segunda-feira, 19 de outubro de 2020

MEMÓRIA RELAPSA

 

Na espiral dos acontecimentos,

Alegrias e os constrangimentos,

Misturados numa centrifugação,

Soltam nesgas de bondosa ação.

 

Lembrança de gestos marcantes,

E das palavras muito edificantes,

Alargam a espiral dos encantos,

E suavizam ardidos desencantos.

 

A saudade de olhares vicejantes,

Permeados de mundos anelantes,

Atualiza na genuína cordialidade,

O grandioso milagre da bondade.

 

Pena que na distância esmorece,

Toda riqueza que a vida aquece,

Para ter mais assunto edificante,

Que raiva e memória frustrante.

 

Sinal dado por amigos e amigas,

Ocupa o lugar de velhas intrigas,

E enche o espaço das memórias,

Com sublimes razões de glórias.

 

O bombardeio das informações,

Invade até as frestas das noções,

E apaga indeléveis recordações,

E as substitui com novas ilusões.

 

Resta mundo de pouca memória,

Para equilibrar a ação vexatória,

Que idealiza na combatividade,

A superação de toda a amizade.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

MERITOCRACIA NA IGREJA CATÓLICA

 

 

Sinopse

            A meritocracia constitui um mito, e, quando usado ideologicamente, justifica a desigualdade social. O ideal iluminista efetuou resultados visíveis no combate à pobreza e desigualdade humana, mas gestou, simultaneamente, as bases de uma nova concepção, através da meritocracia e da teologia da prosperidade. Assim, relega-se a pobreza à sua própria sorte e culpa, porque os pobres teriam desperdiçado dedicação, empenho e talento na corrida pelo alcance de condições confortáveis de riqueza e bem-estar econômico.

            A orientação da Igreja Católica, ao contrário da meritocracia, valoriza a graça, e, os méritos são considerados não como poder, mas, como mediações para o serviço. Esse ideal evangélico, no entanto, não é uniforme em todos os âmbitos da Igreja, porque em certos ambientes, setores da Igreja captam por osmose o que se faz nas empresas e organizações sociais, e, como boa parte de católicos atua nestes campos, pende para a meritocracia na perspectiva do poder.

Palavras-chave:  Mérito – poder – pobreza – culpa – empenho.

 

1 – Meritocracia – um conceito ambíguo

 

            O termo “meritocracia” constitui um neologismo proveniente da junção de duas palavras: mereo, do latim, que significa merecer, ser digno; e kratos, sufixo do grego, que significa força e poder. Dessa junção decorre uma conotação evidente: o poder advém do merecimento. Aparentemente, nada demais. No entanto, esta significação tem largas consequências tanto na organização social quanto no âmbito da Igreja Católica, pois repercute diretamente na diferenciação social e nas desigualdades entre as pessoas.

            Como entender o insistente discurso de que todos somos iguais perante a Lei, quando o alcance dos privilégios é atribuído aos méritos decorrentes de talento, inteligência e dedicação? E os que sobram, possuem eles o mesmo ambiente de condições ao daqueles que alcançam poder e honra?

            Stefano Zamagni faz uma distinção entre meritocracia e meritoriedade: “enquanto a meritocracia evoca o princípio do mérito na fase de distribuição de riqueza, ou seja, ‘post factum’, a meritoriedade busca aplica-lo na fase em que se gera a riqueza, visando a assegurar a igualdade das capacitações, e não somente das oportunidades.”[1]

            No entanto, a ideia de que as desigualdades teriam uma vinculação congênita à condição humana, como algo natural, leva à suposição de que a desigualdade constitui um mal necessário para viabilizar o progresso. Seria como predisposição a certas doenças com a quais se deve aprender a conviver. Mesmo assim, os tempos modernos revelaram, sobretudo através do Iluminismo, uma batalha campal intensa e de larga envergadura contra a desigualdade (lema da liberdade, fraternidade e igualdade) e engendrou extraordinárias conquistas científicas, filosóficas, espirituais e econômicas.

            Mesmo assim, o alcance desta batalha, ficou muito aquém do discurso, porque a aceleração do desenvolvimento abriu uma nova perspectiva. Apesar dos avanços na inclusão social, na maior igualdade, no aumento dos direitos, a diminuição de pobres e de castas privilegiadas, o tripé constituído por “economia-finanças e política” efetuou uma contra-revolução para sustentar a desigualdade. A partir das grandes empresas multinacionais e escolas internacionais de negócios, implantou-se uma novidade inusitada: culto universal ao capitalismo, com legitimação moral e espiritual dos seus fundamentos.

            Efetuou-se, então, o grande milagre da modernidade, que foi o de assimilar a desigualdade a partir da noção de meritocracia. Desta forma, a desigualdade passou a ser assimilada não mais como sendo um mal, mas, como um bem. Deixou de ser defeito, para constituir-se numa grande virtude. E, desde então, meritocracia virou uma palavra simpática e carregada de valor semântico perante o velho e conhecido conceito da desigualdade. Os profetas desta nova espiritualidade fazem os apelos incisivos a respeito dos talentos – não mais vistos como dons ou graça – mas, como méritos pelas suas virtualidades, tão elogiadas por conter uma nova propriedade moral:  os méritos elevam-se como virtude na sociedade desigual.

            De fato, a meritoriedade pode constituir um grande sistema de legitimação de privilégios herdados ou hauridos de uma elite, tanto no campo social quanto no religioso. Sobretudo nestes últimos tempos, torna-se mais evidente que setores reacionários sequestram o ideal da liberdade através da sustentação do mito, muito simpático, de que todos possuem oportunidades iguais. Esta falácia, tende a enganar muita gente.

            César Renduelles salienta que este nicho do discurso, ajuda muito a direita e a extrema-direita na monopolização de perspectivas conservadoras e reacionárias em defesa da liberdade:

            “Se há um discurso recorrente da direita, é sua aposta entusiasmada na meritocracia, como resposta veemente em que define a meritocracia como uma fórmula proposta pelas elites para perpetuar os seus privilégios...”[2]

            A defesa desta liberdade torna-se equivalente a afirmar: “deixe-me fazer o que eu quero”, porque a liberdade gesta a igualdade. Dá-se a entender que liberdade consiste em satisfazer desejos. A noção igualitária, por exemplo, esconde privilégios entre homens e mulheres, pois homens não aceitam partilhá-los na mesma medida com mulheres. Da mesma forma, a promoção de certos indivíduos na sociedade, quer civil ou religiosa, ao ser justificada como decorrência de méritos, alimenta, de forma sutil, as desigualdades sociais. Como diz Sidney Chalhoub:

            “A meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade.[3]

            Na verdade, este mito procede da concepção Darwinista que justifica a lei da sobrevivência do mais forte, do mais esperto e ágil. O efeito disso, é que grandes setores da sociedade ficam excluídos, ignorados e relegados à própria sorte. E como suportam tal jogo de engano?

            Há belos discursos que repetem a toda hora que todos tem as mesmas chances de êxito na disputa por posições de excelência e, se alguns ficam para trás, é mera culpa pessoal porquanto não se dedicaram suficientemente. Estes perdedores, então, são persuadidos a se culparem a si mesmos diante do fracasso experimentado, e, forçados à resignação, conformam-se pela perda na disputa por lugares hegemônicos e pela impossibilidade de desfrutar do status simbólico na cultura, uma vez que teriam sido pouco efetivos no desenvolvimento de suas habilidades.

            Quando a meritocracia é entendida pela noção de que as pessoas se destacam a partir dos seus méritos, sem o condicionante de seus pais, do lugar onde moram e das condições sociais do seu entorno, as conquistas atribuídas à dedicação pessoal, efetivamente, ocultam a real desigualdade, pois, os procedentes de um ambiente privilegiado oferecem, mais do que talento e habilidades pessoais, uma larga vantagem de predisposições avantajadas sobre os concorrentes.

