Sinopse
O clericalismo católico sofreu longo período de combate por
parte de pensadores modernos e iluministas, devido à sua ingerência nas
questões dos governos civis. A crítica e a auto-critica, bem como orientações
de documentos eclesiásticos, tornaram esta interferência mais branda. Nos
últimos anos, porém, acompanhamos a volta de uma crítica severa e radical ao
clericalismo, e, a surpresa é a de que esta crítica não mais procede de
governantes e filósofos, mas do Papa Francisco, e, sob a alegação de que
deturpa Jesus Cristo e Evangelho, porquanto se aferra em questões
fundamentalistas e integristas. Da parte do Papa, trata-se de postura profética
que remete aos fundamentos do Evangelho de Jesus Cristo, e não às tradições e
deduções teológicas posteriores.
Palavras-chave: sacerdote – seminário - presbítero – evangelho – poder – serviço.
1 – Clericalismo – tema antigo
Durante os
últimos séculos ocorreu acirrado combate ao clericalismo da Igreja a partir uma
procedência conhecida: eram políticos e governantes que se sentiam ameaçados ou
diminuídos mediante a excessiva ingerência do clero nas questões civis e
seculares. O iluminismo foi incisivo em refutar esta intervenção do clero
católico. Este, por sua vez, considerando seu longo histórico, como estamento
privilegiado na sociedade, bem estruturado, estava acostumado a deter
autoridade e tomar decisões para assegurar a pureza da doutrina e organizar a
vida da Igreja, enquanto a grande massa dos fiéis leigos obedecia, escutava e
aprendia.
Aos poucos
esta intervenção passou a ser duramente criticada, mas, a sustentação teológica
articulada na Idade Média, justificava o direito do clero interferir na vida
das sociedades civis, porque se considerava de origem divina para fins
superiores, conhecida pela clássica conceituação de “sociedade perfeita” e
“cristandade”. Seria, por conseguinte, sua missão divina interferir em todos os
âmbitos da vida social.
Atualmente a
ingerência do clericalismo para além dos quadros da Igreja é mais discreta,
restrita e já não é merecedora das tradicionais críticas. No entanto,
surpreende que duras críticas procedam de um outro foco, não o dos governantes
civis, mas de alguém que é o Papa Francisco, da Igreja Católica. Ele vem dando nova conotação semântica ao
termo “clericalismo”, por se constituir numa ingerência no interior do âmbito
da Igreja Católica, e que segundo dúzias de referências ao clericalismo revelam,
trata-se de uma enorme estrutura pouco condizente com o que Jesus Cristo fez e
disse, a tal ponto que a comunidade dos crentes em Jesus Cristo sente que o
clero impõe ideias e detém amplos poderes ao passo que o laicato fica submetido
à condição passiva diante dos seus mandos.
Emerge um
certo senso de que da parte do clero vem ocorrendo contradição entre o que fala
e o que vive. As seguidas declarações do Papa alertam para a contenção deste
excesso clerical que transforma leigos em clientes do clero, pois diz tudo o
que pode ser feito, seja no campo da teologia, da liturgia, das cerimônias de
eventos, das normas e, até no modo de conduzir o cotidiano da vida.
Segundo José
Manuel Llorente, no artigo El
clericalismo, uma herencia nefasta para la Iglesia,
as denúncias recentes contra a clericalização como o mal mais profundamente
prejudicial à ação da Igreja no mundo, se deve às suas reais possibilidades de
regeneração da razão de ser da Igreja. Trata-se de um problema que divide a
Igreja, deixando-a com muitas feições, como ausência de voz do povo, um clero
classista e autoritário, que sequestra e marginaliza a mulher. Com isso, some a
primazia do povo leigo.
Como tantas outras palavras que,
paulatinamente, são modificadas na sua significação semântica, também “clericalismo”,
por longo tempo usada para significar a interferência do clero nas questões
políticas e de organização temporal, desfruta atualmente de uma ressignificação.
