quinta-feira, 31 de julho de 2014

Anseios profundos



            Grande parte dos fatos históricos, especialmente de guerras, revela uma humanidade ansiosa por posses, seguranças, reservas e bem-estar cotidiano. O desejo de fartura não se direciona apenas ao campo da comida, do conforto e das seguranças monetárias, mas, também se direciona para interações de satisfação, através de envolvimento com pessoas e, até mesmo, com o próprio mundo interior.
            Nem sempre as expectativas acalantadas são motivos de satisfação. Por vezes preconizam dor, sofrimento, dificuldades e até sentimentos de incapacidade.
            A busca de seguranças pode acontecer apenas numa dimensão pessoal e subjetiva. Da herança bíblica, porém, haurimos uma rica imagem de como o povo, em diversas circunstâncias encontrou na partilha de pouquíssima alimentação, a renovação do sonho de fartura. Tanto os fugitivos do Egito quanto os retirantes do exílio da Babilônia encontravam, nos sonhos de um futuro de abundância de alimentos, a grande motivação para vencer adversidades. O profeta Isaías soube expressar isso de forma poética: que os sedentos, os sem dinheiro se apressem para obter vinho e leite. A solidariedade permitiria a todos viver com fartura, mesmo sem dinheiro.
            Boa e farta alimentação constituía também o sonho de multidões que procuravam em Jesus Cristo, uma solução rápida e compadecida, pois haviam sido espoliadas deste direito. Mais do que dar atenção Jesus revelou-se compassivo, isto é, agiu para que não fossem mandadas embora com fome. Ele não se recusou, mas, curiosamente, ordenou que os discípulos partilhassem o pão, o pouco que eles tinham. Ao abençoá-lo e mandar distribuí-lo, viu que todos ficaram satisfeitos...
Em nossos dias, com tanta produção, largamente ampliada pelos avanços técnicos-genéticos da produção de alimentos, multidões perambulam com profundos desejos de fartar-se, muitos sem dinheiro e sem acesso ao pão de cada dia. Como muita gente no tempo de Cristo quis mandá-las adiante, algo similar se repete em nossos dias.
 Tanta gente fechada sobre si mesma, já perdeu a capacidade de ter compaixão e, para proteger-se em torno do acumulado, vai despedindo e mandando embora sem nada. No entanto, grande número de discípulos de Cristo ainda continua se sentindo interpelada a partilhar do pouco que tem – bens, tempo, serviços, esperanças, consolo – para não deixar pessoas sem rumo e com fome que mata.
Ao partilhar serviços humanitários estes discípulos hodiernos desfrutam de uma experiência milagrosa que transforma sua vida a partir da pequenez dos seus gestos de solidariedade prestada, e percebem que seu cesto se enche: não de um milagre mágico e sensacionalista, mas, de sentido e de sensação de que sua vida se alargou. Este sinal do “vinho e leite” e do “pão repartido”, plenifica a vida e lhes confere a exuberância concreta do que deve ser o anseio de Deus: que as multidões fiquem satisfeitas e que nenhum ser humano passe fome ao lado de outro que ajunta em excesso.


terça-feira, 29 de julho de 2014

O pão de cada dia



Muitos cristãos,
Trabalham e rezam:
Que não lhes falte o pão,
Mas, facilmente desprezam,
Quem lhes suplica uma porção.

O acumulado de alguns,
Fartaria a fome dos famintos,
Mas, para sua segurança pessoal,
Eivam-se em seus mundos e recintos,
Revelando um egocentrismo sórdido e colossal.

O pão nosso de cada dia,
Evoca mais que necessária comida,
Pois, indica o sentido como mais necessário,
Para dar as suficientes razões à cotidiana lida,
E sentir a satisfação de trilhar um bom itinerário.

A solidariedade que ainda reina,
Carrega a virtualidade do grande sonho,
De que até o pouco partilhado, renova dobrado,
O sentimento de quem andava faminto e tristonho,
E ainda deixa a satisfação de fruir o melhor do agrado.




segunda-feira, 28 de julho de 2014

Idealizações



Da convenção de que é preciso sonhar,
Ao excessivo acúmulo de idealizações,
Reina cisão profunda a desentranhar,
A anulação das diuturnas realizações.

Do entusiasmo despertado pelos ideais,
Decorre o vazio da rica energia amorosa,
Que embota todas as alegrias vivenciais,
E gera tensão em desandada polvorosa.

Da melhor motivação de prolífero amor,
Surge o declínio do propalado imagético,
E a decrepitude do entusiasmado fervor,
Atrai um frustrado nervosismo magnético.

