sexta-feira, 31 de março de 2017

A atração do pessimismo


            De vez em quando somos obrigados a aturar conversas pessimistas de quem parece não ter outra coisa na cabeça do que lamúria e insatisfação. Literalmente não consegue antever algo que possa ser agradável e bom. No entanto, também nós nos contagiamos com ambientes pessimistas e, quando menos nos damos conta, nos constatamos eivados de azedume ante tudo que nos envolve.
            Fazer um pessimista ver as coisas pelo avesso, ou, pela esperança que leva a antecipar situações boas e agradáveis, geralmente requer alguma imagem forte para convencer.
            O profeta Ezequiel (37, 12-14), vivendo no exílio da Babilônia, junto com seu povo desanimado e entregue ao pessimismo, foi capaz de intuir algo diferente e de falar para seus companheiros de que Deus seria capaz de mudar este quadro fatalista e sem graça de viver naquela condição escrava. Valeu-se de uma imagem forte: diante dos ossos ressecados e das esperanças já extintas daquele quadro pessimista, Deus poderia fazê-los sair daquelas sepulturas, e fazê-los andar novamente no rumo da sua Terra de origem.
            Para tal condição profundamente transformadora, Deus teria que fazer praticamente uma recriação para colocar espírito e vida naqueles cadáveres ambulantes sem motivação para nada. Para o profeta, bastaria que seus companheiros admitissem outra perspectiva para a sua vida.
            Nossos dias permitem um pessimismo similar aos escravizados na Babilônia, mesmo sem aquela situação de humilhante servidão. Mesmo assim, requerem postura similar à de Ezequiel. Afinal, ao admitirem que Deus possa, com espírito e vida, recriar razões de gosto e de exuberância na vida, tudo começa a renovar-se e pequenas intuições começam a apontar a viabilidade da transformação da vida.
            Na imagem simbólica de nova criatura, alimentamos a esperança cristã de que nossa participação na vida de Jesus Cristo possa nos plenificar com a transcendência que ele manifestou ao longo da sua vida e celebrar a certeza da definitiva ressurreição com ele. Foi assim que São Paulo (Rom 8,8-11) convidou uma comunidade romana a sentir-se, pela fé em Jesus Cristo, uma comunidade renovada na sua condição de vida e capaz de discernir nas tensões normais do dia-a-dia, o rumo que conduz no caminho da perfeição do ressuscitado.
           


quinta-feira, 30 de março de 2017

Força do mercado


O apanágio do inveterado consumo,
Alinha a todos sob o mesmo aprumo,
De fazerem do seu corpo um objeto,
De exposição e venda nada discreto.

A consciência de existir neste mundo,
Depende de um amplo pano de fundo,
De que é muito necessário mostrar-se,
Para com as outras pessoas inteirar-se.

É básico registrar e mostrar cada fato,
Desde mudança de penteado a relato,
A fim de que os outros nos percebam,
E através de algum sinal nos recebam.

O corpo feito em objeto de percepção,
Para que outros sinalizem aproximação,
Obriga-nos a vender imagem simpática,
Mesmo que a vida se apresente apática.

Na superficialidade da pobreza pessoal,
Subjaz a fraqueza da coletividade social,
Inepta para saciar as agruras individuais,
Pois, força os solitários a disputas banais.

Quando a apatia política já não integra,
Mas se ferra no interesse da sua regra,
O indivíduo não sente amparo coletivo,
E precisa vender-se para ato interativo.


terça-feira, 28 de março de 2017

Felicidade extraviada


Uma induzida satisfação de comprar,
Consegue nos envolver e perpetrar,
Ampla redenção de culpas sentidas,
Na busca de aquisições desmedidas.

Na compra das belas mercadorias,
A felicidade é associada a alegrias,
De poder adquiri-la com os objetos,
Que logo viram ineficazes e ineptos.

A substituição frustrada do adquirido,
Mesmo tendo sido desejado e querido,
Vai roubando mais tempo de serviço,
Para livrar-se do fracassado enguiço.

Na verdade, a felicidade prometida,
Passa longe da compra empedernida,
E somente se manifesta no mercado,
Que requer muito cliente obcecado.

Ao despertar outros e novos desejos,
Desvia as coisas boas e seus ensejos,
Para extorquir a felicidade desejada,
E deixando a subjetividade frustrada.

Na eterna ânsia da falta do desejado,
Perde-se a memória feliz do passado,
E sacrifica-se a vida sem auto-estima,
Para atender o que o mercado prima.  




segunda-feira, 27 de março de 2017

Dogma caborteiro



Enquanto os dogmas religiosos foram relegados,
Muitos outros em seu lugar foram implantados,
Mas, sob a caborteira astúcia de muitos arautos,
Continua vasta ilusão no contingente de incautos.

Proclamam a categórica mediação da felicidade,
Alcançável num itinerário de fé fácil à saciedade,
Pois da relação genuína de aumentar a economia,
Advém uma impreterível felicidade plena todo dia.

Os políticos estabelecidos como nobres profetas,
Anunciam necessárias renúncias e devidas dietas,
De consumir cada dia mais e para poder comprar,
Sonhada felicidade que nos objetos está a soprar.

Mas é o espírito que não paira em nenhum lugar,
E tampouco indica rumo no qual almeja propagar,
Suas irradiações de plenitude de muita felicidade,
Pois sempre se desloca para atraente novidade.

Aponta caborteira obsessão por lojas atraentes,
E arrasta clientes para mercadorias contundentes,
Plenificadas de felicidade sem ponto de chegada,
Que some no culto à satisfação da hora marcada.

O dogma não solidariza com os entes queridos,
Nem amplia respeito a bons tempos preteridos,
Pela pressa de mais produzir e roubar o tempo,
Para que o lucro desvie qualquer contratempo.








sexta-feira, 24 de março de 2017

Cegos de nascença


            Nosso momento histórico faz emergir uma inquietação profunda diante dos abusos cometidos pelos que se proclamavam probos e bons homens, capazes de resolver velhos e candentes problemas do país. De conversas e mentiras repetidas à exaustão, ensejaram concluir que a maior parte da população é cega e nem terá condição de enxergar o que eles, os mandantes sabiam fazer sob as aparências do interesse público e coletivo.
            Na multiplicidade dos significados da cegueira, vemos que o da incapacidade visual está bem relacionado a pessoas que tem visão normal e que conseguem ler e interpretar o que visualizam, mas, não percebem a cegueira da sua tática de controlar as pessoas pela condição da mendicância.
            Os proclamados condutores da grande massa cega, os governantes, falam e discursam que captam com perspicácia o que o povo mais precisa, mas, pelo que efetivamente fazem, conduzem seus passos e os atrelam aos seus interesses. Sua cegueira é a de não saírem de sua maldade: enxergam somente algumas coisas para seus interesses pessoais. Ao mesmo tempo, recusam-se a iluminar a vida sofrida a fim de lhe propiciar direitos básicos. Querem que continuem mendigos. Aquilo que enxergam no povo, torna-se, na verdade, o motivo de sua condenação.
            O texto do Evangelho de São João trata, no capítulo 9, como Jesus levou um cego a perceber sua cegueira (não de vista) e aceitar uma luz para agir do jeito de Jesus Cristo. No diálogo em torno da cegueira, quer-se saber do culpado do homem que não enxerga. Jesus despistou esta conversa e mandou o cego lavar-se na piscina de Siloé (que significa Enviado).
            Socializado para ser um mero mendigo, o cego causou reações e murmúrios quando retornou da piscina e dizia que estava enxergando. Os que eram mesmo os cegos efetivos (fariseus) quiseram, então, se interessar pelo causador da visão e simplesmente não estavam dispostos a admitir que aquele vivente tivesse passado da condição de cegueira para a de enxergar. Inconformados, os fariseus ameaçaram expulsar da cidade quem declarasse Jesus como autor da mudança na vida naquele cego.
            Pior ainda, começaram a denegrir a imagem de Jesus. No entanto, não queriam que o cego enxergasse e passaram a acusá-lo de que de que era seguidor de Jesus Cristo, mas, na prática, o cego revelou mais bom-senso e perspicácia do que os fariseus, que presumiam enxergar bem para conduzir os cegos “mendigos”.
             Afinal, se muitos cegos de nascença viessem a manifestar a mesma mudança daquele que começou a enxergar, eles, os fariseus, é que teriam que reconhecer sua cegueira. Optaram pelo mais fácil: ao constatarem que aquele antigo cego fez um ato de fé em Jesus (“Eu creio Senhor”) mandaram-no embora.
            Alguns fariseus, pelo menos, se inquietaram e se perguntaram se eles, afinal, também estariam cegos! Jesus lhes replicou que por acharem que enxergavam bem é que estavam permanecendo no pecado.
            Transparece, no episódio, uma interessante pedagogia usada por Jesus Cristo: de uma cegueira de fé, que culminou numa importante proclamação de fé! O processo da cura aconteceu no confronto com a adversidade, criada pelos que presumiam enxergar mais e melhor do que os outros da sociedade.
             O episódio certamente constitui um indicativo metodológico para indicar como se pode passar de uma situação meramente materialista e humana, para uma fé em torno do modo como Jesus iluminava a vida. Tal processo de passagem requer confrontação que amadurece paulatinamente; e, é muito diferente dos milagres instantâneos, que, na verdade apenas atrelam a formalismos de quem deseja manter muitos “cegos” sob seu controle.


quinta-feira, 23 de março de 2017

Carne fraca



Apropriaram-se de velho conceito,
Peculiar do machismo sem respeito,
Que se auferiu o direito de deflorar,
Toda mulher passível de conquistar.

Quando até a carne servida na mesa,
Oculta a corrupção de muita safadeza,
Requer-se esmerada busca pela sorte,
De achar líder forte para novo aporte.

Quando a adoração piedosa do capital,
Produz conluios contra um anseio vital,
De vivenciar decência com honestidade,
Pouco se pode esperar nesta sociedade.

Na centralidade das polpudas vantagens,
Falsas motivações de benéficas aragens,
Iludem com mentiras a vastidão humana,
E a expoliam sob o discurso que se ufana.

Na subliminaridade da mente tão forte,
De quem se arroga auferir a boa sorte,
Reina a mentalidade fraca e interesseira,
Que já nem viabiliza chance alvissareira.

A carne fraca das mentiras propaladas,
Amolece músculos de vidas desandadas,
E o banquete palaciano da carne forte,
Execra a vida dos retos numa má sorte.

Numa carne fraca de política tão fétida,
Já não vigora larga dedicação intrépida,
Para que o bem comum seja favorecido,
E a função preste o serviço enternecido.




Concórdia


Diante dos mundos subjetivos,
Movidos por intentos fruitivos,
O alcance da ansiada concórdia,
Sucumbe na faminta discórdia.

O fito do conforto sem segurança,
Elimina a apreciável temperança,
E leva a uma execução de pactos,
Gestores de inesperados impactos.

Tão fugaz é a concórdia desejada,
Porque sob a vontade desandada,
Não se firma diante dos conflitos,
E sequer respira no rol dos atritos.

Se a unidade de bons sentimentos,
Impregnados de valiosos alentos,
Não é espontânea e heterônoma,
Convém inovar na ética autônoma.

Ambientes de efeitos contagiantes,
Sob os serenos afetos extasiantes,
Apontam possibilidades concretas,
Para emergência de posturas retas.

Brilhante entre sonhos de felicidade,
A concórdia aparece com vitalidade,
Para apontar o belo mundo possível,
Da presença do inefável e indizível.
















quarta-feira, 22 de março de 2017

Motivações especiais



Se as regulares chuvas são fundamentais,
Para as sementes em estágios germinais,
Os almejados frutos do que foi semeado,
Remetem à expectativa do fim almejado.

Ante tantas situações que gestam dores,
E outras que aumentam nossos pavores,
O tempo celebrado na tradição católica,
Enseja-nos uma valiosa noção simbólica.

Existe alguém apto para acolher o clamor,
E acompanhar o caminho da via do amor,
Para que progressivas rupturas humanas,
Esmoreçam as suas sequelas tão sacanas.

A lembrança do que Jesus fez aos ânimos,
Atingiu multidões em anseios magnânimos,
E lhes apontou um caminho de convivência,
Capaz de findar vastas formas de violência.

Na imagem utilizada por um antigo profeta,
Ferramentas de guerra para ação mui abjeta,
Poderiam ser transformadas em utensílios,
Para produzir alimentos sem os falsos idílios.

Pensar algo melhor do que ódio e vingança,
Abre uma luz motivadora para temperança,
Capaz de transformar o mundo denegrido,
Num ambiente humano, cordial e querido.
  




terça-feira, 21 de março de 2017

Rapinagens



Ao lado das peculiares traquinagens,
Sobressaem-se as astutas rapinagens,
Dos assaltos a pessoas bem ordeiras,
Para locupletar praxes interesseiras.

O pasmo envolve vasta indignação,
Em torno dos mandantes da nação,
Que na corporativa malandragem,
Tudo aprovam para sua vantagem.

Deturparam uma religiosa mediação,
De perdoar pecados para a redenção,
E assim auferem uma ampla anistia,
Por tudo quanto deixa tanta carestia.

O pior é que viciados em rapinagem,
Compram sua ilibada e boa imagem,
E recorrem a parcela do amealhado,
Para farta compra de voto atrelado.

Levam no cabresto do paternalismo,
Multidões compradas com cinismo,
E feitas em adoradoras dependentes,
De discursos falaciosos e eloquentes.

Pior é que as vitimas da rapinagem,
Delegaram no voto a sua atrelagem,
E ainda homenageiam seus verdugos,
Como sendo os libertadores de jugos.



segunda-feira, 20 de março de 2017

Expectativas



Que se espalhem até nos ares,
Captáveis por todos os radares,
Que viver numa alegria serena,
É como fruir primavera amena.

Tão sedutora pelos seus adornos,
Persuade com mágicos contornos,
A vida em sua altiva exuberância,
Expandindo a indizível fragrância.

Poderiam as humanas criaturas,
Tão afoitas nas pífias diabruras,
Enaltecer-se sob uma singeleza,
De afetuosidade com delicadeza.

Em vez de guerras e ambições,
E outras fúteis procrastinações,
Poderia uma cultura generativa,
Inebriar a capacidade interativa.

Na socialização dos nascentes,
Os projetos de valores decentes,
Poderiam focalizar a colaboração,
E redimir a humana degradação.

Encontro existencial com a graça,
De redenção da eivada desgraça,
Abriria uma porta da confiança,

Com a ética solícita na andança.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Educação da fé




            Quem não gostaria de sentir-se possuidor de fé, sólida como a rocha, para viver num conforto estável e permanente? Bem sabemos que a fé não nos isenta de dificuldades, crises, inseguranças, mas nos fornece uma força interior para melhor lidar com as adversidades.
            Como a fé também não é mera conquista pessoal e nem acumulativa, - pois, nos é dada como graça, - requer um aprendizado progressivo para corresponder bem a este dom gratuito que Deus nos oferece. Muitas pessoas vivem o auto-engano de considerar sua fé, como vigorosa, forte e profunda, quando sua vida real está bem distante das orientações de Jesus Cristo. Numa imagem simples, para se beber água da fonte, requer-se que exista algum vínculo com a fonte.
            Mesmo sem má vontade, muitas pessoas vivem hábitos herdados e pressupõe que estes sejam a essência da sua fé. Algumas até exageram e proclamam que são possuidoras de muita fé, porquanto recebem tudo quanto pedem a Deus. No entanto, pode-se desconfiar destas certezas categóricas, e muito! A fé decorre de autoconsciência dos limites e da constatação de que, por conta própria, não é possível um ajuste razoavelmente adequado com estes limites. Decorre dali a necessidade de uma ajuda.
            Quando apelamos à ajuda de Deus, ela precisa acontecer dentro de um caminho. Não é apenas o desejo a ser suprido, porque ele implica em ação diante da avaliação dos atos perpetrados.
            No evangelho de João (4, 5-42) há uma narrativa muito interessante a respeito da forma como Jesus educava seus interlocutores para que percebessem que a fé tem algumas implicações. A samaritana representa um tipo de fé que não implica em mudança de vida. A pedagogia de Jesus foi a de permitir que a samaritana se auto-avaliasse e fizesse uma importante revisão de vida, e, se conscientizasse das suas limitações. Simultaneamente percebeu que precisava de ajuda para redimir-se do seu passado e viver com mais sentido para os tempos vindouros da existência.
            Como a samaritana não seguia a religião dos judeus e, tampouco tinha consciência da história religiosa em torno do templo, - pois os samaritanos adoravam Deus no monte Garizim, - seu diálogo com Jesus a fez perceber que esta diferença não era essencial, mas, que o importante era adorar Deus em espírito e verdade.
             Embora esperasse por um salvador, a samaritana demorou a perceber que Jesus Cristo estava sendo esta ocasião de salvação. Chama atenção que Jesus não deu uma aula de moral, não foi autoritário e nem rigoroso em exigências coercitivas e punitivas. Criou espaço para que a mulher pudesse avaliar sua história e desejar algo bem melhor do que tinha vivido.
            Somente o desejo de algo melhor seria insuficiente. A samaritana se deu conta de que deveria aproximar-se do jeito de Jesus Cristo, isto é, ter acesso à fonte que abastecia sua sede de Deus.
            Muitas supostas proclamações de fé em Deus não levam à estrada que conduz a Deus: a elementar constatação da necessidade de salvação!


quarta-feira, 15 de março de 2017

Resenha do livro O Sofrimento Psíquico dos Presbíteros

Sofrimento psíquico dos Presbíteros – Dor Institucional. William César Castilho Pereira. – Petrópolis, RJ: Vozes; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2012.
Autor da resenha: Dr. Pe. João Inácio Kolling