Refere-se ao fenômeno intra-eclesial, que, segundo o Papa Francisco, constitui
uma má vivência eclesiológica do que ficou estabelecido pelo Concílio Vaticano
II, e que anula a personalidade dos cristãos, além de desvalorizar a graça do
batismo. O “clericalismo” atual trata o laicato como mandatário e limita suas
iniciativas necessárias à Boa Nova do Evangelho. “O clericalismo esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da
Igreja pertencem a todo povo de Deus (cf. LG 9-14) e não só a poucos eleitos e
iluminados.”
Em visita à paróquia romana de Santo Tomás (em 16/02/2014), o Papa
Francisco conceituou o clericalismo: “constitui
uma maneira desviada de conceber o clero, uma deferência excessiva a uma
tendência a conferir-lhe superioridade moral.”
O clericalismo de alguns sacerdotes afasta o povo da Igreja. Segundo o
Papa Francisco, de forma similar ao procedimento dos anciãos e sumos sacerdotes
do templo que "tinha autoridade
jurídica, moral e religiosa, ‘decidiam tudo’ chegando a um estado de
prepotência e tirania.” Ao refazerem inúmeras vezes uma Lei chegaram a mais
de 500 mandamentos que passaram a regular tudo. O conjunto destas leis sem
memória parou nas próprias convicções dos que as elaboraram porque se
auto-interpretaram como irrepreensíveis.
A vítima deste processo acabou sendo o povo pobre e humilde que ficou descartado.
A Lei, complexificada e expandida, deixou de ser Lei para o Senhor, e virou
apenas lei para aqueles mandantes soberbos, presunçosos e orgulhosos. O clericalismo atual constituiria a edição
atual daquela gente, e, a vítima o mesmo povo pobre e humilde.
Esta
conotação dada pelo Papa Francisco ao clericalismo é ratificada pelo teólogo
espanhol José M. Castilho, que de acordo com o Dicionário RAE, define “clero”
como uma palavra que se refere à classe sacerdotal, enquanto que o
“clericalismo” é a excessiva intervenção do clero na Igreja.
O referido
teólogo espanhol até estranha a tão pouca preocupação em torno dos silêncios da
Igreja, silêncios do clero e daqueles que dizem que somos crentes em Cristo:
“A começar pelo silêncio de tantos e tantos
escândalos clericais de ‘homens de Igreja’ que abusaram de crianças e
adolescentes. Abusos criminosos que as autoridades eclesiásticas ocultaram.
Porque era uma determinação do Vaticano, para que o prestígio da Igreja não
fosse prejudicado. Teve que vir o Papa Francisco, que ‘tirou o manto’ para que
se saiba tudo e se faça justiça. O mais sofrido e preocupante é o que este Papa
precisa suportar, pela resistência do clericalismo fanático, que não suporta a
transparência que desvelou a falta de vergonha de não poucos setores do mundo
clerical.”
2 – Raízes do clericalismo católico
Segundo Lisandra Chaves Leite, a raiz do clericalismo que vem se
manifestando na história da Igreja, constitui uma ferida do pecado humano propenso
ao egoísmo. Por isso,
“De um lado, temos uma influência histórica
que se clareou no tempo, especialmente no Concílio Vaticano II, e, por outro
lado, um assunto de caráter espiritual e moral que não foi combatido
suficientemente porquanto o clericalismo é claramente antagônico a Cristo e ao
Evangelho.”
Basta
lembrar que no Evangelho, ao se tratar da morte de Jesus Cristo, afirma-se que
“o véu do templo se rasgou de alto a baixo...” para dar a entender a separação
entre mundo e santuário, pois para Jesus Cristo o espaço sagrado era o coração
humano.
No primeiro
século da Igreja a função sacerdotal não constituía uma função independente,
pois o específico do cristianismo emergente era o de saída da religião, tal
como vinha se manifestando a religião judaica.
Para o Papa Francisco, o fato de Jesus Cristo
ter revelado atenção particular às multidões – que o buscavam e o admiravam,
não como massa anônima, mas como sujeito que se entrega a ele sem condições –
ocorreu um contraste com a mesquinhez dos discípulos. A atitude deles a
respeito da multidão que procurava Jesus Cristo, beirou a crueldade quando
sugeriram que o Senhor os mandasse embora para buscar algo de comer. Segundo o
Papa, ali deu-se início ao clericalismo, pois, os discípulos, ao pretenderem
assegurar comida e a própria comodidade, revelaram desinteresse pela
multidão...