As decepções com as pessoas bem achegadas,
Desentrosam os encontros de motivos fortuitos,
E, na ausência, deixam as alegrias desandadas,
E o coração esvaziado de sentimentos gratuitos.

Os outros, ao invés de bons receptáculos de amor,
E de fontes de inspiração, parecem rivais perigosos,
Que desmantelam toda a serenidade do pundonor,
E causam momentos mui deprimentes e escabrosos.

Acrescentam-se coações da estrutura burocrática,
Que deixa solta e desandada a avareza do poder,
E se alia sorrateiramente a toda ambição errática,
Para persuadir, agredir, calar, torturar e ofender.

Resta o difícil itinerário do cuidado de si mesmo,
Apesar da sensação de insuficiência do sonhado,
Para voltar a contribuir e não ficar jogado a esmo,
E, perambular pela vida, com coração renovado.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

O peso do não dito



De tanto cultivar o convencimento,
Os termos, feitos mero instrumento,
E usados para persuadir pelo efeito,
Impregnam-se de um ignóbil defeito.

Já não explicitam o estado de alma,
Nem a serenidade que tudo acalma,
Mas o insistente ardor para possuir,
Tanto quanto é possível de usufruir.

O não dito acaba bem mais explícito,
Do que o aparente discurso solícito,
E mais do que o conteúdo de termos,
Contagia até velados espaços ermos.

O não dito revela variados sintomas,
Das sociais e massacrantes redomas,
Bem como a causa efetiva das dores,
Do bloqueio dos genuínos pendores.

O não dito tende a explicitar o fervor,
Que emerge com incomum pundonor,
Do âmago das entranhas da existência,
E ali não espera nenhuma subserviência.

A geral negligência em torno do não dito,
Mais do que a contrariedade do interdito,
Tende a despertar mui variegadas tensões,
Vindas dos planos e metas de instituições.





Discernimento entre procedimentos valiosos



Estamos mergulhados num tempo histórico-cultural de rápidos avanços técnicos. O legado destas descobertas faz olhar, cada dia mais, para as novidades advenientes. Ao mesmo tempo, a rapidez das informações e a facilidade da comunicação, propiciadas pelos recursos eletrônicos, ampliam espantosamente os incontáveis desejos em torno de mudanças, de novidades e de fontes de consumo. Esta indução cultural tende a direcionar nossa atenção com precípua atenção para os desejos, com uma correspondente perda da memória do passado.
Como o voo de um pássaro requer harmonia entre o batimento das asas e simultânea sincronia de inclinações das asas para melhor chegar ao alcance dos seus intentos, nós, de uma forma parecida, necessitamos harmonizar e sincronizar, não asas de vôos, mas, algo tão importante para nós como as asas são para os pássaros: precisamos bater com certo equilíbrio e harmonia a memória do passado e os desejos, a fim de nos estabilizar diante das turbulências que a vida apresenta e das mil ofertas de consumo.
Corremos o risco de bater apenas uma asa – a do desejo - e isto compromete o êxito do voo, ou seja, nossa mobilidade existencial, apenas movida em torno dos desejos, pode desequilibrar gravemente o alcance do que realmente é significativo para a vida. Emerge dali importante necessidade de não descuidar nem a memória do passado e tampouco os desejos para que não ocupem a centralidade da vida. Sem o equilíbrio da memória com os desejos, tende-se a perder a capacidade de discernir sobre o que é realmente bom para a vida. Será como um pássaro pretender voar, batendo apenas uma das asas.
Jesus Cristo ao interpelar os discípulos, a respeito do que era primordial para a vida, apontava a importância do desprendimento de coisas que não eram essenciais para a satisfação da existência. Através de parábolas deixou evidente que é importante saber desprender-se de certas coisas, a fim de que o alcance de bens mais elevados, como salientou na imagem de um tesouro maior e bem mais valioso, seja capaz de deixar para trás outros bens e valores. Ademais, para que os discípulos pudessem investir no que realmente era importante (o tesouro), ser-lhes-ia necessário cultivar uma sabedoria capaz de levá-los a distinguir valores que não eram merecedores de crédito.
O investimento para fazer acontecer o Reino – também em nossos dias - implica na mobilização das duas asas com vistas a um razoável equilíbrio. No entanto, como desprender-se de algo, quando sequer se conhece o novo no qual se possa investir? Em outras palavras, para se investir numa causa boa, como a do Reino anunciado por Jesus Cristo, torna-se fundamental conhecê-lo. Ao mesmo tempo, faz-se necessário ter consciência do que se precisa deixar de lado por ser secundário diante do Reino.
Como o almejado “tesouro” do Reino de Deus vem misturado com os muitos enfeites, bricolagens e coisas que imitam as “aparências do tesouro”, Jesus soube orientar os discípulos para o discernimento, através de outra historinha: a de que do baú da vida podem ser tiradas coisas novas e velhas.  Ele ainda acrescentou aludindo a pesca que captura peixes bons e maus. É só na praia que os pescadores escolhem os bons. O passado e sua memória permitem a emergência de discernimento a respeito de quais são bons. Por outro lado, a parábola pode indicar que a separação fica por conta da incumbência de Deus e não nossa.





