quinta-feira, 19 de março de 2020

ANIMAIS LABORANTES




            Nos últimos séculos, a sociedade cada dia mais técnica e industrializada, apresenta uma tendência natural de estimular farta e especializada demanda de mão-de-obra para operar na produção. Massificada, esta demanda, aceita condições submissas, solitárias, e sem poder, e, paradoxalmente, suporta esta condição e se distrai com sonhos e devaneios das grandezas de quem os espolia no trabalho.
            A banalização deste contexto vai gestando um contexto ético-político de assimilação passiva de experiências e ações cada vez mais totalitárias, levando pessoas a tolerarem a miséria e as múltiplas tiranias como fenômenos totalmente normais da convivência. O pior, no entanto, é que a maioria da sociedade se deixa capturar pelo critério de legitimidade governamental que a transforma em meros seres naturais como outras viroses e bactérias, sem quaisquer peculiaridades culturais e genuínas de convivência. Então, fica normal a prática de atos atrozes porque quem os pratica não sente nem remorso, nem culpa e nem responsabilidade.
            A grande pandemia social que banaliza o mal fica imiscuída dos ódios alimentados, porque os constituintes da sociedade aceitam que governantes os estimulem para tais atos execráveis. Como engrenagem de uma grande máquina, o indivíduo apenas cultiva o sentimento de que deve cumprir o seu dever naquela função. E se a função é difamar, provocar, ameaçar, intimidar ou matar, executa friamente a função, sem o menor senso de culpabilidade. Como mero “animal laborante”, não pensa nas consequências e, menos ainda, inquieta–se com os efeitos dos atos que pratica. É apenas um animal tecnificado, burocratizado, que executa os comandos superiores e no lugar da capacidade de inquirir sobre os acontecimentos, sente-se bem ao ter cumprido ordens. Por isso, não pensa, não julga e tampouco admite que possa mudar suas práticas rotineiras.
            Diante deste assustador retorno dos sintomas de governantes totalitários, encaixa-se maravilhosamente bem o discurso religioso em torno do que o demônio é capaz de fazer com as pessoas.
            Apelações religiosas largamente apregoadas e, muito alinhadas com posturas governamentais totalitárias, oferecem aquele lenitivo agradável de que todos os males que se manifestam na frágil dependência social dependem da ação do demônio e da fraqueza pessoal de quem se submete a estas forças para incidir em atos maus. Todavia, a maldade, muito mais do que de consciência pecadora, depende da racionalidade da contingência humana e das características da interação humana. O mal decorre precipuamente da instrumentalização de pessoas, deslocando-as do foco de se constituírem fim, para restringi-las a serem meros meios.
            Assim, a violência banalizada e sistemática contra setores da população apresenta sempre o valoroso apelo da eliminação do inimigo. Ele não tem nome, nem função e nem gênero. É simplesmente um “elemento” dispensável e que não conta no corpo social. A simples declaração de que, um partido, um sindicado ou qualquer outra agremiação age, como inimiga do bem comum, permite o ousado direito de torturar, perseguir e extinguir qualquer outro grupo ou semelhante. Desta forma, a legitimação dos atos mais absurdos e irracionais, é extraída da mágica inversão de que tais atos são altamente racionais e necessários. Basta declarar o objeto da violência como inimigo, adversário, terrorista, marginal ou delinquente que sua eliminação já fica justificada. E se afirmar que o sujeito é “mau elemento” já conta com apreciação favorável para o imediato desaparecimento, seja físico ou moral.
            O que assusta sobremaneira é como nossos noticiários estão impregnados de informações sobre procedimentos totalitários com explícitos fanatismos ideológicos, e que já não admitem pluralidade política, mas, sentem orgulho de poder afugentar, perseguir e até torturar física e psiquicamente em nome da ordem sustentada, e, mesmo demonstrando procedimento visivelmente mórbido, estão de consciência tranquila porque fizeram o melhor do que tinham que fazer. Como pobres amoucos (sem valor de si mesmos, brigam e matam pela ideia ou ordem de outro que, por sua vez, não lhes dá simplesmente nada a não ser o orgulho de terem agido em nome dele) defendem um engravatado bem produzido por multimídia.


