A
característica mais expressiva da moda atual é a de se constituir no agente
mais expressivo da socialização das pessoas, porque leva a imitar e a desejar
intensamente o alcance das novidades. Como diz Juremir Machado da Silva, a moda, que na
modernidade era despótica, tirânica e impositiva, agora, o pior que dela se
pode esperar é estar de fora da moda. Hoje ela é aberta e propicia mais
liberdade, experimentação, variação e autonomia. ”A moda tornou-se um sistema aberto, menos um modelo de hierarquia
social”. Vive-se um mundo leve, móvel e fluído. Como a moda mesmo nas suas
dissonâncias, contradições e expressões culturais se tornou o agente
aglutinador das pertenças sociais, ao ser absorvida, segundo desejos,
afinidades e simpatias, forma verdadeiras comunidades. Torna-se identificação
de pertença a um grupo social. O sinal mais expressivo desta nova mediação
agregadora é a visibilidade de camiseta, tipo de sapato, calça, vestuário ou
cosmético.
O vestuário litúrgico
se encaixa, como a moda, no contexto amplo da estetização da vida. A Igreja
católica nunca teve moda e arte sacra de produção própria e genuína. Inserida
na sociedade, absorveu, ao longo do tempo, distintos valores de arte e moda,
para ressignificar seu sentido para propiciar enlevação do ambiente
celebrativo.
A
moda do vestuário litúrgico, praticamente sumida nas últimas décadas, ressurge
das cinzas para mesclar-se ao ambiente chamativo da moda atual, mas, de forma
ambígua, absorve a osmose da moda, com reafirmação do imaginário barroco, pobre
de simbologia, e que por isso mesmo deixa de se constituir sinal sacramental
que remete a Jesus Cristo e a um significado da fé na Igreja católica, para
tornar-se mero chamativo vistoso, para o aparato de suntuosidade do sujeito que
preside a celebração.
“Pastoral
do pano” é expressão pejorativa para referir-se à ostentação do vestuário
litúrgico, no interior da Igreja católica brasileira. Emerge em parcela do seu
clero, a atenção precípua aos detalhes das vestes litúrgicas, com execução minuciosa
dos rituais, do chamado “rubricismo” (execução escrupulosa e detalhada dos rituais,
em que a execução destes ritos passa a ser considerado um apogeu e enlevação da
liturgia, anulando a dimensão simbólica dos ritos). Em outras palavras,
rubricismo implica em agir obsessivamente em torno dos mínimos detalhes das
rubricas, mas, de forma maquinal.
Por isso, seu modo de celebrar torna-se cerimonial exaustivo, rotineiro e
monótono. Foge do espírito da liturgia pela execução meticulosa dos rituais. Por
outro lado, com pouca ou nenhuma inquietação pela nobre simplicidade que
deveria caracterizar o vestuário litúrgico, sugerida pela Igreja para o clero.
1 – Moda
e tradição
Por muitos séculos a tradição constituiu-se
em referencial seguro a respeito da indicação do que era mais adequado para não
incorrer em desvios de excentricidade na liturgia. O melhor a ser feito do
presente para o futuro dependia dos referenciais da tradição, e o peso mais
forte recaía sobre três instâncias de fundamentação:
a) Como
era feito no passado, ou, como vinha sendo feito na tradição;
b) A autoridade mais competente e elevada que justificou
tal conduta;
c) O peso da experiência.
Nos
últimos anos esta longa característica de referenciais a respeito do que é bom,
certo, correto e digno de ser imitado ou seguido, vem cedendo lugar à nova expressão
da moda, que se impõe como nova referência para organização da vida social. Nem
o passado e nem suas tradições bem engendradas, mesmo com muitas ideologias e
escatologias, conseguem sobrepor-se aos efeitos da moda. Segundo Giles Lipovetsky a
estética vem substituindo a ética e a religião.
A
brevidade da vida humana submetida a contínuas e constantes mudanças aguça o
fenômeno de não alimentar preocupações nem com o passado e nem com o futuro,
mas, com a forma de melhor fruir cada instante do momento presente.