terça-feira, 22 de julho de 2014

Subjetivação



Em cada tempo, e cada lugar,
Como no ambiente particular,
Modos sociais muito distintos,
Marcam mais do que instintos.

O jeito de lidar e de produzir,
Como o de relacionar e induzir,
Remetem a cada subjetividade,
Um molde peculiar de lealdade.

Na interação dos distintos valores,
Agem os ardentes e ricos pendores,
Que em meio às mil metamorfoses,
Indicam as evidências de apoteoses.

Fica sem memória a força dos clãs,
E, sem poder hierárquico para fãs,
O afeto, liso e isento de fronteiras,
Desanda sem as tradicionais eiras.

O novo arranjo dos muitos afetos,
Subjetivados com fatos concretos,
Esfacela as argumentações oficiais,
E valoriza só as meramente pessoais.

Sem as fortes forças da argumentação,
Sobram problemas em larga profusão,
Que facilitam ao doce regaço narcizista,
O fruir solto, fragmentado e consumista.


sexta-feira, 18 de julho de 2014

Vazio existencial



Com os ousados progressos da ciência,
Pouco sobra à rotineira benemerência,
E na exacerbação de tudo transformar,
Sequer a intimidade consegue sofismar.

O desejo de preencher o vazio existencial,
Não encontra no coletivo eufórico o aval,
Para silenciar os gritos e anseios pessoais,
Que fervilham em dimensões excepcionais.

Já marcados pelo individualismo profundo,
Nele se engendra e eclode um caos rotundo,
Bem distante da felicidade tão propugnada,
E que não acalanta a voracidade esganada.

No horizonte das incontáveis e boas ofertas,
Emerge o lenitivo indizível das horas certas,
Mas, sem o alento dos gestos enternecidos,
Da satisfação dos sentimentos enaltecidos.

Na constatação da opacidade dos desejos,
Podem emergir as pistas de novos ensejos,
E, na nova forma de organizar o cotidiano,
Eclode uma aurora de um imemorial arcano.


quinta-feira, 17 de julho de 2014

A polarização dos desejos humanos



            O passado da nossa história humana, ao lado dos valores humanitários, dos inventos e da rica complexificação da cultura, nos legou um modo peculiar de lidar com as coisas e com os acontecimentos: é a tendência de interpretar fatos e pessoas a partir de polarizações, tais como “Alma-corpo”, “Bom-ruim”, “Bonito-feio”, “Amigo-inimigo”, “Caos-cosmos”, “Material-espiritual”, “Sagrado-profano” e muitas outras.
            De acordo com o que desejamos, pode algo muito significativo e valioso ser visto como ruim, feio, contrário e merecedor de eliminação.
            No campo religioso esta polarização também leva a muitas dificuldades porque em nome de Deus se deseja muito mal e se maldiz tanta coisa das outras pessoas, vistas como opostas, como inimigas ou como adversas ao que é bom.
            Quando bate a vontade de estabelecer vingança, apela-se com facilidade à intervenção de Deus para que Ele execute uma vingança maior do que aquela que seríamos capazes de imputar. Fica a impressão de que nem Deus é bom, porque Ele se presta para nossas baixarias de ódios e desejos de vingança.
            Pelo menos uma constatação muito evidente é a de que Deus nunca se mostra rápido para nos socorrer frente a desejos vingativos ou de ação prejudicial a outras pessoas. Da herança bíblica vem a rica noção de que Deus é extremamente paciente, e, com isto, nos ajuda a adequar melhor nossas propensões à violência.
            Muitas pessoas até titubeiam diante de Deus e deduzem que Ele está muito lerdo ou inativo no que lhe suplicam. Esta demora ajuda a constatar que Deus, com certeza, não se interessa pelo nosso mundo de vinganças, mas deseja muito mais que sua misericórdia nos salve diante dos atos e fatos pecaminosos. Ele é o Deus que espera a fim de que aconteça a nossa redenção.
            Na convivência familiar e comunitária nada melhor do que a paciência como mediadora para nos ajudar a lidar com as compulsividades e os desejos de afastar ou eliminar os que nos parecem adversos. Jesus alertou seus discípulos a não executar rapidamente os intentos de excluir membros que não pareceram bons aos olhos de outros discípulos. De maneira muito sutil, ensinou através de uma historinha sobre lavoura de trigo infestada de inço. Remeteu a separação ao momento da colheita.
            Ao não pactuar com os desejos de exclusão Jesus ainda remeteu ao significado de outra comparação, a do fermento misturado na farinha. Nos bons gestos pode fermentar algo que transforma muito mais o meio-ambiente do que as naturais propensões a perseguir, ameaçar, excluir e atentar contra a vida.