            Esta enganação, através do apelo à meritocracia, permite a auto-sustentação de um sistema fechado de elites que oferecem condições especiais a seus filhos, em nada viáveis à grande parcela da sociedade e que jamais consegue fornecer estas mesmas condições a seus filhos. Assim, os super-especializados, na justificação da meritoriedade, levam grande vantagem para ocupar os cargos de poder e são justificados como merecedores dos salários abusivos que recebem, pois alega-se que tal remuneração é literalmente justa, porque os vencedores a merecem em razão do seu talento, esforço e dedicação. Percebe-se, pois, que a desigualdade é sistêmica e estrutural.

            “...em países como o Brasil, há uma desigualdade não meritocrática – ou seja, uma desigualdade aristocrática antiga – em que elites herdam grandes propriedades ou outros tipos de capital. De forma hereditária, simplesmente. Ao mesmo tempo, o Brasil também tem uma classe profissional cada vez mais bem paga, como banqueiros e advogados que ganham muito dinheiro supostamente por suas habilidades. E é aqui que a meritocracia causa problemas.”[4]

            Aparentemente a chance de alcançar lugares privilegiados é igual a um jogo ou uma corrida. Depois da largada, vence quem faz mais pontos, gols ou quem é mais rápido. As chances são iguais. No entanto, quem ganha será que é por merecimento? As condições da largada, na verdade, não são iguais. Assim, empresas, escolas e universidades iniciam a disputa com condições muito desiguais dos interessados na vitória.

Estas instituições ajudam a ampliar a divisão social, pois produzem bem-sucedidos e fracassados. Aufere-se, então, mérito ao poder dos bem-sucedidos. O merecedor é condecorado e aceita-se como sendo justo que desfrute do poder e justifica-se a promoção através da alegação aos méritos (aptidões, esforço, empenho pessoal e dedicação). Não se considera a origem dos concorrentes, pois alguns apresentam larga vantagem em relação a outros a partir de privilégios anteriores.

A meritocracia oculta toda a implicação do antes da competição. O resultado é o de poucos privilegiados e muitos relegados (como os daqueles 1% de brasileiros com a maior parte da renda nacional). Os perdedores precisam conformar-se com a culpa do seu próprio fracasso.

            “A meritocracia produz uma elite que diz servir ao interesse público, mas que, na verdade, serve a si mesma. Dessa forma, o que faz é dar a todo restante da sociedade uma razão poderosa para desconfiar das elites.”[5]

            O populismo consegue explorar esta meritocracia sob dois aspectos: na produção de uma elite que alega servir e promover o interesse público, mas serve precipuamente a si mesma e produz uma insinuação psíquica que dá a entender que a exclusão depende apenas de questões individuais de falta de empenho e dedicação. Nesse jogo político enganador, justifica-se a desvantagem do resultado mediante o nível de empenho, e permite também justificar a raiva do populismo destruidor da política com o “jogo sujo” das supostas perseguições aos seus méritos.

            No abuso do ressentimento o populismo desencadeia uma batalha contra os supostos inimigos, para obtenção de apoio que confirme a batalha autoritária com vistas à aprovação de quaisquer resultados que essas elites ambicionam. Enquanto isso, o discurso político contra meritocracias efetua precisamente a confirmação do que condena, ou que alega demolir:

            “Entre nós, a meritocracia constitui-se ainda como um critério formal e eventual em permanente disputa com o nepotismo, o fisiologismo e os privilégios corporativos. Expressões e eufemismos do tipo ‘ministro da cota do presidente’, cargo ou ministério técnico’, política de reciprocidade’, ‘é dando que se recebe’, QI(quem indica), ‘entrar pela janela’, ‘amigos do rei’, ‘apadrinhados’, ‘afilhados’, entre outros,  são utilizados frequentemente no linguajar político, organizacional e cotidiano, para ilustrar as lógicas e as práticas de preenchimento, promoção e reconhecimento e funções que as pessoas julgam ser prevalecentes entre nós, tanto nas organizações públicas como privadas, e que soam, pelo menos discursivamente, de maneira condenatória.”[6]

            Este discurso meritocrático também reflete uma cultura paternalista, na qual prevalecem apadrinhamentos e relações pessoais, ausência de cobranças, indicações nepotistas que, enfim, configuram um tradicional caráter paternalista. E como fica o discurso religioso católico neste contexto?

 

2 – MERITOCRACIA NA IGREJA CATÓLICA

 

O crescente e indecoroso crescimento das injustiças e desigualdades sociais de nosso tempo, interpela frontalmente a mensagem cristã. Apresenta esta mensagem uma argumentação sólida contra a meritocracia? Ou vive-se, também na Igreja Católica, a meritocracia?

Bem sabemos que a veiculação de uma mensagem religiosa, seja católica ou de outra instituição, sempre se situa num contexto, numa cultura e numa forma de veiculação cultural. Como empresas e grandes instituições sociais se orientam pela meritocracia, é natural que o discurso católico facilmente pode se impregnar da mesma concepção meritocrática. Ainda mais, porque muitos católicos estão estreitamente alinhados com o capitalismo moderno, o grande sustentador do mito da meritocracia. Tampouco faltam cristãos a se ufanar que seus grandes acúmulos de bens materiais são devidos à graça de Deus e aos seus méritos pessoais de dedicação, trabalho e persistência.

 

2.1 – Meritocracia em Jesus Cristo

 

Não consta nos evangelhos que Jesus Cristo tenha destacado a meritocracia. Basta lembrar que ele, ao contrário, insistia que o Pai ama a todos da mesma maneira, e que a “chuva cai sobre bons e maus”. Foi radical na cobrança a seus seguidores para que amassem a todas as pessoas, independentemente de condições sociais e de traços étnico-culturais. O Evangelho de Mateus destaca (20,26) que o maior deve ser aquele que serve. Servir não é a mesma coisa que mandar.

Na parábola do “bom samaritano”, Jesus deixou transparecer sua posição contra a meritoriedade porque o socorro e a atenção ao desventurado foi feito sem nenhum merecimento, mas, porque se tratava de um ser humano. Ainda que o pobre vivente merecesse ajuda, o problema, todavia está, não na meritocracia em si, mas na associação do poder relacionado à meritocracia.

Segundo o Papa Francisco a meritocracia torna-se fascinante porque está ligada à palavra “mérito”, “mas, como a instrumentaliza e a usa de modo ideológico ela a desvaloriza e a perverte. A meritocracia, para além da boa fé dos tantos que a invocam, está se tornando uma legitimação ética da desigualdade.”[7]

O Papa também ressalta outra consequência da meritocracia: “é a mudança da cultura da pobreza. O pobre é considerado um desmerecido e, portanto, culpado. E se a pobreza é culpa do pobre, os ricos são exonerados de fazer algo.”[8] A lógica do Evangelho é outra, pois na parábola do filho pródigo, o procedimento do irmão mais velho representa a meritocracia, porque despreza o irmão mais novo e deseja que permaneça no seu fracasso, uma vez que o mereceu. O pai, no entanto, não deseja bolotas para porcos a nenhum dos dois filhos.

No cristianismo primitivo ficou muito evidente a concepção de que o que realmente importava era a graça e não o merecimento. Até mesmo a salvação era entendida como graça. Algo conquistado por merecimentos estaria fora do âmbito da graça. Ao mesmo tempo, se um seguidor de Jesus Cristo não agisse na dimensão da graça, não seria capaz de manifestar algum sinal de misericórdia. Segundo Luigino Bruni:

“...o cristianismo, animado por uma radical mensagem de fraternidade universal, tratou de lutar contra este dado da natureza tentou desarticular as desigualdades que se encontravam na base das estruturas hierárquicas sagradas das sociedades antigas. Mesmo assim, as épocas de igualdade sempre foram breves e se limitaram a pequenas comunidades.”[9]

Por outro lado, a longa e ampla história europeia cristã não se caracterizou pela igualdade e se revelou repleta de guerras, de castas e de exercício do poder tirano.