Já segundo Loïc de Kerimel, o
clericalismo surgiu do sistema clerical do segundo e terceiro século da Igreja
Católica. Embora tenha sido uma organização pensada para o melhor, afetou os
leigos a ponto de torna-los passivos, de formas que suas alavancas de fé
ficaram em outras mãos.
O teólogo José Maria Castilho
sustenta que não existe razão sólida de que Jesus tenha delegado somente homens
solteiros para celebrarem a Eucaristia. Basta lembrar que 10 apóstolos estavam
casados (cf. 1Cor 9,4-5; 1Cor 7,3. 4. 5. 10-11 e 12-14). A primeira Carta a
Timóteo (3,2-5) e a Tito (1,6) mostram que quando alguém pretendia ser
dirigente de Igreja, deveria ser casado e ser bom educador de seus filhos. Por
outro lado, muitas mulheres atuavam ativamente no movimento missionário, e eram
chamadas de apóstolas, diáconas, protetoras ou dirigentes.
No terceiro século cristão foi se
generalizando que que o sacerdote é “clérigo”, com a suposição de constituir
uma categoria acima dos leigos. A partir desta influência a Igreja passou a ser
dividida: os clérigos eram distintos e superiores aos leigos. Ao mesmo tempo, o
clero passou a monopolizar as decisões, a administração dos rituais sagrados e
elevou a condição clerical ao âmbito de “homens consagrados”. Tal proclamação
permitiu que o clérigo alcançasse a categoria senhorial. Este abuso se alastrou
rapidamente, pois, já antes de Constantino, houve combate aos abusos de pompa e
vaidade de alguns ministros da Igreja.
A partir do século quarto, foi
introduzido o puritanismo na Igreja. Sua origem se reportava aos séculos quatro
e cinco anteriores a Jesus Cristo, quando Pitágoras e Empédocles absorveram
ideais dos xamãs do norte da Europa, e, muitos acabaram sendo absorvidas pelos
cristãos dos primeiros séculos, dentre as quais, a do celibato, que não teve
origem bíblica e tampouco os evangelhos sustentam marginalização da mulher.
Aos poucos a Cúria Romana sentiu o peso
do pensamento do clero conservador (cardeais, bispos e monsenhores), que
priorizou sua própria organização mais do que as carências e necessidades das
pessoas desamparadas no acompanhamento da sua fé, embora as razões da Igreja
deveriam depender da fé em Jesus Cristo e não de setores do clero.
Nos primeiros séculos cada comunidade
escolhia seus ministros e também os destituía quando não correspondiam à sua
missão. Loïc de Kerimel salienta que no ano de 245, o bispo de Cartago, ao ter
problema com três dioceses espanholas (León, Astorga e Mérida) cujos bispos não
defendiam a fé cristã diante da perseguição do império romano contra cristãos,
sugeriu às respectivas comunidades destituir os três bispos dos seus cargos.
Reflete que os interesses do povo eram antepostos aos do clero.
A partir da Reforma Protestante, o
Concílio de Trento acabou realçando ainda mais a diferença de clérigo para
leigo, pois os clérigos passam a ser administradores e dispensadores dos
sacramentos. Ficou notável a expressão “Alter
Christus” (outro Cristo), do padre separado do mundo a fim de dedicar-se às
coisas de Deus. Com isso, acabou ficando relegada a dimensão profética e
servidora do sacramento da Ordem. A reação de Trento à reforma Protestante
acabou focando demais a perspectiva sacramental e deixou para um segundo plano
a eclesiologia do sacramento da Ordem.
Na Idade Média desenvolveu-se
paulatinamente um conceito teológico de que a Igreja, por ser de origem divina
era superior a qualquer outra organização humana e que estava incumbida de
conduzir as organizações governamentais e civis das sociedades. Nasceu dali a
conhecida noção de “Sociedade perfeita e Cristandade”. Poder espiritual tinha a
primazia da organização humana.
