PREÂMBULO
Primeiramente, convém apresentar uma pequena elucidação
relativa ao significado da palavra “Aporofobia”.
Aporofobia é um termo que resulta da
junção de duas palavras gregas: áporos, com
o significado de pobre, desamparado; e fobéo,
com a significação de temer, odiar, rejeitar. A palavra “aporofobia” é de uso
relativamente recente, criado pela filósofa espanhola Adela Cortina,
Catedrática da Universidade de Valença, Espanha, na década de 1990.
Em entrevista concedida à BBC Mundo, a
referida filósofa destacou que, assim como “xenofobia” constitui aversão a
estrangeiros, a aporofobia consiste no cultivo de aversão a pobre, porque é
pobre.
Segundo a filósofa, “...a palavra surge de forma mais simples,
quando percebemos que não rejeitamos realmente os estrangeiros se são turistas,
cantores ou atletas famosos, rejeitamos se eles são pobres, imigrantes,
mendigos, sem teto, mesmo que sejam da própria família”.
Adela Cortina, a criadora da palavra
aporofobia, entende que esta palavra ajuda a tornar visível uma patologia
social e, quando se investigam suas causas, torna-se possível o discernimento
entre concordar que esta doença social continue a crescer; ou, para criar
consciência que desperte a vontade de erradica-la, por produzir tratamento
inadmissível.
Se a palavra aporofobia é recente,
seu significado, no entanto, mostra que está radicado nas relações humanas
desde tempos primordiais. Isso, todavia, não significa que devamos aceita-la,
simplesmente, como algo congênito e natural; e, nem tampouco pressupor que
sempre vai continuar a fazer parte da organização humana.
Num primeiro vislumbre, pode-se
perceber que o fenômeno humano da aporofobia está fortemente ligado a questões
culturais, mas, simultaneamente, pode-se observar que certas formas de
organização social, política e econômica predispõem, mais do que outras, para
os processos de rejeição a pobres.
Especialmente nos ambientes em que o
dinheiro é muito valorizado, ao lado do seu poder de barganha para aumentar a
fama, o sucesso e o aplauso, torna-se praticamente impossível considerar que
todas as pessoas são iguais, perante a lei e os direitos básicos. Embora legislações
apresentam belas declarações, como os direitos universais, o agir prático e
cotidiano não se enquadra no amparo destas regras.
Basta ver que, tanto a nível pessoal,
quanto grupal, e, até nas relações internacionais, fica perceptível que a
predisposição para ajudar alguém costuma depender de uma anterioridade de
favores recebidos. A não correspondência a favores feitos, leva ao abandono das
pessoas, dos grupos ou das nações. O campo da política é o que melhor ilustra
que, os favores efetuados, sempre apresentam uma barganha para ações
posteriores, como a de atuar em campanha de eleição, ou diante da pretensão de
ascensão para cargo ou poder. Nisto se aplica o significado adulterado de uma
noção bíblica de “dar para receber”.
1 – RAPSÓDIA GREGA ANTIGA E A ATUAL
CONSIDERAÇÃO DO POBRE
No período anterior à fase filosófica grega, a
culminância mais segura da interpretação dos acontecimentos cabia aos poetas.
Acreditava-se que eles recebiam confidências especiais dos deuses e desfrutavam
do especial privilégio de poder repassá-las aos ouvintes, - como mestres da
verdade, - as explicações míticas, tidas como verdadeiras e dignas de
assimilação, porquanto se acreditava que existiam regras naturais para reger a
vida e os acontecimentos.
Enquanto os poetas escreviam os
grandes poemas, os “rapsodos” eram os
declamadores destes poemas. Com vestes coloridas e vistosas, encantavam os
ouvintes com sua arte declamatória, com os versos escritos pelos poetas. Tidos
como os mestres da verdade, eram, na verdade, artistas itinerantes que iam de
cidade em cidade, como narradores dos grandes mitos, - cultivados como
verdadeiros, - porque explicavam os acontecimentos e as coisas.