 

2.2 – Casamento prolífero

 

O Calvinismo, ao romper com a Igreja Católica romana acabou apontando para uma nova ética do trabalho, pois o trabalho duro e disciplinado, ao lado de uma vida frugal (prudência e poupança), diante da predestinação da salvação, oferecia aos indivíduos inseguros de estarem sendo salvos por Deus, um lenitivo e uma segurança fundamental: o sucesso na vida econômica era assimilado como um sinal de bênção da parte de Deus. E se Deus abençoa alguém, está dando indícios de que não vai condená-lo.

Sem demora, a noção de acúmulo, de riquezas e de bem-estar financeiro, passou a ser supervalorizado porquanto representava mais bênção e mais garantia de salvação.  Este germe de meritocracia viria instaurar o sistema capitalista e a teologia da prosperidade, pois, entendia-se que Deus desejava esta bênção financeira às pessoas. E, uma vez que Deus abençoa as pessoas, está apontando o caminho seguro da redenção.

O movimento neopentecostal difundiu esta noção e a fez chegar ao senso-comum na simpática suposição de que riqueza material, significa bênção de Deus. Assim, cada vez mais, o cotidiano das pessoas passou a impregnar-se da justificativa do discurso meritocrático, a ponto de ocupar o centro no quadro político.

            A consolidação do fundamentalismo econômico neoliberal com o fundamentalismo religioso cristão foi um sucesso. Deste enlace, nasceu a nova configuração da religião atrelada ao dinheiro. E tornou-se muito habitual que ao longo de uma semana, algum momento de um dia seja para o louvor ao Senhor e o resto do dia, com os outros seis dias, para o atraente culto ao dinheiro, o deus Mamón, que gratifica o empenho e a dedicação com acesso a mais dinheiro.

A religião fundamentalista trás para a política a transcendência da origem do poder. A Sociedade necessita de uma autoridade que defina o que é o bem e o mal. Essa ortodoxia somente a religião pode impor. Sua hierarquia de princípios morais é intocável e suas certezas teológicas são indiscutíveis. Portadores da ira divina, sentem-se no direito de punir e ameaçar quem contesta sua ideologia. Sua causa é a causa de Deus. E Deus está acima de tudo e de todos.”[10]

Dali também decorre a indisposição para o diálogo porquanto o fundamentalista, ao sentir-se ungido por Deus, sabe que leva a doutrina de Deus para a sociedade através da mediação do controle do poder público. Desta forma, o mal, personificado nos opositores, é combatido de todas as formas, sem trégua.

A prole deste casamento fundamentalista é vasta com o aparato da teologia da prosperidade. E não são poucas as entidades religiosas que apontam a felicidade de Deus, concedida através de sua pregação, para este mundo: vida longa com boa saúde e muito dinheiro. Sob este fascínio, a pobreza já não inquieta mais, porque, afinal, está relacionada a pecado, a falta de fé, a pouco empenho e ao não aproveitamento dos talentos para chegar ao belo desfrute que torna a vida feliz.

Neste vislumbre de felicidade, todavia, a democracia sai toda corroída e o cristianismo fica descristianizado, porque já não considera os atos e as palavras de Jesus Cristo para os que querem segui-lo. Em razão disto, temos um Estado cristão capitalista e uma teologização da política.

Aos pobres, resta o conformismo dos que falam em seu nome e os convencem da sua culpa, pois, se degradaram e se revelaram fracos no empenho para a corrida da vitória, e, por isso, são merecedores de desprezo e desconsideração. Na verdade, ainda que tenham muito talento, energia e habilidade, são literalmente desviados do acesso à elevação hierárquica. A concepção do seu fracasso está diretamente relacionada à ascensão da meritocracia econômica.

Quando o sucesso econômico é visto como decente passa-se como natural a disputa obsessiva por dinheiro, e esta busca passa a constituir a finalidade última da vida. Yung MO SUNG salienta tal perspectiva, citando uma frase de George Soros:

“Os que conquistam o sucesso talvez não saibam o que fazer com o dinheiro, mas pelo menos tem a certeza de que as outras pessoas invejam o seu êxito. É possível que seja o suficiente para impulsioná-los para frente indefinidamente, apesar da falta de qualquer outra motivação.”[11]

Quando o consumo se torna a medida da vida bem sucedida e feliz, todos são motivados a correr obstinadamente nesta busca. Neste contexto,

“O discurso da ideologia da meritocracia e da cultura do contentamento levam as pessoas a não considerarem a pobreza e a exclusão social como um problema social, mas sim como uma realização de uma justiça transcendente. A do mercado transcendentalizado. Deste modo as vítimas são transformadas em culpadas. E a cultura do consumo faz as pessoas olharem fixamente, obsessivamente, no seu objeto de desejo de consumo e assim não as deixam nem enxergar que os pobres existem.”[12]

Em razão disto, as vítimas culpadas devem não aparecer, e quando eventualmente aparecem, que seja para confirmar que estão felizes com o consumo. Assim também muitas pessoas católicas ignoram que Jesus falou que tudo quanto fosse feito a um destes irmãos mais pequeninos, estaria sendo feito a ele. Nesta perspectiva, o Papa Francisco lembra na Encíclica Fratelli Tutti que:

A fraternidade não é resultado apenas de situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade. Embora sejam condições que a tornam possível, não bastam para que surja como resultado a fraternidade. Esta tem algo de positivo a oferecer à liberdade e à igualdade...Tampouco se alcança a igualdade definindo abstratamente que ‘todos os seres são iguais’ mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da fraternidade (n. 103 e 104).”[13]

Certamente não é interessante que grandes parcelas da humanidade sejam sacrificadas para que uma pequena parcela desfrute ilimitadamente as condições humanas.

  

Epílogo

 

A Igreja entrelaça seu campo de ação impregnada pela cultura, e esta apresenta peculiaridades não uniformes no meio da sociedade humana. Deste modo, a Igreja, em alguns ambientes, relega mais do que em outros, os fundamentos evangélicos pertinentes à meritocracia e os utiliza na ótica do poder, traindo noções fundamentais na sua tarefa de solidariedade com a pobreza.

Uma observação sobre o discurso religioso e posturas na lida cotidiana, explicitados em algumas grandes cidades brasileiras, no que diz respeito à meritocracia, permite delinear que o modo de agir na evangelização difere de outras cidades: numas ocorre maior coerência evangélica, e se faz leitura sociológica da pobreza como resultado de injustiça social. Em razão disso, torna-se visível uma contradição no modo como parte de leigos cristãos, bem como do clero, sejam avessos ao empenho contra a desigualdade social e se aferram no poder conquistado.

Não deixa de ser desconfortável situar-se entre opulência e grande riqueza de parte da sociedade, ao lado de uma pobreza escancarada, e, ao mesmo tempo, ignorada e ocultada diante dos grandes projetos sociais e do horizonte dos que exercem o poder, discursivamente declarado em favor de todos.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BARBOSA, Lívia. Meritocracia e sociedade brasileira. In: scielo.br/scielo.php?script=sci_artext&pid=S0034-75902014000100008 Acessado dia 07/10/2020.

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____________. La meritocracia y sus limites: de categoria teológica e dogma económico. In: www.edc.online.org

CHALHOUB, Sidney. Meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub (Entrevista ao Jornal da Unicamp). In: unicamo.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2017/06/07/meritocracia-e-um-mito-que-alimenta-desigualdades-diz-sidney-chalhoub Acessado dia 07/10/2020.

 D’EXPOSITO,Fabrizio (trad. Moisés Sbardelotto).Contra o totem da meritocracia – a grande lição do papa Bergolio. Em discurso feito na Empresa Ilva de Gênova. In: ihu-unisinos.br/eventos/186-noticias/noticias-2017/568165-contra-o-totem-da-meritocracia-a-grande-lição do-papa-bergolio > Acess. 10/10/2020.