Sob o status de sacralidade que afastou
o padre da comunidade, a teologia do sacramento da Ordem enfatizou o caráter
sacerdotal numa sagrada potestade. Com isso, evidentemente, o serviço à
comunidade eclesial acabou recebendo atenção secundária. Com esta guinada, o
presbitério passou a ser identificado como “sacerdócio”. Aos poucos foi ficando
mais segregado da comunidade e do mundo e fruiu a condição de estar elevado
acima dos fiéis:
“Não importa que seja um mau sacerdote, que prega ou não, que serve a
comunidade ou não, ou que prejudique a comunidade em contra-testemunho, que
tenha fé ou não, que seja o não sacramento de Cristo, o essencial é o poder
sagrado que possui; tudo o que contradiz os dados do Novo Testamento que fala
em termos de serviço e não de poder (Mt 18,1-5; Mc10,45; 1Tes 2,8; Fl 1,8)”
Assim, Daly resume o clericalismo
como derivação de quatro aspectos: a) Da natureza caída da condição humana,
inclinada a pecados capitais (orgulho, ira, luxúria, inveja, gula, avareza e
preguiça. O clericalismo estaria especialmente enraizado no pecado do orgulho,
com queda para luxúria, inveja e avareza. Assim, o sacerdócio sempre vai
incorporar membros ambiciosos e a vida clerical é vista como carreira poderosa
e não como chamado a serviço. O sacerdócio tampouco se livra de pessoas
avarentas que visam riquezas e recursos da Igreja para o seu prazer, para o
luxo e o enriquecimento. Nesta categoria também se revelam pessoas lascivas que
usam seu poder e autoridade para gratificações sexuais. Como em outros âmbitos
de grupos sociais, no clero igualmente aparecem pessoas que não suportam
sucesso alheio, e competem por cargos, nomeações e alcance de paróquias ricas;
b) Das dinâmicas institucionais, modos pelos quais uma instituição funciona.
Facilmente os mais vistos pelo chefe são promovidos para controlar finanças,
decisões, planos e receber promoções. Isto estimula os “carreiristas”,
puxa-sacos” e “lambe-botas” de autoridades. Estas sinecuras que elitizam,
permitem que padres sem nenhuma experiência pastoral venham a ser nomeados
bispos; c) a tradição corrompida; d) e a formação no seminário.
3 – Falas do Papa Francisco sobre Clericalismo
As seguidas
menções vinculadas ao clericalismo e os insistentes alertas contra seus
tentáculos na Igreja, revela algo realmente grave para a atual organização da
Igreja, segundo os ditames de Jesus Cristo e do seu Evangelho.
No encontro
com a coordenação do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), no Rio de
Janeiro, o Papa foi incisivo no seu discurso para alertar a Igreja da América
Latina a evitar as tentações da ideologização do Evangelho, do funcionalismo e
do clericalismo. Há nele uma tendência a interpretar o Evangelho, fora do
Evangelho e da Igreja. Quanto ao funcionalismo, este estaria paralisando a ação
da Igreja e transformando-a numa ONG similar a empresas, que buscam resultado,
eficácia e números. Quanto à clericalização:
“Reduz a experiência eclesial à operação do clero que leva os leigos a
evitar compromissos... os ‘católicos iluministas’ são os maiores clericalistas
que existem. Sempre tão críticos, tão especializados, atirando a culpa nos
bispos, sem tomar lugar na comunhão dos batizados”.
O historiador Jorge Traslosheros
Herrnandes, influente voz católica do México, diz que os leigos também tem sua
responsabilidade porque sobrecarregam seus sacerdotes.
No encontro com os bispos chilenos o
Papa enfatizou que os leigos não devem ser nem servos e nem empregados e nem,
tampouco, repetir como papagaios o que lhes é dito pelo clero:
“O
clericalismo, longe de dar impulso às diferentes contribuições e propostas,
apaga, pouco a pouco o fogo profético do qual a Igreja inteira é chamada a dar
testemunho no coração de seus povos. O clericalismo esquece que a visibilidade
e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo povo de Deus e não só a poucos
eleitos e iluminados.”