Em nossos dias, os grandes mitos da
elite dominante não são mais repassados em versos declamados, mas, chegam ao
público alvo através de novelas, programas de humor e tantos outros da mídia
televisiva.
Conta-se que nos mitos antigos,
produzidos pela aristocracia grega e declamados para os trabalhadores braçais
pelos rapsodos, veiculava-se um mito importante para assegurar os privilégios
da nobreza: fazer os pobres sonhar com as festas e as extravagâncias da
nobreza, mas, continuar no trabalho escravo para sustentar a opulência da classe
abastada.
Algo parecido é repassado de modo
similar através de novelas e programas do humor. Ali, facilmente se tripudia em
cima da pobreza, para ocupar os pobres e, ironicamente, faze-los rirem da sua
desgraça e continuarem a sustentar as classes altas. Para ilustração, lembramos
o programa de humor “Escolinha do professor Raimundo” de Chico Anísio, que
costumava falar em “pobricida”, um veneno para terminar com os pobres. Outro
programa ainda mais discriminador de pobre, foi o programa “Sai de Baixo”, uma
caricaturização do nojo e do pavor contra o pobre. O ator Miguel Falabella,
costumava repetir o bordão: “eu odeio pobre; tenho horror a pobre”... O mesmo
personagem também repetia: “palco de pobre é terreiro de umbanda. Eu tenho
horror de pobre”. Carlos Eduardo Araújo salienta outra afirmação ilustrativa: “pobre é uma coisa triste. Pobre quando quer
falar bem, ficar pernóstico, coloca mais letra que o necessário e termina com
aquela frase que o caracteriza, é praticamente um crachá de pobre: desculpe
qualquer coisa. Eu tenho horror a pobre”.
Indiretamente, o ator delineava uma
linha divisória: pobre é separado. Na atualização da velha concepção brasileira
da Casa Grande e Senzala, procede-se uma distinção: uma cuidadora de crianças
deve usar roupa branca; uma trabalhadora doméstica deve usar uniforme, mas,
eles têm acesso num elevador à parte para sua área de serviço. Enquanto a
mansão é desproporcional de espaçosa, faz-se um pequeno cubículo de cinco
metros quadrados, ou menos, e um banheiro de espaço mínimo para a empregada.
Segundo Carlos Eduardo Araújo, “A mídia tem sua parcela de contribuição, por
meio de suas novelas e programas de humor na difusão de uma visão depreciativa
e grotesca do pobre. Geralmente os personagens pobres são figuras
esteorotipadas: falam alto e com estardalhaço, mastigam de boca aberta e se
vestem de maneira extravagante”
O atual ministro da Economia do
Brasil também explicitou de forma contundente seu preconceito ao pobre. Ao
falar para uma elite econômica do país, justificou a alta do Dólar, e a
considerou como positiva, afirmando que os governos petistas possibilitaram condições
de que até empregadas domésticas podiam ir à Disneylândia. Escancarou de forma
indisfarçável que, pessoa pobre, não deveria ter este direito. Confirmou o ódio
aos pobres que constituem a base da pirâmide social e deu a entender que o
lugar dos pobres é ali mesmo, no ambiente da pobreza. Tal preconceito de classe
constitui colossal desprezo, nojo e repulsa a pobres e supõe que devam ficar
restritos no seu devido lugar. Em alguns ambientes costuma ouvir-se um reforço
ilustrativo deste preconceito: pobre só vai para frente quando tropeça numa
pedra.
Subjaz ao ódio cultivado contra o
pobre, a noção de que ele não deve participar de ambientes que não são os seus.
Irrita aos ricos quando pobres conseguem pequenos avanços sociais.
Especialmente a classe média faz questão de manter larga distância do pobre.