segunda-feira, 16 de março de 2020

INCERTEZAS




            Além daquelas que atormentam o cotidiano e com as pessoas do entorno das interações, somos invadidos por incertezas constituídas em ondas gigantes e que vêm de muito longe.
            A vida globalizada e sob a aparente sociedade aberta, já não carece de fronteiras nacionais neste planeta e nos bombardeia com informações que afetam a segurança básica. Longe da endeusada sociedade aberta, segura e sem fronteiras, vive-se o jogo de interesses de grupos poderosos e sem regras para as suas ambições, mas, também sob as ameaças de grupos extremistas e fanatizados, de nacionalismos fascistas, de fanatismos religiosos e de injustiças que ignoram qualquer preceito ético.
            A crescente espiral da violência armamentista cada dia mais sofisticada coloca iminências de guerras daqueles que querem combater o terrorismo, mas o praticam na mesma similaridade dos terroristas, e, como eles, matam outros que não tem nada a ver com sua disputa.
            O espaço e o tempo da globalização faz com que fatos e riscos de distâncias enormes rapidamente nos envolvam, sejam de ações terroristas ou militares, sejam de expansão de doenças, descontroladas ou produzidas, ou de informações falsas para produzir vantagens políticas e econômicas. Nesta dependência todos em qualquer lugar inóspito do planeta são atingidos.
            A sofisticação dos recursos militares para controlar a ordem mundial sucumbe em sofisticação cada vez mais volátil de grupos terroristas que por simpatias e afinidades, agem agressivamente e se desfazem ser deixar quaisquer vestígios.
            Assim, cidades e cidadãos já não vivem a seguranças de suas políticas, porque interesses, táticas e ações de grupos situados a enormes distâncias, ameaçam a vida e a segurança. E povoam o inconsciente de neuroses em torno do que pode vir a acontecer. Por isso, a tão frágil condição de sobreviver, mesmo com muitos enfados, pode ser supinamente interrompida por alguma razão completamente estúpida ou por uma virose que se espalha mais rápida do que o vento.
            O mundo pacato, ordeiro e de cordialidade, vivido por tanta gente no seu passado, sob a sedutora e envolvente globalização, dá lugar a desejos quase infinitos, mas que, diante das éticas e políticas da chamada sociedade aberta, fecham muito antes do tempo esperado o ciclo da existência.
           


sexta-feira, 13 de março de 2020

BÁLSAMO PARA CHAGAS COLETIVAS




O remedinho bom e eficaz,
Que largamente nos apraz,
É o bálsamo anestesiante,
Que cura a dor causticante.

A vasta rede de interação,
Veicula sua confirmação,
Que alguém foi culpado,
Pelo mal-estar causado.

Na imitação dos ordeiros,
Inumeráveis mensageiros,
Veiculam o ódio à vítima,
Com sustentação legítima:

Morrer e logo desaparecer,
Para ser bálsamo e refazer,
A grandiosa conduta social,
Impregnada de elã especial.

Eliminada a vítima culpada,
Reforça-se conduta ilibada,
Da boa ordem recuperada,
E da sociabilidade sanada.

A transcendência efetuada,
Insistentemente justificada,
Sobre a desgraça da vítima,
Dá o alívio da ação legítima.

Divino suporte confirmado,
Justifica no ato executado,
O reinício de novo aporte,
Que a todos dá nova sorte.

Na catarse tão passageira,
Some logo a visão fagueira,
Da restauração social feita,
E da coletividade satisfeita.

Atores da ordem e do bem,
Com suposta ajuda do além,
Sequer degustam paz social,
Em meio ao ajuste desigual.

Logo outro bode expiatório,
Rotulado de modo aleatório,
Será novamente vitimalizado,
Para paz no povo organizado.