Lisandra Chaves Leiva observa que a
referência do Papa Francisco ao tema do clericalismo é uma constante e destaca
a afirmação do Papa: “O clericalismo é, a
meu juízo, o pior mal que hoje pode existir na Igreja.”
É essencialmente hipócrita:
“O clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja, porque pretende que
o pastor esteja sempre na frente, estabelece um caminho e castiga com
excomunhão a quem se afasta da grei. Em síntese: é exatamente o oposto do que
Jesus fez. O clericalismo condena, separa, frustra, deprecia o povo de Deus.”
Naquela ocasião o Papa também
salientou que o clericalismo confunde a figura do pároco, pois não se consegue
saber se é um cura, um sacerdote, ou patrão de empresa. Para salientar o papel
do ministério ordenado, o Papa lembra que o Concílio Vaticano II voltou à raiz
do ministério ordenado recuperando a noção evangélica do sacerdócio de Cristo
(que acolhe pecadores e faz refeições com eles). Os ministros ordenados da
Igreja ao participarem da dimensão pastoral do sacerdócio de Cristo revelam-se
homens pecadores como outros e necessitam da misericórdia sacerdotal de Cristo,
porque a questão essencial para eles deve ser a da aproximação com o sacerdócio
de Cristo.
O clericalismo é um mal grave que
afeta a Igreja da atualidade porque suas raízes procedem da sacralização do
sacerdote, que por sua vez, gestou a clericalização tão deturpadora da noção de
que sacerdote deve constituir-se em servidor no modelo de Cristo.
“Apesar dos documentos do Concílio e dos documentos magisteriais sobre o
ministério da Ordem, o clericalismo persiste nos últimos anos e constitui causa
da maior crise da Igreja Católica em relação com abusos de poder.”
Talvez por esta razão, o Papa insiste
que urge formar ministros que sejam capazes de interagir com proximidade,
diálogo e percorrendo o caminho com os demais cristãos. Ao insistir que o
clericalismo constitui uma peste na Igreja, o Papa declarou aos sacerdotes: “Fujam do clericalismo, porque o
clericalismo afasta as pessoas. É uma peste na Igreja.”
No encontro com delegações de
jesuítas de todo mundo, o Papa Francisco declarou:
“O clericalismo é rico. E se não é rico de dinheiro, o é de soberba. Mas
é rico, tem um apego às posses. Ele não se deixa ser criado pela mãe pobreza,
não deixa que protejam o muro da pobreza. O clericalismo é uma das piores
formas de riqueza pelas quais a Igreja é acometida, ao menos em alguns lugares
da Igreja. E mesmo nas experiências mais cotidianas.”
Ao se dirigir para leigos, o Papa
Francisco lhes sugeriu evitar cinco tentações: clericalismo, competitividade,
carreirismo, rigidez e negatividade. No que diz a respeito do clericalismo
insistiu:
“Peço-vos, por favor, que eviteis a todo custo, as ‘tentações‘ do leigo
dentro da Igreja que podem ser: o clericalismo, que é uma praga e vos encerra
na sacristia, como também a competitividade e o carreirismo eclesial, a rigidez
e a negatividade... que asfixiam o específico do vosso chamamento à santidade
no mundo atual.”
A um grupo de novos bispos o Papa
pediu encarecidamente:
“Queridos irmãos, fujam do clericalismo. Dizer não aos abusos, sejam de
poder, de consciência, ou de qualquer outro tipo, significa dizer ‘não’ com
força a qualquer forma de clericalismo.
E prosseguiu fazendo um alerta para
que os bispos resistissem à tentação de se comportarem como “príncipes” ou
“patronos” em suas dioceses: insistiu com firmeza: “sejam homens pobres em bens e ricos em relações, nunca duros, nem
buscando a confrontação, mas afáveis, pacientes, simples, abertos.”
Andrea Lebra fez uma síntese de sete ponderações
que realçam as principais repercussões causadas pelo clericalismo, de acordo
com as falas do Papa Francisco:
1 – É uma forma anormal de entender a
autoridade da Igreja, uma forma não evangélica de entender o papel do presbítero.