Observamos isso na cidade do Rio de Janeiro, com moradores de avenidas que
separavam favelas. As pessoas de condições médias não queriam morar ali para
não serem confundidas com favelados; e, os que ali moravam, costumavam dizer:
moro no outro lado da avenida, não o da favela.
O grande número de jovens
exterminados constitui outra afronta ao bom-senso quanto à dignidade das
pessoas. Normalmente provindos de ambientes pobres, são discriminados sob
diversos aspectos: por serem favelados, pobres e negros. Basta ouvir policiais
a justificar a razão de terem matado alguém: falam em meliante, marginal,
elemento, bandido, ou aquele outro chavão: “bandido bom é bandido morto” e
“lugar de paz para bandido é o cemitério”.
1.1 – CAUSA DO NOJO E DESPREZO A POBRE
O nojo envolve uma emoção poderosa e
geralmente se expressa facialmente. Decorre de três fatores principais: patógenos,
sexuais e morais. Enquanto os patógenos são raros, os sexuais, ocorrem
especialmente em mulheres contra homens, devido a riscos de violência sexual e
gravidez; já os morais, são os mais acentuados. Fundamentalmente, o nojo gera
divisão de classes. Sua força, supera a força do poder econômico e a força das
leis, pois, separa radicalmente superiores e inferiores.
O economista Joseph Stiglitz,
agraciado com Prêmio Nobel, destaca que a pandemia agravou e exacerbou ainda
mais as desigualdades entre ricos e pobres, tanto a nível interno dos países,
quanto de uns países em relação a outros. Por outro lado, tal separação vem
sendo incrementada de forma mais escancarada há diversas décadas:
“São 40 anos difamando a importância do governo, a importância da ação
coletiva...As regras que foram estabelecidas nesta era do neoliberalismo,
resultaram em mercados ineficientes, de curto prazo. O neoliberalismo
argumentou que a desregulamentação e a liberalização financeira iriam
desencadear um crescimento sem precedentes. Não fez isso. O que desencadeou foi
uma instabilidade econômica sem precedentes...Os modelos que fundamentam o
neoliberalismo eram modelos corruptos que dizem, de alguma forma, que a
economia sempre estava em trajetória de equilíbrio, apesar de ter havido crises
repetidas vezes, como a de 2008, e, eventos como a pandemia, que foram ouvidos,
mas, não antecipados”.
Adela Cortina diz que uma palavra
bonita para falar da causa da aporofobia é a afirmação de que é “biocultural”,
pois, a evolução do cérebro e da espécie humana, mistura dimensões biológicas e
culturais. A interligação das duas dimensões influencia modos de proceder. Pela
herança biológica, há uma tendência para se descartar o que não interessa, o
que pode ser reforçado por influências culturais; no entanto, também pode ser
diminuída a partir do cultivo de outras dimensões, como a da simpatia e a da
compaixão.
Uma marca peculiar dos seres humanos
é a de que são animais recíprocos, tendem a dar algo para outros, esperando algo
em troca. Neste sentido, o que um pobre poderia retribuir a um rico?
Basta ver que até a pandemia mata de
forma desigual: “os brasileiros de
ascendência africana têm 40% mais possibilidade de morrer de covid-19 do que a
população branca; nos Estados Unidos, 22.000 cidadãos afro-americanos e
latino-americanos ainda estariam vivos se sua taxa de mortalidade fosse igual à
dos brancos”.
Esta pandemia também escancara que o
vírus da desigualdade exacerbou ainda mais a já existente desigualdade
econômica, social e racial, pois, no contexto do sistema econômico injusto,
permitiu que a elite de bilionários conseguisse acumular extraordinariamente
seus bens, justamente com esta crise profunda. Enquanto seus capitais
dispararam, bilhões de seres humanos foram forçados a enquadrar-se no nível da
pobreza.
