segunda-feira, 5 de outubro de 2020

ESPIRITUALIDADE DA SEDE

 

ESPIRITUALIDADE DA SEDE

           

Neste momento histórico em que a fonte principal do conhecimento é fornecido através de telas e telinhas (celulares, tablets, smartfones e computadores e televisores), somo induzidos a pensar que, também destas fontes podemos captar o tão almejado sentido pelo qual a vida suspira para que tenha gosto e graça. Desta nova fonte da vastíssima informação de dados, todavia, vem muita solução mágica, superficial, e de mera aparência. Com isso, acaba ficando de lado um outro mundo, o da interioridade, que simplesmente fica relegado e, costumeiramente, não chega a receber a necessária atenção e escuta.

O desafio é o de voltar a reaprender a fazer uma auto-escuta, com sede de chegar ao âmago da intimidade, como caminho para chegar à fonte ou nascente do entendimento de murmúrios para além de uma vida banal, deixada à tutoria das telinhas, e, sem chegar a desejados níveis de uma edificante espiritualidade cristã.

            Sob a atrofia da interioridade, nosso tempo de verdadeiro bombardeio de informações, produz uma dificuldade enorme para a possibilidade de clarear a identidade, pois, embora exista sede e anseio profundo por maiores e melhores razões de vida, fica-se nas conveniências exteriores (modismos sociais e religiosos) que atrapalham a espiritualidade cristã, uma vez que se entra no grande mito do nosso tempo de que o sentido da vida advém do progresso, do acúmulo de objetos, e, do controle dos fatos, sustentados pelos dogmas da economia.

            Neste contexto de ambição desenfreada pelos avanços, lucros e novidades, tende-se a procurar o alcance de níveis de espiritualidade com abstrações categóricas. E não são poucas as pessoas que querem orientar outras, com a convicção de que possuem grande depósito de reservas de espiritualidade, e que, por isso, também podem controlar a vida alheia, através de regras, exigências, mas, não conseguem ajudar na lida com os fatores da solidão. Passando por cima desta realidade, ou não chegando aos fatores que causaram a solidão, fica-se numa abstração de fé que não considera este mundo interior. Em razão disto, muitos guias espirituais querem saturar e empanturrar outras pessoas com muita ordem de Deus, mas veiculam somente ideologias vulgares de suas próprias abstrações como se eles estivessem da posse de uma espiritualidade especial.

            Assim, muitas lideranças religiosas dão a entender que possuem um acervo de certezas divinas inabaláveis, capazes de orientar a vida alheia, mas incorrem em fundamentalismos crassos. Em razão disto, convém lembra o Cardeal Tolentino que alerta contra a tentação de apresentar a espiritualidade como um conjunto de abstrações. “Crer não é satisfazer-se, não é ter as soluções, nem ter encontrado as respostas. Crer é habitar o caminho, habitar a tensão, viver dentro da procura.”[1] O cardeal ainda complementa: mais do que saciar-se de Deus, os crentes precisam aprender os benefícios da sede do desejo de Deus e da espera de Deus. A pessoa de fé não fica possuída por Deus e tampouco precisa domesticá-lo com suas crenças e rituais. Cabe ao crente um importante itinerário de sede de Deus, o que é muito diferente da pretensão de ser fornecedor privilegiado de Deus, como se tivesse sido promovido por seus méritos de espiritualidade para ser um bom vendedor e repassar orientações exclusivas recebidas de Deus. E como tem pessoas que afirmam categoricamente que Deus as inspirou para dizer com presunção uma porção de asneiras e vulgaridades. Ficam, deste modo, similares a representantes de vendas que se apresentam com a privilegiada condição de vender coisas de Deus com exclusividade única.

            A tentação de pessoas espiritualizadas se pensarem em nível superior para a solução de problemas alheios, pode facilmente despencar no mecanismo de dar conselhos e ordens e mapear a vida dos seguidores com casuísmos, rezas e rituais que torna suas vidas um pesadelo a ser suportado.

 Em Jesus Cristo, porém, revelou-se, não um Deus solucionador de quaisquer problemas, mas, um Deus frágil que se tornou próximo da fragilidade humana. Infelizmente muitas conversas de espiritualidade cristã ficam na beira da ofensa, porque procuram legitimar o prestígio dos que se apresentam como gurus, especialmente pessoas mais reacionárias, que tendem ao fundamentalismo, e que, na verdade, dão orientação espiritual indecente e perigosa às pessoas.

            Muito mais do que respostas para perguntas e anseios, convém escutar o que se passa dentro da própria interioridade e na interioridade dos outros, pois, na sede que ali se manifesta, pode estar eclodindo uma palavra de Deus. Significa que não precisamos de pódios e de enfeites de honra, como meritocracia das grandezas de Deus, uma vez que o tempo da fé deve constituir o do caminho.