Assim um velho vitimalismo,
Atualiza-se no cruel cinismo,
Que desloca causas mórbidas,
E repete as práticas sórdidas.





sábado, 7 de março de 2020

COMUNIDADES DO VESTUÁRIO E PASTORAL DO PANO




            A característica mais expressiva da moda atual é a de se constituir no agente mais expressivo da socialização das pessoas, porque leva a imitar e a desejar intensamente o alcance das novidades. Como diz Juremir Machado da Silva[1], a moda, que na modernidade era despótica, tirânica e impositiva, agora, o pior que dela se pode esperar é estar de fora da moda. Hoje ela é aberta e propicia mais liberdade, experimentação, variação e autonomia. ”A moda tornou-se um sistema aberto, menos um modelo de hierarquia social”. Vive-se um mundo leve, móvel e fluído.[2] Como a moda mesmo nas suas dissonâncias, contradições e expressões culturais se tornou o agente aglutinador das pertenças sociais, ao ser absorvida, segundo desejos, afinidades e simpatias, forma verdadeiras comunidades. Torna-se identificação de pertença a um grupo social. O sinal mais expressivo desta nova mediação agregadora é a visibilidade de camiseta, tipo de sapato, calça, vestuário ou cosmético.
         O vestuário litúrgico se encaixa, como a moda, no contexto amplo da estetização da vida. A Igreja católica nunca teve moda e arte sacra de produção própria e genuína. Inserida na sociedade, absorveu, ao longo do tempo, distintos valores de arte e moda, para ressignificar seu sentido para propiciar enlevação do ambiente celebrativo.
            A moda do vestuário litúrgico, praticamente sumida nas últimas décadas, ressurge das cinzas para mesclar-se ao ambiente chamativo da moda atual, mas, de forma ambígua, absorve a osmose da moda, com reafirmação do imaginário barroco, pobre de simbologia, e que por isso mesmo deixa de se constituir sinal sacramental que remete a Jesus Cristo e a um significado da fé na Igreja católica, para tornar-se mero chamativo vistoso, para o aparato de suntuosidade do sujeito que preside a celebração.
            “Pastoral do pano” é expressão pejorativa para referir-se à ostentação do vestuário litúrgico, no interior da Igreja católica brasileira. Emerge em parcela do seu clero, a atenção precípua aos detalhes das vestes litúrgicas, com execução minuciosa dos rituais, do chamado “rubricismo” (execução escrupulosa e detalhada dos rituais, em que a execução destes ritos passa a ser considerado um apogeu e enlevação da liturgia, anulando a dimensão simbólica dos ritos). Em outras palavras, rubricismo implica em agir obsessivamente em torno dos mínimos detalhes das rubricas,[3] mas, de forma maquinal. Por isso, seu modo de celebrar torna-se cerimonial exaustivo, rotineiro e monótono. Foge do espírito da liturgia pela execução meticulosa dos rituais. Por outro lado, com pouca ou nenhuma inquietação pela nobre simplicidade que deveria caracterizar o vestuário litúrgico, sugerida pela Igreja para o clero.