            Se muitos sinais e gestos parecem constituir-se em joio que sufoca o trigo, é a paciência que vai permitir que no momento certo aconteça a separação. Em outras palavras, não cabe a nós, impacientes, esta tarefa, e, o discipulado no seguimento de Cristo pode tornar-nos fermento bom a levedar a massa dos nossos ambientes familiares e comunitários.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Acolhida



Amplos são os jeitos da acolhida,
E bem fugazes os efeitos do agir,
Quando a promessa desmedida,
Não consegue em nada interagir.

Há quem se mostra impermeável,
E sua mente vive de porta fechada,
Porque muito reluta em ser afável,
E ostenta a fisionomia modificada.

  Outros se revelam inconsistentes,
 Até nos efusivos traços de alegria,
E mostram nos olhares renitentes,
Que é contraditória a sua euforia.

Há os que acolhem mui preocupados,
E ao surgirem quaisquer dificuldades,
Deixam os bons propósitos relegados,
E sucumbem nas básicas deslealdades.

Raros são acolhedores virtuosos,
A alargar vida de generosidade,
E sedentos por fatos bondosos,
Preservam a rica grandiosidade.

O perfil de quem não desiste,
Nos momentos de desalento,
É também o que mais resiste,
Ao diuturno desapontamento.


segunda-feira, 14 de julho de 2014

Paixão



Sentimento elevado,
Em torno do motivado,
Fala mais alto que a lucidez,
E detona a razão com mesquinhez.

Envolve o afeto das propensões afáveis e sensuais,
E causa desafetos de proporções alarmantes e descomunais,
Porque sua fronteira, aberta, livre, sem empecilhos nas eiras e porteiras,
Ultrapassa os limites e se guia por palpites que ignoram as variadas fronteiras.

Contida ou reprimida nas múltiplas manifestações,
Eclode do âmago das entranhadas sensações,
Para atingir a sutileza das mágoas feridas,
E deixá-las ainda mais enternecidas.

Arrebata a cólera com rapidez,
E vence toda intrepidez,
Quando motiva a arte,
E a torna estandarte.

No futebol do sonhado,
Sobra o emaranhado,
Do não ocorrido,

E do esmaecido. 

sábado, 5 de julho de 2014

Silêncio



Difícil e quase impossível para alguns,
É portador das linguagens complexas,
E fala mais do que as coisas comuns,
Sobre situações atônitas e perplexas.

Bem multifário nos mil significados,
Expressa os sentimentos e mundos,
E deles emite os mais claros recados,
No alcance dos níveis mais profundos.

Oh! Se pudesse entender os meandros,
Desta efusão tão mais forte que verbal,
E separar dentre os intentos malandros,
Aqueles que irradiam grandeza colossal.

Bem casado com os múltiplos olhares,
Atinge o âmago da profunda comoção,
E lhe repassa dos momentos e lugares,
A memória do que alterou o coração.

Por vezes significa empatia profunda,
Em outras ocasiões, protesto violento,
Igualmente solta o mundo que afunda,
Eivado por dores, com muito desalento.

Apreciável é o silêncio da humildade,
Que transcende as falácias enganosas,
E acalma as procelas da farta vaidade,
Para interações ricas e mais bondosas.

Encantadora é a linguagem da quietude,
Quando se move para acolher o mistério,
Da grandiosa vida que envolve a finitude,
E leva a erradicar tudo o que é deletério.

Dolorida se torna sua dura linguagem,
Quando impregnada de sutil agressão,
E sob a bem disfarçada camaradagem,
Mira direto no que centraliza o coração.

Muito distinto e variado nos seus efeitos,
O silêncio se eleva à grandeza magistral,
Mas quando, obstinado, vinga os defeitos,
Propicia ambiente bem ríspido e infernal.



sexta-feira, 4 de julho de 2014

Sementes



Mesmo dotadas da vitalidade,
De assegurar boa germinação,
Dependem da sã virtualidade,
Do solo de fecunda condição.

