ESPIRITUALIDADE DA SEDE
Neste momento histórico em que a
fonte principal do conhecimento é fornecido através de telas e telinhas
(celulares, tablets, smartfones e computadores e televisores), somo induzidos a
pensar que, também destas fontes podemos captar o tão almejado sentido pelo
qual a vida suspira para que tenha gosto e graça. Desta nova fonte da
vastíssima informação de dados, todavia, vem muita solução mágica, superficial,
e de mera aparência. Com isso, acaba ficando de lado um outro mundo, o da
interioridade, que simplesmente fica relegado e, costumeiramente, não chega a
receber a necessária atenção e escuta.
O desafio é o de voltar a reaprender
a fazer uma auto-escuta, com sede de chegar ao âmago da intimidade, como
caminho para chegar à fonte ou nascente do entendimento de murmúrios para além
de uma vida banal, deixada à tutoria das telinhas, e, sem chegar a desejados níveis
de uma edificante espiritualidade cristã.
Sob a
atrofia da interioridade, nosso tempo de verdadeiro bombardeio de informações,
produz uma dificuldade enorme para a possibilidade de clarear a identidade,
pois, embora exista sede e anseio profundo por maiores e melhores razões de
vida, fica-se nas conveniências exteriores (modismos sociais e religiosos) que
atrapalham a espiritualidade cristã, uma vez que se entra no grande mito do
nosso tempo de que o sentido da vida advém do progresso, do acúmulo de objetos,
e, do controle dos fatos, sustentados pelos dogmas da economia.
Neste contexto
de ambição desenfreada pelos avanços, lucros e novidades, tende-se a procurar o
alcance de níveis de espiritualidade com abstrações categóricas. E não são
poucas as pessoas que querem orientar outras, com a convicção de que possuem
grande depósito de reservas de espiritualidade, e que, por isso, também podem
controlar a vida alheia, através de regras, exigências, mas, não conseguem
ajudar na lida com os fatores da solidão. Passando por cima desta realidade, ou
não chegando aos fatores que causaram a solidão, fica-se numa abstração de fé que
não considera este mundo interior. Em razão disto, muitos guias espirituais
querem saturar e empanturrar outras pessoas com muita ordem de Deus, mas
veiculam somente ideologias vulgares de suas próprias abstrações como se eles
estivessem da posse de uma espiritualidade especial.
Assim,
muitas lideranças religiosas dão a entender que possuem um acervo de certezas
divinas inabaláveis, capazes de orientar a vida alheia, mas incorrem em
fundamentalismos crassos. Em razão disto, convém lembra o Cardeal Tolentino que
alerta contra a tentação de apresentar a espiritualidade como um conjunto de
abstrações. “Crer não é satisfazer-se,
não é ter as soluções, nem ter encontrado as respostas. Crer é habitar o
caminho, habitar a tensão, viver dentro da procura.”[1]
O cardeal ainda complementa: mais do que saciar-se de Deus, os crentes
precisam aprender os benefícios da sede do desejo de Deus e da espera de Deus.
A pessoa de fé não fica possuída por Deus e tampouco precisa domesticá-lo com
suas crenças e rituais. Cabe ao crente um importante itinerário de sede de Deus,
o que é muito diferente da pretensão de ser fornecedor privilegiado de Deus,
como se tivesse sido promovido por seus méritos de espiritualidade para ser um
bom vendedor e repassar orientações exclusivas recebidas de Deus. E como tem pessoas
que afirmam categoricamente que Deus as inspirou para dizer com presunção uma
porção de asneiras e vulgaridades. Ficam, deste modo, similares a representantes
de vendas que se apresentam com a privilegiada condição de vender coisas de
Deus com exclusividade única.
A tentação
de pessoas espiritualizadas se pensarem em nível superior para a solução de
problemas alheios, pode facilmente despencar no mecanismo de dar conselhos e
ordens e mapear a vida dos seguidores com casuísmos, rezas e rituais que torna
suas vidas um pesadelo a ser suportado.
Em Jesus Cristo, porém, revelou-se, não um
Deus solucionador de quaisquer problemas, mas, um Deus frágil que se tornou
próximo da fragilidade humana. Infelizmente muitas conversas de espiritualidade
cristã ficam na beira da ofensa, porque procuram legitimar o prestígio dos que
se apresentam como gurus, especialmente pessoas mais reacionárias, que tendem ao
fundamentalismo, e que, na verdade, dão orientação espiritual indecente e
perigosa às pessoas.
Muito mais
do que respostas para perguntas e anseios, convém escutar o que se passa dentro
da própria interioridade e na interioridade dos outros, pois, na sede que ali
se manifesta, pode estar eclodindo uma palavra de Deus. Significa que não
precisamos de pódios e de enfeites de honra, como meritocracia das grandezas de
Deus, uma vez que o tempo da fé deve constituir o do caminho.