1 – Moda e tradição

            Por muitos séculos a tradição constituiu-se em referencial seguro a respeito da indicação do que era mais adequado para não incorrer em desvios de excentricidade na liturgia. O melhor a ser feito do presente para o futuro dependia dos referenciais da tradição, e o peso mais forte recaía sobre três instâncias de fundamentação:
 a) Como era feito no passado, ou, como vinha sendo feito na tradição;
b) A autoridade mais competente e elevada que justificou tal conduta;
c) O peso da experiência.
            Nos últimos anos esta longa característica de referenciais a respeito do que é bom, certo, correto e digno de ser imitado ou seguido, vem cedendo lugar à nova expressão da moda, que se impõe como nova referência para organização da vida social. Nem o passado e nem suas tradições bem engendradas, mesmo com muitas ideologias e escatologias, conseguem sobrepor-se aos efeitos da moda.[4] Segundo Giles Lipovetsky a estética vem substituindo a ética e a religião.[5]
            A brevidade da vida humana submetida a contínuas e constantes mudanças aguça o fenômeno de não alimentar preocupações nem com o passado e nem com o futuro, mas, com a forma de melhor fruir cada instante do momento presente.
            Com o momento presente elevado ao patamar proeminente das referências, ele se constitui no eixo da temporalidade social, e, assim a moda estabelece a forma mais perceptível da relação entre as pessoas. Ela está na incumbência de produzir intenso movimento de imitação – não mais do passado - mas da fugacidade e efemeridade do presente, através da constante renovação de expectativas em torno do que possa ser desfrutado.
            Os ideais e os desejos comuns das sociedades induzem intensamente à imitação. Por isso, as grandes aspirações comuns apontam para a semelhança aos grupos de pertença. Desta forma, o antigo meio de assimilação, - fornecido pela tradição, - é ocupado pela moda, e a onda é a de imitar as novidades que se apresentam, porquanto a moda arrasta instituições e condutas. Se o maior socializador, que é a moda, gera relações interpessoais através da imitação, a novidade também se constitui num fator determinante de prestígio.
            Como a moda encampou o lugar do costume, essa virada de referencial afeta precipuamente o mundo simbólico das vestes litúrgicas na Igreja católica. As roupas utilizadas pelos ministros nas celebrações religiosas estão estreitamente ligadas à tradição de muitos séculos com a adaptação das vestimentas gregas e romanas.


                               2 – Função das vestimentas litúrgicas    

            Os paramentos sacros, adaptados num longo período histórico, sempre tiveram muita relevância nas celebrações litúrgicas. De um lado quebravam o cotidiano e suas preocupações através do caráter extraordinário dos momentos de celebração, e também rompiam a monotonia do cotidiano. Assim, sob as largas vestes, a individualidade do sujeito celebrante, subsumia para dar realce ao mundo simbólico em que a veste e suas cores apropriavam o traço cultural da arte para remeter à aproximação de Jesus Cristo. As vestes religiosas constituíam mediações para uma verdade da fé porque alargava o valor do sacramento, que, por sua vez, remetia o ambiente da celebração a outra instância, a de Jesus Cristo e da Igreja.

3       – Vestuário litúrgico no passado


            Apenas como baliza referencial, e distante dos muitos meandros dos processos de adaptação das vestes litúrgicas, salientamos algumas mudanças históricas.
            Bem sabemos que Jesus Cristo não estabeleceu nenhuma prescrição a respeito das vestes para os momentos litúrgicos. Os apóstolos seguiram os traços de Cristo, e, como seu Mestre, dispensaram os ricos paramentos do culto mosaico, do judaísmo anterior. Jesus combateu tanto o exibicionismo humano quanto o uso de objetos religiosos que distinguissem os celebrantes dos demais. Atuação religiosa não tinha a finalidade de evidenciar-se para angariar reconhecimento e admiração. Basta lembrar o Evangelho de Mateus 23, 5-7; 11: nenhum endosso à busca de atenção por meio da notoriedade das vestes. Ele chamou os exibicionistas de “sepulcros caiados”...
a)     Entre os séculos I e IV, os sacerdotes usavam o vestuário comum do dia-a-dia, e que nós, hoje, chamaríamos de veste profana; neste período, no entanto, já foi introduzido o uso de vestes brancas para as funções litúrgicas;
b)    Entre os séculos IV e VIII, o caminho se inverteu, pois a moda da época abandonou a antiga túnica, mas, a Igreja a manteve como veste oficial para a liturgia, por tratar-se de veste majestosa para os momentos de culto. Os celebrantes passaram a fazer uma sobreposição das vestes litúrgicas, mantendo por baixo as chamadas roupas profanas.
c)     Entre os séculos VIII e XX, tanto o feitio quanto o uso das vestes litúrgicas sofreu diversas inovações. Sobretudo entre 1580 a 1720 deu-se a conotação de que as vestes litúrgicas ajudavam a canalizar graças. Em 1620 o Papa Urbano VIII deu ênfase à veste litúrgica para distinguir os diversos cargos eclesiásticos. Assim, de 1830 a 1960 a elaboração dos trajes eclesiais se movia num horizonte de simplicidade do período patrístico da Igreja. Mesmo assim, em anos anteriores ao Concílio Vaticano II (1962-1965) o teólogo dominicano Yves Congar já formulava uma crítica à exibição do poder e do privilégio na Igreja. Não seria pela veste, mas pelo interior dos celebrantes que a presença religiosa deveria ressoar para a assembleia em celebração litúrgica.
            O concílio Vaticano II destacou a importância da “simplicidade nobre” no uso das vestes eclesiais. Mesmo depois do Vaticano, o Papa Paulo VI vendeu as tiaras e pediu que não fossem utilizadas roupas incomuns, nem mantos extravagantes, coloridos e com muitas borlas.
                                     