            O livro apresenta uma análise dos sintomas do Burnout na vida dos presbíteros. Pela sua história, seu itinerário de formação e, como portadores da Boa Nova que redime, os presbíteros deveriam constituir a categoria social com a menor predisposição possível para esta doença. No entanto, constituem o grupo social do mais elevado índice de desgaste e esvaziamento psíquico-afetivo no exercício do ministério presbiteral.
O autor não ficou restrito a estudos delimitados ao ambiente clínico e às clássicas interpretações reducionistas que situam esta doença no nível meramente pessoal e intra-psíquico, mas, tomou por referência outra perspectiva, a do ambiente e do entorno do trabalho. A partir deste pressuposto teórico, efetuou uma vasta pesquisa de campo, na qual procurou captar sintomas de manifestação da Síndrome de Burnout nos presbíteros, levando em conta especialmente a dimensão institucional, como fator preponderante a causar tal sintoma.
Com esmiuçada sensibilidade o autor se propôs analisar a institucionalidade da vida presbiteral. De forma muito respeitosa e edificante procurou neste empreendimento delinear um saber de ciência, mas, também perpassado por um sabor todo especial de Sabedoria: entender pela espiritualidade, dimensão afetiva, motivacional e de exercício do poder, as raízes deste sofrimento psíquico, com a finalidade de poder contribuir com alguma mediação capaz de ajudar presbíteros e religiosos a cuidar da sua vida.
De fato, como conciliar a alegria do anúncio da Boa Nova como membro da categoria social que apresenta maior índice de sofrimento psíquico? Cuidar bem dos outros, sem afetar-se com os próprios problemas, indicava ao autor uma suspeita: esta dor dos presbíteros poderia estar relacionada à dor da Igreja.
A constatação indicava que as feridas dos consagrados à Evangelização, com apresentação de muitos sinais de cansaço, desilusão, angústia, tristeza, insatisfação pessoal e solidão, estava ultrapassando a dimensão meramente pessoal dos presbíteros. Por isso o autor avaliou as perspectivas de três grupos de clássicos da interpretação do Burnout pela perspectiva pessoal interna (Freudenberger e Gail Notrh; Edelvich y Brodsky; e, Price y Murphy). Observou que todos os traços que eles elencaram e a seqüência do processo de Burnout podem ser tranquilamente aceitos, mas, estes autores simplesmente não abordaram o “não dito” das condições de trabalho, uma vez que qualquer instituição tende a esconder metas e estratégias, e, porque os ambientes de trabalho produzem muitas contradições entre afeto e razão.
O presbítero, como trabalhador de uma instituição, também quer ser feliz, ser reconhecido, amado visto e benquisto; quer ser digno de confiança e de confidência e também quer expressar suas virtualidades. No entanto, experimenta um corpo negado, desconhecido, silenciado, irritado, tenso e nervoso. A não elaboração deste sofrimento leva-o a ser agressivo. Pode ser uma agressividade auto-dirigida (masoquismo ou histeria) ou crises de despersonalização.
As terapias da perspectiva pessoal interna não resolvem o problema que o presbítero enfrenta. Apenas o enganam. Por conseguinte, é da dimensão institucional que deve decorrer a maior mediação para superar as causas do Burnout. Começa com o epicentro do ideal do presbítero, de amar a todos, que, no auge da perfectibilidade o iguala a Deus, mas, a imagem de Deus pode muito bem ser confundida com os valores de uma determinada cultura ou civilização.
O ideário da formação presbiteral, por outro lado, estabelece uma exigência muito rígida: são documentos, regras, leis, diretrizes que distanciam o presbítero das experiências humanas. Produz-se assim, uma profunda cisão entre o ideal e a realidade cotidiana. Longe do parâmetro de ser bom como Deus, encontra-se o presbítero num vazio de energia amorosa. O ambiente de formação dá excessivo destaque ao imaginário do sagrado: altar, liturgia, obras, orações, mas leva a decepções e grandes dificuldades para conviver, até mesmo com colegas. Começa, então, o declínio do ideal, a frustração, o desentrosamento, a dificuldade afetiva, os procedimentos autoritários, o isolamento, enfim, agressividade. O eixo da vida está impregnado de repressão burocrática, de disputas avarentas por prestígio, poder e ambição e, o esperado resultado das idealizações cultivadas, acaba se mostrando ínfimo e insuficiente.
Das suspeitas sobre as manifestações de Burnout nos presbíteros, o autor observou que, a partir da década de 1980 aumentou muito a incidência de presbíteros e religiosos com alto índice de esgotamento físico, psíquico e emocional. Desta anulação de forças espirituais decorreu o abandono do ministério, ou, então, permanência mais passiva, inativa e depressiva, fenômeno que na linguagem religiosa veio a ser chamado de “Síndrome do bom samaritano desiludido pela compaixão”. Na verdade está submetido a uma sobrecarga burocrática e repetitiva. A tal quadro ainda se aliam as frustrações pastorais e de convivência. A isto se pode acrescentar o quadro de desprestígio da profissão que induz à baixa auto-estima e ao sentimento de pouca pertença ao presbitério, além da disfunção entre os valores pessoais e as exigências institucionais. Ao quadro já desalentador ainda se pode acrescentar o elevado número de desistência de colegas, as divisões competitivas em torno do poder e status e a gradual perda de espiritualidade.
Segundo o autor, não se trata apenas de um fenômeno recente, pois a síndrome do desgaste psíquico-afetivo é muito antiga e cita Ex 18,16-23 para ilustrar que Moisés já experimentou a crise de Burnout. Fez terapia com o sogro Jetro, e aprendeu a lidar de modo diferente com as coisas. Aceitou a sugestão de tornar-se menos centralizador e assim passou a assimilar novas estratégias.
A predisposição dos presbíteros para o Burnout é intrigante: como ser feliz num ambiente de repressão, de estrutura burocrática, em que ocorrem disputas avarentas por prestígio e poder? Afinal, quem produz este desgaste psíquico-emocional?
O autor deduziu que são formas de trabalho entre indivíduo e instituição. Como outras instituições, a Igreja pode produzir relações mais autônomas ou dependentes, mais criativas ou mais reprodutivas. Assim, vislumbrou efeitos culturais de três periodizações históricas, cada qual com traços nitidamente peculiares e distintos: o do período pré-conciliar; o do concílio e anos posteriores; e, o dos nossos dias, geralmente classificado como período pós-moderno. Em cada um destes momentos as relações tiveram traços bem distintos, mas, eles se cruzam e se entrecruzam no presbitério atual.
a)      Na Igreja do pré-Vaticano II -  predominou a marca feudal de muita narrativa mítica e da estruturação político-religiosa dos três níveis (reis e clero; nobres e vassalos; e os servos). A rede imaginária simbólica foi a do mundo rural, da cultura imutável, com pouco dinheiro, mas muita solidariedade e cordialidade. Filosoficamente tudo era fundamentado em Deus, sem chances para diferenças ou rupturas. A religião garantia a cultura e a política e ainda procurava ordená-la, explicá-la e legitimá-la. A eclesiologia tridentina estimulava uma apologética e a insistência na infalibilidade do Papa. De Roma se difundiam as verdades inquestionáveis para oferecer aos cristãos uma aparente ausência de crises e inseguranças. A espiritualidade era clerical, tridentina, individual e sacramental. Na ação de obras estavam centralizadas as grandes catedrais e os Seminários. Predominava o ensinamento dogmático sobre céu, inferno e purgatório e o espírito era o de salvar “almas”, com excessiva centralidade e clericalização da Igreja, com liturgia rígida e grande estímulo ao devocionalismo. Manifestava-se também uma estrutura super-protetora de disciplina espiritual e ascética, mas todo este quadro estava em profundo descompasso com a ciência moderna, que centralizava igualdade, liberdade e fraternidade.
b)      A Igreja do Vaticano II – a Igreja vinha sendo um império espiritual: reino de Cristo, Maria, rainha do céu, numa imitação das ideologias do poder imperial. Era vertical, centrista, burocratizada, com teologia e doutrina congelada e com ênfase na Palavra de Deus, Revelação, dogmas e autoridade do magistério. Aos fiéis restava obediência passiva. O resultado disso foi evidente: um poder oposto à cultura leiga e civil, que condenava a modernidade e o iluminismo, enquanto que a sociedade se mostrava mais racional, industrial e consumista. Isso gerou progressivo afastamento dos sacramentos e um encantamento crescente pelos estilos de vida da Modernidade.
A Igreja reagiu com o envio de congregações religiosas para atrair desertores e formar lideranças no espírito da neo-cristandade. A partir da Segunda Guerra Mundial, a Igreja abafou mais os sentimentos e desejos que emergiam da própria Igreja. Mesmo assim, ocorreu grande efervescência teológica.
O concílio Vaticano II foi um desaguar de rios de insatisfação dentro e fora da Igreja. O papa João XXIII foi fundamental para o processo do “despir-se” do homem velho. Surgiu novo auto-imagem: a Igreja é povo de Deus, o que também despojava o poder eclesiástico. Foi um tempo de entusiasmo e de esperança (revisão geral que centralizou a opção pelos pobres. O presbítero passou a ser visto como pedagogo e animador da vida comunitária. O traje religioso foi substituído pelo civil e a espiritualidade tornou-se mais positiva com o mundo.
Apesar da mudança, ocorreram ambivalências: crise vocacional, receios, desestruturações, muitos presbíteros abandonaram o ministério. Ao lado disso, permaneceram privilégios eclesiais e societários (reverências). Se de um lado se passou do pregador ao animador (do pedestal à participação) e da salvação das almas à salvação dos excluídos, muitos não aceitaram perder privilégios e abandonaram o ministério.
c)      Igreja pós-Vaticano II -  O autor salientou três aspectos importantes: 1) Profundas transformações sócio-culturais: a abundância de escolhas gerou um mundo de velocidade e de rapidez nas decisões. Da subjetividade da reflexão passou-se à subjetividade reflexa, imediata e indeterminada. Ocorreu enfraquecimento do Estado, da família, da escola e da Igreja tradicional e passou a prevalecer o individualismo e os costumes passaram a ditar o que podia ser pensado. Assim, o sujeito, passando por adaptações constantes a novos moldes e, sob a aparente ausência de limites, passou a agir sob um poder disperso e anônimo, que envolve muitos simulacros. O ditame do vender e comprar estabeleceu nova ordem simbólica: consumir signos e imagens da indústria cultural. As necessidades criadas passaram a aumentar a demanda por mais desejos, e, a produção cultural entrou no inconsciente e perverteu os desejos (crise contínua por mais coisas para serem consumidas). Prevaleceu, pois, o excesso: luxo, vitrine, imagem, novas catedrais... A fantasia passou a ser explorada à exaustão: voyerismo, exibicionismo e espionagem da intimidade.
2) Pós-Modernidade e pastoral midiática – ocorreu uma implosão das tradicionais posições de dependência e cristalização da autoridade. Surgem novos movimentos sociais e neles estão centralizados os artefatos tecnológicos e cibernéticos. A mídia integra o cotidiano de evangelização, mas, como discernir criticamente estes meios? Podem mitificar, dominar, explorar e gerar condutas perversas com espetáculos religiosos: a gana pela audiência explora o gozo maníaco e eufórico. A mídia religiosa tende muito à louvação e testemunho pessoal, mas, a pouco conteúdo didático-doutrinal. Por isso surgem sérios questionamentos: que protagonistas dominam o mercado midiático religioso e com que intenções agem? Há riscos de pequenos grupos ideológicos monopolizarem o mercado religioso que dificulta a fidelidade a Jesus Cristo.
3) Efeitos do Pós-Vaticano II -  Vem ocorrendo uma metamorfose além do esperado, tanto na pastoral, quanto na estrutura paroquial, econômica, arquitetônica, quanto na espiritualidade e na missão. Emergem formas mais inculturadas com maior atenção a aspectos inconscientes: recalques, projeções e introjeções. Aparecem duas tendências mais expressivas: uma, que é restauradora e centrista, e, outra, mais hermenêutica da Igreja Particular. A co-responsabilidade econômica, política e cultural tornou-se bem mais visível. Também vem ocorrendo mais diálogo e negociação.
                        Estas metamorfoses acabam alterando o “modo de fazer”, o “modo de relacionar-se” e o “modo de proceder a subjetivação”. Em conseqüência, mudam as formas de fazer as coisas, de produzir, e, também mudam os arranjos de relacionamento. Igualmente mudam os modos de trabalhar e as subjetivações. Enquanto a sociedade primitiva e medieval produzia subjetividades comunitárias, estáveis e coesas, a sociedade de nossos dias produz sujeitos subjetivos individuais mais autônomos e livres. Também aumenta o sentimento de sociedade planetária global e nela se entrecruzam duas tendências: a emancipatória, que busca libertação; e a maníaco-eufórica, que não quer utopia, mas somente gozo e consumo.
            Como estes três momentos se entrecruzam no presbitério, ocorrem evidentes impasses, pois são afetados pela nova ordem simbólica de consumir signos e imagens. Isto também implica na pastoral, pois, se contrapõe o projeto centrado na cultura instrumentalizada e o projeto geral do conjunto da Igreja, mais totalizador e autoritário.
            A tensão também se evidencia entre fantasias e a realidade estrutural objetiva, pois, grupos dominantes inibem desejos de mudança e favorecem forças conservadoras, reprodutivas e míticas. Ao lado disso, aparecem, na pastoral midiática, fortes matrizes autoritárias e conservadoras que despejam toneladas de aparatos moralistas, de medo, de culpa e de infantilização do povo. Ao lado disso, a tensão também se estabelece entre a Igreja institucional e os cristãos leigos, que reagem ao tecnoburocratismo clericalista.
            Diante deste efeito dos três momentos históricos da Igreja, o autor indicou pistas para uma pastoral presbiteral a fim de propiciar uma gestão do cuidado do presbítero com sua pessoa e com os outros, a fim de avivar a meta transcendental de vida fraterna e espiritual, além do fortalecimento intelectual e dinamização da pastoral missionária. As casas da pastoral presbiteral deverão constituir-se em lugares de referência para encontro afetivo dos presbíteros.
            Um efeito deste meritório trabalho do Dr. William César C. Pereira é o de deixar, - apesar de toda a riqueza de dados da abordagem - uma inquietação: Se a Igreja sempre teve que lidar com muitas dores institucionais, as do nosso tempo requerem evidentemente, mais do que um discernimento pessoal, uma ação de conjunto do presbitério, pois, afinal, constitui importante parcela da Instituição que é a Igreja Católica.

            Por tratar-se de uma pesquisa bibliográfica e de campo, a extensão do texto poderá constituir eventual empecilho para que muitos presbíteros se animem a ler todo o livro (539 páginas), mas, o texto é agradável e claro no conteúdo e nos objetivos. A forma como a pesquisa foi desenvolvida abre um grande leque de entendimento para a lida com o sofrimento psíquico de tantos presbíteros. O vocabulário é simples e demonstra extraordinário domínio do autor sobre a área versada. Decorre dali a maior riqueza, pois fez o estudo para ajudar os presbíteros a lidar positivamente com a síndrome de Burnout.

Esperanças antigas




A consciência da incapacidade,
De agir na perversa fragilidade,
Das ambíguas ações humanas,
Ultrapassa as forças e as ganas.

Do viés religioso do universo,
Emerge a análise do perverso,
E uma expectativa redentora,
Que ajuda na ação salvadora.

Na luz da fé ou do ateísmo,
Espera-se a saída do abismo,
Que separa os dominadores,
E os dominados perdedores.

A expectativa da divina ajuda,
Faculta recriar a alegria aguda,
De que em sintonia com Deus,
A maldade, enfim, dê o adeus!

Naquilo que foi experimentado,
Como o sinal de amor ilimitado,
Recria-se uma valiosa esperança,
De algo melhor que a lambança.

O que de Deus se espera alcançar,
São forças capazes de esmiuçar,
Novas regras de mínimo respeito,
Para nada se destruir no despeito.




terça-feira, 14 de março de 2017

Mudanças no imaginário religioso






João Inácio Kolling




ASPECTOS ABORDADOS

1 – Da homogeneidade de práticas religiosas para a homogeneidade do consumo de produtos religiosos;        

2 - Da rejeição de regras religiosas à segurança das regras consumistas.

3 - Repercussões da globalização no imaginário religioso urbano.
3.1 – O que é globalização?
3.2- Quando surgiu a globalização?
3.3– Antecedentes da globalização.
3.4– Explicações mais comuns sobre globalização.

4 – Interpelações urbanas à ação evangelizadora.
4.1 – Características evangelizadoras na cidade.
4.2 – O diferente nas cidades de hoje.
4.3 – Como evangelizar na cidade?
4.4 – A visibilidade da ação evangelizadora nos espaços urbanos.
4.5 – Como pensamos a cidade?
            4.6 – Um modelo de Igreja a ser construída.

5 – A religião midiática e o imagético.
            5.1 – A onda dos “padres cantores”.
            5.2 – O hipermercado religioso.

6 – Outras tendências religiosas na vida urbana.
            6.1 – O novo mapa religioso urbano.
            6.2 – Da institucionalização para o intimismo.
            6.3 – O sincretismo religioso.

7 – Interpelações deste quadro religioso atual.




PALAVRAS INTRODUTÓRIAS

 


            O imaginário religioso envolve a condição dos seres humanos desde que se sabe da existência de pessoas. Mesmo nas formas mais primitivas de organização há evidências que remetem a aspectos religiosos.
             As formas de expressão religiosa, como bem sabemos, são muito variadas, pois vão desde grandes religiões, passando por grupos menores, a formas individualizadas e totalmente subjetivas.
            “Imaginário” é um adjetivo que pode significar ilusório e fantástico, mas, o termo também pode ser usado para referir-se a estátuas e imagens.
Outro significado da palavra “imaginário” é o da figura humana, bordada ou pintada.
Em nosso uso, todavia, vamos usar este termo “imaginário” com outra significação, mais aproximada do conceito antropológico ou da Psicologia Social, que é o de “arquétipo cultural”.
 Arquétipo cultural significa um esquema de pensar ou um esqueleto cultural que perpassa a educação e a formação de novas gerações. A partir deste sentido, usamos a expressão “imaginário religioso” para destacar formas comuns e coletivas em torno da vivência religiosa.
Bem sabemos que os “imaginários religiosos” variam segundo épocas e regiões. Por isso, se hoje constatamos mudanças no modo de conceber a manifestação religiosa, é sobre este assunto que desejamos alargar um pouco o entendimento.
            As ofertas do “imaginário religioso” recente apresentam um itinerário muito sugestivo, atraente e fácil: cura, proteção, sorte, saúde, felicidade, êxito, sucesso, graça, paz, bênção, intercessão divina, dons, caminhos secretos, objetos sagrados, poderes extraordinários, alívio de problemas subjetivos, vantagens pessoais, regeneração, libertação, prosperidade, proteção, ajuda contra inimigos, contra adversários, concorrentes e expectativa de muitos milagres rápidos, mágicos e sensacionalistas. Parece, no entanto, que este fenômeno tende a aumentar muito a passividade religiosa e a dependência a líderes carismáticos.

            Nossa breve abordagem não pretende tratar dos aspectos relativos à origem, história e evolução do imaginário religioso, mas quer somente chamar atenção sobre algumas formas recentes e relativamente novas de expressão da religiosidade na vida urbana brasileira. Portanto, sem intenção de diminuir o valor de aspectos mais amplos e gerais deste tema, nosso propósito é o de salientar modestos destaques de alguns aspectos que se apresentam no âmbito da vivência religiosa das últimas décadas. Por conseguinte, não abordaremos, aqui, elementos mais específicos da História das Grandes Religiões, da Antropologia Teológica, da Eclesiologia ou da Escatologia.
Nossa rápida abordagem salienta somente alguns tópicos mais evidentes desta mudança no modo de explicitação da vida religiosa.
No primeiro capítulo damos ênfase a uma mudança que vem ocorrendo na tradicional homogeneidade das comunidades cristãs de ambientes rurais, para uma frenética busca de consumo de objetos religiosos na vida urbana e que é orientada, não mais pela religião, mas pelo sistema de mercado.
No capítulo II, tratamos da rejeição a normas e prescrições doutrinais provenientes das organizações da Igreja. Ao lado desta rejeição, ocorre uma maior predisposição para escolhas pessoais, tanto de programas religiosos, quanto de entidades religiosas, ou ainda, crer ou não crer segundo determinadas entidades religiosas. Parece que o imaginário é o de que, em assunto de religião, deve ocorrer o mesmo que se faz numa ida ao mercado ou à loja: cada pessoa escolhe livremente o que deseja adquirir, segundo seus critérios de gosto.
No capítulo III, procuramos relacionar alguns destes aspectos de liberdade para além das fronteiras estabelecidas pela religião como consequência do fenômeno da globalização, pois além de romper fronteiras territoriais, leva ao rompimento de fronteiras éticas, religiosas e também de gênero e de papéis sociais, que uma vez eram claros, definidos e delimitados. Com isso, sumiu a divisa ente o que é considerado certo, bom, justo e digno de ser feito.
No quarto capítulo procuramos levantar algumas interpelações que a vida urbana traz ao trabalho de ação evangelizadora.
No capítulo V, salientamos o grande efeito da religião midiática, isto é, dos programas religiosos, como missas, cultos e outras celebrações, transmitidas através da televisão, que introduzem um novo ícone em torno da pessoa que apresenta um programa religioso. Quando a popularidade do programa aumenta, mais a pessoa apresentadora deste programa cria dependências afetivas à sua simpatia.
No capítulo VI, ponderamos sobre outras mudanças geradas, sobretudo, pelo ambiente urbano, como o sincretismo, a teologia da prosperidade e outros.
Por fim, no capítulo VII, salientamos algumas características que certamente não deveriam ser descartadas diante das novas formas do imaginário religioso, tais como o respeito ao diferente, a perspectiva mais mística do que emotiva e racional da fé, o valor das narrativas de experiências de fé no lugar das explicações universalizantes (entendidas como válidas para todas as pessoas do planeta), e a condição simbólica da Fênix, ave que, segundo a mitologia egípcia, renasce e se recria a partir das cinzas, quando é abatida...