1.2 - CRESCIMENTO ECONÔMICO E
VALOR DA VIDA EM TEMPO DE CATÁSTROFE
É
comum ouvir-se, seguidamente, que o sistema capitalista é um sistema de livre
mercado. Mas, dá para acreditar que é mesmo livre? Pressões em torno de
aquisições e preços, revelam que, além, de não ser livre, também não é justo.
Basta lembrar os aumentos exorbitantes no meio da crise da pandemia: desde
preço de álcool gel, a máscaras, respiradores, e, mais recentemente, o preço do
oxigênio para respirar.
Na prática, o Estado já nem consegue
regulamentar a economia, porquanto ela se impõe com suas regras e frui
livremente do que almeja conseguir, e não admite controle de quaisquer outras
esferas. Sob tal determinismo prepotente, o que significaria sonhar com preço
justo para a ótica liberal e neoliberal?
O dogma absoluto que se estabeleceu é
o de que o Estado não deve doutrinar a economia. E, se o Estado está atrelado
ao liberalismo na condição subserviente, cabe-lhe apenas facilitar o progresso
e êxito do sistema capitalista de economia. A partir desta perspectiva, pode-se
entender a intensa pressão pela privatização dos serviços públicos e sociais.
De acordo com Francisco J. de Lima: “Quando os imperativos econômicos de
crescimento exponencial ocorrem à revelia da inclusão e da igualdade social, as
pessoas são transformadas em escravas do capitalismo, e tal situação, piora
quando chefes de Estado atendem exclusivamente aos interesses dos setores
privados”.
Praticamente, já não se pensa em
atribuir a causa da pobreza à responsabilidade coletiva. Como foi delimitada ao
âmbito da própria pobreza, ocorre uma atitude reativa e desmoralizante contra
quem é pobre. Toda pessoa não produtiva é culpada por não produzir. Como
ilustração pode-se observar o empenho dos grandes clubes de futebol, que querem
manter nível e imagem de rendimento em alto destaque. Selecionam os melhores
jogadores. Aos demais, deixam a impressão de que estão sendo descartados por
falta de produção e rendimento. Assim, os relegados precisam assumir a
culpabilidade da dispensa, pois, são levados a admitir o fracasso por sua
ineficiência. A relação com os pobres tende a ser ainda mais excludente, porque
não tem condições facilitadas para encontrar serviço.
Neste momento de grande inquietação
por acesso a vacinas fica notável a desconsideração dos pobres e dos países
mais pobres. De acordo com Gianfranco Marcelli,
“Em torno da questão das vacinas, uma Europa de solidariedade, de
equidade e dos direitos humanos corre o risco de um dos piores exemplos de sua
história. Alarmes internacionais vêm ressoando, já há algum tempo, temendo-se
que a corrida frenética para angariar doses por parte dos países mais ricos,
esteja condenando um terço da população mundial a permanecer por muito tempo
sem a possibilidade de imunizar-se”.
Esta espera, como bem sabemos, vai
ceifar extraordinária quantidade de vidas entre os pobres.
2 – APOROFOBIA E SISTEMA EXCLUDENTE
Do que foi salientado acima, pode-se
depreender que, da parte do Estado, não se pode esperar ação que amenize a
aporofobia em relação a classes populares e pobres. O combate à desigualdade
requer, no mínimo, extraordinárias mudanças políticas, econômicas e sociais. No
entanto, a osmose que nos envolve a nível de América Latina, nos coloca na
mesma condição explorada a partir de interesses que não emergem deste
continente. Basta verificar a simples dependência atrelada a países hegemônicos
para obtenção da matéria prima, com vistas à fabricação de vacinas contra a
epidemia da covid-19. A dimensão solidária e humanitária fica apenas para
discursos.
Assim, a pertença a determinado grupo
social, sobretudo quando é o pobre, acaba perdendo até mesmo quando se trata de
esperar um julgamento justo por eventuais infrações: nos julgamentos criminais,
o maltrato vexatório com pobres tende a ser muito mais explícito do que nos
casos de “colarinho branco”.