Umas desfrutam de nobre apreço,
Outras da mais rejeitada negação,
E enquanto umas vêm com adereço,
Muitas outras morrem por inanição.

Algumas, endeusadas com farta adoração,
Tão ambicionadas quanto ouro irradiante,
Imputam aos fortes grupos da esganação,
O direito de ignorar toda fome circundante.

Certas sementes contêm ricos nutrientes,
Que além de agraciar humanas refeições,
Aprazem o pendor dos sabores exigentes,
Em distintos lugares de diferentes nações.

Outras sementes aliviam distintas dores,
Com variadas propriedades terapêuticas,
E encantam tanto quanto as belas flores,
E as antigas formas filosóficas maiêuticas.

Certas sementes dão cor e sabor a licores,
Outras se prestam a drogas entorpecentes,
Que afetam dignidade e os decentes valores,

E deixam reféns os incontáveis dependentes.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Anseios por um salvador



            Nosso momento de copa mundial de futebol faz com que narradores dos jogos e comentaristas falem muito de heróis e de salvadores. Um lance pode transformar alguém, instantaneamente, em bajulado “salvador da pátria”.
            O povo do primeiro testamento da Bíblia também teve seus momentos de euforia em torno de um rei herói, como ocorreu com Davi. Mesmo assim, séculos mais tarde, quando podiam apenas falar de rei como fato de uma recordação do passado, persistiram os desejos de que a governança fosse feita por alguém realmente imponente e poderoso.
            Alguns séculos antes de Jesus Cristo, quando nem mesmo um sonho de um possível rei se apresentava à expectativa popular, Zacarias fez memória dos poemas de Isaías que falavam de um servo sofredor e apontou para novas possibilidades de um reinado. Ele já não sonhava com um rei todo-poderoso, mas, com alguém que fosse humilde e até capaz de ser oprimido pelo povo, mas que, no entanto, pelo seu vínculo com Deus e pelo seu modo de ser reto e justo, teria a virtualidade de salvar pelo menos um pequeno resto daquele povo.
            O Evangelho de Mateus salienta Jesus Cristo como salvador, mas, com características bem distintas daquelas esperadas pelo profeta Zacarias e por outros profetas: a forma não violenta e a humildade, proeminentes nos gestos de Jesus, foram capazes de revelar um salvador, não para restaurar o país ou alguns interesses políticos, mas, por apontar um salvador aos humildes e fracos. Estes podem encontrar no caminho da libertação traçado por Jesus Cristo uma possibilidade de organização humana, incomparavelmente menos pesada e turbulenta do que aquela vigente naquele momento difícil dos primeiros cristãos diante do império romano e do poder religioso de Jerusalém.  Jesus até fez uma comparação: o peso da canga, ou do jugo do seu programa de vida, era muito mais leve e suave do que aquele que os governantes estavam imputando ao povo, especialmente aos empobrecidos.
            Nas expectativas de nossos dias ainda tende a expressar-se uma ansiosa espera de salvação por parte de Deus, mas, geralmente é esperada de forma imediatista, mágica e sensacionalista. Com esta nuance as pessoas de fé, cada vez mais submissas, passivas e acomodadas, esperam que alguém faça as coisas e que o paternalismo dos governantes, tão hábil para explorar com mil sutilezas esta dependência, sabe como destinar o mínimo do que deveria investir, e, ainda assim, usufruir desta concessão para fazer-se merecedor de suas manipulações paternalistas.
            Enquanto que humildes e pobres esperam passivamente que as coisas caiam, se não do céu, pelo menos do governo, os mais favorecidos pela acumulação de bens, tendem a ignorar literalmente uma eventual necessidade de ajuda superior. Tornam-se tão auto-suficientes e tão orgulhosos em torno do que conquistaram que já não revelam as ínfimas características de humildade e de capacidade para partilhar algo do que amealharam. Com certeza, o jugo das ambições desmesuradas não lhes aufere boa qualidade de vida.

            Bom é perceber que pessoas bem dotadas de recursos materiais e econômicos ainda se revelem solidários e humildes na partilha de seus bens. São salvadores de um pequeno resto, mas, que se aproximam do reinado traçado por Cristo. Esta mansidão de firmeza em favor da vida, produz possivelmente mais efeitos do que o jugo da prepotência.

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

    Criativa e super-rápida na inovação, A era digital facilita a vida e a ação, Mas enfraquece relacionamentos, E produz humanos em...