I

DA HOMOGENEIDADE DE PRÁTICAS RELIGIOSAS PARA O CONSUMO DE PRODUTOS RELIGIOSOS



Para muitos de nós, que fomos educados na fé segundo a herança da cristandade medieval, herdamos um imaginário religioso no qual predominou a busca da homogeneidade, como expressão de força e de unidade religiosa.
Até poucos anos atrás, quando a maioria das pessoas brasileiras ainda morava em ambientes rurais, o tempo e o espaço dependiam fundamentalmente dos valores religiosos. Tudo parecia muito regular e estável. Tempo de plantio, de espera e de colheita. O que mais alterava o ritmo da vida eram os momentos litúrgicos fortes, como Natal, Páscoa, Pentecostes e festas religiosas, especialmente as que envolviam nomes de santos e de santas, escolhidos como padroeiros das comunidades.
A vida de uma comunidade dependia mais do padre do que do prefeito, porque o padre orientava o tempo e o modo de ocupá-lo no correr do dia, da semana, do mês e do ano. Em outras palavras, o padre mapeava o comportamento da vida pessoal, familiar e comunitária. Todos sabiam o que tinha que ser feito e o que significava pecado e seus níveis de gravidade. Deste modo, a religião formava um universo de sentido para a vida das pessoas. Por isso, as festas de padroeiros, e outros momentos importantes também reforçavam a identidade e o sentimento de pertença das pessoas a uma comunidade local. As lidas, como plantio, colheita, nascimentos, mortes e festas, encontravam, nos ritos religiosos, uma força de unidade. Parecia que tudo estava em conformidade com o que Deus queria e, assim, através das orientações do padre – que tinha as respostas certas e prontas para tudo o que viesse a ocorrer, - todos sabiam como agir para se sentirem pertencentes a uma comunidade, através do batismo, da primeira eucaristia, da celebração do sacramento da crisma, do casamento, das confissões, etc. Cada pessoa tinha conhecimento claro do que a levaria para o céu ou para o inferno.
Certamente já pudemos perceber que este modo coeso e uniforme está desaparecendo rapidamente na vida das cidades, para onde vieram quase todas as pessoas que moravam em ambientes rurais.
Sob o quadro da homogeneidade, o importante era a presença do maior número possível de pessoas de uma comunidade em atos litúrgicos, celebrativos e festivos.
 Mesmo com grandes aglomerações ou Igrejas cheias, predominava o culto pessoal. A grande quantidade de pessoas não necessariamente significava oração comum e coletiva, pois, muitos apenas rezavam em torno de suas situações pessoais, ou iam para cultivar suas devoções a santos e a santas.
Ao lado de grandes figuras humanas e com grande riqueza de fé cristã, parte razoável dos que se reuniam para rezar, nem sempre o fazia por consciência comunitária e celebrativa com os demais membros da comunidade.
Aquelas estruturas de organização, a partir da religião, cultivavam interessantes esquemas de comportamento para o cotidiano. Um dos principais valores era o da reciprocidade: as pessoas se sentiam bem ao partilhar algo para vizinhos ou para outras pessoas, como um doce, frutas ou quaisquer outros produtos que as outras pessoas pudessem consumir. Muita gente se sentia edificada ao poder ajudar com serviços ou donativos para a construção de obras importantes.
 Valorizava-se muito o gesto de dar, de emprestar, de devolver. Até mesmo para as visitas, havia uma regra prática de retribuição. Do mesmo modo, participar da festa de uma comunidade significava que esta comunidade iria retribuir, à outra, uma visita no dia da sua festa.  Basicamente, este mundo religioso que a maioria de nós herdou do rico passado rural, vem desaparecendo nos ambientes urbanos e, até mesmo, nos espaços rurais porque estes, atualmente, estão estreitamente ligados ao modo de vida das cidades.
 Hoje, longe da homogeneidade e do culto pessoal, vemos predominar, em nossas cidades, uma grande variedade de orientações religiosas e, com uma diferença profunda: já não é mais o controle e o poder religioso que dá coesão à vida das pessoas na cidade, mas, a relação de mercado. Enquanto que na vida rural, poucas pessoas das cidades de décadas atrás compravam e vendiam produtos.
No cotidiano das cidades atuais, revela-se o fluxo de espaços e lugares, nos quais todos compram e vendem e, onde se compra e se vende de tudo... Por isto, constatamos que na vida urbana, o lugar do poder religioso foi reduzido em seu antigo papel porque foi ocupado por outro poder, o poder de mercado. Este poder do sistema capitalista é quem mapeia o comportamento do cotidiano das pessoas nas cidades (é o mercado que diz o que se deve fazer para preencher o tempo). Ele faz sonhar, ele desperta necessidades e diz como se vestir, o que comer nas refeições, o que beber e como se deve lidar com as outras pessoas. Assim, a própria religião acabou transformada em produto, como quaisquer outros, para ser vendida e consumida.
Na prática, ocorre algo bem simples: no lugar do poder divino, administrado pelos padres ou pastores, está o poder terreno, que já não se preocupa com coisas divinas, mas que vai dizendo todos os dias, através dos meios de comunicação, como preencher bem as horas dos dias e das noites. Não estabelece tempo para exercícios de piedade, mas deixa isto por conta de cada pessoa. Não estimula oração para pedir ajuda de Deus, mas ensina como podermos ser fortes, poderosos, felizes e como podemos ser cada dia mais bonitos, atraentes e bem sucedidos.
 A vida material já não depende das instâncias divinas, mas do sistema de mercado que oferece muitos pequenos deuses para a vida íntima: são pílulas, são tratamentos, são anjinhos, figas, amuletos, imagens, objetos poderosos, energias e rituais que salvam problemas interiores e assim, o Deus salvador que Jesus Cristo anunciou, passa a ficar em segundo plano, ou, totalmente de lado. Na cidade, é o mercado quem diz o que se deve fazer para ser feliz e para salvar-se...
A cidade, ao contrário do que a homogeneidade rural apresentava para a segurança da vida das pessoas, se caracteriza por uma grande heterogeneidade. A começar pela qualidade de certas avenidas, ruas, vilas, bairros, prédios e condomínios, podemos constatar diferenças enormes. Umas encantadoras e ajardinadas, outras feias, esburacadas e cheias de lixo.
 Na cidade também se manifesta uma enormidade de diferenças na qualidade e beleza de umas casas em relação a outras, no modo de vestir das pessoas, no uso da qualidade de carros, no aparato de clubes e associações, enfim, diferença de classes sociais, de costumes de raças, de procedências regionais, de níveis de estudo, de crenças religiosas e até de personalidade.
Diante da oferta quase infinita de bens de consumo que a cidade oferece para deixar seus membros felizes, ela acaba mudando seu jeito de ser. Em consequência, os membros da cidade passam a considerar que não é importante pertencer a uma comunidade e trabalhar em favor de obras comunitárias.
 Vemos que a característica da homogeneidade das pessoas cede lugar para uma quase infinita heterogeneidade. As pessoas querem ser valorizadas como únicas, como singulares e diferentes. Não querem ser vistas como iguais ou parecidas com as outras, nem mesmo no vestir. Querem atenção ligada ao seu corpo. Por isto, também querem ver seu corpo envolvido na expressão religiosa. Daí o interesse mais explícito por dança, ritmo, ginástica, aeróbica, mas, igualmente, para exibir o corpo na veste, no ornamento, nos perfumes e outros variados objetos de enfeite. Querem sentir felicidade no corpo (pequenos deuses terrenos).
 Podemos reparar, especialmente nos mais jovens que não viveram o mundo rural, que o pouco de proximidade que mantêm com espaços religiosos tradicionais, geralmente é apenas com os que podem envolvê-los em festivais e shows.
            O mundo religioso tradicional, o da cristandade, dava muita importância para festas religiosas e para momentos litúrgicos fortes, como Natal, Páscoa, Pentecostes, dia do padroeiro e, para os ritos de passagem, tais como batismo, crisma, casamento e morte. A organização hierárquica da Igreja procurava organizar e também mobilizar esta grande unidade na homogeneidade.
Quanto a este aspecto religioso, podemos constatar uma alteração muito grande na vida urbana, especialmente de alguns anos para cá: as férias tomaram o lugar dos dias festivos e religiosos. Assim, dias de festa ou feriados significam passear, curtir piscina, fazenda, sítio e, pelo que mais se evidencia, a praia é o lugar mais adorado. O grande templo de nossos dias atuais está sendo a beira do mar. É o lugar que agrega maior número de pessoas neste planeta Terra.
 Percebermos, talvez com certa estranheza, que os momentos fortes de vida, de elevação ou de contemplação, já não acontecem nas festas tradicionais de novenas, romarias e procissões, mas em outros eventos sociais e turísticos. Muitas pessoas sentem-se gente apenas nestes novos espaços da experiência de si e de Deus. Ainda que alguns setores da Igreja, como movimentos e pastorais se empenhem na busca de êxito das festas tradicionais, conseguem atrair e envolver poucas pessoas, porque elas se dispersam movidas por interesses pessoais e pelo marketing turístico, mesmo que seja para romarias a santuários e grandes eventos religiosos. Deste modo, enquanto uns se mobilizam numa comunidade para organizar a festa do padroeiro, outros, se organizam para sair em excursão, congresso, encontro, ou romaria a algum lugar distante.
 Em tempo de férias e de outros grandes eventos sociais, como agrishows, exposições, rodeios e festas em torno do que mais se produz numa região, a indústria do turismo encampa o espaço que uma vez era reservado para o momento das celebrações religiosas. Predomina, pois, o ato de “curtir” como expressão de felicidade, onde não vigoram verdades, nem preceitos éticos, morais e nem religiosos, mas, os produtos da beleza, da saúde, do vigor, da forma física, do regime, enfim, uma religião que adora o corpo e no que ele pode alargar-se com posses e bens de consumo.
Percebe-se, no entanto, que apesar de toda a heterogeneidade que se apresenta nos costumes, nas práticas e nos modos de ser das cidades, o consumo é talvez a única característica que foge da heterogeneidade, isto é, a cidade apresenta uma extraordinária homogeneidade de consumo. Basta reparar, dia das mães, dia dos namorados, dia da criança, Natal, Páscoa, etc. Faz-se de tudo para transformar qualquer evento, seja religioso ou profano, em ótimo momento de compra e venda. Um momento especial para consumir mais do que o normal.


II

 

 

 DA REJEIÇÃO DAS REGRAS RELIGIOSAS À SEGURANÇA DAS REGRAS CONSUMISTAS



Diminui rápida e progressivamente o número de pessoas que ainda sejam capazes de tolerar, ou que ainda aceitam imposições doutrinais provenientes da religião. Talvez esta mudança equivalha a uma força contraditória, parecida com o balançar de um pêndulo de relógio. Depois de receber força de propulsão para se deslocar alto para um lado, a propulsão da queda tende a fazê-lo subir ao extremo oposto.
Em boa parte, tal fenômeno de distanciamento das regras religiosas decorre do sistema econômico, pois ele estimula cada dia mais, a fazer escolhas pessoais diante das muitas ofertas que se apresentam. Desta forma, tal como escolhemos roupas, doces, salgados, eletro-domésticos e tantos outros produtos de consumo, também somos levados a desejar escolher preceitos religiosos e adotar regras religiosas que sejam do nosso agrado. Até ousamos, em nossa presumida liberdade, fazer uma escolha entre ter ou não ter crenças religiosas identificáveis com religiões ou, com o estilo de pessoas religiosas.
Constata-se, de forma geral, que a religião perde a capacidade de estabelecer imperativos e normas para a crença das pessoas, porque elas restringem este campo de regras gerais para todos e, quando as admitem, procuram levá-las em conta, apenas para a esfera íntima e privada.
Sem dúvida, esta mudança pode ser fruto da onda consumista que nos envolve, porque estamos sendo induzidos e chantageados a nos identificar com variados valores simbólicos e culturais. Também nos sentimos estimulados a apropriar-nos do maior número possível de bens materiais. Assim, acabamos adotando estilos variados, nem sempre originais e espontâneos, porque eles, mesmo na sensação de que constituem algo significativo para nós, aparecem como reflexo do que anteriormente foi assimilado para ser consumido.
Em decorrência, certas imagens, certos sonhos e certos sons, adotados em nosso mundo de fantasias como meios que nos tornam heróis, importantes, originais e muito distintos dos outros seres humanos, são, na verdade, imperativos econômicos. Nesta nova dependência, revelamos um paradoxo, ou uma contradição, pois, tendemos a não aceitar regras religiosas, mas, toleramos, com a maior facilidade, regras impostas pelos ditames ou pelas prescrições do sistema de consumo.
Esta mudança de postura em relação aos valores religiosos, mais do que uma incoerência das convicções pessoais, pode representar uma estimulação maior de uma força aparentemente oculta que se impõe pelo atual sistema de vida. Este nos coloca numa situação que pode ser ilustrada com a imagem de quem vai tomar banho na piscina de um navio: a pessoa pode estar optando por nadar no rumo norte da piscina, mas o navio a leva, com a piscina, para a direção sul.
Como a rota do navio, ou a onda de consumo estabelecida na sociedade apresenta uma força maior e se constitui num imperativo mais categórico, radical e sugestivo do que o religioso a respeito do que fazer para “sentir-se bem” pode, todavia, mover pela convicção de não aceitar nenhum imperativo exterior e, mesmo consumista, nos mover sob a ação do imperativo econômico superior, do qual não nos damos conta. Deste modo, assim como pensamos estar na plena liberdade para experimentar tudo e qualquer coisa, sentimo-nos no direito e nas condições de fazer nossas opções religiosas, segundo critérios subjetivos. Todavia, podemos estar como frangos de engorda nos aviários, sendo tratados para uma ilusória autonomia.
O que se pode, então, esperar da religião? Certamente, grande parte dos que a procuram, a buscam apenas na medida em que ela oferece prazer e emoção e vantagens econômicas. Se a religião ainda pretende ajudar na construção objetiva de comunidades, na construção de ambientes mais humanitários, de pessoas mais solidárias, de “EUS” importantes para a convivência social, ela só encontra sucesso enquanto oferece satisfações agradáveis. Daí a dimensão light, diet e soft de tantas ofertas religiosas que se apresentam em programas televisivos, radiofônicos e até de celebrações comunitárias.
Aparentemente as ofertas de consumo incorporam, além dos impostos e das imagens hiper-reais dos produtos, outro importante ingrediente: o do sentido de vida para as pessoas, pois, vêm associados a prazer, a realização e a felicidade.
            Por conseguinte, encontramo-nos diante de um sistema de vida e de consumo que leva a um deslocamento do eixo da religião. Ela perde a função de ser gestora de vida pública e social, papel que exerceu intensamente ao longo de muitos séculos em nossa sociedade ocidental, e passa a ficar restrita ao nível das escolhas pessoais. Sem sua tradicional função socializadora, a religião fica dependente da esfera das escolhas feitas por motivações subjetivas.
Tal fenômeno, evidentemente, provoca crises nas religiões que se apresentam como universais e como únicas portadoras da verdade e da salvação...
            A entrada em cena das buscas e das manifestações religiosas decorrentes da ordem pessoal de escolhas gerou, nos últimos anos, um relativismo que pode ser aglutinado em duas formas já conhecidas:
a) a espiritualidade difusa – que centraliza emoção, o sentimento, a sensibilidade e a busca de identidade (a minha religião sou eu mesmo); A espiritualidade difusa leva a uma prática religiosa sem vínculos institucionais. Neste distanciamento, predomina a religião subjetiva e intimista. Os outros, geralmente, sequer conseguem perceber esta “minha religião”...

b) a espiritualidade performática – que é uma reação praticamente contrária à concepção difusa, mas, que se situa no mesmo quadro emocional. Pelo menos aparentemente, é saudosista, porque se apresenta como a mediação para recuperar o “paraíso perdido”. Por esta razão argumenta com verdades categóricas e absolutas como certezas de salvação. Como também se situa na perspectiva emocional e sentimental, oferece o sagrado e o transcendente através de graças e de milagres. Trata-se de uma re-institucionalização que tenta implantar o imperativo doutrinal, porém, adaptado ao novo ambiente consumista;
Esta espiritualidade valoriza particularmente dois elementos: o corpo e a linguagem persuasiva: tenta fascinar, envolver por danças, ritmos e muitos gestos direcionados. É um direcionamento sutil: “feche os olhos”, “faça isto”, “pense tal cena”; “diga isto e mais aquilo para Deus neste instante...”. “Ele quer que você faça isto...”; “repita comigo”; “ponha a mão sobre o coração”; “não resista a Deus...”; “aceite o Espírito Santo” e tantas outras orientações que levam a estados de transe.
Ao lado dos comandos direcionados, a espiritualidade performática apresenta certezas religiosas, associadas a técnicas psicológicas dos chamados “pios conselhos” para a vida familiar e matrimonial. Tais conselhos apresentam forte conotação moralista e moralizante, como bem se pode observar em muitos e variados programas apresentados em rádio e televisão.
 Estes discursos de certezas categóricas misturam-se a técnicas psicológicas relativamente simples, por meio das quais, contudo, se supõe que aconteça a manifestação divina: a intervenção forte e imponente do sobrenatural, bem como, a ação milagrosa instantânea e eficaz do Espírito Santo...
Esta espiritualidade performática procura, por trás dos olhares sorridentes, artificiais e da linguagem midiática, uniformizar e estereotipar o que espera dos fiéis: uma regeneração moral, psíquica e comportamental. Pelo esforço de enquadramento, aparecem aos desejosos de mudança e “conversão”, as promessas financeiras e, com a maior facilidade, exploram-se casos individuais literalmente duvidosos, tais como: “estava perdido e a graça de Deus me salvou; agora estou rico...”, “estava na desgraça e Deus me resgatou...”, “estava na devassidão e o Senhor me libertou...”; “estava perdido e Deus, mesmo assim, foi ao meu encontro...”; “estava cego nesta vista, depois na outra e, agora, enxergo nas duas”; “estava surdo num ouvido e de repente nos dois, mas, depois da graça, aqui nesta Igreja, ouço nos dois”...
Na narrativa destas mirabolantes e miraculosas interferências de Deus, ocorre, todavia, uma manifesta banalização do milagre, pois sempre vem condicionada à assídua participação da pessoa fiel na determinada Igreja ou em determinado movimento e diante de certa pessoa. Um exemplo ilustrativo é o efetuado pelo padre Marcelo: o milagre acontece quando se bebe a água que ele benze no referido programa...
Diante deste quadro, torna-se importante lembrar uma insistência comum do teólogo João Batista Libânio: ele costuma destacar que a fé cristã, ou é comunitária e eclesial, ou não é fé cristã.
            Por isso, podemos indagar-nos a respeito dos desafios que se apresentam, hoje, à vivência da fé cristã na vida urbana.
Um primeiro aspecto que podemos salientar é o de que as conversas sobre religião não se centralizam, tal como acontecia há décadas atrás, em torno do padre e da comunidade, mas muito mais em torno da identidade e da razão de ser da Igreja. A simpatia pelas escolhas subjetivas da religião traz aos cristãos uma real dificuldade para a vivência da eclesialidade ou, da participação na comunidade.
As dificuldades relativas à pertença numa comunidade envolvem ainda outras questões delicadas para a eclesialidade da fé: seria o pecado e, a graça seria apenas uma questão da interioridade individual? Afinal, que tipo de aliança supera o pecado?
As dificuldades também se alargam quando tentamos pensar a Igreja: precisa ela renovar-se, isto é, adotar outras formas, outras regras, ou precisa apenas reformar algumas grandes tradições herdadas do passado?
Mais outro nível de dificuldades pode aparecer quando pensamos no papel social da Igreja: precisa ela ser conformista e conformada com o ambiente social ou precisa ela ser profética, tal como na ótica de Jeremias, ser capaz de cortar, demolir para edificar algo melhor?
Ao lado das múltiplas dificuldades, ainda temos que lidar com as muitas decepções em torno de infidelidades e de muitos problemas criados em comunidades que, na verdade, acabam sendo adiados e não resolvidos. Estas tensões e conflitos fazem com que muitas pessoas realmente desanimem e se isolem da vida e da pertença a uma comunidade.
Evidentemente, quando pensamos em Igreja na cidade, não aparecem apenas problemas. Certas críticas e fofocas não passam de deslocamento de sintomas pessoais, projetados sobre outros ou sobre a comunidade e, o menor nível de bom-senso é suficiente para contestá-las.
Podemos constatar, ao lado destes sinais edificantes, incontáveis pessoas que nos enchem de admiração e de encantamento pela sua constância, pela sua fidelidade e pela sua capacidade de ação para o entendimento e o bem-comum e pela sua fortaleza na fé. Igualmente podemos experimentar, em muitas situações, que a Igreja está sendo um eficaz sacramento de salvação porque encarnada, ativa e eficiente, age para solucionar variadas dificuldades sociais e humanas.