FREITAS, Pedro Vinícius Paliares. A gênese da narrativa meritocrática e sua ascensão no Brasil. In: médium.com/revista-subjetiva/a-gênese-da-narrativa-meritocrática-e-sua-ascensão-no-brasil-2d7408fb89f3 Acessado 10/10/2020.

GASDA, Élio Estanislau. Estado “cristão” e Neoliberalismo: não podeis servir a dois senhores (Mt 6,24). In: C:/Users/joaoi/Downloads/1296-5514-3PB.pdf Acessado dia 08/10/2020.

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Papa Francisco .Encíclica Fratelli Tutti In: www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti. Html Acessado 12/10/2020.

PIMENTA, Paulo. Meritocracia e Cristianismo. In: verbodavida.org.br/mensagens-gerais/meritocracia-e-cristianismo Acessado dia 09/10/2020.

Prazer estético e controle emocional, ou causa do desejo de status: o discurso da meritocracia social e o consumidor hedonista. In: www.entremeios.inf.br> Acessado dia 09/10/2020.

RENDUELES, César. A meritocracia é um sistema de legitimação de privilégios herdados. In: ihu.unisinos.br/603531-a-meritocra ia-e-um-sistema-de-legitimacao-de-privilégios-herdados (Entrevista). Acessada dia 07/10/2020.

VELIQ, Fabrício. Graça e meritocracia: não se pode servir a dois senhores. In: domtotal.com/noticia/1423140/2020/02/graça-e-meritocracia-não-se-pode-sevir-a-dois-senhores Acessado dia 08/09/2020.

ZAMAGNI, Stefano. (Trad. Moisés Sbardelotto). Meritocracia, não. Meritoriedade, sim. In: paroquiasaude.com.br/meritocracia-nao-meritoriedade-sim Acessado dia 08/10/2020.

 



[1]  Stefano Zamagni (trad. Moisés Sbardelotto). Meritocracia, não. Meritoriedade, sim. In: paroquiasaude.com.br/meritocracia-não-meritoriedade-sim/ Acessado 08/10/2020.

[2]  Em entrevista sobre A meritocracia é um sistema de legitimação de privilégios herdados. In: ihu-.unisinos.br/603531-a-meritocracia-e-um-sistema-de-legitimação-de-privilégios-herdados-enterevista-com-cesar-renduelles Acessado 07/10/2020.

[3]  Sidney Chalhoub, em entrevista ao Jornal da UNICAMP. In: unicamp.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2017/06/07/meritocracia-e-um-mito-que-alimenta-desigualdades Acessado 07/10/2020.

[4] Daniel Markovitz. Farsa da meritocracia cria ressentimento explorado por populistas como Trump e Bolsonaro. In: bbc.com/portuguese/geral-54373123 Acessado 07/10/2020.

[5]  Idem, ibidem.

[6]  Lívia Barbosa. Meritocracia e sociedade brasileira. In: scielo.br/scielo.php?script=sci_artext&pid=S0034-75902014000100008 Acessado 07/10/2020.

[7]  Em discurso feito na Empresa Ilva de Gênova. In: ihu-unisinos.br/eventos/186-noticias/noticias-2017/568165-contra-o-totem-da-meritocracia-a-grande-lição do-papa-bergolio >Reportagem de Fabrizio d’Esposito (trad. Moisés Sbardelotto) Acess. 10/10/2020.

[8]  Idem, ibidem.

[9]  Luigino Bruni. Desigualdad y meritocracia. In: ciudadnueva.com.ar/desigualdade-y-meritocracia/ Acesado 09/10/2020.

[10]  Élio Estanislau Gasda. Estado ‘cristão” e Neoliberalismo: não podeis servir a dois senhores (Mt 6, 24). In: C:/Users/joaoi/Downloads/1296-5514-3PB.pdf Acessado 09/10/2020.

[11]  Frase citada do livro A crise do capitalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 163, por MO SUNG YUNG. In:

[12]  MO SUNG, Yung. A crise do cristianismo e a crise do mundo. In:servicioskoinonia.org/relat/247p.htm Acessado 10/10/2020

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O CLERICALISMO DIANTE DO PAPA FRANCISCO

 

Sinopse

                        O clericalismo católico sofreu longo período de combate por parte de pensadores modernos e iluministas, devido à sua ingerência nas questões dos governos civis. A crítica e a auto-critica, bem como orientações de documentos eclesiásticos, tornaram esta interferência mais branda. Nos últimos anos, porém, acompanhamos a volta de uma crítica severa e radical ao clericalismo, e, a surpresa é a de que esta crítica não mais procede de governantes e filósofos, mas do Papa Francisco, e, sob a alegação de que deturpa Jesus Cristo e Evangelho, porquanto se aferra em questões fundamentalistas e integristas. Da parte do Papa, trata-se de postura profética que remete aos fundamentos do Evangelho de Jesus Cristo, e não às tradições e deduções teológicas posteriores.

Palavras-chave: sacerdote – seminário -  presbítero – evangelho – poder – serviço.

 

                              1 – Clericalismo – tema antigo

 

            Durante os últimos séculos ocorreu acirrado combate ao clericalismo da Igreja a partir uma procedência conhecida: eram políticos e governantes que se sentiam ameaçados ou diminuídos mediante a excessiva ingerência do clero nas questões civis e seculares. O iluminismo foi incisivo em refutar esta intervenção do clero católico. Este, por sua vez, considerando seu longo histórico, como estamento privilegiado na sociedade, bem estruturado, estava acostumado a deter autoridade e tomar decisões para assegurar a pureza da doutrina e organizar a vida da Igreja, enquanto a grande massa dos fiéis leigos obedecia, escutava e aprendia.

            Aos poucos esta intervenção passou a ser duramente criticada, mas, a sustentação teológica articulada na Idade Média, justificava o direito do clero interferir na vida das sociedades civis, porque se considerava de origem divina para fins superiores, conhecida pela clássica conceituação de “sociedade perfeita” e “cristandade”. Seria, por conseguinte, sua missão divina interferir em todos os âmbitos da vida social.

            Atualmente a ingerência do clericalismo para além dos quadros da Igreja é mais discreta, restrita e já não é merecedora das tradicionais críticas. No entanto, surpreende que duras críticas procedam de um outro foco, não o dos governantes civis, mas de alguém que é o Papa Francisco, da Igreja Católica.  Ele vem dando nova conotação semântica ao termo “clericalismo”, por se constituir numa ingerência no interior do âmbito da Igreja Católica, e que segundo dúzias de referências ao clericalismo revelam, trata-se de uma enorme estrutura pouco condizente com o que Jesus Cristo fez e disse, a tal ponto que a comunidade dos crentes em Jesus Cristo sente que o clero impõe ideias e detém amplos poderes ao passo que o laicato fica submetido à condição passiva diante dos seus mandos.

            Emerge um certo senso de que da parte do clero vem ocorrendo contradição entre o que fala e o que vive. As seguidas declarações do Papa alertam para a contenção deste excesso clerical que transforma leigos em clientes do clero, pois diz tudo o que pode ser feito, seja no campo da teologia, da liturgia, das cerimônias de eventos, das normas e, até no modo de conduzir o cotidiano da vida.

            Segundo José Manuel Llorente, no artigo El clericalismo, uma herencia nefasta para la Iglesia,[1] as denúncias recentes contra a clericalização como o mal mais profundamente prejudicial à ação da Igreja no mundo, se deve às suas reais possibilidades de regeneração da razão de ser da Igreja. Trata-se de um problema que divide a Igreja, deixando-a com muitas feições, como ausência de voz do povo, um clero classista e autoritário, que sequestra e marginaliza a mulher. Com isso, some a primazia do povo leigo.

