicas. Em outras palavras, o sagrado não é uma força impessoal que rodeia um grupo humano, mas é um dinamismo da estrutura de consciência das pessoas religiosas. Por isso, estas pessoas apresentam muitas modalidades de vivência do sagrado.
Pudemos constatar que os estudos que visam o entendimento da Religião deram saltos enormes, mas, ainda resta muito a ser estudado, tanto no homem religioso e no modo como vive a Religião, quanto na forma como experimenta o Sagrado. A identificação do Sagrado como “Mana” feita a partir das teorias de Comte e do positivismo, e das concepções evolucionistas acabaram servido de aporte para que outros estudiosos das religiões como Georges Dumézil e Eliade chegassem a entendimentos mais amplos e significativos de tudo quanto envolve mitos e Religião. Eles apontaram para outra perspectiva a de que o homem religioso não se guia por estruturas meramente sociais, mas, envolve o Sagrado presente na estrutura de consciência da pessoa religiosa. Deste modo, ao invés de constituir-se num sujeito alienado o homem religioso é um sujeito normal. Ao envolver-se do Sagrado, a pessoa se situa no mundo com um determinado modo de motivações para transformar o caos em cosmos e estabelecer hierarquia de valores para que isto aconteça.
Pudemos constatar, igualmente, que a Religião, mesmo permeada com a riqueza dos mitos, não se exaure nesta relação, uma vez que a Religião também está permeada pela espiritualidade, aspecto merecedor de um estudo mais específico.


B I B L I O G R A F I A
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[1]  Texto já disponível no site das Faculdades La Salle de Lucas do Rio Verde-MT.
[2]  CASSIRER, ERNST. Antropologia Filosófica, p. 121.
[3]  Modos como as pessoas religiosas sentem e experimentam o “Sagrado”.
[4]  Idem, p. 127.
[5]  Se, por exemplo, olhamos para o modo como um homem primitivo olha a natureza, não o faz como um naturalista e nem como um curioso de novidades intelectuais e nem mesmo como um interessado técnico ou, meramente utilitarista e pragmático. Não se trata, para ele, de um objeto de conhecimento e, nem tampouco de um interesse para finalidades práticas, pois, sua relação com a natureza é meramente simpática. Ele participa com profunda solidariedade da vida da natureza. Tampouco se pensa privilegiado neste ambiente. Simplesmente participa dele. (Cassirer, op. cit. p. 135-136).
[6]  Em seu livro Mitos e Homens.
[7] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano – a essência das religiões, p. 80.
[8] Idem, p. 81.
[9] TERRIN, Aldo Natale. O RITO – Antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004, p.162.
[10] Idem, p. 37-40.
[11]  ALVAREZ, González José Luis e outros. Antropologia – perspectiva latinoamericana, (na parte II: Repuestas a la pregunta por el hombre – El problema de las cosmovisiones). Bogotá: Universidad Santo Tomás, 1990, p. 43 ss.
[12] ARGOTE, Germán Marquínez e PEREZ, Teresa Houghton, no capítulo Valores Religiosos, p.311, In: ARGOTE e outros. El hombre latinoamericano y sus valores. Bogotá: Editorial Nueva America, 1991.
[13] ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Antropologia Cultural. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1983, p. 168.
[14]   ALVAREZ, González, op. cit. p. 46.
[15]  ELIADE, Mircea, op. cit. p.84.
[16]  CASSIRER, Ernst, op. cit. p. 143.
[17]  HOEBEL, Adamson E. e FROST, Evellet L. Antropologia Cultural e Social. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 364.
[18]  O assunto da “Mana” é polêmico e não há nem muita certeza e nem muita clareza sobre seu real significado. De forma geral, vem sendo associado a homens possuidores de qualidades excepcionais, como gurus, xamãs e guerreiros e, também de poderes que emanam de rochas, animais, árvores e até de armas.
[19]  RIES, Julien. Lo Sagrado em la historia de la humanidad, p. 72-73.
[20]  Significa o que é indizível, ou, uma experiência que não se consegue expressar por palavras.

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