III


REPERCUSSÕES DA GLOBALIZAÇÃO NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO URBANO[1]
           

            Neste capítulo vamos salientar alguns elementos da globalização que nos ajudam a entender o “porque” da rápida transformação religiosa nos ambientes urbanos. Especialmente na quebra de fronteiras, a globalização mexe com nossas heranças e tradições religiosas.
As ciências sociais, especialmente Sociologia, História, Psicologia e Antropologia, tiveram seu surto de afirmação e notável crescimento no século XIX, momento em que o nacionalismo também se encontrava no auge de sua capacidade de afirmação. Ainda hoje, a maioria dos conceitos, problemas que aparecem e a consequente busca de interpretação e entendimento destes fenômenos sociais, estão relacionados à concepção de Nação-Estado, envolvendo política, economia, religião, problemas sociais, autonomia, soberania, etc., em função da organicidade e coesão da própria nacionalidade.
            Este dado é fundamental para pressupor que os pensadores clássicos das ciências sociais tivessem pensado os problemas que os inquietavam, dentro de quadros referenciais nacionalistas. Por esta razão, pensadores de nossos tempos, como Octávio Ianni e Renato Ortiz, chamam atenção quanto aos discursos e conceitos destas ciências sociais: estão se mostrando inadequados para explicar o fenômeno da globalização de nosso tempo porque ela extrapola o parâmetro nacionalista.
            A globalização não é um fenômeno totalmente novo das últimas décadas. Pode ser considerada continuação de profundas transformações sociais e mentais realizadas há mais de um século. Expressões de mais tempo indicavam esta  mudança, como as de “aldeia global”, ‘fábrica global”, “sistema mundial”, “mundo virtual”, “consciência cósmica”, “mundo sistêmico”, ”racionalização do mundo”, “holismo”, etc.






3.1 - O que é globalização?

            A globalização é um conjunto de fenômenos culturais, políticos e econômicos que ultrapassam as fronteiras de povos e de nações. Atingem indivíduos, grupos, classes e sistemas de organização social.
 A primeira pergunta que tal definição certamente desperta, é relativa ao Estado-Nação: vai este desaparecer?  Tal previsão se torna difícil de ser feita devido às muitas contradições da condição humana. Entretanto, pelo que a globalização está mostrando, vai continuar a ser uma “aldeia global” ocupando vilas, povoados, estados, nações e irradiando cultura e civilização. Em outras palavras, vai gerar novas formas de vida, de crença e de convivência humana.
Com certeza, vão continuar, e por muito tempo, nações mais dominantes, mais desenvolvidas e mais industrializadas, vivendo ao lado de outras mais modestas, problemáticas, contraditórias, conflitivas, mas empenhadas na busca de superação das dificuldades. Vão lutar pela sua pátria, pela sua identidade, por suas regras, por seu sistema jurídico, por sua língua, seus traços religiosos, seus heróis e suas memórias de conquista e superação. Mesmo assim, a progressão da marcha globalizadora no planeta Terra, indica um gradual processo de aniquilamento dos Estados-Nações. Convêm, todavia observar, que nenhum Estado vai aceitar desaparecer, sem mecanismos de reação e ajustamento, para dar lugar à globalização: irá certamente redefinir-se, rearticular-se e adaptar-se às novas injunções globalizadas, e, não será em poucos anos que irão desaparecer os Estados com sua história, sua geografia, cultura, tradições, crenças, símbolos, memórias e monumentos.
            Renato Ortiz usa a expressão “novo patamar” para caracterizar a globalização, uma vez que apresenta certa ruptura, mas apresenta, simultaneamente, uma continuidade do sistema capitalista e da revolução industrial dos últimos séculos, ou seja, constitui-se num degrau de avanço sobre outras experiências anteriores.[2]
            O que se pode observar de forma genérica, é que as nações já não interagem mais de forma autônoma, e, nem tampouco se percebe que suas inter-relações são causadas por um centro hegemônico, como até pouco tempo se pensava.
            Segundo Ianni, as características da globalização, além de numerosas, são também poderosas e podem tornar o Estado-Nação anacrônico, e fazer da soberania nacional uma quimera porque vão implantar outras regras e exigências de ordenamento mundial: “com a mundialização da economia, política e cultura, emergem desafios relativos aos mais diversos aspectos da sociedade propriamente global: ecologia, ambientalismo, energia nuclear, terrorismo, narcotráfico, máfia, xenofobia, etnocentrismo, racismo, mercados, patentes, convertibilidade de moedas, moeda regional, moeda global, telecomunicações, monopólios, oligopólios, produção e difusão de informações...”[3]
            Uma segunda questão, que possivelmente emerge da definição de transgressão das fronteiras, diz respeito a todo um contexto que permitirá aos indivíduos circular em todas as direções do planeta, o que irá mudar substancialmente suas identidades, porque vão absorver outros costumes e aprendendo outras formas de relacionamento e de concepção da vida. A internacionalização do trabalho, do mercado e da cultura, vai recriar espaços físicos, culturais, políticos, econômicos e até turísticos. Sob este aspecto, convém lembrar que a globalização não é uma realidade à parte, ou fora das realidades nacionais. No entanto, ao entrar em todos os espaços, tanto geográficos quanto culturais, vai gerar outro tipo de combinações, seja no relacionamento ou na organização social e na manifestação das crenças religiosas.

 3.2 - Quando surgiu a globalização?

            O termo “globalização” começou a ser usado em escala mais abrangente e larga, somente a partir de 1980. Nesta época as economias do Pacífico Asiático (Japão, Coréia e Taiwan), os chamados “Tigres Asiáticos” estavam revelando um crescimento, que aparecia aos olhos de muitos analistas como sendo quase perfeito. Segundo Dae Won Choi[4] “com o Acordo Plaza de 1985 deu-se início à globalização. Este período é caracterizado por uma crescente incerteza por diversas razões. Primeiro, porque é um eufemismo para a liderança industrial do Pacífico asiático em termos de epicentro da globalização. Segundo, porque o desenvolvimento na materialização do conhecimento humano é alcançado em detrimento de uma dramática relativização da variável tempo. Finalmente, houve grande volatilidade causada pela nova e inesperada realidade”.
            As incertezas, todavia, apresentam raízes mais distantes e decisivas que vamos destacar no item que segue.

3.3 - Antecedentes da globalização

            A globalização propriamente dita foi antecedida por dois fenômenos bem distintos, mas ao mesmo tempo, relacionados:
a)    Internacionalização - cresceu espantosamente a circulação de produtos para além das fronteiras nacionais, a partir do século XVI, e, sobretudo, com a revolução industrial no final do século XVIII. Este fluxo de mercadorias atingiu praticamente todas as partes do planeta.
b)    Transnacionalização – Este fenômeno levou à produção de partes de máquinas e equipamentos em diferentes países. Um exemplo ilustrativo foi o do automobilismo: as peças de um carro passaram a ser produzidas em distintos lugares e montadas em outros. Segundo Choi, “transnacionalização significava produção transferida do centro inovador, mas de alto custo, para as terras e trabalho mais barato da Periferia quando o produto estava pronto para permitir estandartização. Como o produto continuava a evoluir novas localizações externas foram encontradas para uma combinação de fonte e acesso mais baratos a novos mercados.”[5]

A partir destas duas características, poderíamos concluir que a globalização resulta apenas de um fenômeno de mercados, de tecnologia e de comunicação. No entanto, a globalização também se dá em paradigmas culturais, mesmo que não seja de forma tão explícita e vistosa como nos mercados de capitais.
Num certo prisma, poder-se-ia também pensar que a globalização está sendo uma mundialização da cultura ocidental. Neste caso, significaria a morte das culturas locais e regionais. Por mais que estas tentassem salvar suas particularidades e, por mais que pretendessem independência e autonomia política, acabariam sendo desintegradas porque a cultura do Ocidente, exportada, acabaria com os mundos culturais de povos, etnias e identidades contextualizadas. Observa-se, todavia, que este processo é dialético, revelando ascensão de novos elementos culturais, mas ao, mesmo tempo, fenômenos de resistência e de negação do que é apresentado como novo. Assim como alguém pode absolutizar a universalização de um mundo ocidental, pode absolutizar um particularismo, talvez tão ou mais abstrato como o outro. Sob a defesa da universalidade ou da particularidade local, esconde-se, normalmente, uma postura ideológica e, também, conflitos éticos e políticos em torno de poder e dominação.
A este respeito, não ocorre apenas uma limpeza, como na linguagem da computação quando se fala em “deletar”, ou apagar tudo o que estava escrito, desenhado ou gravado. O que se pode reparar é que, ao lado da globalização, as culturas locais continuam assumindo seu passado, suas tradições e não necessariamente são bloqueadas as suas tradições e nem mesmo seus ideais. Podem nascer dali, passos para algo novo e diferente do porvir cultural. De qualquer forma, estamos diante de uma adequação entre contextualidade local e universalidade, na qual pode tornar-se mais saliente tanto a universalização da cultura quanto a recuperação de culturas locais.

3.4 – Explicações mais comuns sobre a globalização

            Há diversas e distintas maneiras de explicar os recentes fenômenos culturais, identificados com a globalização:
a) Um centro irradiador – Centros hegemônicos, como os Estados Unidos e a Europa, estariam aumentando sua incidência sobre nações periféricas, que antes estavam mais autônomas, independentes e isoladas. Neste caso, a globalização poderia ser definida como uma moderna forma de imperialismo. Há algumas décadas atrás, por exemplo, costumava-se fazer este tipo de leitura aqui em nosso Brasil.
b) A globalização vista pela idéia de uma “sociedade global”. Tal leitura permite dar maior ênfase a tudo quanto implica em relações macro-sociais ou planetárias. Sob este ponto de vista, já não estariam acontecendo inter-relações de um País ou de uma sociedade com outras, mas, um processo diferente de “intra-relação”, isto é, não serviriam mais os referenciais de “centro-periferia”, ou “dentro e fora”, mas estaria ocorrendo um novo modo de relações humanas.
Este novo modo de ser implicaria numa “desterritorialização” dos espaços que, antes, estavam delimitados, marcados e definidos por conceitos, regras e direitos. Nesta nova forma, mundializada, ”faz parte do nosso cotidiano, de nossos hábitos (fazer compras, ir ao cinema ou ao teatro, ver televisão, olhar a publicidade, se deslocar pelas ruas, sair de férias, etc.) A mundialização da cultura não é uma ‘falsa consciência’, uma ‘ideologia’ imposta de forma exógena. Ela corresponde a um processo real, transformador do sentido das sociedades contemporâneas.”[6]

c) A questão do “de onde” ler a globalização - Se o referencial das nacionalidades não é adequado para ler a globalização, qual seria o perfil mais adequado para uma análise? O das classes sociais?
Se a globalização realmente se situa para além dos limites territoriais, então, com certeza, não poderá ser lida adequadamente da referencialidade territorial. Precisará, por conseguinte, o referencial de análise também ser desterritorializado. Sob tal ótica, não poderíamos fazer uma leitura apropriada da globalização, desde o Brasil, por exemplo, ou de qualquer outro País, porque nos levaria a utilizar os velhos conceitos territoriais.

d)   Postura otimista diante da globalização - Não são poucos os que veem na globalização uma primorosa chance de possibilidades para que os excluídos da chamada “aldeia global”, possam, através dos recursos da tele-informática, entrar num processo de inclusão. Usando uma imagem bíblica, seria o momento de se implantar uma linguagem capaz de superar a “Torre de Babel” da confusão de línguas, costumes e separações classistas.

e) Concepção pessimista da globalização - é a que supõe que o fenômeno da globalização aniquila de vez as diferenças, os valores locais e as conquistas históricas de minorias étnicas, para padronizar tudo num único referencial de cultura. Seria algo parecido como comer em qualquer parte do planeta um hamburger Mc Donald’s.
f) Atitude desconfiada da globalização – integra uma representação de pessoas que veem na globalização o risco contrário da multiplicidade de valorizações locais, específicas e de resistência à “uniformidade global”, e veem precisamente nisto o risco da “Torre de Babel”, ou seja, incapacidade de entendimento, porque vão surgir tantos fundamentalismos, e afirmações particularistas que os seres humanos já não acharão caminho de entendimento. Com um pouco de bom-senso, certamente se poderá perceber que a vida real ainda está longe, tanto da unidimensionalidade quanto da multiplicidade cultural. Os extremos, portanto, não parecem apresentar as ameaças mais sérias à vida humana.

g) O lugar que mais explicita a globalização - Sem dúvida, é a grande cidade o lugar que melhor explicita a globalização do mundo. Segundo Ianni, a cidade manifesta o que existe de mais avançado e extremado em termos de possibilidades sociais, políticas, econômicas e culturais e é ali que florescem os mais variados tipos de experimentos filosóficos, artísticos e científicos.[7]
                        Uma cidade revela, simultaneamente, aspectos tradicionais, locais, regionais, mas também nacionais e mundiais. Umas são mais artísticas, outras mais culturais, outras mais tradicionais, outras mais religiosas, umas mais conservadoras e, outras, extremamente abertas a qualquer tipo de novidade. No entanto, quanto maiores, mais as cidades misturam diversidades e multiplicidades de características. Ali se ampliam estruturas de grandes empresas que tendem a levar o nome e a identidade da cidade para além das fronteiras políticas, religiosas, comerciais e do poder local. Assim, cidades como São Paulo, Frankfurt, Cingapura, Nova Yorg, etc., se revelam cidades mundializadas ou globalizadas, independente do sistema político-econômico-social vigente em cada um de seus Países.
            Segundo Ianni, “a cidade pode ser um caleidoscópio de padrões e valores culturais, línguas e dialetos, religiões e seitas, modos de vestir e alimentar, etnias e raças, problemas e dilemas, ideologias e utopias. Algumas sintetizam todo mundo, diferentes características da sociedade global, tornando-se principalmente cosmópoles, antes do que cidades nacionais”.[8]
Ao mesmo tempo em que uma cidade é global, ela se subdivide em subclasses, famílias, vizinhanças, segmentos, bairros, etnias, em que se mistura de tudo, desde problemas sociais, de saúde, habitação, educação, etc., mas também as mais variadas formas de lida com vistas à superação de tais situações. Parece haver lugar para tudo e para todos: mendigos, viciados, beberrões, beatos, “rueiros”, fechados, isolados, etc. Ianni destaca que “é na cidade, metrópole ou megalópole, não só pela sua dimensão, mas principalmente por suas articulações, que a globalização se revela um processo de amplas implicações, novo e surpreendente, revolucionando a geografia e a história, desafiando a prática e o pensamento de todo o mundo.”[9]
                        O traço certamente mais destacado da cidade global é o de revelar muito mais afinidade com problemas, produtos e situações mundiais do que nacionais e regionais. Ali tende a predominar o cosmopolitismo tanto de pessoas, quanto de objetos e de valores, costumes e hábitos.

g) – O lugar da diferença na globalização - Já salientamos que o processo da integração humana se desenrola num processo contraditório, pois não é apenas linear, porque desperta reações e resistências, mas também revela mudanças contrárias a uma possível monocronia cultural.
Se a cidade revela a dimensão globalizadora, a política parece revelar um fenômeno que foge da compactação de tempo, de distâncias, de diferenças e de barreiras culturais para tornar hegemônicas as características grupais e os interesses locais. Basta ver que uma política nacional perde soberania, em relação aos últimos séculos e se abre em duas manifestações bem nítidas, mas simultâneas:
a)     De um lado, a política absorve dimensões transnacionais, como a preocupação por direitos humanos, ambientais e ecológicos, e revela que as regras já não dependem tanto das políticas nacionais como protagonizadoras do bem-comum e do “bem-estar geral da nação”, mas dependem de organizações supra-nacionais. Basta lembrar o caso do desmatamento da Amazônia... A preocupação parece ser mais internacional do que propriamente um caso de preocupação da organização política brasileira.

b)     Ao lado da origem supranacional de certas posturas políticas, aparecem cada dia mais os interesses por poderes locais. Segundo Paula Monteiro, “o ressurgimento dos poderes locais, a fragmentação do arcabouço jurídico-político dos Estados nacionais, a movimentação das populações ao longo das linhas de atração dos mercados de trabalho mundiais, são elementos que põem o problema da revitalização da lógica particularista das diferentes culturas na ordem do dia-a-dia da nossa reflexão.”[10]  Uma ilustração do interesse local, priorizado em relação ao nacional, pode ser verificado no interesse de políticos por cargos em certas Prefeituras, como a de São Paulo, mais disputada do que o de governador ou de cargo no Senado.
Ao lado desta emergência local, aparece também muito evidente a política de grupos e não mais a política da democracia. O pressuposto clássico da democracia, no horizonte das nacionalidades, era o de que cada indivíduo é um agente político na sociedade. Desta forma, as sociedades passariam a contar com muitas instâncias de organização política para a soberania da nação. No entanto, o que podemos observar, é que os políticos já não são porta-vozes de interesses nacionais, mas, apenas, dos grupos que representam. E quando estão em cargos hegemônicos, usam os recursos nacionais para os interesses do seu grupo, sem maiores problemas de consciência. Deste modo, no lugar dos interesses nacionais, emergem os interesses grupais, porque parece ter desaparecido a margem da fronteira entre o público, o geral e o particular. Segundo Paula Monteiro, “prevalece, portanto, nas democracias contemporâneas, a prática da representação dos interesses corporativos sobre os da representação política.”[11] Basta lembrar os recentes escândalos de desvio de verbas públicas, como no caso do juiz Nicolau, caso Sudene, Jader Barbalho, caso do mensalão, “sanguesugas”, “dossiê contra o PSDB” e tantos outros. Por conseguinte, falar em democracia parece uso de um discurso vazio, porque subentende vontades particulares, com acesso a lugares privilegiados da esfera pública. O Estado, como mecanismo institucional, já não se revela o melhor instrumento para interesses gerais.
  A globalização, como tantos outros fenômenos sócio-culturais, vem se mostrando uma realidade ambígua. Há mil coisas boas, fantásticas e encantadoras, frutos deste movimento de integrar todo o gênero humano numa mesma aldeia de valores, gostos e ocupações. Por outro lado, este mesmo fenômeno de nivelamento das diferenças também envolve complicações e dificuldades para quadros institucionalizados.
Um primeiro efeito é o da “desinstitucionalização” religiosa. Da rigidez das normas, que levavam incontáveis comunidades a fazer as mesmas coisas nos mesmos horários ou a praticar os mesmos rituais, os mesmos gestos e as mesmas atitudes éticas e morais, passa-se para uma dimensão mais “soft” (suave), agradável, emocional e que não interfira nas estruturas sociais, econômicas e políticas, por mais injustas e inadequadas que possam apresentar-se para os membros de uma sociedade;
Um segundo aspecto é que a globalização desperta uma ênfase para a busca de novas experiências. Parece que estamos num mundo onde tudo e qualquer coisa podem ser feitas e experimentadas. Assim, ocorre um natural estímulo para experiências novas, ousadas, que encantem e fascinem as pessoas, isto é, busca-se viver, “aqui e agora”, a festa celeste.
A globalização também quebra a hegemonia católica sobre os setores populares. Uma vez em nome do carisma da instituição, da autoridade e da vinculação com o divino, a Igreja tinha certo poder de incidência sobre espaços populares mais modestos e pobres. Hoje, este carisma da “função da Igreja”, por efeito da globalização, passa a incidir sobre o “carisma da pessoa”, isto é, a pessoa entra numa Igreja, num grupo ou em algum movimento, segundo simpatia ou afinidade com uma pessoa de referência (padre, pastor, ministro da Eucaristia, catequista, etc.). Assim, como no geral, as pessoas tendem a afastar-se do Estado, ocorre, também, o mesmo em relação à Igreja: um distanciamento da instituição e um maior encantamento pelo perfil carismático de pessoas, que, não necessariamente precisam convencer pelo domínio ou experiência religiosa. Basta que tenham fama e que despertem simpatia.
A globalização gera, igualmente, um processo que desprende o campo “religioso” do quadro institucional das Igrejas, e ajuda a criar uma situação em que tudo passa a ser religião, mas, uma religião tão autônoma que não tem mais vínculos com a origem, com a tradição e com o próprio passado. Isto, impreterivelmente, gera uma autonomia religiosa que facilita a chamada “religião difusa”.