             Como tantas outras palavras que, paulatinamente, são modificadas na sua significação semântica, também “clericalismo”, por longo tempo usada para significar a interferência do clero nas questões políticas e de organização temporal, desfruta atualmente de uma ressignificação. Refere-se ao fenômeno intra-eclesial, que, segundo o Papa Francisco, constitui uma má vivência eclesiológica do que ficou estabelecido pelo Concílio Vaticano II, e que anula a personalidade dos cristãos, além de desvalorizar a graça do batismo. O “clericalismo” atual trata o laicato como mandatário e limita suas iniciativas necessárias à Boa Nova do Evangelho. “O clericalismo esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo povo de Deus (cf. LG 9-14) e não só a poucos eleitos e iluminados.”[2]

            Em visita à paróquia romana de Santo Tomás (em 16/02/2014), o Papa Francisco conceituou o clericalismo: “constitui uma maneira desviada de conceber o clero, uma deferência excessiva a uma tendência a conferir-lhe superioridade moral.”[3]

            O clericalismo de alguns sacerdotes afasta o povo da Igreja. Segundo o Papa Francisco, de forma similar ao procedimento dos anciãos e sumos sacerdotes do templo que "tinha autoridade jurídica, moral e religiosa, ‘decidiam tudo’ chegando a um estado de prepotência e tirania.” Ao refazerem inúmeras vezes uma Lei chegaram a mais de 500 mandamentos que passaram a regular tudo. O conjunto destas leis sem memória parou nas próprias convicções dos que as elaboraram porque se auto-interpretaram como irrepreensíveis.[4] A vítima deste processo acabou sendo o povo pobre e humilde que ficou descartado. A Lei, complexificada e expandida, deixou de ser Lei para o Senhor, e virou apenas lei para aqueles mandantes soberbos, presunçosos e orgulhosos.  O clericalismo atual constituiria a edição atual daquela gente, e, a vítima o mesmo povo pobre e humilde.[5]

            Esta conotação dada pelo Papa Francisco ao clericalismo é ratificada pelo teólogo espanhol José M. Castilho, que de acordo com o Dicionário RAE, define “clero” como uma palavra que se refere à classe sacerdotal, enquanto que o “clericalismo” é a excessiva intervenção do clero na Igreja.[6]

            O referido teólogo espanhol até estranha a tão pouca preocupação em torno dos silêncios da Igreja, silêncios do clero e daqueles que dizem que somos crentes em Cristo:

            “A começar pelo silêncio de tantos e tantos escândalos clericais de ‘homens de Igreja’ que abusaram de crianças e adolescentes. Abusos criminosos que as autoridades eclesiásticas ocultaram. Porque era uma determinação do Vaticano, para que o prestígio da Igreja não fosse prejudicado. Teve que vir o Papa Francisco, que ‘tirou o manto’ para que se saiba tudo e se faça justiça. O mais sofrido e preocupante é o que este Papa precisa suportar, pela resistência do clericalismo fanático, que não suporta a transparência que desvelou a falta de vergonha de não poucos setores do mundo clerical.”[7]

 

2 – Raízes do clericalismo católico

 

            Segundo Lisandra Chaves Leite, a raiz do clericalismo que vem se manifestando na história da Igreja, constitui uma ferida do pecado humano propenso ao egoísmo. Por isso,

            “De um lado, temos uma influência histórica que se clareou no tempo, especialmente no Concílio Vaticano II, e, por outro lado, um assunto de caráter espiritual e moral que não foi combatido suficientemente porquanto o clericalismo é claramente antagônico a Cristo e ao Evangelho.”[8]

            Basta lembrar que no Evangelho, ao se tratar da morte de Jesus Cristo, afirma-se que “o véu do templo se rasgou de alto a baixo...” para dar a entender a separação entre mundo e santuário, pois para Jesus Cristo o espaço sagrado era o coração humano.

            No primeiro século da Igreja a função sacerdotal não constituía uma função independente, pois o específico do cristianismo emergente era o de saída da religião, tal como vinha se manifestando a religião judaica.

 Para o Papa Francisco, o fato de Jesus Cristo ter revelado atenção particular às multidões – que o buscavam e o admiravam, não como massa anônima, mas como sujeito que se entrega a ele sem condições – ocorreu um contraste com a mesquinhez dos discípulos. A atitude deles a respeito da multidão que procurava Jesus Cristo, beirou a crueldade quando sugeriram que o Senhor os mandasse embora para buscar algo de comer. Segundo o Papa, ali deu-se início ao clericalismo, pois, os discípulos, ao pretenderem assegurar comida e a própria comodidade, revelaram desinteresse pela multidão...[9]

Já segundo Loïc de Kerimel, o clericalismo surgiu do sistema clerical do segundo e terceiro século da Igreja Católica. Embora tenha sido uma organização pensada para o melhor, afetou os leigos a ponto de torna-los passivos, de formas que suas alavancas de fé ficaram em outras mãos.[10]

O teólogo José Maria Castilho sustenta que não existe razão sólida de que Jesus tenha delegado somente homens solteiros para celebrarem a Eucaristia. Basta lembrar que 10 apóstolos estavam casados (cf. 1Cor 9,4-5; 1Cor 7,3. 4. 5. 10-11 e 12-14). A primeira Carta a Timóteo (3,2-5) e a Tito (1,6) mostram que quando alguém pretendia ser dirigente de Igreja, deveria ser casado e ser bom educador de seus filhos. Por outro lado, muitas mulheres atuavam ativamente no movimento missionário, e eram chamadas de apóstolas, diáconas, protetoras ou dirigentes.[11]

No terceiro século cristão foi se generalizando que que o sacerdote é “clérigo”, com a suposição de constituir uma categoria acima dos leigos. A partir desta influência a Igreja passou a ser dividida: os clérigos eram distintos e superiores aos leigos. Ao mesmo tempo, o clero passou a monopolizar as decisões, a administração dos rituais sagrados e elevou a condição clerical ao âmbito de “homens consagrados”. Tal proclamação permitiu que o clérigo alcançasse a categoria senhorial. Este abuso se alastrou rapidamente, pois, já antes de Constantino, houve combate aos abusos de pompa e vaidade de alguns ministros da Igreja.

A partir do século quarto, foi introduzido o puritanismo na Igreja. Sua origem se reportava aos séculos quatro e cinco anteriores a Jesus Cristo, quando Pitágoras e Empédocles absorveram ideais dos xamãs do norte da Europa, e, muitos acabaram sendo absorvidas pelos cristãos dos primeiros séculos, dentre as quais, a do celibato, que não teve origem bíblica e tampouco os evangelhos sustentam marginalização da mulher.

Aos poucos a Cúria Romana sentiu o peso do pensamento do clero conservador (cardeais, bispos e monsenhores), que priorizou sua própria organização mais do que as carências e necessidades das pessoas desamparadas no acompanhamento da sua fé, embora as razões da Igreja deveriam depender da fé em Jesus Cristo e não de setores do clero.

Nos primeiros séculos cada comunidade escolhia seus ministros e também os destituía quando não correspondiam à sua missão. Loïc de Kerimel salienta que no ano de 245, o bispo de Cartago, ao ter problema com três dioceses espanholas (León, Astorga e Mérida) cujos bispos não defendiam a fé cristã diante da perseguição do império romano contra cristãos, sugeriu às respectivas comunidades destituir os três bispos dos seus cargos. Reflete que os interesses do povo eram antepostos aos do clero.[12]

A partir da Reforma Protestante, o Concílio de Trento acabou realçando ainda mais a diferença de clérigo para leigo, pois os clérigos passam a ser administradores e dispensadores dos sacramentos. Ficou notável a expressão “Alter Christus” (outro Cristo), do padre separado do mundo a fim de dedicar-se às coisas de Deus. Com isso, acabou ficando relegada a dimensão profética e servidora do sacramento da Ordem. A reação de Trento à reforma Protestante acabou focando demais a perspectiva sacramental e deixou para um segundo plano a eclesiologia do sacramento da Ordem.