4       – Vestes litúrgicas hoje


                Na fase medieval, o surgimento dos monastérios revela que os hábitos dos monges e frades era simples e sem aparatos de capas ou de medalhas. Hoje, em pleno século XXI, o que poderia significar esta onda reacionária e fundamentalista no interior da Igreja católica que se exibe como pavões em trajes vistosos? Teriam as roupas excêntricas e as pessoas de certa esquisitice que as vestem a portabilidade de um mundo simbólico que remete outras pessoas religiosas a entrar numa sintonia com Jesus Cristo, com a Igreja e seus sacramentos?
                Quando tão pouca gente revela afinidade com trajes antigos ou bizarros, parece que nada evidencia que roupas e vestuários litúrgicos sejam portadores de uma interpelação para a transcendência de Deus e para o amor da síntese evangélica.
                Este vistoso retorno de alguns grupos religiosos na Igreja, parece indicar muito mais uma distração da fé e do ministério do que, efetivamente, evidenciar sinais e valores religiosos. E como tem gente que gosta de exibir grandes cruzes, cíngulos, manípulos, luvas e sapatos especiais. O restauracionismo destes grupos reacionários reflete uma uniformidade muito mais próxima de ditaduras do que de anúncio da boa notícia do Evangelho.
     A atenção aguda às vestimentas e o aparato de ouro nos vasos sagrados mais se prestam a um integrismo de retorno ao passado do que de alegre sinal de quem quer ser porta-voz de um bom projeto de vida. Parecem indicar muito mais uma autorreferencialidade do que indumentária que remete a um diálogo com Deus ou ao inestimável tesouro histórico que se valeu das vestes litúrgicas como ferramenta para o culto a Deus.