Pelo lado positivo, a globalização está provocando um fenômeno de maior respeito em relação ao fenômeno ou à prática religiosa, no sentido de que a religião se torne menos impositiva na vida. Tal situação favorece a emergência de manifestações religiosas locais, que, antes, eram abafadas, condenadas e até exorcizadas como manifestações demoníacas. Portanto, se, de um lado, poderíamos pensar que o terreno religioso perde espaço, especialmente diante de incertezas nos trabalhos de evangelização, é também notória a percepção de uma grande mobilização humana em torno de mais certezas, de mais realização e de mais vínculos que liguem as pessoas, umas com as outras e estas, em comunidades ou organizações de movimentos eclesiais.
Outro aspecto da globalização que, no entanto, parece ser altamente prejudicial para uma razoável vivência religiosa é o do aumento da heterogeneidade provocada pela pobreza, desemprego e exclusão das pessoas. Tais distanciamentos geram barreiras muito difíceis de serem contornadas e criam formas agressivas, hostis e de fechamento a qualquer tipo de possível diálogo. Como o sentido da vida de grande parte das pessoas depende dos ideais da televisão, sua experiência religiosa se torna acrítica e descomprometida com as condições das outras pessoas, porque a televisão leva a uma perda de sentido e de compromisso com as questões locais, sejam territoriais, culturais ou religiosas.

Para retomar: Que efeitos a globalização vem provocando sobre o imaginário religioso?



IV

 INTERPELAÇÕES URBANAS À AÇÃO EVANGELIZADORA



 O título deste capítulo implica em necessário esclarecimento inicial sobre as duas palavras chaves: o que entendemos por “cidade” e o que significa “ação evangelizadora”?
            Costumamos falar de cidade para organizações humanas muito parecidas, mas que podem ser muito diversas umas das outras. Basta comparar cidades pequenas a capitais ou grandes metrópoles, como São Paulo, Nova Yorg, Tóquio, ou Pequim. Mesmo que todas sejam chamadas de cidades, são extremamente diferentes umas das outras. Ainda que todas estas e outras cidades sejam obra arquitetônica produzida por seres humanos, o comportamento dos que fazem uma ou outra cidade não é o mesmo. Há cidades modestas e menores que bairros periféricos de outras cidades; há cidades que não passam de dormitórios de cidades vizinhas. É o que vem ocorrendo em torno da maioria das grandes cidades brasileiras como Goiânia, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, etc. Há cidades que se auto-proclamam cidades, mas que iniciaram há poucos anos; há outras cidades que começaram como vilarejos e foram aumentando ao longo de séculos a ponto de se constituírem grandes metrópoles. Assim a variedade de cidades nos permite observar que umas parecem ser parasitas de outras, tal como carrapato que se aloja no couro de um bovino, outras parecem ser mais auto-suficientes, outras mais acolhedoras, outras mais humanitárias, outras ainda, mais enfeitadas, umas mais simples e outras mais complicadas e difíceis.
            Convêm, pois, ter presente que cidades podem estar em fase inicial, em fase de mais organização e com traços peculiares de seus moradores, cidades que se tornam centro de outras cidades em redor, cidades que vivem de grande exploração de mão-de-obra de outras regiões, cidades que estão viradas em burocracia para controlar e dominar as pessoas e cidades que se encontram em verdadeiro declínio e processo de morte, a ponto de se inventarem anedotas sobre quem vai ser o último a desligar a luz, ao sair...
            Há cidades mais industriais, outras mais comerciais, outras mais habitacionais, outras mais operárias, outras isoladas, enquanto outras intensamente interligadas com outras por vias de asfalto, de mar, de rio, de aeroportos. Umas são horizontais e outras verticais, isto é, umas são baixas e bem extensas, enquanto outras, feitas de verdadeiros espigões que sobem aos céus, com 20, 30 ou mais andares sobrepostos. Vemos, pois, que uma cidade, com dois mil habitantes, será bem distinta de outra com 130 mil ou de 1.000.000 ou de 18.000.000 de habitantes. Além destas diferenças, convêm ainda notar a diferença de uma cidade para outra, no que diz respeito à valorização de seus membros. Onde ocorre crescimento mais rápido, tende a ocorrer maior exclusão social. Nossa cidade ilustra bem este aspecto: há vilas para muitos níveis sociais diferentes: ricos, médios, medianos, pobres e miseráveis... Estes dados gerais já nos apontam uma evidente dificuldade para alguém ser cristão autêntico e promover sinais do reino de Jesus Cristo na cidade onde reside de modos que, numa imagem ilustrativa, esta cidade venha a constituir-se em espaço humano e humanitário, a ponto de se poder declarar que é uma “cidade de Deus”.
            O segundo aspecto do título acima nos interpela sobre o modo de fazermos nossa ação evangelizadora, ou seja, como anunciamos Jesus Cristo na cidade? Sabe-se que muitos o fazem da mesma forma como o fizeram em ambiente rural, outros, querem evangelizar em cidade grande do mesmo modo como agiram em cidadezinhas bem pequenas, e outros ainda pensam agir na cidade dentro do modelo medieval de espaço físico determinado e medido por divisas. Querem forçar as pessoas de um determinado espaço a fazer as mesmas coisas em termos de festas, ritos ou celebrações, quando elas preferem ir a outros espaços, vilas, paróquias ou lugares de encontro ou de oração.
            Ao lado destas marcas, podemos verificar um fenômeno na cidade: torna-se cada vez mais comum, que, numa mesma quadra, encontremos mais do que três templos religiosos diferentes. Outro traço muito destacado: as Igrejas matrizes ainda ocupam o centro mais visível da cidade, normalmente rodeadas de praça, mas já deixaram de ser centro irradiador de vida para a cidade. Basta reparar o lado visível das Igrejas que apresentam torres altas. Já começam a ficar escondidas no meio de outros prédios maiores.
            De alguns anos para cá, ocorreu uma notável mudança geral nas cidades quanto ao aspecto religioso: já não é mais o quadro religioso cristão que dá o tom e o toque à vida da cidade. Vive-se um colorido imenso e muito variado de incontáveis ofertas religiosas. A religião deixou de moldar as cidades, mas, não está fora das cidades. É só ver que as cidades estão cheias de espaços religiosos. Muitos até roubam os espaços de cinemas, de grandes lojas, de modos que ocorre uma grande concorrência entre ofertas de milagre, de salvação, de curas e de tudo quanto se possa imaginar em termos de promessas de felicidade. Esta grande variedade de ofertas de consumo religioso provoca verdadeiras rivalidades para ver quem apresenta mais espetáculos e quem possa se sobressair em relação às demais. Ao lado disso, a religião que promete mais satisfação, parece tornar-se a mais frequentada. Seja do tipo que for, mesmo que logre as pessoas...


4.1 – Características da evangelização na cidade


            O que de forma geral se percebe, é muita inquietação e vontade de fazer algo diante do fenômeno urbano, pois parece apresentar uma atividade semelhante a um rolo compressor: compacta tudo quanto vem pela frente. A recordação do passado de muitos agentes de pastoral faz com que se sintam inquietos. Foram marcados por uma herança de outro jeito institucional. Este outro jeito, fortemente marcado por traços rurais, deu certo durante um longo tempo histórico, mas, atualmente, se revela insuficiente para os desafios novos que as cidades apresentam aos que querem evangelizar, seja em atividades comunitárias de catequese ou de outros serviços de ação evangelizadora.
            Muitos agentes parecem sentir a sensação de que não dá para esperar muito, ou primeiro aprofundar-se em algum estudo, mas, que é mais urgente e importante agir. Assim, antes mesmo de repensar sua atividade normal numa comunidade, sentem-se cobrados ou impelidos a fazer alguma coisa para que a Igreja, suas obras e suas atividades, não desapareçam. Esta espécie de precipitação, ou sensibilidade prática para fazer pelo menos alguma coisa, na verdade, remete para outra questão mais profunda: precisa a Igreja ainda ser o centro de organização da vida na cidade?
            A precipitação, apesar da boa vontade e da honesta intenção de ajudar a fazer alguma coisa pelo bem-comum, pode não chegar a produzir bons frutos quando reproduz uma série de vícios que já há mais tempo se manifestam nos serviços pastorais, tais como:
-       Cada um tentar, por si mesmo, fazer alguma coisa, sem envolver outras pessoas na mesma atividade;
-       Trabalhar sem objetivos, sem plano, sem previsão e, desta forma, avaliar apenas o resultado visível como critério para continuar a fazer as mesmas coisas;
-       Cada um sentir-se dono do que faz e, fazer as coisas acontecerem do jeito que sua cabeça pensa, sem partilha, sem troca de ideias, sem equipe de trabalho e sem discípulos;
-       Cada um considerar-se o centro de tudo quanto acontece, num setor de pastoral ou de um movimento, sem deixar espaço para a ajuda de outros ou para qualquer coisa que possa ser diferente.

Nas formas um tanto desesperadas e autônomas, corre-se o risco de esquecer-se que o Concílio Vaticano II, na década de 1960, revelou ao mundo uma intuição muito rica do papa João XXIII: a do diálogo com o mundo moderno.
Aquele Concílio também modificou um conceito de explicação da Igreja: a de ela ser a hierarquia e clero. Pela nova e feliz formulação, a Igreja passou a ser a ser entendida como a integração das pessoas batizadas. Esta foi uma mudança profunda e muito significativa na auto-compreensão da Igreja, porque passou a valorizar os leigos em nível de igualdade aos serviços hierárquicos (embora muitos ainda hoje não queiram perder o status de seu cargo ou o exercício de poder).
Outro aspecto muito importante daquele Concílio foi o de recuperar a noção do anúncio do Reino de Jesus Cristo e não o da Igreja, isto é, todos os batizados passaram a ser convidados para ser sinal de Deus presente na vida, a partir das quatro características do grande sucesso dos primeiros cristãos: pelo anúncio, pelo diálogo, pelo serviço e pelo testemunho. Significa, em outras palavras, que uma das grandes interpelações ou tarefas da Igreja é a de promover a justiça do Reino, anunciado e vivido por Jesus Cristo.


4.2 – O diferente nas cidades de hoje

        Existem cidades desde há milhares de anos. Enquanto a maioria das cidades era de pequeno ou médio porte, continuou a prevalecer nelas a força dos laços de parentesco, de religião e de raça.
De um tempo para cá, no entanto, ocorre algo diferente em nossas cidades. Elas quebram o tipo de laços tradicionais que vieram de raça, parentesco e religião e oferece combinações de raças, cores, gostos de todos os tipos imagináveis. A cidade começa a tomar distância destes antigos vínculos de pertença, e desperta maior autonomia das pessoas, de modos que elas procuram livremente outras pessoas para convivência, passatempo ou esportes, sem ligar tanto para parente, raça e religião.
O teólogo Comblin chama atenção de que é preciso distinguir o que é próprio da cidade, uma vez que cada uma enfrenta seus próprios e variados problemas, como vem acontecendo ao longo da história; e, o que é produzido pela cultura pós-moderna e globalizada do ocidente e que exige, da nossa parte, um novo tipo de lidas para a ação evangelizadora no ambiente urbano. O que poderia estar se evidenciando como mais saliente nas cidades de nossos dias?
Talvez seja o do cotidiano do domicílio eletrônico. A profunda transformação da vida urbana vem sendo promovida principalmente pela comunicação eletrônica e dos sistemas de informação. Eles alteram a relação do espaço entre as pessoas para as funções rotineiras. O domicílio eletrônico também muda o jeito de trabalhar, o jeito de comprar, de pagar contas, de divertir-se, de conseguir consultas médicas, muda o jeito de aprender, o jeito de lidar com as coisas públicas, especialmente, taxas e impostos (ex. declaração de imposto de renda via Internet, os serviços chamados “on line”, etc.).
 Nota-se que a proximidade das pessoas já não é mais tão importante como era em tempos idos. Quase tudo pode ser feito à distância. Por isto alguns cientistas chegam a pensar que a cidade vai desaparecer daqui a algum tempo. Pode-se morar no mato, no interior e ter todas as informações e acessos tal como na cidade... Isto certamente não será um critério geral, porque as cidades não seguem as mesmas regras e padrões e outro aspecto: umas se desenvolvem de forma bem diferente do que outras por questões ligadas ao seu passado, ou ao espaço territorial ou, até mesmo, ao tipo de regras que implantam para seus moradores.
Outra coisa importante que se pode notar nas cidades, de certo tempo para cá, é o da perda de um centro único para apresentar muitos novos “fluxos”, ou seja, ocorrem muitos espaços por onde as coisas e as decisões mais circulam. Basta pensar em telefônicas, agências, bancos, provedoras de Internet, mas também certos lugares sociais, como lojas para ricos, bares e restaurantes para muitos níveis de pessoas, vilas, clubes e ambientes, etc., que reúnem pessoas e as orientam para certo tipo de vida. Tal fenômeno representa uma mudança profunda em relação de algumas décadas atrás nas comunidades do interior ou em cidades menores: as ordens, opiniões e decisões partiam, normalmente, de um único lugar. Por exemplo, na Igreja: tudo vinha da matriz... 
O grande avanço da micro-eletrônica e dos modernos sistemas de informação gerou em praticamente todo ocidente, uma cultura que já não precisa ser buscada, mas que entra nas casas e nas cabeças das pessoas através de recursos como televisão, telefone, etc., Esta cultura, classificada como “indústria cultural”, porque é produzida por grandes redes de informação, invade as cidades e os espaços do meio rural e faz com que a maioria das pessoas pense a mesma coisa sobre certas situações.
 Mesmo que muitas questões urbanas possam ser resolvidas com atitudes e procedimentos até bem simples, os desafios da cultura, chamada “indústria cultural”, provoca um modo de sentir, pensar e agir das pessoas muito diferentes do que estavam acostumadas a viver. No lugar de heranças comunitárias, de parentesco ou de outras raízes tradicionais, são apresentados outros comportamentos ideais. Contra esta oferta, nossas antigas formas de evangelizar parecem perder a capacidade de encantar as pessoas e vemos que já não produzem mais muitos e significativos frutos.
Podemos reparar que na cidade parecem agir duas forças contrárias ao mesmo tempo: de um lado, a invasão de informações que faz todas as pessoas pensarem de maneira muito similar sobre as coisas; mas, ao mesmo tempo, a busca de lugares, de espaços de referência, ou pontos de fluxos de informação diferente daquela que vem da televisão e que faz uma vila apresentar um jeito diferente da outra e que leva as pessoas a pensar muito conforme o grupo, ou clube ou ambiente que mais frequenta.
            O efeito da nova cultura e o dos diferentes fluxos de informação atinge não apenas os espaços religiosos, mas também entra na vida, de formas a mudar hábitos, convicções e práticas de vida, e leva a maioria destas pessoas a não se submeter mais às orientações religiosas tradicionais e ao tipo de prática religiosa que era comum à maioria dos católicos. Assim a “indústria cultural” leva a buscar coisas novas e diferentes. A quantidade de novas Igrejas que aparecem nos espaços urbanos é um ilustrativo sinal desta mudança.
 Ao lado desta constatação, nota-se, também, que, mesmo no interior da Igreja católica, aumenta a resistência para aceitar algo que venha do lado das hierarquias estabelecidas, dos bispos e do clero, que uma vez tinha exclusividade para administrar toda a atividade religiosa (até mesmo as associações leigas).
Já não se espera que um determinado grupo, como o de padres ou de religiosos, possa resolver os problemas da sociedade, apresentando soluções meramente religiosas. No lugar do discurso religioso e das propostas religiosas, apareceu um novo concorrente: a oferta de êxito, através do dinheiro, fala mais alto e estimula as pessoas a procurar ciência e tudo quanto é avanço da tecnologia, para conseguir mais dinheiro. Significa, pois, que a busca do dinheiro vem ocupando um lugar mais importante no desejo coletivo do que a vivência de certas práticas religiosas. Geralmente, até mesmo a busca de espaços religiosos ou de celebrações, vem sendo motivada muito mais por questões que envolvem desejos de dinheiro, do que, propriamente, por motivações de cunho religioso. Com isso, a religião católica depende, cada vez menos, dos padres e, cada vez mais, de outras pessoas, que, nem sempre estão muito ligados a hierarquias superiores na Igreja.
            Já não resolve apelar para a autoridade, para o exorcismo, para a ameaça de ex-comunhão, ou para a demonização do que não se submete à hierarquia. A nova cultura faz com que a religião escape do controle do clero, dos religiosos, dos catequistas e ministros extraordinários e até dos movimentos religiosos. Em função da busca do dinheiro, interessa mais a novidade, a luta, a conquista e a inovação.
            Esta problemática permite formular uma pergunta muito séria: como evangelizar no âmbito desta nova cultura? Alguém foi preparado para isso? Os que foram mais preparados foram preparados para outras coisas: para administrar sacramentos, para pregar, para organizar movimentos, pastorais e grupos devocionais. Agora, o que mais se espera deles e, de tantos outros evangelizadores, é outra capacidade: a do talento e de certos recursos para lidar com pessoas, a fim de encantá-las para algo importante.
            Bem sabemos que na corrida pelo êxito, através do dinheiro, surge o maior contraste da vida das cidades: a separação e o distanciamento das classes sociais e o grande número de pobres. Já não são apenas pobres isolados que pedem esmola, mas são vilas e imensos bairros extremamente pobres, porque não tem o mesmo acesso à ciência, a recursos e ao que lhes pode fornecer mais dinheiro. Dali aparece um dos novos desafios para a evangelização na cidade: como ser solidário ou, católico, com comunidades mais pobres?
 A matriz ou a comunidade mais rica, como todo mundo ocidental, busca dinheiro e recursos para melhorar seus espaços, mas, para muito poucas sobra algo que possa ser democraticamente repartido a outras comunidades. Muitas vezes há rivalidades e competição para ver quem arrecada mais dinheiro, mas isto não atrai os pobres e nem lhes abre mais espaço. Pelo contrário, fecha e distancia os caminhos de proximidade. O novo desafio requer da própria Igreja, um dolorido processo de conversão, para que tudo quanto a sociedade espera de governantes e autoridades de serviço possa ser mais democraticamente distribuído, interpela também a Igreja, para que se torne mais democrática, sensível à necessidade de grupos periféricos e menos privilegiados. Mexer neste assunto tende a irritar muitas pessoas que prestam serviços de animação e diretoria.


4.3 – Como evangelizar na cidade?