A grande
sede espiritual certamente não está na perspectiva das certezas categóricas,
mas, na possibilidade de poder captar, nas orações e na explicitação da fé, uma
forma de sensibilização atenciosa para sentir Deus próximo na atenção das
pessoas. O papa Francisco falou a Tolentino que “Deus tem sede das nossas
sedes”.[2]
A lida com
solidão constitui uma dimensão muito importante da espiritualidade. Ficou
ilustrativa a forma como uma criança internada no hospital falou ao médico:
“diga a alguém que estou aqui!”, provavelmente para expressar sua necessidade
de companhia e de algum gesto de amparo. De fato a diminuição ou ausência de
interlocutores interfere nas grandes sedes do coração humano, porque vive
condicionado às esperanças e aos olhares que apontam para estas esperanças. Sem
saciar esta sede, a vida de uma pessoa se torna um peso e um desconforto
existencial. Assim, não convém mero conformismo à solidão, mas é preciso
escutá-la a fim de romper seus mecanismos e substituí-los por motivações
melhores. Por conseguinte, é fundamental que, ao escutar as feridas interiores,
pode Deus manifestar, através delas, a sua fala...
A solidão se
manifesta porque o extraordinário apelo ao consumo nos desvia da atenção à
hospitalidade, afeto, cuidado e palavras que mudam nosso humor. A obsessão pelo
consumo não permite suportar sede de desejos, pois quer imediatamente supri-los
e coloca à disposição dos desejos, tudo o que rapidamente acalma os desejos,
mas, logo outros surgem ou são produzidos, e estes podem ser enganados por um
suprimento rápido e passageiro. E, neste mecanismo não se chega às grandes
sedes dos anseios interiores, pois, ficam abafados ou negados. Assim, também na
espiritualidade pode ocorrer um processo infantilizador através da contínua
oferta de supressão dos sintomas de sede, especialmente quando portam sonhos,
paixões ou ações solidárias. Feitos consumidores constantes, os seres humanos
já se dão pouca conta da grandeza de hospitalidade autêntica e então perdem a capacidade
de esperar por outros.
A Bíblia
oferece referências muito valiosas relacionadas à espiritualidade da sede
através de imagens de beber água que desperta sede para saciar anseios
profundos da interioridade. No livro do êxodo foi escrito: “ferirás a pedra e dela
sairá água para o povo beber” (Ex 17,3-7). Jeremias, no seu tempo, constatou
que muita gente estava se afastando de Deus, a nascente da água viva. Jesus, na
hora derradeira do sofrimento disse: “tenho sede” (e entregou o espírito). No
Evangelho de São João consta um texto maravilhoso em torno de um poço de água,
o de Jacó em Siquém (4,5-42). Uma mulher desencantada com seis encontros
humanos frustrantes, se encontra com um sétimo homem, mas com este, acontece
algo extraordinário: como ela, ele veio para tirar água do fundo do poço. Ele fez
com que esta mulher percebesse e lidasse com outra sede ignorada. Não a sede de
um Deus que dá coisas, atendendo toda a vontade dos pedintes, mas que aponta
outro jeito de fazer sua vontade. Já não se refere à água tirada de um poço, o
da religião dos samaritanos e o do templo de Jerusalém.
Estes lugares tradicionais de culto e
de entendimento de Deus não estavam fazendo bem às pessoas, pois faltava algo
novo que deveria emergir do interior delas. Jesus rompeu fronteiras culturais e
religiosas que estavam aprisionando as pessoas e as impedia de chegar a lidar
com a solidão decorrente de fracassos e perdas. Ajudou aquela mulher a
reconstruir-se a partir da própria interioridade e a ajudou a sair do seu mundo
de trivialidade para ter um outro tipo de relacionamento com as pessoas.
A unificação interior, depois da desarmonia
provocada por relações superficiais e dispersivas, um mero fruir de sensações
agradáveis, levou a uma capacidade de comunhão e testemunho. Antes deste
diálogo do sétimo homem, a mulher era uma samaritana; depois, tornou-se uma
evangelizadora que atraía pessoas para viver do jeito de Jesus Cristo. E o que
ele fez de importante para esta mulher, anônima, fracassada e rotulada?
Independentemente dos fracassos da vida, Jesus lhe assegurou que Deus a amava.
Com isso ela viu que os fracassos com os seis homens de encontros anteriores,
um verdadeiro fracasso na vida afetiva, nunca se sentiu realmente amada por
nenhum deles. Tornou-se um objeto de consumo.
O diálogo ajudou aquela mulher a lidar com sua
superficialidade, que estava atrofiando o sentido que ela buscava, mas que se
revelava, não em Garizim ou no Templo de Jerusalém, mas em espírito e verdade,
que emergiu do interior. A escuta do eco destas águas foi fundamental para
reorientar a vida. Assim a água do coração humano, muitas vezes ressequida por
futilidades exteriores, leva à perda da capacidade de escutar o murmúrio da
água viva.
Muitas
alusões a sede de água ajudam a remeter para algo além do consumismo. Talvez
por isso se possa entender a declaração de Jesus Cristo: “Bem aventurados os
que tem sede...
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