Com
o momento presente elevado ao patamar proeminente das referências, ele se
constitui no eixo da temporalidade social, e, assim a moda estabelece a forma
mais perceptível da relação entre as pessoas. Ela está na incumbência de
produzir intenso movimento de imitação – não mais do passado - mas da
fugacidade e efemeridade do presente, através da constante renovação de expectativas
em torno do que possa ser desfrutado.
Os
ideais e os desejos comuns das sociedades induzem intensamente à imitação. Por
isso, as grandes aspirações comuns apontam para a semelhança aos grupos de
pertença. Desta forma, o antigo meio de assimilação, - fornecido pela tradição,
- é ocupado pela moda, e a onda é a de imitar as novidades que se apresentam,
porquanto a moda arrasta instituições e condutas. Se o maior socializador, que
é a moda, gera relações interpessoais através da imitação, a novidade também se
constitui num fator determinante de prestígio.
Como
a moda encampou o lugar do costume, essa virada de referencial afeta
precipuamente o mundo simbólico das vestes litúrgicas na Igreja católica. As
roupas utilizadas pelos ministros nas celebrações religiosas estão
estreitamente ligadas à tradição de muitos séculos com a adaptação das
vestimentas gregas e romanas.
2 – Função das vestimentas litúrgicas
Os
paramentos sacros, adaptados num longo período histórico, sempre tiveram muita
relevância nas celebrações litúrgicas. De um lado quebravam o cotidiano e suas
preocupações através do caráter extraordinário dos momentos de celebração, e também
rompiam a monotonia do cotidiano. Assim, sob as largas vestes, a
individualidade do sujeito celebrante, subsumia para dar realce ao mundo
simbólico em que a veste e suas cores apropriavam o traço cultural da arte para
remeter à aproximação de Jesus Cristo. As vestes religiosas constituíam
mediações para uma verdade da fé porque alargava o valor do sacramento, que,
por sua vez, remetia o ambiente da celebração a outra instância, a de Jesus
Cristo e da Igreja.
3
– Vestuário litúrgico
no passado
Apenas como baliza referencial, e
distante dos muitos meandros dos processos de adaptação das vestes litúrgicas,
salientamos algumas mudanças históricas.
Bem sabemos que Jesus Cristo não
estabeleceu nenhuma prescrição a respeito das vestes para os momentos
litúrgicos. Os apóstolos seguiram os traços de Cristo, e, como seu Mestre,
dispensaram os ricos paramentos do culto mosaico, do judaísmo anterior. Jesus
combateu tanto o exibicionismo humano quanto o uso de objetos religiosos que
distinguissem os celebrantes dos demais. Atuação religiosa não tinha a finalidade
de evidenciar-se para angariar reconhecimento e admiração. Basta lembrar o
Evangelho de Mateus 23, 5-7; 11: nenhum endosso à busca de atenção por meio da
notoriedade das vestes. Ele chamou os exibicionistas de “sepulcros caiados”...
a)
Entre os séculos I e IV, os sacerdotes usavam o vestuário comum
do dia-a-dia, e que nós, hoje, chamaríamos de veste profana; neste período, no
entanto, já foi introduzido o uso de vestes brancas para as funções litúrgicas;
b)
Entre os séculos IV e VIII, o caminho se inverteu, pois a moda
da época abandonou a antiga túnica, mas, a Igreja a manteve como veste oficial
para a liturgia, por tratar-se de veste majestosa para os momentos de culto. Os
celebrantes passaram a fazer uma sobreposição das vestes litúrgicas, mantendo
por baixo as chamadas roupas profanas.
c)
Entre os séculos VIII e XX, tanto o feitio quanto o uso das
vestes litúrgicas sofreu diversas inovações. Sobretudo entre 1580 a 1720 deu-se
a conotação de que as vestes litúrgicas ajudavam a canalizar graças. Em 1620 o
Papa Urbano VIII deu ênfase à veste litúrgica para distinguir os diversos
cargos eclesiásticos. Assim, de 1830 a 1960 a elaboração dos trajes eclesiais
se movia num horizonte de simplicidade do período patrístico da Igreja. Mesmo
assim, em anos anteriores ao Concílio Vaticano II (1962-1965) o teólogo
dominicano Yves Congar já formulava uma crítica à exibição do poder e do
privilégio na Igreja. Não seria pela veste, mas pelo interior dos celebrantes
que a presença religiosa deveria ressoar para a assembleia em celebração
litúrgica.