        Cada um de nós certamente gostaria de encontrar respostas prontas e fáceis de serem diretamente aplicadas. A tarefa, no entanto, é um pouco mais penosa, mas não impossível.
Tal como no capítulo 10 do Apocalipse, cabe-nos devorar o pequeno “livrinho aberto”. O que seria isto?  Apropriar-nos da mensagem do Cristo Ressuscitado, tarefa esta, que, no começo, parece doce como mel de abelha. Quando nos defrontamos com a mensagem de Jesus Cristo, de modo semelhante ao dos primeiros cristãos, ficamos encantados, mas, na hora de fazer a digestão deste conteúdo ou, ao fazê-lo, tornar-se força de transformação da vida, aí, o sabor parece mais amargoso que cafezinho sem açúcar.
            No referido capítulo aparece (no versículo 11) uma frase de ordem: você precisa ainda profetizar... Como naqueles tempos difíceis das primeiras comunidades cristãs, nossa vontade, ante as novas dificuldades da vida urbana, também é a de procurar mais repouso.
 Como naqueles tempos iniciais da Igreja, pode nos ocorrer, de vez em quando, a conclusão de que já fizemos muitas coisas para a comunidade ou para a cidade e que outros também podem fazer a sua parte e, quem sabe, dar pelo menos um período de contribuição para agir e fazer algo de bom.
O agir ainda significa que muitas coisas podem e precisam ser melhoradas no espaço urbano, não só na apresentação exterior da cidade, mas, especialmente, no modo de vida das pessoas.
 No mesmo versículo se fala de profetizar contra povos nações, línguas e reis..., uma rica simbologia para os nossos dias, pois significa a cidade. Ali estão estas forças. Ali se difundem forças de línguas, de reis e de nações, que, de modo geral, não apresentam os valores de Jesus Cristo.
 Sobretudo ambição e poder são as forças devastadoras da vida na cidade. Com certeza, muita gente de nossas famílias também se move atrás destes valores da riqueza e do poder insaciável.
Profetizar contra estas formas, tão adoradas em nossos dias, e que nos seduzem a todo instante para o mesmo caminho, faz com que o livrinho aberto comece a apresentar um sabor amargo e provoque uma vontade de “cair fora”...
            O referido texto também se refere à cidade prostituta, materialista, que vai cegando, embriagando e hipnotizando as pessoas para coisas que não são as mais importantes, porque nelas predomina o espírito imperialista. Esta prostituta (nós, que hoje nos estragamos indo atrás desta sedução imperialista), no entanto, poderia converter-se em cidade esposa, cidade humana e fraterna. Tal transformação, evidentemente, supõe discernimento, ou seja, precisa fazer-nos perceber que a idolatria, que se desenvolve na cidade, é menos importante do que o testemunho e a atenção em favor das pessoas humanas.
            Se olharmos concretamente para nossos lares ou para nossa vizinhança, poderemos, possivelmente, constatar que a tendência mais forte da maioria parece ser a de entrar na onda imperialista, que nos prostitui para a honra, para o poder e para certas modas de consumo e de aparência. Isto leva a trabalhar além dos limites, a ambicionar cada vez mais coisas, casas, carros, fazendas e outros encargos, mas elas tornam a convivência diuturnamente mais difícil e mais complicada. Portanto, a profecia que convida a deixar “reis, raças e línguas”, representa um desafio duplo para nós: o de pensar como nós vamos agir como indivíduos e como participamos da comunidade maior que é a cidade.
            A convivência conosco mesmos é um dos primeiros grandes desafios da vida urbana moderna: não basta adotar todas as modas ou imitar a imensidão de novidades e propostas que todos os dias estão sendo sugeridas.
É preciso descobrir um ritmo pessoal de momentos em que possamos fortalecer a auto-estima e nossa auto-aceitação. Nesta busca, certamente faremos experiências da presença divina em nós. Se nos descuidamos um pouco, encontramos tantas ocupações e tantas solicitações para trabalhar, que, simplesmente, não achamos o mínimo de tempo para nosso auto-cultivo. No entanto, por meio deste cultivo podemos tornar-nos tão humanos como o próprio Jesus Cristo, revelando, nisto, a grandeza e a divindade do mesmo Cristo.
            O outro aspecto importante é o de manter-nos bem informados a respeito do que vem acontecendo no mundo e perceber as transformações que vem se realizando no interior da cidade e da própria Igreja Católica. Há muitos movimentos de transformação que abrem novas luzes para a vivência da nossa fé e para a lida com o diferente que é a vida da cidade. Nem tudo é símbolo de “reis, nações e línguas”. Há incontáveis sinais da “cidade-esposa” e fraterna...


4.4 – A visibilidade da ação evangelizadora nos ambientes urbanos

Já vimos acima que a cultura urbana anula os efeitos da evangelização tradicional. Como, então pensar a ação da Igreja na cidade?
Em primeiro lugar, a facilidade de mais encontros, de conversas, festas e das mais variadas formas de aproximar as pessoas na cidade moderna, introduz na vida na organização da vida urbana, a chamada “ética do instante”.
 Ocorrem tantos apelos, convites e chances para coisas novas, diferentes e imprevistas, que grande parte das pessoas já não consegue implantar um programa ou um ritmo pessoal de vida.
Há convites a todo instante para passar dos limites, seja na bebida, na comida, nos doces, no namoro, na fidelidade, nas festas, etc., e tal fenômeno quebra até mesmo nosso ritmo biológico. Basta ver a dificuldade que muitas pessoas, em regime de emagrecimento, encontram para se manter sob um controle alimentar. É desafio complicadíssimo. Por isso vemos algumas pessoas animadas quando perdem alguns quilos, mas quando soltam um pouco a auto-censura, já recuperam  o mesmo peso de antes e lhe acrescentam outro tanto, porque não conseguem dizer um “não” ante as mil ofertas e convites.
A “ética do instante” não muda apenas o ritmo biológico de alimentação, de repouso, de lazer e de sono, mas nos leva a quebrar também os horários, os hábitos, os costumes e certas práticas regulares, como participar de Missa, de Culto, etc. Há tanta proposta para curtir coisas diferentes, que começamos a encontrar dificuldades para nos acertar conosco mesmos em termos de auto-escuta, de cultivo e programas de oração, ou simplesmente, de descanso e sono.
Se as solicitações muito variadas nos roubam a regularidade dos tradicionais programas de Igreja, elas também nos despertam sentimentos de ansiedade e de angústia e, para aliviá-los, talvez, antes mesmo de pensar num programa religioso, vamos à procura de incontáveis alternativas que não sejam as do espaço religioso das Igrejas católicas. Há incontáveis terapias, massagens e outras formas ocupacionais que, como a religião, prometem aliviar estes dificuldades e problemas. Isto, naturalmente, fragiliza os vínculos com uma comunidade ou com momentos celebrativos de Missa ou Culto.
Em algumas comunidades o horário dos encontros catequéticos vira um pesadelo, porque as crianças já têm, para aquele momento, uma previsão de outras atividades: aulas de Inglês, de teclado, de dança, de teatro, de natação e por aí afora...  Deste modo, a Igreja fica mais invisível e, quando ela quer estabelecer muitas obrigações, então é a vez que as pessoas somem mais ainda... O efeito será o de prevalecerem opiniões religiosas pessoais sobre normas diocesanas ou paroquiais.
O policentrismo das cidades (quanto mais elas crescem, mais elas apresentam muitos centros de organização) faz com que cada vila, associação ou grupo de interesse se organize em torno de algumas lutas e reivindicações. Uma Igreja, mesmo que ainda esteja no meio da praça, já perde a capacidade de ser o centro da cidade ou da vida ou do exercício de controle territorial sobre os moradores de uma determinada área geográfica como paróquia ou capela. Mesmo visível como espaço físico das construções, a Igreja perde a capacidade de tornar-se visível em obras humanas e ações humanitárias.
Ao lado da dificuldade de manter-se visível na cidade, a Igreja também sente a dificuldade de conviver com o contínuo desafio de “inovação”. Parece que na cidade a palavra que exerce mais força e impacto é “inovação”. Tal fenômeno leva a um rápido esquecimento do passado, da tradição e de bons valores porque tudo parece que precisa ser trocado, melhorado e ampliado.
Um efeito colateral da inovação é o da “exclusão”. No emprego ou até na chance de emprego, na vila, ou simplesmente na rua, aparecem sinais diários de exclusão, de violências, tanto físicas quanto simbólicas. Uma simples propaganda de alto-falantes revela bem esta forma de discriminar, mentir, iludir e agredir as pessoas, pela acústica dos amplificadores, onde quer que estejam no espaço urbano.
            Uma das formas atualmente mais valorizadas para tornar visível a ação da Igreja nas cidades é a dos Movimentos. Mesmo que, de um lado, apontam sinais animadores, geram também muitas dificuldades e vem perdendo rapidamente a capacidade de articulação. Por que isso?
            De forma geral, os movimentos têm origem estrangeira e foram criados em cidades com problemas específicos daquelas cidades. Sabe-se que uma cidade não é igual à outra, porque cada uma tem maneiras distintas de se organizar, de produzir, sejam alimentos, matéria-prima para o comércio ou modo de edificar a cidade ou de símbolos culturais. Desta forma, muitos movimentos, valendo-se do fenômeno da globalização, supõem que tudo é igual em qualquer parte, e que, todos são consumidores potenciais do mesmo jeito. O resultado é que as normas e orientações dos movimentos ignoram as peculiaridades e as diferenças de uma cidade para outra bem como os níveis de vivência da fé. Além disso, muitos movimentos apresentam uma tendência fundamentalista: pensam e valorizam mais um jeito do passado e pouco apostam em perspectivas novas para o futuro. Tal marca desperta outra pergunta:


4.5 – Como pensamos uma cidade?

            A história bíblica do Antigo Testamento, tal como a história da Igreja, ao longo de mais de dois milênios, revela uma constante oscilação na interpretação da cidade. Em muitos momentos históricos a cidade foi vista com pessimismo, negativismo, a tal ponto que passou a ser identificada como “prostituta”. Da mesma forma, em outros momentos, foi classificada de “cidade do alto, onde Deus mora”. Hoje, numa mesma cidade, misturam-se as duas concepções. Se tivéssemos um pequeno aparelho capaz de captar a posição dos católicos, certamente veríamos que grande parte deles interpreta a cidade pela ótica pessimista e negativa. Fala tanto mal da vida urbana que passa a concebê-la como ainda inferior a uma prostituta. Tal fenômeno, presente em movimentos e também acentuado em outras manifestações religiosas ao lado da Igreja católica, tendem a demonizar excessivamente a cidade (veem diabo solto por toda a parte e em tudo) e se tornam românticos, saudositas e fundamentalistas ao pretenderem uma volta a um jeito do passado.
            Talvez fosse mais interessante se pudéssemos pensar a cidade, com objetividade, para perceber muitos sinais de “prostituta”, mas, também, com sinais gradualmente crescentes de que ela vem se tornando a cidade do alto, onde Deus mora. Por que assim?
            A cidade, mesmo com tanta gente próxima e se cruzando apertada de todo lado, por natureza, obriga as pessoas a depender cada vez mais umas das outras. Se imaginarmos o mundo rural e mais antigo, alguém podia viver com enorme autonomia em termos de não precisar muito dos outros para sobreviver. Por exemplo, a vida no meio rural: as pessoas não precisavam ir a toda hora ao mercado, ao médico, à farmácia, ao banco, porque todos aprendiam outras formas para contornar casos imprevistos e lidas diárias... A cidade moderna, ao contrário, faz todos depender de muitos encontros com outros. Para qualquer coisa, se precisa da mediação de outras pessoas (até mesmo para dar um “jeitinho”!).


4.6 – Um modelo de Igreja a ser construída


            Em nossos espaços de Igreja predominam duas modalidades mais comuns de interpretação do papel, da função e da missão da Igreja. Uma destas modalidades consiste em pensar a Igreja como Corpo místico – Sociedade Perfeita. Esta interpretação tende a valorizar muito a instituição, a hierarquia e as ordens que vem de cima para baixa. É também uma concepção que supõe que os procedimentos importantes na vida de fé de uma pessoa devem partir do centro para a periferia. O pano de fundo desta ótica é o de pensar a Igreja com a missão e a capacidade de espiritualizar o mundo e que, por isso mesmo, precisa difundir-se e alargar-se através de outros continentes, ou seja, precisa internacionalizar-se intensamente. É o que podemos perceber na rápida difusão de movimentos, transpostos de um país para outro...
             A outra modalidade, fruto do espírito do Vaticano II, entende que a Igreja é uma Comunhão do Povo de Deus. Destaca, por isso, mais o valor da comunidade; é mais descentralizada; é mais criativa e valoriza pequenos núcleos; é aberta para a criação de novas estruturas de organização em função do que se constata na vida real. É uma modalidade de entendimento que valoriza muito a dimensão ética e tende a valorizar mais a história concreta do que uma espiritualidade a ser transmitida.
            Se procurarmos conhecer e entender mais as primeiras comunidades cristãs, que se alargaram em meio às enormes adversidades, podemos constatar que elas se nortearam mais pela segunda modalidade.




V

 

A RELIGIÃO MIDIÁTICA E O IMAGÉTICO



            A cidade vem revelando, cada dia mais, sua capacidade de romper com antigas tradições de parentesco, de religião e de relações com a comunidade e a natureza, próprias de ambientes rurais.
            No lugar dos antigos valores rurais que ainda persistem e sobrevivem em menor escala no ambiente urbano, passa a vigorar um progressivo preenchimento do dia com o ambiente eletrônico: sites, chats, correio eletrônico, bate-papo e tantas outras formas identificadas com a Internet.
            A eletrônica desperta novos fluxos de ocupação, de lazer e de entretenimento. Ela rouba o lugar dos momentos de passear, de fazer serenata, de preparar coletivamente certas comidas típicas ou de conversar simplesmente.
            Se nos ambientes rurais a auto-estima resultava da constatação dos sentimentos de pertença, de amparo e de acolhida, o ambiente eletrônico faz com que já não se liga mais para o valor do parentesco, da autoridade, dos avós, dos vizinhos, mas induz à afirmação da identidade pessoal, a partir de sentidos e sonhos, ligados a superação, ao êxito e ao sucesso.
            A oferta se sentidos e de esperanças para o futuro está sendo propiciada muito mais pela televisão do que pela religião. Isto não significa que a religião perdeu sua função ou que não esteja fazendo o que é da sua competência, mas outras formas de organização social lhe roubam este papel social.
A televisão, através de seus programas, especialmente os interativos, oferece incontáveis promessas para “EUS” solitários, e lhes apresenta um vasto campo de soluções para todos os tipos de problemas. Neste aspecto, serve a imagem da pensadora Hannah Arendt que falava em “cultura da auto-perdição”. E o grande desafio desta nova forma religiosa está o grande desafio de arrancar das mãos o comando que as leva a se interessar apenas por si mesmas.
 O deslocamento das ofertas de sentido e de esperanças messiânicas da religião para outros espaços da organização social implica em fortes insinuações de adoração do corpo. Basta reparar o que se mobiliza em torno de certos desfiles de moda. Os locais de desfile são erigidos como verdadeiros templos e com muitos rituais e fetiches de adoração do corpo. Tal fenômeno de novos referenciais de adoração levou Frei Beto a concluir que para a televisão o “pum-pum” vale muito mais do que a cabeça; que a estética vem ocupando o lugar da ética e que a aparência tomou o espaço do real. Grande parte de programas versa sobre a vida dos personagens que viveram papéis fictícios de um filme ou de uma novela ou algum esporte e que, por isso, passaram a ser identificados como heróis. Já não importa muito a vida real, mas se eleva ao auge o imaginário fictício do que alguém viveu e sobre como se sentiu ao encenar certo papel ou fazer certa jogada...
            De fato, se reparamos o conteúdo a respeito do qual se fala numa entrevista, realmente parece não interessar reflexão objetiva, ampla, profunda, perspicaz e filosófica, mas o banal em torno do que gosta, do que veste e do que faz em certas situações, isto interessa muito mais. Um “pum-pum” protuberante parece tornar-se assunto muito mais relevante do que a sumidade de um pensador, seja cientista, teólogo ou filósofo. Em valores, destacam-se, sobremaneira, aspectos estéticos, como hábitos, gostos e, especialmente, gostos que sejam exóticos e diferentes. Disso também decorre o mundo de aparências; de pinturas que disfarcem o real; de maquiagens que encubram as rugas, de roupas que dão aparência mais vistosa; de penteados que realcem a eterna juventude, enfim, faz-se um verdadeiro encobrimento do real.
            Todo este fascínio pelo campo midiático pode ser visto como sintoma de uma nova doença social urbana: a de pessoas narcizistas que se identificam com apresentadores narcizistas, para se afirmarem e se auto-realizarem. A referência a Narciso vem da mitologia grega e conta-se que Narciso, certa vez, ao perceber seu rosto refletido na água translúcida de um lago, ficou tão encantado com a beleza que constatava refletida na água, que resolveu casar-se consigo mesmo.
            Narciso representa a pessoa fechada sobre seu mundo pessoal e que se presume realizada na medida em que se identifica com certos apresentadores midiáticos, ou com os conteúdos por ele veiculados, sejam verbais ou simplesmente não verbais como gestos, cortes de cabelo, modo de vestir-se, e, especialmente, traços exóticos, porque os tomam como modelo de imitação. Só que estes apresentadores também se movem como Narcisos para poder impressionar e manter certa audiência. Daí a comparação de Narcisos apresentadores e de Narcisos assistentes.
            Como na mídia eletrônica apresenta resposta e solução para tudo, já não há mais muita necessidade para um encontro com outros ou para aprender de um padre, de um bispo, de um catequista ou qualquer outro agente evangelizador.


5.1 – A onda de “padres cantores”


  Ao lado desta caminhada para o individualismo intimista e narcísico, podemos ainda verificar outros aspectos relacionados a esta mudança do fenômeno religioso. Um deles é o dos padres cantores como Padre Marcelo Rossi, Jonas Adib e uma série de outros (convêm não incluir o padre Zezinho e outros padres cantores mais antigos neste grupo...), que transformam as celebrações de Missas em verdadeiros shows e, assim, despertam uma mudança muito grande no significado litúrgico da Missa. Esta passa a constituir relevância não mais pelo seu referencial de memória, mas apenas pela sua instrumentalidade com vistas a propiciar emoções agradáveis.
            Bem sabemos que há traços pessoais de animadores de celebrações, padres e de agentes leigos que, pelo seu modo de rezar, de cantar ou de animar, envolvem toda a comunidade celebrativa e atraem multidões para os momentos celebrativos. Há também presidentes de celebrações que favorecem a intospecção, a catequese, o memorial de Jesus Cristo, pois nos remetem para o grande significado da Páscoa e, com isso, se tornam uma grande fonte de vitalidade para uma comunidade cristã.
 Desde muitos séculos, padres privilegiados com uma voz boa e agradável, cantaram solo em partes da Missa e o povo cantava os refrões ou outras partes.
            O fenômeno recente de padres cantores apresenta uma conotação um tanto diversa: aparecem em muitos programas de televisão, divulgam seus CDs, valorizam eminentemente o clima emocional e incitam à participação com movimentos de ritmo corpóreo. Esta forma de cantar teve origem no movimento de Renovação Carismática.
 Ao lado dos inegáveis benefícios deste movimento e de pessoas animadas pela participação nestes movimentos, a novidade dos chamados “padres cantores” é a de envolver os participantes das celebrações em intenso ritmo de gestos, mímicas, movimentos e danças, mas, que, simultaneamente fogem das formas tradicionais de celebração da Eucaristia. Muitas pessoas vêem nisto uma coisa muito boa, simpática e apreciável, pois faz com que mais pessoas se animem a participar das celebrações; e, até faz com que outras, já afastadas, retornem “ao bom caminho”...
Como catequese suave e inicial, tal procedimento pode até ser interessante. No entanto, ele leva a um sério risco de esvaziamento de toda a riqueza simbólica do culto cristão, pois, reintroduz dados da piedade popular, praticamente esquecidos, e os estabelece no lugar da simbologia cristã.
            Tanto o conteúdo quanto a forma de animação de canto destes “cantores de Deus” transforma os dados do memorial de Jesus Cristo em simples momento de louvor a Deus, mas que, na prática, nem é tanto de louvor, mas muito mais de súplica e leva os intercessores e a assembléia a repetir insistentemente expressões conduzidas e na perspectiva de haurir forças e ajudas do além. São novas formas de apropriar-se do desafio da “boa notícia do Evangelho” e das formas celebrativas e comunitárias, para torná-las suaves, fugazes e de respostas para o mundo subjetivo.
A ação de Jesus Cristo avivada e atualizada pelos ritos da Missa torna-se secundária, pois importa a força repetitiva do intercessor que quer dobrar Deus, a qualquer preço, para que o atenda e aumente sua popularidade.
 Tal forma de piedade popular já foi contestada pelo próprio Cristo como forma pagã de rezar, multiplicando palavras para convencer Deus e, em última instância, mover-se pela pretensão de querer ser mais forte do que Deus, pois insiste em convencê-lo a mudar seus planos...
            Não pretendemos, aqui, fazer uma defesa de Missas, consideradas secas, frias, formalistas e meramente lidas, mas, salientar que as sugestivas missas transformadas em shows, esvaziam a dimensão celebrativa dos encontros eucarísticos para transformá-los em momentos de “transe leve e descontraído”, ou então, em “fast-food religioso” (como se fosse uma loja especializada que oferece produtos importados, onde se pode escolher o que se quer, segundo interesses diversos). Padre Marcelo Rossi, por exemplo, revela uma extraordinária capacidade de transformar a mensagem celebrativa de uma Missa em suave e leve forma de passatempo, que, aparentemente inofensiva, descompromete as pessoas para as causas do Reino de Deus, pois se torna muito mais uma hora de ginástica rítmica, de aeróbica e de animação musical do que momento para se fontalizar e se fortalecer na tarefa missionária da Igreja.
 É claro que tais momentos podem ser muito benéficos para as pessoas, mas, quando ocupam o lugar da celebração do memorial de Jesus Cristo e transformam a Missa em simples momento de confraternização, esvaziam toda a dimensão bíblica, eucarística, trinitária, eclesial, profética e simbólica dos grandes sinais cristãos e realçam apenas traços de uma piedade popular superada há séculos, mas apresentada como o que há de mais novo e moderno, tal como repetir “anjinho para cima e anjinho para baixo”, “erguer as mãos, erguer os pés...” e criar toda uma mística de se olhar para a “hóstia”, para a imagem de Maria ou de repetir à saciedade certas frases, tal como se fazia na Idade Média.
            O risco destas missas dos “padres cantores de Deus” é o de perder-se a fé na dimensão de desafio para o amor e o culto cristão descambar num novo paganismo em que predomina a crença no poder pessoal para conseguir aplacar Deus, onde o forte já não é o poder de Deus, mas o de quem consegue convencê-lo pela insistência da súplica. Tal concepção apresenta à dimensão celebrativa cristã o risco de torná-la suave, tênue, gostosa e até de transformá-la num momento de relax, onde já não importa catequese cristã, nem formação litúrgica e onde Jesus Cristo deixa de ser o agente principal das celebrações.