Na Idade Média desenvolveu-se paulatinamente um conceito teológico de que a Igreja, por ser de origem divina era superior a qualquer outra organização humana e que estava incumbida de conduzir as organizações governamentais e civis das sociedades. Nasceu dali a conhecida noção de “Sociedade perfeita e Cristandade”. Poder espiritual tinha a primazia da organização humana.

Sob o status de sacralidade que afastou o padre da comunidade, a teologia do sacramento da Ordem enfatizou o caráter sacerdotal numa sagrada potestade. Com isso, evidentemente, o serviço à comunidade eclesial acabou recebendo atenção secundária. Com esta guinada, o presbitério passou a ser identificado como “sacerdócio”. Aos poucos foi ficando mais segregado da comunidade e do mundo e fruiu a condição de estar elevado acima dos fiéis:

“Não importa que seja um mau sacerdote, que prega ou não, que serve a comunidade ou não, ou que prejudique a comunidade em contra-testemunho, que tenha fé ou não, que seja o não sacramento de Cristo, o essencial é o poder sagrado que possui; tudo o que contradiz os dados do Novo Testamento que fala em termos de serviço e não de poder (Mt 18,1-5; Mc10,45; 1Tes 2,8; Fl 1,8)”[13]

Assim, Daly resume o clericalismo como derivação de quatro aspectos: a) Da natureza caída da condição humana, inclinada a pecados capitais (orgulho, ira, luxúria, inveja, gula, avareza e preguiça. O clericalismo estaria especialmente enraizado no pecado do orgulho, com queda para luxúria, inveja e avareza. Assim, o sacerdócio sempre vai incorporar membros ambiciosos e a vida clerical é vista como carreira poderosa e não como chamado a serviço. O sacerdócio tampouco se livra de pessoas avarentas que visam riquezas e recursos da Igreja para o seu prazer, para o luxo e o enriquecimento. Nesta categoria também se revelam pessoas lascivas que usam seu poder e autoridade para gratificações sexuais. Como em outros âmbitos de grupos sociais, no clero igualmente aparecem pessoas que não suportam sucesso alheio, e competem por cargos, nomeações e alcance de paróquias ricas; b) Das dinâmicas institucionais, modos pelos quais uma instituição funciona. Facilmente os mais vistos pelo chefe são promovidos para controlar finanças, decisões, planos e receber promoções. Isto estimula os “carreiristas”, puxa-sacos” e “lambe-botas” de autoridades. Estas sinecuras que elitizam, permitem que padres sem nenhuma experiência pastoral venham a ser nomeados bispos; c) a tradição corrompida; d) e a formação no seminário.

                                              

3 – Falas do Papa Francisco sobre Clericalismo

 

            As seguidas menções vinculadas ao clericalismo e os insistentes alertas contra seus tentáculos na Igreja, revela algo realmente grave para a atual organização da Igreja, segundo os ditames de Jesus Cristo e do seu Evangelho.

            No encontro com a coordenação do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), no Rio de Janeiro, o Papa foi incisivo no seu discurso para alertar a Igreja da América Latina a evitar as tentações da ideologização do Evangelho, do funcionalismo e do clericalismo. Há nele uma tendência a interpretar o Evangelho, fora do Evangelho e da Igreja. Quanto ao funcionalismo, este estaria paralisando a ação da Igreja e transformando-a numa ONG similar a empresas, que buscam resultado, eficácia e números. Quanto à clericalização:

“Reduz a experiência eclesial à operação do clero que leva os leigos a evitar compromissos... os ‘católicos iluministas’ são os maiores clericalistas que existem. Sempre tão críticos, tão especializados, atirando a culpa nos bispos, sem tomar lugar na comunhão dos batizados”.[14]

O historiador Jorge Traslosheros Herrnandes, influente voz católica do México, diz que os leigos também tem sua responsabilidade porque sobrecarregam seus sacerdotes.[15]

No encontro com os bispos chilenos o Papa enfatizou que os leigos não devem ser nem servos e nem empregados e nem, tampouco, repetir como papagaios o que lhes é dito pelo clero:

O clericalismo, longe de dar impulso às diferentes contribuições e propostas, apaga, pouco a pouco o fogo profético do qual a Igreja inteira é chamada a dar testemunho no coração de seus povos. O clericalismo esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo povo de Deus e não só a poucos eleitos e iluminados.”[16]

Lisandra Chaves Leiva observa que a referência do Papa Francisco ao tema do clericalismo é uma constante e destaca a afirmação do Papa: “O clericalismo é, a meu juízo, o pior mal que hoje pode existir na Igreja.”[17] É essencialmente hipócrita:

[18]“O clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja, porque pretende que o pastor esteja sempre na frente, estabelece um caminho e castiga com excomunhão a quem se afasta da grei. Em síntese: é exatamente o oposto do que Jesus fez. O clericalismo condena, separa, frustra, deprecia o povo de Deus.”[19]

Naquela ocasião o Papa também salientou que o clericalismo confunde a figura do pároco, pois não se consegue saber se é um cura, um sacerdote, ou patrão de empresa. Para salientar o papel do ministério ordenado, o Papa lembra que o Concílio Vaticano II voltou à raiz do ministério ordenado recuperando a noção evangélica do sacerdócio de Cristo (que acolhe pecadores e faz refeições com eles). Os ministros ordenados da Igreja ao participarem da dimensão pastoral do sacerdócio de Cristo revelam-se homens pecadores como outros e necessitam da misericórdia sacerdotal de Cristo, porque a questão essencial para eles deve ser a da aproximação com o sacerdócio de Cristo.

O clericalismo é um mal grave que afeta a Igreja da atualidade porque suas raízes procedem da sacralização do sacerdote, que por sua vez, gestou a clericalização tão deturpadora da noção de que sacerdote deve constituir-se em servidor no modelo de Cristo.

“Apesar dos documentos do Concílio e dos documentos magisteriais sobre o ministério da Ordem, o clericalismo persiste nos últimos anos e constitui causa da maior crise da Igreja Católica em relação com abusos de poder.”[20]

Talvez por esta razão, o Papa insiste que urge formar ministros que sejam capazes de interagir com proximidade, diálogo e percorrendo o caminho com os demais cristãos. Ao insistir que o clericalismo constitui uma peste na Igreja, o Papa declarou aos sacerdotes: “Fujam do clericalismo, porque o clericalismo afasta as pessoas. É uma peste na Igreja.”[21]

No encontro com delegações de jesuítas de todo mundo, o Papa Francisco declarou:

“O clericalismo é rico. E se não é rico de dinheiro, o é de soberba. Mas é rico, tem um apego às posses. Ele não se deixa ser criado pela mãe pobreza, não deixa que protejam o muro da pobreza. O clericalismo é uma das piores formas de riqueza pelas quais a Igreja é acometida, ao menos em alguns lugares da Igreja. E mesmo nas experiências mais cotidianas.”[22]

Ao se dirigir para leigos, o Papa Francisco lhes sugeriu evitar cinco tentações: clericalismo, competitividade, carreirismo, rigidez e negatividade. No que diz a respeito do clericalismo insistiu:

“Peço-vos, por favor, que eviteis a todo custo, as ‘tentações‘ do leigo dentro da Igreja que podem ser: o clericalismo, que é uma praga e vos encerra na sacristia, como também a competitividade e o carreirismo eclesial, a rigidez e a negatividade... que asfixiam o específico do vosso chamamento à santidade no mundo atual.”[23]

A um grupo de novos bispos o Papa pediu encarecidamente:

“Queridos irmãos, fujam do clericalismo. Dizer não aos abusos, sejam de poder, de consciência, ou de qualquer outro tipo, significa dizer ‘não’ com força a qualquer forma de clericalismo.[24]

E prosseguiu fazendo um alerta para que os bispos resistissem à tentação de se comportarem como “príncipes” ou “patronos” em suas dioceses: insistiu com firmeza: “sejam homens pobres em bens e ricos em relações, nunca duros, nem buscando a confrontação, mas afáveis, pacientes, simples, abertos.”[25]