5       – Vestes sagradas e influência da moda
                  
         Se a moda move a mentalidade coletiva, estariam as vestes litúrgicas bebendo deste mesmo manancial?
            Certamente tanto a moda social como a eclesiástica despertam certo misticismo de fascínio e encantamento. A relação do ser humano com sua veste reflete signos que podem apontar para a transcendência. A moda eclesiástica vive uma relação ambígua, porque em parte, é influenciada pela moda social, - porquanto depende da cultura - e ela também atinge um nicho de consumidores interessados em vestes litúrgicas com alguma afinidade com os produtos da moda, mas, estaria o produto da moda eclesiástica nos mesmos parâmetros da moda social que tem passos bem delineados como pesquisa, consenso, lançamento, estimulação de consumo para um rápido desgaste e apresentação de outro produto?
            Em 2017 foi feita uma pesquisa de amostragem no universo de aproximadamente 25 mil padres brasileiros. Foram consultados 60, entre 25 e 35 anos, e perguntados sobre as características do produto da moda eclesiástica, bem como sobre os fatores que os levavam a comprar.[6] Nas respostas evidenciou-se a tríade: conforto, qualidade e preço, portanto um indicativo do que deve estar agregado ao objeto de consumo. Os entrevistados, também salientaram que existe pouca diversidade nas ofertas. Por outro lado, todos salientaram o conforto das vestes e sua comodidade térmica, dando a entender que desejam tecidos mais adaptados para a sensação de conforto.
            Por estes dados, os entrevistados estariam dando indicação que relaciona as vestes, não pela raiz tradicional de seu significado simbólico, mas, pelo conforto e estética. Como o caráter efêmero da moda lhe indica duração curta, as vestes ostensivas do vestuário litúrgico também entrariam no processo de consumo e rápido descarte. Isto se evidencia no que muitos celebrantes ostentam: a cada pouco, roupas novas, mais chamativas e mais brilhantes. Poder-se-ia, então, deduzir que a moda vem se impondo sobre os costumes oriundos da tradição católica. No entanto, o lado ambíguo desta manifestação é que parcela do clero volta a uma ostentação de vestuário nada compatível com o processo da moda atual. Ver padres no norte e centro-oeste do Brasil, vestindo roupas profanas e, sobre elas, batinas, capas e mais uma porção de bricolagens e ainda lhes acrescentar amitos, alvas, túnicas e capas para as celebrações, então resulta evidente que se trata de outro fenômeno, pois esta moda eclesiástica não absorve os costumes sociais deste tempo e tampouco se adapta a esta realidade.
            A esta extravagância acrescenta-se o preenchimento de uma celebração eucarística com enormidade de protocolos, com cerimoniários determinando ordens e comandos para todos e, a todo instante. O centro da celebração tende a ser o cerimoniário vestido a caráter. Diante deste quadro é oportuna a observação da Solange Carmo: ”aos presbíteros de boa vontade – e de bom senso, é claro – recomendo: muito antes de cerimônias pomposas, cerimônias que comuniquem o mistério celebrado; muito antes de roupas glamorosas, simplicidade e fraternidade revestindo o celebrante; antes de um cerimoniário que nos indica como fazer corretamente a vênia, uma comunidade reverente e santa que sabe e vive o que se celebra.”[7]
            O modismo exagerado aliado a traços de conservadorismo enrijecido levou o Cardeal Joseph Ratzinger, depois de vinte anos da Sacrossantam Concilium, a afirmar que:
            “De um lado, tem-se a Liturgia que se degenerou em ‘show’ onde se quis mostrar uma religião mais atrativa com a ajuda de tolices da moda e de incitantes princípios morais, com êxitos momentâneos no grupo de criadores litúrgicos e uma atitude de reprovação tanto mais pronunciada nos que buscam na Liturgia não tanto o ‘showmaster’ espiritual, mas, o encontro com o Deus vivo... De outro lado, existe uma conservação de formas rituais cuja grandeza sempre impressiona, porém, que levada ao extremo cristaliza num isolamento de opinião que ao final se torna tristeza.”[8]
            A liturgia não pode ser identificada com “show” ou um espetáculo envolvendo gênio e talento de diretores e atores e, nem mesmo se presta para surpresas “simpáticas” a fim de cativar pela inovação, mas, “de repetições solenes, se não repetirmos não estamos fazendo o original, por isso que se repete para fazer o original, caso contrário, estaremos fazendo outra coisa. Não deve exprimir a atualidade e o seu efêmero, mas o mistério sagrado.”[9]
            Assim, a ambiguidade refletida no modo de celebrar rituais litúrgicos católicos não pode, contudo, desconsiderar a memória que dá razão à celebração e tampouco enveredar para um imagético que encante plateias como é peculiar dos que animam shows com outras finalidades.
            Por outro lado, vale o conhecido ditado: “nem demais para o céu e nem demais para a Terra”.
                  