Para retomar o conteúdo:
Que riscos as “missas shows” podem apresentar às comunidades cristãs?
Quais são as principais características das missas dos “padres cantores de Deus” em relação às outras que fazem o memorial de Jesus Cristo?



5. 2 – O hipermercado religioso – Se os apresentadores de programas religiosos, pela sua simpatia, determinam gostos religiosos, também exercem influência decisiva  para o consumo de produtos que oferecem e indicam para os  telespectadores e ouvintes.
            Alguns poucos minutos de programa religioso de nossos canais de televisão permitem observar o quanto os apresentadores sugerem para a felicidade de consumo. Se hoje nos escandalizamos que uma vez se vendiam direitos e tempos de salvação eterna através das famosas indulgências, hoje, se oferece crucifixo, com água do Rio Jordão, se oferece sal do Mar Morto, terra que foi pisada por Jesus Cristo, resíduos de madeira que teriam sido da cruz de Cristo, fragmentos de roupa que eram de santos e de santas, viagens turísticas a lugares chamados de santos e de peregrinação religiosa e uma infinidade de objetos dourados, prateados, mas todos eles, associados a poderes extraordinários de curas e de milagres. Provavelmente estes milagres somente ocorrem nas contas dos que promovem tais vendas, pois tudo indica que acumulam muito. Imagine-se só que um simples santinho de Santo Expedito, quando se imprimem trinta milhões por mês, produz um milagre e tanto nas contas da editora que os divulga. E por que precisam ser tantos para a promessa dar certo?
            Da mesma forma, incontáveis novenas e orações poderosas estão sendo espalhadas aos milhões e sempre com a mágica receita: adquirir pelo menos tantas cópias e deixá-las numa Igreja...
            Ao lado das livrarias que vendem imagens, figas, amuletos, escapulários, terços, santinhos, e uma imensidão de outros artigos chamados “religiosos”, percebe-se que estamos sendo invadidos por uma mensagem sorrateira de uma religião de consumo e que passa muito distante do projeto proposto por Jesus Cristo para a construção do Reino...




VI


OUTRAS TENDÊNCIAS RELIGIOSAS NA VIDA URBANA


Não precisamos fazer grandes análises para observar que nos ambientes urbanos as expressões religiosas passam por outros caminhos do que os das tradicionais festas, romarias, novenas de ambientes rurais.


6.1 – O novo mapa religioso urbano

            A vida predominantemente urbana é um dos grandes fatores de mudanças no fenômeno religioso porque não se move mais pelo eixo religioso de unidade e uniformidade, mas precisamente, pela multiplicidade cultural, racial, religiosa e de níveis e classes de pessoas. Ocorre outro tipo de relações. Com isso, as paróquias, as Igrejas e capelas perdem a capacidade de congregar e reunir as pessoas. Nem mesmo para casos de batismo, casamento ou morte, os espaços ocupados e procurados para tais momentos celebrativos já não são mais os espaços religiosos. Clubes, empresas, funerárias, etc., encarregam-se de oferecer tais serviços.
 Os novos lugares de festa, de encontro, de partilha, sem dúvida, roubam os tradicionais momentos para catequese, celebrações, festas e momentos litúrgicos variados. Uma Igreja Matriz, por exemplo, perde gradualmente seu poder de influenciar sobre o âmbito geográfico de uma paróquia.
 A praça já não é mais da Igreja e nem o bater do sino um sinal e um convite para algo sagrado e religioso. Assim, a religião deixa de ocupar o lugar central numa cidade e deixa de constituir-se em referência e fonte das coisas originais da tradição. Revela-se, deste modo, um sentimento religioso diferente, mais voltado para a interioridade da pessoa e para o que elas escolhem em meio a uma grande concorrência de ofertas, não somente oferecidas através de propagandas, mas que entram na casa via televisão e rádio, vídeos e CDs. Assim como se compra uma ou outra mercadoria, opta-se por uma ou outra forma de vivência religiosa.
Segundo Fortunato Mallimanci, o mapa religioso urbano é um labirinto de crenças. Ocorre uma particular disputa entre católicos e evangélicos, envolvendo seitas, místicas e experiências de Igreja que não se ajustam adequadamente umas às outras.

a)    No âmbito católico – Salientam-se muitos conflitos e tensões no interior de suas comunidades. A Igreja, como um “todo” perdeu a força de cristianizar a sociedade, tal como fazia em outros tempos. As comunidades tornaram-se eminentemente emocionais.  Ocorre até mesmo uma disputa entre distintos movimentos e, estes, competem entre si pela conquista dos fiéis. Cada um quer tê-los no seu quadro. No entanto, muitos movimentos apresentam uma relação ambígua com o mundo moderno, isto é, usam os mais modernos recursos de comunicação, mas apresentam um discurso tradicional, conservador, rígido e anti-moderno. Aparecem até mesmo distintos tipos de catolicismo: uns, mais emocionais, outros, mais categóricos e de certezas absolutas e, outros ainda, variando numa grande diversidade de manifestações. Assim, a busca da Igreja ou da celebração religiosa, não se move por Cristo, seus sacramentos e em torno dos rituais que mais o atualizam, mas pela busca de remédio para preencher “vazios existenciais“ que os desencantamentos de tudo quanto já foi experimentado, e, normalmente, antes do tempo, deixaram impregnados na vida. Neste caso, a busca religiosa pode configurar-se como um sintoma, uma morbidez ou uma doença provocada pela forma de vida dos tempos modernos.

b)    No âmbito evangélico – Percebe-se que certas manifestações evangélicas aparecem mais em público e procuram espaços para alargar seu campo de influência. Entre si, no entanto, não vivem de forma lá muito harmônica. Normalmente se unem apenas quando estão em jogo aspectos para assegurar e legitimar o campo evangélico.

Ao lado destas características, convêm lembrar que estamos envolvidos pelo fenômeno da globalização neoliberal do mercado, este que tende submeter sempre mais os povos às leis do capital financeiro e que coloca os ideais capitalistas acima do respeito elementar à vida humana.
Quando o interesse central é o de produzir, vender e levar outros a consumir tais produtos, coloca as questões do lucro acima dos interesses de vida da maioria das pessoas do planeta. Tal fenômeno vem gerando este desagradável quadro de exclusão de grande parte da humanidade do acesso às questões básicas como educação, moradia, saúde, lazer, etc. Esta insensibilidade nos acostuma a não ligar para o que outras pessoas estão precisando e nos torna cínicos e preconceituosos porque cada pessoa é levada a pensar apenas em si mesma, não se importando com o que se passa com as outras. Afinal, os outros podem ser concorrentes que ameaçam as aspirações capitalistas pessoais...
As consequências deste processo capitalista afetam particularmente as experiências espirituais, porque levam a priorizar apenas o cotidiano e o interesse imediato. Em vez de regras éticas e morais, passam a prevalecer os interesses do que é melhor e mais útil. Nisto, reforça-se o cultivo do individualismo, pois não interessa o que possa beneficiar uma comunidade ou outras pessoas.

Questão para refletir: Quem realmente cristianiza e, que forma de cristianismo ou de religião socializa para melhores níveis de vida em nossos dias?


            A vida urbana apresenta como tônica muito destacada a manifestação do pluralismo. Este é um fenômeno que sempre ocorreu nas relações humanas, mas não de forma tão intensa como vem ocorrendo nos últimos tempos. Cabe, então, a pergunta: por que isto ocorre nesta intensidade?
            O mundo de nossas raízes, o da cristandade medieval européia, era fortemente marcado pela organização, ordem e determinação de como o comportamento de uma pessoa deveria ser. Os especialistas falam em mapeamento do cotidiano, para referir-se a esta situação, porque as determinações religiosas e as regras sociais determinavam como cada pessoa deveria passar suas 24 horas de um dia. Isto dava coesão social e um forte sentimento de pertença, ou seja, uma identidade coletiva ou comunitária.
            O progresso técnico-científico dos últimos tempos quebrou muitas destas fronteiras do mapeamento cotidiano e, com isto, diminuiu a rigidez das regras de pertença, seja na família, na Igreja, na comunidade ou no País. O efeito passou a ser imediato, pois, alterou a identidade das pessoas crentes, porque as levou a se abrirem para inúmeras chances de participação em grupos diferentes. Uma ilustração desta situação é perceptível em nossas comunidades paroquiais: nelas já não ocorre um rumo, orientado por um padre, mas organizam-se muitos tipos de grupos distintos de pastoral, de movimentos de Igreja e, tudo isto implica em muitos problemas de rivalidades. Tal como na organização de uma cidade, ocorre no interior de uma comunidade, vila ou paróquia, a concorrência de muitos grupos. Esta diversificação gera sempre mais novidades e avanços que alargam o pluralismo. Se um grupo espetaculariza mais uma missa do que outro, as pessoas, segundo seus gostos, optam por um, ou, por outro, e, na hora que aparecer outro ainda mais diversificado, são capazes de deixar aquele e entrar neste. Este quadro leva os indivíduos a escolherem a partir de si mesmos, de suas motivações, de suas simpatias ou outros fatores subjetivos, segundo o que mais lhes agrada, o que gera uma manifestação religiosa, chamada difusa.
Uma tendência que parece aumentar muito no fenômeno religioso do espaço urbano é o das religiões difusas. São formas de expressão e vivência religiosa que, praticamente, não apresentam instituição. Não tem um código ético, nem catecismo, nem comunidade e, nem mesmo, Igreja. Pelo lado católico, uma ilustração deste caso é a de muitos auto-denominados católicos, mas que, com tal referência,  apenas explicitam uma questão de nome ou um certo status social, pois não apresentam nenhum vínculo com qualquer Igreja local, nem de serviço e nem de participação em celebrações ou outros eventos.
A grande variedade de formas de vida e de manifestações religiosas, provocadas pelo intenso pluralismo das últimas décadas, não elimina a dimensão religiosa das pessoas, mas faz com que seja procurada de outras formas e, em outros lugares. Isso provoca a chamada “volatização do sagrado”. O termo vem do latim, volare, que significa voar ou diluir-se. Olhando para o passado, vemos que tudo quanto era visto como sagrado, enquadrava-se em instituições, como Igreja, família, poder da autoridade, etc. Com o pluralismo recente, o “sagrado” parece ter-se deslocado ou “voado” para outras áreas não sagradas e até mesmo fora da religião. Deste modo, encontramos propostas sagradas por todo lado, em folhetos, em santinhos de novenas milagrosas, em anúncios de jornais, sobre conselheiros espirituais, futurólogos, sortistas, astrólogos, videntes e até massagistas e eróticos, todos com propostas “sagradas” para trazer paz e felicidade.
Diante de um quadro tão variado de ofertas do sagrado, o discurso, seja o do Papa, do Bispo ou do Pároco, se perde entre os incontáveis outros discursos que também oferecem e “vendem” coisas como sendo sagradas. Tal fenômeno faz com que as normas das Igrejas, das autoridades, ou dos pais, vão perdendo gradualmente, o valor, o que gera conflitos.
A religião difusa, ou implícita encontra-se particularmente presente em profissionais liberais, como professores, empresários, jogadores. Embora defendam o sagrado ou o religioso, parece que cada um estabelece tal relação com o transcendente de uma forma própria e particular. Observa-se, pois, que continua havendo uma apropriação do transcendente e do sagrado, mas cada pessoa monta e desmonta sua identidade com experiências muito diversificadas. Não é como no tempo em que toda uma comunidade rezava a mesma coisa na mesma hora. A religião difusa leva as pessoas a criar e a transformar suas próprias crenças. Não espera isso de autoridade, ou de catequese. Mistura um pouco de tudo quanto ouve e experimenta. Ilustrando o caso: em tempos idos, uma paróquia inteira escutava o sermão do pároco e ele repassava certos valores de uma concepção religiosa. Nos tempos mais recentes, cada um alimenta sua concepção e do seu jeito pessoal e particular. Surge, assim, a “minha religião” e, segundo “as minhas necessidades”...
Outra tendência notória de nossos tempos de pluralismo urbano é a da “religiosidade flutuante”. Trata-se de uma nebulosa místico-exotérica em que aparece certa busca mística, ou seja, um acesso direto e particular com instâncias superiores, especialmente para propiciar harmonia de nervos, de tensões e outras perturbações emocionais. É certa busca de paz através de novidades da medicina ou de novas terapias, sobretudo alternativas, visando bem-estar. Como a palavra “flutuante” já deixa conotar uma espécie de deslizamento para o fácil, o agradável e o encantador e há ofertas incontáveis para escorrer até o infinito, mesmo que seja em fantasias, drogas e ilusões.
Ao lado destas duas tendências, como se posicionam as religiões tradicionais, tal como a da nossa Igreja Católica? Muitas novas manifestações religiosas estabelecem, como nas religiões mais antigas e estruturadas, uma hierarquia parecida com a dos ritos religiosos cristãos, porém, parece que esta analogia tende mais para o Deus do mercado, isto é, a experiência do sagrado e a administração religiosa do sagrado movem-se intensamente por questões econômicas de lucro... Assim, festas e rituais de intercessão, de bênção e de cura, se constituem menos para o contato com o sobrenatural, como êxtase e transe, e, mais no movimento de seguir um herói ou heroína, de um líder de grupo musical, de um artista ou apresentador de televisão. Já não vigora o ideal do santo, do intercessor, da pessoa pobre, dedicada, piedosa e simples, como em tempos antigos. Hoje, o que parece encantar mais, seduzir e atrair é o “carisma do campeão”, do vencedor, do curandeiro, do galã, da atriz, do “boa-pinta”, enfim, do sucesso.
            Segundo o teólogo Alberto Antoniazzi apresentam-se duas escolhas mais comuns àqueles que estão buscando uma experiência religiosa: ou a participação numa seita ou o refúgio no individualismo. Indo um pouco mais longe neste aspecto, podemos reparar uma mudança de inquietações. Há alguns séculos atrás, no meio da revolução industrial, o sociólogo francês Émile Durkheim alertava sobre o risco de ANOMIA na sociedade. Este termo sociológico significa a falta ou ausência de regras. Pensava-se que a sociedade apresentava tantas revoltas, protestos e ameaças de convulsão social, porque estavam faltando regras sociais. Hoje se fala não mais em anomia social, mas, de ANOMIA INDIVIDUAL, isto é, o individualismo chegou a tal ponto que as pessoas querem liberdade total, ampla e irrestrita para tudo o que pensam, e não aceitam regra de nada e de ninguém que deva ser respeitada por elas.
            Esta anomia individualista implica em algumas características que bem conhecemos: começa com uma radical desconfiança na capacidade do poder público. Ao lado da desconfiança de que o poder público possa resolver problemas, também não se aceita qualquer norma que venha do poder público. Uma análise de conjuntura feita por uma equipe da CNBB em novembro de 2005, destacava como evidências desta tendência anômica, o modo como os brasileiros votaram a favor ou contra o desarmamento no Brasil. Aparentemente todos querem desarmamento, mas, ao mesmo tempo, cada sujeito quer possuir o fundamental direito de possuir e portar arma para sua auto-defesa.
Quando falamos em seita, pensamos, normalmente, em outros não católicos. É preciso reparar, todavia, que também no interior da Igreja Católica há uma forte incidência do fenômeno de seita, no sentido de separar uma parte e considerá-la melhor que o “todo” deixado de lado. Sectare, do latim, significa cortar um pedaço. Seria como dizer que vamos cortar uma fatia de queijo e concluir que ela é melhor do que o resto do queijo que ficou. Os movimentos e as congregações religiosas podem ser lidos, também, pelo prisma de seita, não necessariamente no sentido negativo e reacionário, mas como formas de organização que arregimentam em torno de um aspecto da religião e supõem que este seja melhor do que aquilo que os outros fazem.
            A seita também pode envolver uma tendência de movimentos fundamentalistas, ao afirmar a verdade com extrema segurança e apresentá-la aos membros de forma autoritária e impositiva. Ao mesmo tempo em que tenta envolver as pessoas, a seita quer afastá-las da sociedade. Nisto reside seu aspecto ambíguo em relação à modernidade.
            A outra tendência, a do individualismo, é a que reduz a religião a um fato privado, íntimo e subjetivo.
            A seita e o individualismo não constituem apenas os únicos caminhos. Ocorrem também formas intermediárias, tanto nas Igrejas tradicionais, como na católica e em algumas Igrejas Evangélicas mais históricas.
            Tanto o fenômeno das seitas quanto o do individualismo podem ser vistos como reações a um excesso de relativismo que se manifestou intensamente nos últimos tempos, especialmente motivado por filósofos. O relativismo, como a palavra já diz, ameniza as afirmações categóricas, seguras e dogmáticas, no estilo “é... pode!” “é, mas também...”.
            Estas manifestações religiosas tiram das Instituições religiosas sua força e capacidade de agregação social, porque as move para uma busca de satisfação de necessidades e de desejos imediatos. Bem sabemos que o milagre de uma mudança palpável numa comunidade requer muita dedicação, muito trabalho e também muita paciência para não sucumbir em desânimo.
            A busca mais intimista e pessoal faz que a religião deixe de ser uma busca do Absoluto e se torne um mero instrumento de satisfação dos indivíduos, muitas vezes movidos por sofisticado marketing do mercado da fé.
            Podemos também reparar que nem tudo é propensão para seita e individualismo. No Brasil, particularmente, podemos encontrar, em todas as comunidades, muitas pessoas de fé e que fazem um maravilhoso trabalho de evangelização, embora também se possa perceber um aumento de pessoas que se dizem católicas de “adesão parcial”, pois frequentam apenas alguns sacramentos e não aceitam grande parte das normas e orientações da Igreja.
            Ao lado de todas estas manifestações, podemos ainda reparar que parece aumentar o número de participantes em devoções populares, como visitas a santuários e participação em romarias, procissões e liturgias penitenciais.
            Afinal, o que este quadro religioso nos coloca? Parece que nos indica que devemos procurar novas atitudes, pois a religião não pode constituir-se apenas em normas e regras proibitivas na comunicação com os que procuram cultivar ou celebrar a fé. É preciso admitir que a experiência religiosa também é capaz de  impregnar-se da virtualidade de constituir-se em bom caminho para um posterior amadurecimento na fé.

Para retomar: O que mesmo se destaca nas manifestações religiosas difusas e flutuantes?


