domingo, 13 de outubro de 2013

O homem que sonhou ser aranha

Nos tempos da década de 1960, que já podem ser chamados tempos de antigamente, quando o grande status era o de alguém possuir um rádio movido por carga de bateria, era comum que o dono de um receptor de ondas sonoras se tornasse prestigiado e agraciado com muitas visitas, que, à noite, vinham para escutar algumas músicas, o que constituía fato raro naquele tempo. Justamente à noite, as ondas sonoras das rádios brasileiras, que poderiam fazer espargir pelos alto-falantes do rádio algumas músicas do Teixerinha, algumas outras músicas gauchescas e sertanejas, estas sumiam do ar no meio de ruídos e chiados, como as nuvens dos céus, e, a sintonia do rádio passava a apresentar somente conversa de radialistas argentinos. De dia, até que a sintonia era boa e nítida para escutar músicas da rádio Globo ou Tupi de São Paulo, ou da Guaíba e Gaúcha de Porto Alegre ou, ainda, escutar as músicas de bandinhas da rádio Entre-Rios de Palmitos, mas, de noite, só dava conversa de “hermanos” do lado de lá do rio Peperi. Alguém tinha que ficar com a mão no sintonizador do rádio e tentar achar a sintonia fina de músicas brasileiras. No entanto, a cada pouco, conversa vinda da Argentina tomava o espaço da outra emissora sintonizada. Por mais que a função técnica de evitar a ocupação das ondas argentinas, fosse exaustiva e, metida a procedimento técnico sem muito êxito, escutava-se, a todo instante, a propaganda das pílulas Ross. Para casos de azia e problemas intestinais, o radialista recomendava enfaticamente: “Tome pílulas Ross”. Una pílula: Pim!; Dos pílulas: Pim, Pim!; Três pílulas: una “cagada” completa! PRRR; PRRR; PRRR... Como a música sumiu dos ares, pelo menos a propaganda das pílulas Ross despertou Pedro Silva a contar uma experiência em torno do árduo procedimento, após uma defecada completa. Contou que, numa noite, teve um sonho encantador de ser aranha. Lá do alto do pé de grápia, árvore altaneira sobre as demais do mato, estava ele, acima dos mistérios, dos medos e dos mecanismos mortíferos e vociferantes das disputas pela vida que aconteciam sob o verde-escudo das árvores mais baixas. Primeiramente, olhou bem para todos os lados a fim de escolher o melhor lugar para fazer sua moradia. Achou, sob um galho, lá nas alturas, uma rachadura da casca e viu que ali seria lugar seguro contra predadores e até mesmo contra as intempéries dos ventos e das chuvas. Foi fazendo teia até proteger bem seu espaço nidícola. Depois disso, pensou em assegurar o necessário suprimento alimentar. Ergueu o pum-pum para o ar, e foi soltando teia. A brisa do entardecer se encarregou de fazê-la ondular suavemente até chegar num pé de Imbúia. Ao constatar a ponte aérea, reluzindo contra os últimos raios solares, como um asfalto prateado e liso, desceu airosamente como a aterrissagem de um avião e começou a preparar uma armadilha para captar insetos. Desejoso de farta reserva alimentar, foi soltando teia a partir desta armadilha até fixar-se num cedro e, lá, preparou outra arapuca para captar bichinhos incapazes de perceber, no lusco-fusco do final do dia, as suas quase invisíveis catapultas para lograr os míopes das matas com sua sorrateira arma mais forte que aço. Cheio de realização, foi subindo, antes mesmo do escurecer para seu novo residencial no galho da grápia. Chegando lá nas alturas, viu que o sol ainda o iluminava com vagos e diluídos raios. Resolveu, então, soltar teia para vagar pelos ares, como astronauta que se encanta ao deslindar novos horizontes. Imaginando flutuar soltamente, mas, amparado pela teia que lhe abriria a segurança para o retorno ao ambiente doméstico, foi dando asas aos sonhos de prazer, de felicidade e de realização pessoal. A imensidão das distâncias visualizadas apontava todo o poder que um dia poderia alçar e sentia-se alheio a tudo quanto acontecia nas rasteiras obscuridades da mata. Ainda que este fio de teia não tivesse encontrado lugar para prender-se em algum galho, deveria baixar das nuvens. Mansamente, como o pouso de uma águia, iria aterrissar sobre a copa de alguma árvore e depois, exuberante e todo satisfeito, retornaria sobre a teia produzida pelas suas próprias entranhas. Deslizava suavemente no seu retorno, para voltar e ver se alguma presa já enroscada na teia poderia servir-lhe de fresco e saboroso jantar. Depois, iria repousar no seu seguro ambiente residencial. Antes mesmo de ver-se adormecendo, depois do bom jantar, acordou do sonho e aí veio uma constatação mais desconfortável: nada de aranha e de teia, mas estava sujo por uma evacuação de dejetos intestinais. Passou a mão por baixo e sentiu que as proporções estavam do tamanho das longas teias produzidas no sonho. Surgiu, então, outro problema: como ajeitar-se sem que as demais pessoas da casa viessem a perceber seu descontrole peristáltico? O pior foi que o produto havia passado da cueca, cruzou pelo pijama e chegara a manchar o lençol! Não restava alternativa melhor do que sair de fininho, cruzar uns cem metros de escuridão e pior, numa noite fria, para ir até o córrego e empreender uma necessária limpeza geral. O caminhar no escuro, ao lado do frio que parecia cortar suas orelhas, todavia, despertou a sensibilidade de que também as pernas iam se sujando paulatinamente. Bem, contou Paulo, prosseguindo o assunto, pensei logo num jeito para me defender: vou tirar a roupa, lavá-la e enxaguá-la bem, torcê-la ao máximo e, depois, fazer uma limpeza geral na pele para não deixar nem mau cheiro. E, para que ninguém percebesse o descalabro, ainda teria outra difícil tarefa: como limpar o lençol e como não mostrar que a roupa fora lavada? Para limpar o lençol, teria que levar um pano molhado e esfregá-lo e tirar as evidências da “defecada completa”, igual à da propaganda das pílulas Ross, e, ainda mais, teria que vestir a mesma cueca e o mesmo pijama, que, mesmo molhados, teriam que secar durante a noite sob o calor do cobertor. Ademais, precisaria levantar-se antes dos pais e dos irmãos, a fim de levar o pano sujo até o córrego e lavá-lo a ponto de não deixar vestígios que um sonho lhe deixara para amargar. Felizmente tudo deu certo, mas Paulo, ao narrar o sofrimento decorrente do sonho, assegurou que não queria jamais ser acometido por qualquer tipo de sonho envolvendo aranha e teia. Nestas alturas da narrativa de Paulo, nem a propaganda das pílulas Ross e nem as teias das suas entranhas sustentavam as ondas das tonalidades musicais do rádio, mas, para consolar-se, ele mesmo concluiu: ainda bem eu me sujei por completo com o que veio das minhas próprias entranhas! Já pensou passar por tudo isso, com os dejetos produzidos por outros?

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