Esta concepção perverte o ministério, pois clericalismo significa busca pessoal
que anula a participação do Povo de Deus. O clericalismo se atribui um chamado
elitista como um privilégio especial que acaba transformando seu serviço na
produção de servilismo, pois troca unidade por uniformidade e discorda de toda
oposição e transforma formação em doutrinação. Trata-se de uma perversão que
cria laços paternalistas, possessivos e manipuladores das demais vocações
cristãs. Tende a cultivar atitudes altivas, arrogantes e autoritárias que
anulam toda a efervescência de sinais do Reino de Deus no meio da massa. Enfim,
o clericalismo condena, separa, chicoteia e despreza o povo de Deus;
2 –É uma perversão que renega a
promessa gratuita de Deus, pois o clericalismo esquece que Deus se manifestou
como dom e não como propriedade nossa que reduz Deus à ideologia moralista,
cheia de preceitos e de casuísticas ridículas. O grande pecado do clericalismo
é o de apropriar-se de Deus para si e colocá-lo à disposição do povo de forma
sectária, rígida e clerical;
3 – É como um tango, sempre dançado a
dois, pois o clericalismo não é apenas dos clérigos, mas deve constituir-se em
atitude que toca a todos nós. Parte do clero gosta de clericalizar os leigos,
e, muitos deles, de joelhos, pedem para serem clericalizados porque tal
procedimento os isenta de responsabilidade. A combinação de um desejo
alimentado pelo clero torna o laicato um clericalismo passivo. Somente existe
clericalismo quando leigos aceitam ser clericalizados;
4 – O clericalismo não reconhece o
sacerdócio comum dos batizados, pois mantém os leigos à margem da decisão, ou,
então, os sufoca no controle da santidade, uma vez que transforma os leigos em
papagaios que reproduzem o que lhes dizem. Isso prejudica todo dinamismo
missionário e até caricaturiza a sua missão. A missão deve ser de toda a Igreja
e não mera atividade do padre ou do bispo, porquanto anula a personalidade dos
cristãos, além de diminuir e subestimar a graça batismal. Rouba a noção de que
o laicato é vocação e leva os leigos a pedir tudo ao padre.
5 – O clericalismo mortifica o
discipulado missionário, porquanto impede que os leigos se tornem maduros e livres.
Por isso, pensar em “Igreja em saída” significa “leigos em saída”. A igreja
precisa de leigos com “sabor de experiência de vida”;
6 – O clericalismo alimenta a
autorreferencialidade, porque vive da autorreferencialidade que empobrece o
encontro com o Senhor e deixa de inflamar o coração das pessoas. A
autorreferencialidade conduz a uma espécie de narcisismo que aponta para um
clericalismo sofisticado: bispos não podem ser solteirões clericais, com muitos
adornos, mundanidades e dinheiro, um clericalismo de mercado. Clericalismo
significa arrogância e tirania com o povo, de forma muito similar ao que os
sumos sacerdotes efetuaram com a Lei, transformada de forma intelectualista,
sofisticada e casuística, e que tirou a liberdade de fé dos fiéis. Assim, o
clericalismo domina espaços, sem gerar processos e vive do vício de “escalar e
tagarelar” do carreirismo, familismo, mundanidade e fofoca.
7 – O clericalismo extingue a
profecia, porque vai contra o fogo profético da Igreja, que é chamada a animar
suas comunidades e a encorajá-las na missão da Igreja. Falta de profetismo
produz ausência da vida de Deus, uma vez que o clericalismo afasta as pessoas
da Igreja, ou as infantiliza, tornando-as meras servas clericalizadas, agindo
em função dos clericalistas.
4 – Predisposição seminarística para o clericalismo
A formação seminarística certamente
tem muito a ver com o clericalismo. Em certos ambientes explora-se a
idealização e os pretendentes ao presbiterado facilmente se encantam com
modelos burgueses que lhes são apontados.