Andrea Lebra fez uma síntese de sete ponderações que realçam as principais repercussões causadas pelo clericalismo, de acordo com as falas do Papa Francisco:

1 – É uma forma anormal de entender a autoridade da Igreja, uma forma não evangélica de entender o papel do presbítero. Esta concepção perverte o ministério, pois clericalismo significa busca pessoal que anula a participação do Povo de Deus. O clericalismo se atribui um chamado elitista como um privilégio especial que acaba transformando seu serviço na produção de servilismo, pois troca unidade por uniformidade e discorda de toda oposição e transforma formação em doutrinação. Trata-se de uma perversão que cria laços paternalistas, possessivos e manipuladores das demais vocações cristãs. Tende a cultivar atitudes altivas, arrogantes e autoritárias que anulam toda a efervescência de sinais do Reino de Deus no meio da massa. Enfim, o clericalismo condena, separa, chicoteia e despreza o povo de Deus;

2 –É uma perversão que renega a promessa gratuita de Deus, pois o clericalismo esquece que Deus se manifestou como dom e não como propriedade nossa que reduz Deus à ideologia moralista, cheia de preceitos e de casuísticas ridículas. O grande pecado do clericalismo é o de apropriar-se de Deus para si e colocá-lo à disposição do povo de forma sectária, rígida e clerical;

3 – É como um tango, sempre dançado a dois, pois o clericalismo não é apenas dos clérigos, mas deve constituir-se em atitude que toca a todos nós. Parte do clero gosta de clericalizar os leigos, e, muitos deles, de joelhos, pedem para serem clericalizados porque tal procedimento os isenta de responsabilidade. A combinação de um desejo alimentado pelo clero torna o laicato um clericalismo passivo. Somente existe clericalismo quando leigos aceitam ser clericalizados;

4 – O clericalismo não reconhece o sacerdócio comum dos batizados, pois mantém os leigos à margem da decisão, ou, então, os sufoca no controle da santidade, uma vez que transforma os leigos em papagaios que reproduzem o que lhes dizem. Isso prejudica todo dinamismo missionário e até caricaturiza a sua missão. A missão deve ser de toda a Igreja e não mera atividade do padre ou do bispo, porquanto anula a personalidade dos cristãos, além de diminuir e subestimar a graça batismal. Rouba a noção de que o laicato é vocação e leva os leigos a pedir tudo ao padre.

5 – O clericalismo mortifica o discipulado missionário, porquanto impede que os leigos se tornem maduros e livres. Por isso, pensar em “Igreja em saída” significa “leigos em saída”. A igreja precisa de leigos com “sabor de experiência de vida”;

6 – O clericalismo alimenta a autorreferencialidade, porque vive da autorreferencialidade que empobrece o encontro com o Senhor e deixa de inflamar o coração das pessoas. A autorreferencialidade conduz a uma espécie de narcisismo que aponta para um clericalismo sofisticado: bispos não podem ser solteirões clericais, com muitos adornos, mundanidades e dinheiro, um clericalismo de mercado. Clericalismo significa arrogância e tirania com o povo, de forma muito similar ao que os sumos sacerdotes efetuaram com a Lei, transformada de forma intelectualista, sofisticada e casuística, e que tirou a liberdade de fé dos fiéis. Assim, o clericalismo domina espaços, sem gerar processos e vive do vício de “escalar e tagarelar” do carreirismo, familismo, mundanidade e fofoca.

7 – O clericalismo extingue a profecia, porque vai contra o fogo profético da Igreja, que é chamada a animar suas comunidades e a encorajá-las na missão da Igreja. Falta de profetismo produz ausência da vida de Deus, uma vez que o clericalismo afasta as pessoas da Igreja, ou as infantiliza, tornando-as meras servas clericalizadas, agindo em função dos clericalistas.[26]

 

4 – Predisposição seminarística para o clericalismo

 

A formação seminarística certamente tem muito a ver com o clericalismo. Em certos ambientes explora-se a idealização e os pretendentes ao presbiterado facilmente se encantam com modelos burgueses que lhes são apontados.

O longo período de formação seminarística força os aspirantes à vida presbiteral a lidar com frustrações e as contrapartidas institucionais de pequenos privilégios, como moradia, comida, roupa lavada, formação acadêmica, sem passar pela dureza de se sentir responsável para conseguir estas facilidades. Se os seminaristas, de um lado, renunciam a liberdade, autonomia, aceitam a tutela por longo tempo. Ao aceitar inúmeras renúncias necessárias ao processo, acabam esperando da Igreja tudo quanto possa suprir necessidades e desejos. Assim, seguem estabelecendo progressivamente como normal um estilo de vida com algumas compensações auferidas pelo status e uma série de privilégios e acessórios, que, aos poucos, os induzem à condição de mandar. Basta ouvi-los em conversas no estágio anterior à ordenação presbiteral: são categóricos em tudo quanto falam e tem soluções prontas para tudo.

Em muitos ambientes de seminário o exercício do poder ainda é o da sociedade de “cristandade e sociedade perfeita” da Idade Média, e, os diretores espirituais fornecem fortes doses de argumentação espiritual, como disponibilidade, amor aos pobres, dedicação aos leigos, imitação de Cristo e de santos, mas, tudo isso fica restrito apenas ao nível de consciência e a prática cotidiana passa a ser definida pelo exercício do poder. Mesmo não sendo rígidos como o poder militar, o poder os seduz pela pressão e sugestão. De acordo com Sílvio José Benelli, “a educação teológica que os jovens recebem nos seminários tem grandes possibilidades de ser produtora do clericalismo.”[27]

O ambiente de formadores, e mesmo o acompanhamento em paróquias os induz a procurar aprovação. Emerge, então, um anseio por trabalho importante ou que impressione as pessoas. Ao mesmo tempo, abre-se um horizonte para a busca de um status social, junto com a condição de desfrutar de todo conforto para merecer especial consideração dos padres.

Benelli se reportou a Alberto Antoniazzi e ao padre Edênio Vale que configuraram uma espécie de tipologia do clero brasileiro. Alguns modelos tendem a influenciar mais os jovens candidatos ao presbitério. Eles agruparam quatro tipos de padres:

a)     Padres pastores – geralmente ativistas pastorais, devido às muitas tarefas que lhe são cobradas pela comunidade;

b)     Padres “light” que dividem sua atividade ministerial com programas de lida particular, geralmente vistos como “bons padres” mas, que também vivem conflitos entre o desafio de assumir a radicalidade da missão e a retração para preservar-se de cobranças;

c)      Padres midiáticos ou carismáticos (popstar), geralmente os que mais encantam os seminaristas, e, por isso, passam a ser imitados, movidos pela elevação do culto televisivo para se tornarem espetacularizantes. Tendem a afirmar o sagrado pela dimensão estética, emocional e terapêutica; e, para tanto, contribui a bricolagem chamativa de batina e exibição de símbolos tradicionais que já foram muito contestadas há algumas décadas atrás;

d)     Padres especialistas que priorizam a competência profissional, com vistas à valorização da sua dimensão pessoal.

A longa herança monárquica deixou sequelas na formação e nesta rede de “bons e velhos camaradas” foi facilitado o horrendo abuso sexual bem como o flagrante encobrimento para preservar aquela instituição. Assim, muitos carismas do Espírito Santo acabaram sufocados. Tudo isso nos aponta um novo momento para achar modelo mais adequado de governança na Igreja.