O concílio Vaticano II destacou a importância da
“simplicidade nobre” no uso das vestes eclesiais. Mesmo depois do Vaticano, o
Papa Paulo VI vendeu as tiaras e pediu que não fossem utilizadas roupas
incomuns, nem mantos extravagantes, coloridos e com muitas borlas.
4
– Vestes litúrgicas
hoje
Na fase medieval, o surgimento dos monastérios revela que
os hábitos dos monges e frades era simples e sem aparatos de capas ou de
medalhas. Hoje, em pleno século XXI, o que poderia significar esta onda
reacionária e fundamentalista no interior da Igreja católica que se exibe como
pavões em trajes vistosos? Teriam as roupas excêntricas e as pessoas de certa
esquisitice que as vestem a portabilidade de um mundo simbólico que remete
outras pessoas religiosas a entrar numa sintonia com Jesus Cristo, com a Igreja
e seus sacramentos?
Quando tão
pouca gente revela afinidade com trajes antigos ou bizarros, parece que nada
evidencia que roupas e vestuários litúrgicos sejam portadores de uma
interpelação para a transcendência de Deus e para o amor da síntese evangélica.
Este
vistoso retorno de alguns grupos religiosos na Igreja, parece indicar muito
mais uma distração da fé e do ministério do que, efetivamente, evidenciar
sinais e valores religiosos. E como tem gente que gosta de exibir grandes
cruzes, cíngulos, manípulos, luvas e sapatos especiais. O restauracionismo
destes grupos reacionários reflete uma uniformidade muito mais próxima de
ditaduras do que de anúncio da boa notícia do Evangelho.
A atenção
aguda às vestimentas e o aparato de ouro nos vasos sagrados mais se prestam a
um integrismo de retorno ao passado do que de alegre sinal de quem quer ser
porta-voz de um bom projeto de vida. Parecem indicar muito mais uma
autorreferencialidade do que indumentária que remete a um diálogo com Deus ou
ao inestimável tesouro histórico que se valeu das vestes litúrgicas como
ferramenta para o culto a Deus.
5
– Vestes sagradas e
influência da moda
Se a moda move a
mentalidade coletiva, estariam as vestes litúrgicas bebendo deste mesmo
manancial?
Certamente
tanto a moda social como a eclesiástica despertam certo misticismo de fascínio
e encantamento. A relação do ser humano com sua veste reflete signos que podem
apontar para a transcendência. A moda eclesiástica vive uma relação ambígua,
porque em parte, é influenciada pela moda social, - porquanto depende da
cultura - e ela também atinge um nicho de consumidores interessados em vestes
litúrgicas com alguma afinidade com os produtos da moda, mas, estaria o produto
da moda eclesiástica nos mesmos parâmetros da moda social que tem passos bem
delineados como pesquisa, consenso, lançamento, estimulação de consumo para um
rápido desgaste e apresentação de outro produto?
Em
2017 foi feita uma pesquisa de amostragem no universo de aproximadamente 25 mil
padres brasileiros. Foram consultados 60, entre 25 e 35 anos, e perguntados
sobre as características do produto da moda eclesiástica, bem como sobre os
fatores que os levavam a comprar. Nas respostas
evidenciou-se a tríade: conforto, qualidade e preço, portanto um indicativo do
que deve estar agregado ao objeto de consumo. Os entrevistados, também
salientaram que existe pouca diversidade nas ofertas. Por outro lado, todos
salientaram o conforto das vestes e sua comodidade térmica, dando a entender
que desejam tecidos mais adaptados para a sensação de conforto.