O longo período de formação
seminarística força os aspirantes à vida presbiteral a lidar com frustrações e
as contrapartidas institucionais de pequenos privilégios, como moradia, comida,
roupa lavada, formação acadêmica, sem passar pela dureza de se sentir
responsável para conseguir estas facilidades. Se os seminaristas, de um lado,
renunciam a liberdade, autonomia, aceitam a tutela por longo tempo. Ao aceitar
inúmeras renúncias necessárias ao processo, acabam esperando da Igreja tudo
quanto possa suprir necessidades e desejos. Assim, seguem estabelecendo
progressivamente como normal um estilo de vida com algumas compensações
auferidas pelo status e uma série de privilégios e acessórios, que, aos poucos,
os induzem à condição de mandar. Basta ouvi-los em conversas no estágio
anterior à ordenação presbiteral: são categóricos em tudo quanto falam e tem
soluções prontas para tudo.
Em muitos ambientes de seminário o
exercício do poder ainda é o da sociedade de “cristandade e sociedade perfeita”
da Idade Média, e, os diretores espirituais fornecem fortes doses de
argumentação espiritual, como disponibilidade, amor aos pobres, dedicação aos
leigos, imitação de Cristo e de santos, mas, tudo isso fica restrito apenas ao
nível de consciência e a prática cotidiana passa a ser definida pelo exercício
do poder. Mesmo não sendo rígidos como o poder militar, o poder os seduz pela
pressão e sugestão. De acordo com Sílvio José Benelli, “a educação teológica que os jovens recebem nos seminários tem grandes
possibilidades de ser produtora do clericalismo.”
O ambiente de formadores, e mesmo o
acompanhamento em paróquias os induz a procurar aprovação. Emerge, então, um
anseio por trabalho importante ou que impressione as pessoas. Ao mesmo tempo,
abre-se um horizonte para a busca de um status social, junto com a condição de
desfrutar de todo conforto para merecer especial consideração dos padres.
Benelli se reportou a Alberto
Antoniazzi e ao padre Edênio Vale que configuraram uma espécie de tipologia do
clero brasileiro. Alguns modelos tendem a influenciar mais os jovens candidatos
ao presbitério. Eles agruparam quatro tipos de padres:
a) Padres pastores – geralmente
ativistas pastorais, devido às muitas tarefas que lhe são cobradas pela
comunidade;
b) Padres “light” que dividem sua
atividade ministerial com programas de lida particular, geralmente vistos como
“bons padres” mas, que também vivem conflitos entre o desafio de assumir a
radicalidade da missão e a retração para preservar-se de cobranças;
c) Padres midiáticos ou carismáticos
(popstar), geralmente os que mais encantam os seminaristas, e, por isso, passam
a ser imitados, movidos pela elevação do culto televisivo para se tornarem
espetacularizantes. Tendem a afirmar o sagrado pela dimensão estética,
emocional e terapêutica; e, para tanto, contribui a bricolagem chamativa de
batina e exibição de símbolos tradicionais que já foram muito contestadas há
algumas décadas atrás;
d) Padres especialistas que priorizam a
competência profissional, com vistas à valorização da sua dimensão pessoal.
A longa herança monárquica deixou
sequelas na formação e nesta rede de “bons e velhos camaradas” foi facilitado o
horrendo abuso sexual bem como o flagrante encobrimento para preservar aquela
instituição. Assim, muitos carismas do Espírito Santo acabaram sufocados. Tudo
isso nos aponta um novo momento para achar modelo mais adequado de governança
na Igreja.