6.2 – Da institucionalização para o intimismo


            A Igreja vem passando por uma mudança que passou da dimensão institucional para comunitária e, desta, vem tomando o rumo da subjetividade. Ocorre o deslocamento do primado da Instituição para a primazia ou elevação do indivíduo. Este fenômeno cultural é acompanhado por um deslocamento da orientação de uma vida para Deus e que acaba se expressando mais em buscas mágicas e imediatas de soluções dos problemas do dia-a-dia. Tal deslocamento teve uma lenta, mas, gradual mudança que pode ser dividida em quatro etapas:
a)    Igreja – Instituição sólida: onde praticamente todos os fiéis aceitam a autoridade eclesiástica como orientadora de sua fé. Isto foi muito forte nas décadas de 1940 a 1960, até mesmo nas Igrejas ortodoxas e evangélicas;
b)   Igreja – Comunidades: normalmente pequenas e de relacionamento direto e próximo, como as CEBS. A experiência da fé passa a depender dos rumos do grupo e acaba levando à diminuição da valorização da palavra do Papa, dos bispos, padres etc., para valorizar mais a idéia do movimento;
c)    Igreja Individualismo: na qual parte dos integrantes dos movimentos se isola rumo ao subjetivismo. Para estas pessoas, o referencial da fé passa a ser o outro, na medida em que sua experiência encanta. Este movimento leva ao desaparecimento da necessidade de partilha com o grupo, pois cada pessoa procura seguir outra pessoa inspiradora seja santo, gurú ou milagreiro.
d)   Igreja- Experiência interior: na qual o indivíduo busca a fonte da experiência de fé dentro de si mesmo. Centraliza-se o sentimento subjetivo. Com isso, a minha religião sou eu mesmo. A comunidade passa a ter um valor momentâneo e relativo. É como um produto na prateleira do mercado: só interessa em certas ocasiões de necessidade, como batismo, unção, bênção de corpo, etc.

 Desafios deste quadro introspectivo: este quadro pastoral apresenta fortes tendências à massificação, na qual triunfa o individualismo religioso. Todavia, estádios e praças cheias ainda não significam qualidade de religião... Um dos elementos centrais certamente terá que ser o da revalorização da comunidade eclesial, para que as comunidades possam ser re-situadas na sociedade.

Para refletir ou conversar: Que passos fizeram a experiência religiosa chegar ao individualismo?
Outras questões: Que Igreja nós constituímos? Que traços e mística dão rosto às nossas comunidades? Que tipo Igreja pode ser prevista para o futuro?


6.3– O sincretismo religioso

 Todas as questões envolvendo religião invisível, intimista, emotiva, flutuante e subjetiva, esvaziam as raízes do cristianismo institucional que aprendemos a conhecer, mas também estão repletas de outro aspecto do fenômeno religioso, que é o do sincretismo.
            A palavra “sincretismo” pode confundir-nos pela sua estreita relação com o termo “inculturação”, este que nos remete ao respeito dos traços culturais de outros povos e raças, bem como ao seu aproveitamento para integrá-los em nossos modos de rezar, de celebrar e de vivenciar a fé cristã. São Paulo, por exemplo, já lembrava que deveríamos observar tudo e reter o que fosse bom... É um assunto, de fato, complicado, pois nem sempre sabemos adequadamente o que é bom e até onde convêm introduzir formas de outras culturas, ou então, colocar limites para não envolver em riscos os fundamentos que nos movem na fé cristã. Na verdade, sempre ocorre absorção de novidades e cruzamento de informações culturais ou religiosas.
            O termo “sincretismo” pode ser usado com sentidos variados: para alguns significa, em concepção bem geral, ajuntar coisas que não se combinam; para outros, significa absorver coisas negativas ou ruins de outras religiões ou culturas; e, para outros ainda, é algo bom e rico da condição humana, pois, somente com sincretismo se torna possível inculturação da religião.
 Diz-se que a origem do termo “sincretismo” ocorreu no tempo de Plutarco, quando cidades cretenses, que eram inimigas entre si, tiveram que ser amigas. Nós hoje, diríamos “amigas entre aspas”. No campo religioso, pode o sincretismo ser visto como algo equivalente a misturar café com leite, que dá uma boa combinação, ou então, à mistura de leite com vinho, o que provocará um leite coalhado, de paladar nada agradável. Entretanto, será que alguém escolhe algo sabendo que é ruim ou pior? Algo certamente aparecerá como pior para alguém quando vê que o leva a perder ou diminuir a imagem da sua identidade, seja ela pessoal, ou comunitária ou coletiva. Por esta razão, é bom não considerar o termo “sincretismo” como sendo algo ruim ou negativo, ainda mais, se o relacionamos com o fenômeno da inculturação.
Pelo simples fato de estarmos vivendo numa sociedade altamente pluralista, onde se cruzam não apenas raças e componentes de diferentes culturas, mas até de regionalismos e de informações de quaisquer partes do mundo, não conseguimos ficar alheios ao sincretismo. O sincretismo acontece tanto na relação com outras religiões, quanto com outras culturas e, seguidamente, nos interpela ou nos desafia para novas sínteses. Significa, pois, que quanto mais nos tornamos sincréticos, mais nos tornamos capazes de nos inculturar e de inculturar nossa religião. Todavia, se olhamos para o passado humano, vemos que a nossa forma de entender e explicar a religião já está ligada a certo quadro cultural de uma determinada raça ou região. Nasce dali um impasse: se, por exemplo, estamos inseridos numa sociedade que revela uma cultura consumista, de busca do prazer e de “curtição”, ou altamente egocêntrica, até onde convêm assimilar tais valores para não perder as raízes da fé que conhecemos?
            O problema se torna ainda mais agudo quando os valores divulgados, por exemplo, pela mídia eletrônica, não se adaptam ao nosso modo de vivenciar o cristianismo e sequer nos oferecem espaço para avaliarmos se nos convêm ou não, pois a repetição é tão intensa que não os incorporamos a partir de avaliações, mas, simplesmente, os ajuntamos. É algo como misturar arroz, feijão, macarrão, polvilho, café, vinagre, sorvete e açúcar no mesmo saco.
            Outra realidade ligada ao sincretismo é que ele afeta nossa identidade social, isto é, nós pensamos e nos sentimos ligados à sociedade a partir de concepções religiosas já assimiladas a partir da herança de certa cultura, como a européia, por exemplo. Assim também, do ponto de vista estritamente religioso, para nós católicos, as outras formas religiosas podem representar uma ameaça à nossa identidade ou ao nosso modo de ser e, quando nos vemos ameaçados por todas as partes, o mecanismo poderá ser o de condenar exageradamente tudo quanto é diferente e de pretender impor nossa concepção religiosa a partir de um quadro cultural que nos marcou e, assim, desrespeitar e agredir o que é distinto no nosso modo de interpretar as coisas. Por outro lado, se nos tornamos demasiadamente abertos a tudo quanto é novidade ou diferença, acabamos perdendo nossa identidade e isso desmorona nossa vida e nossa identidade religiosa. Ocorre que a identidade sempre é fruto de uma pertença social.
            Partindo para uma ilustração mais concreta, o assunto “sincretismo” coloca uma questão séria ao desafio cristão que é o da missionariedade, ou seja, à tarefa de evangelizar: como entrar em contato com outras religiões, culturas, sem perder nossa identidade, mas, ao mesmo tempo, sem provocar medos e resistências excessivas nos outros? Estamos, por conseguinte, diante de um assunto muito complexo, que vai além do ato de defender algumas coisas e condenar outras. Seguidamente somos interpelados por situações que mexem com nossa vida e nos provocam crises que nos remetem para situações novas e diferentes. A busca da acolhida do diferente força-nos a modificar certas ideias ou posturas que consideramos sagradas e absolutas. Isto gera crises, mas, ao mesmo tempo, nos envolve num processo dinâmico. Saber deste processo pode nos tranquilizar. A religião não é apenas um acréscimo de algo simpático ou bonito à nossa vida, mas é algo bem mais profundo da nossa própria existência, pois é ela que nos dá referências de interpretação e significação da vida. Mesmo assim, é significativa a frase de São Pedro, de que devemos saber dar as razões de nossa fé. Portanto, sempre vamos encontrar certo jogo de resistências ao nosso modo de pensar e de explicar as coisas, assim como nós tendemos a resistir ao modo de ser e explicar de outras manifestações culturais e religiosas; mas, se não vamos ao encontro das outras expressões religiosas e culturais, como poderíamos alargar a proposta do Reino de Deus, anunciada por Jesus Cristo como a Boa Notícia?
            Como a questão vai além de defender categoricamente algumas coisas e condenar outras, teremos que saber lidar com desafios que nos obrigam a constantes crises de fé, mas, que podem tornar-nos mais humanitários e nos levar a descobrir que, tal como acontece com a comida ingerida, o processo digestivo e metabólico não absorve tudo o que se come. Por vezes um desarranjo intestinal ou de fígado pode levar à eliminação rápida de tudo, mas em situações de normalidade, parte do que ingerimos é absorvida e outra parte é eliminada... Talvez isto nos ajude a entender que no campo do sincretismo, algo parecido ocorre conosco no aspecto religioso.

Para reflexão: - O que o sincretismo tem a ver com inculturação e evangelização?
                           - O que o sincretismo nos ajuda a entender no trato com as diferenças religiosas?

 
VII



INTRERPELAÇÕES DO IMAGINÁRIO RELIGIOSO




            Se em alguns séculos recentes do passado a Teologia costumava combater qualquer forma diferente de vivência religiosa, nos dias atuais, sua tendência parece ser muito mais a da não confrontação, mesmo que aponte para horizontes que vão além das nossas condições atuais.
Há uma sensibilidade sócio-cultural que deve ser respeitada nas buscas de vivência da fé. No entanto, isto não quer significar que se deva, por parte da religião, tolerar tudo e qualquer coisa. Mesmo assim, na diversidade das formas religiosas e na multiplicidade de modos de entender o sentido religioso na vida, ocorrem muitos bons “sinais dos tempos” e que nem sempre sabemos aproveitar adequadamente.
            Um dos efeitos das profundas mudanças da vida recente é a do policentrismo cultural e teológico. Já não se adota tudo e apenas o que é emitido a partir de Roma ou de outro ponto importante. Há muitos centros de reflexão que relativizam o discurso religioso clássico, e este discurso é como um ruído a mais entre tantos outros que vem sendo divulgados no mundo atual e que chegam aos ouvidos de milhões de seres humanos. Já não há mais um único discurso para todos.
            O discurso religioso clássico, infelizmente, esteve muito estreitamente ligado ao imperialismo cultural europeu e, por isto, se tornou rígido, ortodoxo e sem muita capacidade de diálogo e respeito às diferenças culturais. Aliás, estas diferenças, normalmente, eram vistas como inferiores e que, necessariamente, precisariam desaparecer para que a concepção cristã oficial pudesse prevalecer.
 O clima pós-moderno é avesso a formas categóricas e impositivas. Tal perspectiva nos remete para as origens cristãs, que, por sinal, se mostraram extraordinariamente maleáveis e capazes de respeitar o distinto, tanto cultural, quanto religioso e pessoal.
 A concepção atual, portanto, nos ajuda a recuperar importantes raízes do cristianismo primitivo e nos leva, também, a repensar nosso modo de ser, o que, evidentemente, pode ser benéfico, pois, nos leva a respeitar mais o diferente. Tal perspectiva mexe com o sentido de nos proclamar católicos: o que é mesmo ser católico hoje? Não seria entrar em todas as culturas deste mundo de Deus?
            O pressuposto de um cristianismo católico nos leva a pensar na maior parte da população humana que não é de origem e de cultura européia. Como chegar a estas diferenças? Mesmo sem respostas imediatas e cabais, a interpelação dos tempos atuais parece indicar para uma teologia menos monocultural e mais capaz de respeitar a diferença, tal como a teologia da libertação, intuições de dos denominados leigos, uma teologia mais feminina, etc.
 Com certeza, tal horizonte vai ajudar para que a Teologia recupere novamente uma dimensão mais mística e menos racional e abstrata. Se a Teologia é uma importante palavra sobre o mistério da vida e sobre Deus, ela certamente deverá repassar um pouco desta experiência tateada nas buscas de fé. Com isso, se deixará de explicar o que Deus é ou não é, e se passará a experimentar muito mais e melhor um Deus que se revela gerador de vida e de motivação para a solidariedade humana. Será, pois, uma teologia mais fruitiva e que “curte” mais a experiência de Deus.
            Uma teologia mais mística também ajudará a testemunhar melhor a experiência de que Deus é Pai que ama, pois será uma abertura ao mistério que Cristo nos legou da parte Dele.
            Outra influência marcante, que os tempos atuais exercem beneficamente sobre a Religião e a Teologia, é a de ajudá-las a serem mais narrativas, isto é, em lugar de narrações universalistas e absolutizantes e cheias de dogmas, regras e exigências, pode considerar mais os relatos da memória, tal como foi feito sobre Jesus Cristo nos Evangelhos.
            A dimensão narrativa não exige argumentos, sejam eles pró ou contra algo, ou provas racionais, mas apenas um ato de atenção e de escuta. A dimensão narrativa, aspecto relevante da vida de Jesus Cristo, é altamente subversiva porque “subverte” (altera) e muda uma ordem estabelecida para que possa acontecer o novo do Reino de Deus.
Portanto, mais do que preocupar-nos com legitimações das grandes explicações universalistas, que favorecem muito pouca gente neste mundo, fica conveniente pensar o modo que requer mais escuta e atenção...
            O teólogo Carlos Palácio destaca que vem ocorrendo uma grande mudança do lugar da teologia brasileira, nestes últimos anos, especialmente a partir da década de 1990. A teologia teria se deslocado da vida concreta das comunidades para o espaço acadêmico, o que pode revelar dois aspectos bem distintos: poderia a teologia estar fugindo da vida concreta e tornar-se mais teórica; mas, o mesmo fato poderia estar indicando outra realidade muito positiva, que é a da busca por parte de cristãos leigos, de cursos de reconhecimento oficial. Eles constatam a necessidade de uma preparação teológica mais aprofundada, o que certamente será benéfico e fundamental para o futuro da Igreja e, mais do que isto, importante “para a construção comum do sentido numa sociedade secular”.

Para retomar: Que diferença existe entre uma explicação universalizante ou universalista e uma narrativa local?

            Salientamos, até aqui, diversos aspectos envolvendo mudanças no perfil do fenômeno religioso e muito disto se deve a aspectos sócio-culturais da vida de cidade.
            A cidade, de certa forma, envolveu o fenômeno religioso. Não o eliminou, mas lhe deu outro contorno, outra forma de apresentação e a desafia para que encontre outras razões que justifiquem sua existência. Nesta busca poderão revelar-se formas novas, atrativas, mas nem sempre preenchidas pela recordação dos frutos da síntese do passado. Se um camundongo se vê constantemente vigiado pelo gato, vai acabar fazendo coisas que não seriam naturalmente da sua vontade. Assim, também o campo religioso e teológico, pode estar sendo afetado pela cidade.
Pedro Carlos Cipolini destaca que a cidade, dado ao fenômeno da rápida urbanização, desafia o âmbito religioso e a teologia para que se abram mais  à dimensão antropocósmica e cyberespacial e usa uma imagem muito rica e interessante para ilustrar esta interpelação:
A cidade representa a águia, que é uma máquina voadora, veloz, poderosa, de um olhar agudo e telescópico, mas não deixa de ser uma ave enigmática porque é uma ave sedentária e tende a esgotar até mesmo as condições de sua vida. Se ela, de vez em quando, migrasse para outros lugares, não terminaria o seu alimento e, certamente, acharia alimentação mais rica e saborosa...
A cidade já não pode ser vista pela idéia pré-moderna e antiga de ser o lugar do caos e da desordem. Podemos ver que isto também existia e ainda existe nos meios rurais e não urbanos.
A Religião, no ambiente da cidade, que representa a águia capaz de controlar tudo e exaurir as últimas gotas de sangue para alimentar-se, atrai as pessoas, mas também ameaça as condições de futuro e de bem-estar destas pessoas, porque as leva a esgotar tudo o que existe e o que se inventa.
A Religião certamente poderia aprender muito do que se diz de outra ave: a Fênix, uma ave misteriosa, tomada como um dos primeiros símbolos cristãos, nos primórdios da Igreja Católica. É uma ave noturna, que se confunde com a cor do solo ou da cinza e emerge do lugar onde a gente sequer supõe que possa ter estado. Segundo a mitologia egípcia, se esta ave fosse morta e queimada, acabaria renascendo das próprias cinzas. Este dado se presta para uma analogia de nossa experiência religiosa e teológica na cidade.
A Religião e a Teologia já foram muitas vezes expulsas das instituições universitárias, mas sempre de novo, voltam à luz e chegam a ocupar espaços acadêmicos, tal como vem ocorrendo nos últimos anos da vida brasileira. Se ela enfrentou crises, depreciações e se muitas vezes chegou a ser banida do espaço público, parece que está se reerguendo novamente das cinzas, isto é, brotando e vicejando, como uma tênue plantinha, de lugares que parecem ser impossíveis de fornecer condições e credibilidade para fazê-la desabrochar e irradiar vida. O renascer das cinzas nos leva a suspeitar que a renovação religiosa possa emergir dos lugares onde sequer esperamos que uma Fênix possa bater asas, possa reerguer-se e voar com vitalidade e força impressionante. Quem sabe, possa a nossa vivência religiosa repetir esta imagem mitológica e tornar-se um grande serviço para mais sentido de vida na sociedade.
Se a organização religiosa parece ter assimilado demasiadamente as características da águia, exaurindo a vida com afirmações muito categóricas e radicais sobre Deus, como a águia, tornou-se incapaz de descortinar novos horizontes, porque não se liberou para voos imprevistos e para a possibilidade de uma elevação a partir das cinzas. Mas, se das cinzas urbanas o vigor de comunidades religiosas atuantes pode reerguer-se, qual uma Fênix, porque não sonhar que possa, ali mesmo, devolver toda uma nova energia (um voo imprevisto a partir das cinzas do que já não conta nada) para comprometer mais pessoas com a justiça, com a promoção da vida e, com um rosto mais feminino, engrandecer a vida ao invés de exauri-la?
Se o fenômeno da cidade produz homens e mulheres, que do ponto de vista religioso se apresentam como “light”, bem informados e com opiniões pragmáticas sobre tudo, mas muito pouco formados na dimensão humanista e humanitária, por isto, superficiais, voláteis e permissivos, a imagem da Fênix pode nos indicar que o seu cotidiano, um dia, pode ser muito mais edificante, especialmente, para que este cotidiano não se restrinja à solidão, ao vazio e à ansiedade. A volta de valores esquecidos, que se encontram nas cinzas da cidade, poderá dar a surpresa de um voo inesperado para a experiência religiosa.

Para retomar: O que pode significar para nós a comparação da Religião ou da Teologia com a Fênix em relação à Águia?                               



Referências Bibliográficas:

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____________________. A Águia e a Fênix: desafios da cidade à Teologia. In: REVISTA DE CULTURA TEOLÓGICA (Faculdade Nossa Senhora da Assunção), Ano V, nº  21, out./dez 1997, p. 33 - 60.
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[1]  Este capítulo apresenta uma redação mais acadêmica e o inserimos aqui por considerá-lo importante  para entender o quadro religioso recente.
[2]  ORTIZ, Renato. Globalização das Sociedades. In: CULTURA VOZES, N º 3, maio/junho de 1997, p. 25.
[3]  IANNI, Octávio. Nação e Mundialização. In: CULTURA VOZES, N º  5, setembro/outubro de 1993, p. 27.
[4]  CHOI, Won Dae. Globalização na Era Pacífico. In: CULTURA VOZES, N º  4, julho/agosto de 1993, p. 16.
[5]   CHOI, Won Dae. Globalização na Era Pacífico. In: CULTURA VOZES, N º  4, julho/agosto de 1993, p.    15.
[6]  ORTIZ, Renato, op. cit. p. 27-28.
[7]  IANNI, Octávio. A cidade global. In: CULTURA VOZES, N º 2, março/abril de 1994, p. 25.
[8]  Idem, p. 28.
[9]  Idem, p. 33.
[10] MONTEIRO, Paula. O Problema das Diferenças em um Mundo Global. In: MOREIRA, Alberto da Silva (org.). Sociedade Global – cultura e religião. RJ, Petrópolis: Vozes-USF, 1998, p. 115.
[11]  Idem, p. 117.

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

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