Uma pesquisa efetuada sobre a subjetivação em seminários revelou algumas modificações na maneira de sentir, pensar, agir em vista ao ingresso na condição clerical, levou Márcio José de Araújo Costa a defender uma dissertação na UERJ em 2008. Num ambiente de 11º seminaristas e cinco padres constatou-se um predomínio da formação homogeneizadora de tipo romana que leva os clérigos ali formados a se fechar numa identidade sacerdotal claramente encapsulada na obediência aos centros de poder eclesiais: a Cúria romana, a Mitra diocesana e a paróquia, segundo um modelo sacerdotal institucionalizado, “no qual as dimensões litúrgica e disciplinar são ressaltadas em detrimento das dimensões místico-políticas”[28]

Ali também foi observada uma espécie de “caça às bruxas” com perseguição sistemática à Teologia da Libertação. Por outro lado, a constante vigilância da pureza doutrinal, litúrgica, organizacional e teológica indicou uma pressão para reprimir a dimensão místico-profética. Percebeu-se que o desejo clerical oscilava entre dois polos: a) o sacerdotal-romano-paranóico; b) o profético-libertador-esquizo. Os afinados com o primeiro polo mostraram tendência de fechamento à diferença e uma queda para alcançar imortalidade diante das intempéries da vida, através de práticas hierárquicas. Os do outro polo, buscavam singularização, nascida do seguimento de Jesus e consequente compromisso com causas sociais dentro e fora da Igreja. Segundo Costa, o seminário pesquisado estava produzindo:

“Hegemonicamente um desejo sacerdotal romano-paranóico, forjando funcionários do poder da Igreja, burocratas do aparelho de Estado romano, aplicadores de suas rubricas litúrgicas e normas doutrinais e morais e não profetas do Reino de Deus...”[29]

Esta subjetivação clerical não indica proximidade com pobres e sofredores, mas um perfil mais distanciado de exortação e ensino e com moralização de condutas. Também o modelo de padre carismático estaria pertencendo de pleno direito a este modelo sacerdotal romano-paranóico.[30]Por constituir instituição tridentina, o seminário não estaria produzindo características básicas do espírito moderno: o da crítica à tradição a partir do indivíduo.[31]

Estudos do CERIS sobre o catolicismo brasileiro também apontam que

“Na última década, a conjuntura mundial neoliberal, o papado de João Paulo II e o peso histórico da Igreja como instituição hierárquica, autoritária e clerical, deram fôlego aos bispos conservadores, que tem trabalhado junto à burocracia romana para reverter as novidades nos seminários.”[32]

Depreende-se, por conseguinte, que seminários podem constituir importante fator para alargar a perspectiva do clericalismo, tão largamente difundida na Igreja. Por isso sempre é conveniente lembrar que Jesus Cristo, não constituiu sacerdotes, mas apóstolos para anunciar a boa notícia do evangelho.

“Entre sacerdote e apóstolo há uma clara diferença. As mulheres são as primeiras a anunciar a ressurreição... Jesus não concedeu o sacerdócio nem às mulheres e nem aos homens: ele nunca usou o termo ‘sacerdote’, mas constituiu apóstolos, ou seja, enviados a anunciar a boa notícia.”[33]

O Concílio Vaticano II, ao perceber que o sacerdote não era pertinente ao cristianismo, praticamente eliminou o termo “sacerdote” e priorizou o termo “presbítero”. Mesmo assim, um refluxo posterior reintroduziu o termo “sacerdote”, auferindo-lhe uma dimensão sacralizante.

 

 

Epílogo

 

A abordagem relativa ao clericalismo e seu inusitado combate por parte do Papa Francisco, revela distintas perspectivas de cosmovisão e implica numa questão fundamental vinculada a Jesus Cristo e ao Evangelho. O longo processo de estratificação do clericalismo parece mesmo ter tomado distância dos gestos e das falas de Jesus Cristo. Se o Papa faz tantas referências ao clericalismo de forma não lisonjeira, certamente, mais do que uma questão pessoal de obstinação contra o clericalismo, constitui coerência a Jesus Cristo e ao Evangelho. Sua perspectiva visionária para nosso tempo não decorre de vaidade pessoal e de auto-afirmação, mas do retorno às origens para que a razão de ser do clero seja eminentemente de serviço e não precipuamente exercício do poder de controle das pessoas.

A firmeza e a coerência com que o Papa Francisco alerta diferentes grupos e representações da Igreja também permite entender que os duros revides que recebe por parte do clero, refletem sua tendência para o integrismo fundamentalista, este que lhes assegura um patamar privilegiado diante dos demais cristãos.

                                         

 

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[1]  In:vidanuevadigital.com/pliego/el-clericalismo-uma-herencia-nefasta-para-la-iglesia

[2] No artigo de Álvaro da JUANA. A dura crítica do Papa Francisco aos sacerdotes ‘seduzidos’ pelo clericalismo.

[3] Aletéia, 31 de agosto de 2018.

[4] Em celebração na Casa de Marta, no dia 13/123/2016.

[5]  Idem, ibidem.

[6] CASTILHO, José. M. Este Papa está suportando a resistência do clericalismo fanático que não suporta a transparência. In: observatoriodaevangelização.wordpress.com/tag/jose/1/maria/Castilho acess. 29/09/2020.

[7] Idem, ibidem.

[8]  No artigo El clericalismo: antagônico a Cristo y al Evangélio.

[9] Papa em missa Crismal: El clericalismo nace de auerer la comodidade própria. In: nuestra-voz.org/papa-em-misa-crismal-el-clericalismo-nace-de-querer-asegurar-la-comodidad-propria.

[10] Ihu.unisinos.br/78-noticias/600143-as-raízes-milenares-do-clericalismo.

[11] Idem, José Maria Castilho, op. cit.

[12] Loïc de Kerimel, op. cit.

[13] Segundo Lisandra Chaves Leiva, no artigo El clericalismo: antagónico a Cristo y al Evangelio.

[14]  Papa Francisco. Clericalismo, a pior tentação dos cristãos. In: pt.aleteia.org/2013/08/19/clericalismo-a-pior-tentção-dos-cristãos.

[15] Idem, ibidem

[16] Papa Francisco. Não ao clericalismo e a mundos ideais que não tocam a vida de ninguém. In: pom.org,br/papa-não-ao-clericalismo-e-a-mundos-ideais-que-não tocam-a-vida-de-ninguém .

[17]  El País, enero 2017.

[19] Idem.

[20] Cf. Lisandra Chaves Leiva, op. cit.

[21]  In: ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/567623-o-clericalismo-e-uma-peste-na-igreja-entrevista-com-o-papa-francisco (concedida no voo de Fátima, Portugal a Roma).

[22]  In: aredação.com.br/noticias/77776/o-clero-é-rico-de-dinheiro-e-de-soberba-diz-o-papa

[23] Publicado em 14/02 de 2020 na Sala de Imprensa da Santa Sé. In: snpcultura.org/papa-pede-aos-leigos-que-evitem-cinco-tentações-html

[24] In: nsctotal-com-br/noticias/fujam-do-clericalismo-diz-papa-a-novos-bispos

[25]  Idem, ibidem.

[26] Andrea Lebra, leigo católico, em artigo publicado em Settima News no dia 04/092020. In:www.ihu.unisinos.br/78-noticias/603184-clericalismo. Ele também salienta uma observação curiosa: nos sete anos do pontificado de Bento XVI, foi usado uma vez o termo “clericalismo”, e, nos sete anos do pontificado do Papa Francisco,55 vezes.

[27] No texto A formação de diversos tipos de padres católicos na instituição seminário. In: C:Users/joaoi/Downloads/1187-3825-1-PB.pdf

[28]  Na sinopse da Tese de Dissertação.

[29]  Idem, ibidem.

[30]  Idem, p. 434.

[31] Idem, ibidem.

 

[32] SANCHIS, Pierre (org). Catolicismo: modernidade e tradição. SP: Loyola, 1992, p. 151.

[33] MENCUCCI, Vittorio. As mulheres e a Igreja: as raízes de uma discriminação. (Trad. Moisés Sbardelotto). In: ihu.unisinos.br/78-noticias/581733-as-mulheres-e-a-igreja-as-raizes-de-uma-discriminação-antiga-de-vittorio-menucci  Acess 02/10/2020. 

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