A aporofobia, “na sociedade atual de economia financeirizada subsumida no
neoliberalismo global que reagiu ao Estado de Bem-estar, a situação das pessoas
pobres se vê especialmente deteriorada e o desprezo que sofrem por parte do
resto da sociedade cobra proporções inusitadas”.
Reféns de um sistema excludente, as
vítimas da aporofobia não possuem forças para desencadear mudanças políticas,
econômicas e sociais. Toda a América Latina vive esta contingência da
desigualdade histórica, com alto número de cidades pobres. Sem condições dignas
de vida, enquanto que, uma pequena parcela destes países, detém o controle e o
poder da riqueza.
É por isso que o cenário de
incertezas e desigualdades que ampliam a pobreza, diante das fragilidades
econômicas existentes, requer um necessário imperativo ético para começar a
diminuir as distâncias da desigualdade social, com a exclusão dos pobres.
“O Brasil, entre os demais países latino-americanos, possui uma das
sociedades mais desiguais e individualistas do mundo, ou seja, a população
pobre carece de serviços e bens básicos para levar uma vida com dignidade,
sendo colocada em uma situação de vulnerabilidade e risco, tanto no campo
econômico, quanto no social e político”.
Por outro lado, “O racismo estrutural, enquanto componente essencial do desenvolvimento
do capitalismo brasileiro se evidencia em todos os índices de violação de
direitos, sendo expresso de forma nítida nos dados acerca da mortalidade.
Jovens, pobres, negros, moradores de territórios com precário acesso às
políticas públicas e sociais, são as principais vítimas da violência letal na
realidade brasileira”.
Como a culpa deste deplorável estado
de vida é jogada sobre os próprios pobres, nenhuma medida importante é tomada
para tirá-los deste quadro.
2.1 – APOROFOBIA E RELIGIÃO
Todas as religiões deveriam cultivar
na centralidade de suas atividades o empenho pelo fim dos estamentos sociais,
em que uns exploram outros. Não é por nada que o Cristianismo se articulou
sobre o importante aspecto de superar a velha herança grega de que a distinção
social não constituía problema humano, pois, teria sido Deus quem promulgou
essa diferenciação para o bem do “todo social”.
Belas narrativas das Cartas de São Paulo
revelam esta superação de barreiras estabelecidas contra pobres. Ele certamente
entendeu a mensagem de Cristo de que “o reino dos céus seria dos pobres”. Na
opção fundamental de Jesus Cristo pelos pobres, rotulados e excluídos, ofereceu
o itinerário para seus seguidores. No entanto, o peso da ancestralidade da
história judaica, oferecia muitas e fartas referências de aporofobia. Basta
verificar como, na linguagem dos salmos, se ressalta a tônica contra os
“inimigos” e, o quanto o sonho de riqueza e fartura era enaltecido.
Sem entrar em análise exaustiva,
basta lembrar a afirmação de uma autoridade do Templo em relação ao agir de
Jesus Cristo na Galiléia: pode vir alguma coisa boa de Nazaré?
O Papa Francisco já expressou
largamente o seu apoio aos pobres, tanto em palavras como através de gestos. No
entanto, o Cristianismo, tal como outras religiões, acaba assimilando certa
contradição, pois, está inserido em realidades culturais pós-seculares, e, além
de ficar atrelado a estas perspectivas sociais, não possui meios para estreita
sintonia com os poderes políticos, que não desejam promover os pobres e nem que
se igualem com eles e com as classes sociais altas. Seriam concorrentes
indesejados; e, mais ainda, os políticos não estão dispostos a aceitar uma
tutoria provinda da Igreja Católica.