Por
estes dados, os entrevistados estariam dando indicação que relaciona as vestes,
não pela raiz tradicional de seu significado simbólico, mas, pelo conforto e
estética. Como o caráter efêmero da moda lhe indica duração curta, as vestes
ostensivas do vestuário litúrgico também entrariam no processo de consumo e
rápido descarte. Isto se evidencia no que muitos celebrantes ostentam: a cada
pouco, roupas novas, mais chamativas e mais brilhantes. Poder-se-ia, então,
deduzir que a moda vem se impondo sobre os costumes oriundos da tradição
católica. No entanto, o lado ambíguo desta manifestação é que parcela do clero
volta a uma ostentação de vestuário nada compatível com o processo da moda
atual. Ver padres no norte e centro-oeste do Brasil, vestindo roupas profanas e,
sobre elas, batinas, capas e mais uma porção de bricolagens e ainda lhes
acrescentar amitos, alvas, túnicas e capas para as celebrações, então resulta
evidente que se trata de outro fenômeno, pois esta moda eclesiástica não
absorve os costumes sociais deste tempo e tampouco se adapta a esta realidade.
A
esta extravagância acrescenta-se o preenchimento de uma celebração eucarística com
enormidade de protocolos, com cerimoniários determinando ordens e comandos para
todos e, a todo instante. O centro da celebração tende a ser o cerimoniário
vestido a caráter. Diante deste quadro é oportuna a observação da Solange
Carmo: ”aos presbíteros de boa vontade – e
de bom senso, é claro – recomendo: muito antes de cerimônias pomposas, cerimônias
que comuniquem o mistério celebrado; muito antes de roupas glamorosas,
simplicidade e fraternidade revestindo o celebrante; antes de um cerimoniário
que nos indica como fazer corretamente a vênia, uma comunidade reverente e
santa que sabe e vive o que se celebra.”
O
modismo exagerado aliado a traços de conservadorismo enrijecido levou o Cardeal
Joseph Ratzinger, depois de vinte anos da Sacrossantam Concilium, a afirmar que:
“De um lado, tem-se a Liturgia que
se degenerou em ‘show’ onde se quis mostrar uma religião mais atrativa com a
ajuda de tolices da moda e de incitantes princípios morais, com êxitos
momentâneos no grupo de criadores litúrgicos e uma atitude de reprovação tanto
mais pronunciada nos que buscam na Liturgia não tanto o ‘showmaster’
espiritual, mas, o encontro com o Deus vivo... De outro lado, existe uma
conservação de formas rituais cuja grandeza sempre impressiona, porém, que
levada ao extremo cristaliza num isolamento de opinião que ao final se torna
tristeza.”
A liturgia não pode ser identificada com
“show” ou um espetáculo envolvendo gênio e talento de diretores e atores e, nem
mesmo se presta para surpresas “simpáticas” a fim de cativar pela inovação, mas, “de repetições solenes, se não repetirmos
não estamos fazendo o original, por isso que se repete para fazer o original,
caso contrário, estaremos fazendo outra coisa. Não deve exprimir a atualidade e
o seu efêmero, mas o mistério sagrado.”
Assim,
a ambiguidade refletida no modo de celebrar rituais litúrgicos católicos não
pode, contudo, desconsiderar a memória que dá razão à celebração e tampouco
enveredar para um imagético que encante plateias como é peculiar dos que animam
shows com outras finalidades.
Por
outro lado, vale o conhecido ditado: “nem demais para o céu e nem demais para a
Terra”.
BIBLIOGRAFIA
LIPOVETSKY, Giles. El império de lo efémero – la moda y su
destino em las sociedades modernas. Barcelona: Anagrama, 1990, 9ª Edição.
______________. Da Leveza: rumo a uma civilização sem peso.
[tradução
Idalina Lopes]. Barueri, SP: Manole, 2016.
LIPOVETSKY, Giles
&SERROY, Jean. A estetização do
mundo: viver na era do capitalismo artista. (trad.: Eduardo Brandão) – 1ª
ed. São Paulo: Companha de Letras, 2015.
MIRANDA, Frei Petrônio
de. Oposição ao Papa Francisco: chegou a hora de parar com as críticas
agressivas. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br Acessado dia 06/03/2020.