Uma pesquisa efetuada sobre a
subjetivação em seminários revelou algumas modificações na maneira de sentir,
pensar, agir em vista ao ingresso na condição clerical, levou Márcio José de
Araújo Costa a defender uma dissertação na UERJ em 2008. Num ambiente de 11º
seminaristas e cinco padres constatou-se um predomínio da formação
homogeneizadora de tipo romana que leva os clérigos ali formados a se fechar
numa identidade sacerdotal claramente encapsulada na obediência aos centros de
poder eclesiais: a Cúria romana, a Mitra diocesana e a paróquia, segundo um
modelo sacerdotal institucionalizado, “no
qual as dimensões litúrgica e disciplinar são ressaltadas em detrimento das
dimensões místico-políticas”
Ali também foi observada uma espécie
de “caça às bruxas” com perseguição sistemática à Teologia da Libertação. Por
outro lado, a constante vigilância da pureza doutrinal, litúrgica,
organizacional e teológica indicou uma pressão para reprimir a dimensão
místico-profética. Percebeu-se que o desejo clerical oscilava entre dois polos:
a) o sacerdotal-romano-paranóico; b) o profético-libertador-esquizo. Os
afinados com o primeiro polo mostraram tendência de fechamento à diferença e
uma queda para alcançar imortalidade diante das intempéries da vida, através de
práticas hierárquicas. Os do outro polo, buscavam singularização, nascida do
seguimento de Jesus e consequente compromisso com causas sociais dentro e fora
da Igreja. Segundo Costa, o seminário pesquisado estava produzindo:
“Hegemonicamente um desejo sacerdotal romano-paranóico, forjando
funcionários do poder da Igreja, burocratas do aparelho de Estado romano,
aplicadores de suas rubricas litúrgicas e normas doutrinais e morais e não
profetas do Reino de Deus...”
Esta subjetivação clerical não indica
proximidade com pobres e sofredores, mas um perfil mais distanciado de
exortação e ensino e com moralização de condutas. Também o modelo de padre
carismático estaria pertencendo de pleno direito a este modelo sacerdotal romano-paranóico.Por
constituir instituição tridentina, o seminário não estaria produzindo
características básicas do espírito moderno: o da crítica à tradição a partir
do indivíduo.
Estudos do CERIS sobre o catolicismo
brasileiro também apontam que
“Na última década, a conjuntura mundial neoliberal, o papado de João
Paulo II e o peso histórico da Igreja como instituição hierárquica, autoritária
e clerical, deram fôlego aos bispos conservadores, que tem trabalhado junto à
burocracia romana para reverter as novidades nos seminários.”
Depreende-se, por conseguinte, que
seminários podem constituir importante fator para alargar a perspectiva do
clericalismo, tão largamente difundida na Igreja. Por isso sempre é conveniente
lembrar que Jesus Cristo, não constituiu sacerdotes, mas apóstolos para
anunciar a boa notícia do evangelho.
“Entre sacerdote e apóstolo há uma clara diferença. As mulheres são as
primeiras a anunciar a ressurreição... Jesus não concedeu o sacerdócio nem às
mulheres e nem aos homens: ele nunca usou o termo ‘sacerdote’, mas constituiu
apóstolos, ou seja, enviados a anunciar a boa notícia.”
O Concílio Vaticano II, ao perceber
que o sacerdote não era pertinente ao cristianismo, praticamente eliminou o
termo “sacerdote” e priorizou o termo “presbítero”. Mesmo assim, um refluxo
posterior reintroduziu o termo “sacerdote”, auferindo-lhe uma dimensão
sacralizante.
Epílogo
A abordagem relativa ao clericalismo
e seu inusitado combate por parte do Papa Francisco, revela distintas
perspectivas de cosmovisão e implica numa questão fundamental vinculada a Jesus
Cristo e ao Evangelho. O longo processo de estratificação do clericalismo
parece mesmo ter tomado distância dos gestos e das falas de Jesus Cristo. Se o
Papa faz tantas referências ao clericalismo de forma não lisonjeira,
certamente, mais do que uma questão pessoal de obstinação contra o clericalismo,
constitui coerência a Jesus Cristo e ao Evangelho. Sua perspectiva visionária
para nosso tempo não decorre de vaidade pessoal e de auto-afirmação, mas do
retorno às origens para que a razão de ser do clero seja eminentemente de
serviço e não precipuamente exercício do poder de controle das pessoas.
A firmeza e a coerência com que o
Papa Francisco alerta diferentes grupos e representações da Igreja também
permite entender que os duros revides que recebe por parte do clero, refletem
sua tendência para o integrismo fundamentalista, este que lhes assegura um
patamar privilegiado diante dos demais cristãos.
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