BIBLIOGRAFIA

CALVI, Gabriel Coutinho e FURLAN, Ana Paulo. A influência da moda nas vestes sagradas e sua evolução como produto mercadológico. 13º Colóquio de Moda, 11 a 15 de outubro de 2007. UNESP Bauru – SP. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com.br/coloquio2017/anais/anais/13-coloquio-de-Moda_2017/CO/co_3/co_3_A_INFLUENCIA_DA_MODA_NAS_VESTES.pdf   Acessado dia 03/03/2020.
CARMO, Solange. Liturgia cerimoniosa. Disponível em: http://www.fiquefirme.com.br/multimedia-archive/81_litturgia_cerimoniosa? Acessado dia 06/03/2020.
ERPEN, Jackson. Os dois extremos do pêndulo da liturgia. Disponível em: http://www.vaticannews.va/pt/vaticano/newa/2019-02/concilio-II-liturgia-sacrocanctum-concilium.html Acessado dia 06/03/2020.
FREITAS, Manoel de. Liturgia: crítica sobre o antropocentrismo no culto. Disponível em: http://www.arqrio.org/formação/detalhes/2168/liturgia-critica-sobre-o-antropocentrismo-no-culto  Acessado dia 06/03/2020.
LIPOVETSKY, Giles. El império de lo efémero – la moda y su destino em las sociedades modernas. Barcelona: Anagrama, 1990, 9ª Edição.
______________. Da Leveza: rumo a uma civilização sem peso. [tradução Idalina Lopes]. Barueri, SP: Manole, 2016.
LIPOVETSKY, Giles &SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. (trad.: Eduardo Brandão) – 1ª ed. São Paulo: Companha de Letras, 2015.
MIRANDA, Frei Petrônio de. Oposição ao Papa Francisco: chegou a hora de parar com as críticas agressivas. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br  Acessado dia 06/03/2020.
O’MEDRA, Thomas. Qual a mensagem do desfile de moda barroca na Igreja? Disponível em: http://www.domtotal.com/noticia/562766/2013/01/qual-é-a-mensagem-do-desfile-de-moda-barroca-na-Igreja/  Acessado dia 02/03/2020.
MOTU PRÓPRIO SUMMORUM PONTIFICUM. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia_pontifical_comissions/ecclsdei/documents/rc_com_ecclsde> Acess. 05/03/2020.



[1]  Na apresentação do livro de GiIles Lipovetsky , Da Leveza, p. 11
[2]  De acordo com Lipovetsky, em A estetização do Mundo: viver na era do capitalismo artista, p. 377, “é sempre o capital cultural que determina as práticas e preferências estéticas dos consumidores... o que domina não é em absoluto a homogeneidade, mas sim a incoerência dos gostos culturais, a heterogeneidade das preferências e das práticas culturais individuais: os perfis ‘dissonantes’, compõem-se de elementos altos e baixos, dignos e ‘grosseiros’, nobres e comerciais.”
[3] Rubrica procede do termo latino “ruber”, que significa o conjunto de normas, por exemplo, no missal, escritas em vermelho, para orientar a harmonia do ritual de uma celebração litúrgica.
[4]  O poeta faz concorrência ao padre e toma seu lugar em matéria de desvendamento último do ser: a secularização do mundo foi o trampolim da religião moderna da arte.” “Da arte se espera que provoque o êxtase do infinitamente belo, que faça contemplar a perfeição, em outras palavras, que abra as portas da experiência do absoluto, de um além da vida comum. Ela se tornou lugar e caminho da vida ideal outrora reservada à religião.” (p. 23) In: LIPOVETSKY, Giles. A Estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista, p. 22.
[5]  Idem, p.23.

[6] CALVI, Gabriel Coutinho e FURLAN, Ana Paula. A influência da moda nas vestes sagradas e sua evolução como produto mercadológico. 13º Colóquio de Moda, 11 a 15 de outubro de 2017, UNESP – Bauru – SP. Disponível em: http://coloquiomoda.com.br/coloquio_2017/anais/anais/13-Coloquio-de-Moda_2017/CO/co_3/co_3_A INFLUENCIA DA MODA NAS VESTES.pdf Acess. 03/03/2020.
[7]  No artigo Liturgia cerimoniosa. Disponível em: http://www.fiquefirme.com.br/multimedia-archive/81_liturgia_cerimoniosa/
[8] Jacson Erpen. Os dois extremos do pêndulo da liturgia. Disponível em : http://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2019-02/concilio-vaticano-II-liturgia-sacrocanctum-concilium.html
[9]  FREITAS, Manoel. Liturgia: crítica sobre o antropocentrismo no culto. Disponível em: http://www.arqrio.org/formação/detalhes/2168/liturgia-critica-sobre-o-antropocentrismo-no-culto


<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

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