Apesar disso, as religiões constituem
um aporte notável que facilita a incorporação de muitas pessoas vítimas da
aporofobia. Mesmo que partes consideráveis vivam o privilégio de não estarem
inseridas na categoria de pobre, assimilam a postura secularista de não fazer
nada em favor deles. Entretanto, também se pode verificar muita voz profética,
autêntica e corajosa, agindo para impregnar ambientes sociais com valores
éticos e cívicos que brilham como baluarte e alternativa ao sistema capitalista
excludente e cultivador da ética aporofóbica.
2.2 – NECESSIDADE DE ÉTICA FUNDADA NO POBRE E NO EXCLUÍDO
A ética aporofóbica do sistema
capitalista é marcada por um traço altamente perverso: explorar o pobre,
excluir o pobre, negar direitos ao pobre; e, - o pior - culpa-lo por estar
nesta condição.
“A culpabilização dos mais pobres pelo fracasso da sociedade capitalista
– o que reflete na sua autoculpabilização – é um exemplo clássico de
aporofobia, e isso se vislumbra em ataques, exclusão, chacotas, piadas,
imposição de sofrimento, escravidão, repulsa, nojo, distanciamento, isolamento,
humilhação”.
No Brasil vem sendo reproduzida esta
postura ampla do sistema capitalista. Enquanto que pobres foram agraciados com
elementar benefício de Bolsa Familiar, a crítica diária incide sobre estes
favorecidos, que passam a ser culpabilizados pela falência da economia do país.
E não faltam formas irônicas e simbólicas para incriminar o norte e o nordeste
como causadores principais desta suposta falência. O cinismo desta aversão a
pobre chega ao ponto patológico de induzir os pobres a desprezarem sua própria
condição, sob o sentimento culposo de que são responsáveis pelo seu estado de
vida.
Assim, nesta ética da aporofobia, os
ricos se sentem isentados e os pobres altamente culpados pelo atraso e pelo
fracasso do país nos seus grandes sonhos desenvolvimentistas. Passa, se, então,
a ideia de que pobre é pobre porque é preguiçoso, incapaz, mendicante, e que,
por isso, deve ser considerado invisível. Nega-se a ele o direito de aparecer
em espaços sociais de etiquetas. Denota-se que sequer deveria aparecer em lugar
nenhum.
Grandes setores da Igreja contribuem
para esta ocultação, através de justificativas teológicas de que a pobreza,
como sempre existiu, sempre continuará a ser um estorvo na sociedade vindoura.
A preocupação com a dimensão espiritual acaba obliterando a dimensão profética
em favor de mais justiça social, e facilita a aporofobia como postura normal e
necessária.
Uma tentação geral é a de absorver e
justificar a noção da meritocracia, para confirmar que alguém que se empenha
consegue cargos, méritos e condições sociais elevadas. É na verdade, uma
violência explícita que agride duplamente os pobres. Além de explorá-los com
sub-emprego, deixa-os na condição devedora de culpa, e, de que são causadores
das suas mazelas.
EPÍLOGO
Alvo de nojo e desprezo, a pobreza,
infelizmente é pouco assimilada pela compaixão e solidariedade. Enquanto
persistirem os patamares de separação de classes sociais, justificadas como
fenômeno natural, não se pressiona necessário e inequívoco procedimento:
redistribuir as oportunidades de trabalho em níveis mais igualitários, tanto na
organização interna dos países quanto das suas relações com outros países.
Torna-se igualmente necessária uma
globalização movida por ideais universais e não apenas para classes, e países
hegemônicos privilegiados e oportunistas, a espoliar os demais. E não faltam
entreguistas para levar vantagem neste atrelamento dependente.
Por outro lado, enquanto justiça não
é diluída nos sistemas empresariais e de produção, as diferenças continuam a
expandir-se indefinidamente.
Muitas pequenas formas de organização
de cooperativas apontam para a possibilidade do surgimento de empresas com foco
na solidariedade e participação partilhada nos créditos, e, onde a cooperação
se torna valor anterior ao da competência.
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