            A grande sede espiritual certamente não está na perspectiva das certezas categóricas, mas, na possibilidade de poder captar, nas orações e na explicitação da fé, uma forma de sensibilização atenciosa para sentir Deus próximo na atenção das pessoas. O papa Francisco falou a Tolentino que “Deus tem sede das nossas sedes”.[2]

            A lida com solidão constitui uma dimensão muito importante da espiritualidade. Ficou ilustrativa a forma como uma criança internada no hospital falou ao médico: “diga a alguém que estou aqui!”, provavelmente para expressar sua necessidade de companhia e de algum gesto de amparo. De fato a diminuição ou ausência de interlocutores interfere nas grandes sedes do coração humano, porque vive condicionado às esperanças e aos olhares que apontam para estas esperanças. Sem saciar esta sede, a vida de uma pessoa se torna um peso e um desconforto existencial. Assim, não convém mero conformismo à solidão, mas é preciso escutá-la a fim de romper seus mecanismos e substituí-los por motivações melhores. Por conseguinte, é fundamental que, ao escutar as feridas interiores, pode Deus manifestar, através delas, a sua fala...

            A solidão se manifesta porque o extraordinário apelo ao consumo nos desvia da atenção à hospitalidade, afeto, cuidado e palavras que mudam nosso humor. A obsessão pelo consumo não permite suportar sede de desejos, pois quer imediatamente supri-los e coloca à disposição dos desejos, tudo o que rapidamente acalma os desejos, mas, logo outros surgem ou são produzidos, e estes podem ser enganados por um suprimento rápido e passageiro. E, neste mecanismo não se chega às grandes sedes dos anseios interiores, pois, ficam abafados ou negados. Assim, também na espiritualidade pode ocorrer um processo infantilizador através da contínua oferta de supressão dos sintomas de sede, especialmente quando portam sonhos, paixões ou ações solidárias. Feitos consumidores constantes, os seres humanos já se dão pouca conta da grandeza de hospitalidade autêntica e então perdem a capacidade de esperar por outros.

            A Bíblia oferece referências muito valiosas relacionadas à espiritualidade da sede através de imagens de beber água que desperta sede para saciar anseios profundos da interioridade. No livro do êxodo foi escrito: “ferirás a pedra e dela sairá água para o povo beber” (Ex 17,3-7). Jeremias, no seu tempo, constatou que muita gente estava se afastando de Deus, a nascente da água viva. Jesus, na hora derradeira do sofrimento disse: “tenho sede” (e entregou o espírito). No Evangelho de São João consta um texto maravilhoso em torno de um poço de água, o de Jacó em Siquém (4,5-42). Uma mulher desencantada com seis encontros humanos frustrantes, se encontra com um sétimo homem, mas com este, acontece algo extraordinário: como ela, ele veio para tirar água do fundo do poço. Ele fez com que esta mulher percebesse e lidasse com outra sede ignorada. Não a sede de um Deus que dá coisas, atendendo toda a vontade dos pedintes, mas que aponta outro jeito de fazer sua vontade. Já não se refere à água tirada de um poço, o da religião dos samaritanos e o do templo de Jerusalém.

Estes lugares tradicionais de culto e de entendimento de Deus não estavam fazendo bem às pessoas, pois faltava algo novo que deveria emergir do interior delas. Jesus rompeu fronteiras culturais e religiosas que estavam aprisionando as pessoas e as impedia de chegar a lidar com a solidão decorrente de fracassos e perdas. Ajudou aquela mulher a reconstruir-se a partir da própria interioridade e a ajudou a sair do seu mundo de trivialidade para ter um outro tipo de relacionamento com as pessoas.

 A unificação interior, depois da desarmonia provocada por relações superficiais e dispersivas, um mero fruir de sensações agradáveis, levou a uma capacidade de comunhão e testemunho. Antes deste diálogo do sétimo homem, a mulher era uma samaritana; depois, tornou-se uma evangelizadora que atraía pessoas para viver do jeito de Jesus Cristo. E o que ele fez de importante para esta mulher, anônima, fracassada e rotulada? Independentemente dos fracassos da vida, Jesus lhe assegurou que Deus a amava. Com isso ela viu que os fracassos com os seis homens de encontros anteriores, um verdadeiro fracasso na vida afetiva, nunca se sentiu realmente amada por nenhum deles. Tornou-se um objeto de consumo.

 O diálogo ajudou aquela mulher a lidar com sua superficialidade, que estava atrofiando o sentido que ela buscava, mas que se revelava, não em Garizim ou no Templo de Jerusalém, mas em espírito e verdade, que emergiu do interior. A escuta do eco destas águas foi fundamental para reorientar a vida. Assim a água do coração humano, muitas vezes ressequida por futilidades exteriores, leva à perda da capacidade de escutar o murmúrio da água viva.

            Muitas alusões a sede de água ajudam a remeter para algo além do consumismo. Talvez por isso se possa entender a declaração de Jesus Cristo: “Bem aventurados os que tem sede...



[1] José Tolentino Mendonça, na entrevista Deus também é um problema para os crentes. In: ihu.unisinos.br/publicações/188-noticias/noticias-2018/577993-deus-e-um-problema-tambem-para-os-doentes. Acess. 04/10/2020.

[2]  Idem, ibidem.

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