sábado, 28 de agosto de 2021

APROPRIAÇÃO DO SAGRADO

 

 

                        Existe vastíssima literatura sobre o Sagrado. Nosso interesse em abordar este tema se restringe a um pequeno aspecto do tema e que diz respeito à autoridade de quem decreta que um objeto ou lugar seja considerado como âmbito sagrado. Parece que a instância da autoridade religiosa está perdendo sua força em torno do controle do sagrado, diante da indústria cultural que transforma o simbolismo religioso em magia de espetáculo.

            Até poucos séculos atrás, pelo menos na cultura ocidental, a dimensão do sagrado constituía campo precípuo do poder eclesiástico e teológico. Todo o âmbito do sagrado - o santo, o divino, o transcendente, hierático, religioso, etéreo – constituía a essência da religião e do culto. Dependia da administração e veiculação de autoridades religiosas.

Tudo quanto não desfrutava da grandeza do sagrado era considerado como profano. Assim, o âmbito do sagrado constituía o cerne do discurso religioso, a partir das explicações teológicas, e do que o sagrado esperava dos fiéis. No início do século passado, Rudolf Otto alterou este foco ao se sensibilizar, não pela explicação teológica sobre o sagrado, mas, sobre o como uma pessoa experimenta o sagrado. Ao lado de Mircea Eliade, fez perceber que a dimensão religiosa é experimentada com algumas características bem típicas: qualquer objeto experimentado como manifestação do “totalmente outro” (Deus, divino, ou, o sobrenatural) continua a ser o mesmo objeto de antes, mas que, simultaneamente, remete para além do que pode ser expresso pela linguagem humana em torno do acontecimento ocorrido.

Esta experiência, que encanta e que ao mesmo tempo apavora, produz uma sensação distinta de qualquer outra experiência, pois, quando alguém faz tal experiência e a divulga, desperta curiosidade em outras pessoas, e estas, por sua vez, ficam ansiosas com vistas a experimentar o mesmo fenômeno.

Percebemos que há formação espontânea em torno de algumas manifestações hierofânicas (modos como alguém experimenta o sagrado) mas, engendradas por um aspecto mórbido, isto é, pessoas querem promover-se a si mesmas com elevação de santidade. Deixam a nítida impressão de que desejam auto-afirmação e aprovação coletiva. Que os outros venham àquele lugar e comecem a rezar na perspectiva de retorno da experiência hierofânica.

Outras experiências, pessoais ou coletivas, são profundamente estimuladas e divulgadas como afirmação do poder religioso, a partir de autoridades religiosas. Neste caso, com elevada e intensa estimulação de desejos, podem produzir-se alucinações até coletivas de visualização de algo fora do normal. Caso ilustrativo, constitui aquela narrativa de que no Santuário de Lourdes, na França, diversas mil pessoas teriam visto o sol pular de um lado para o outro do céu. Cabe, então, a pergunta: seria a percepção deste fenômeno, algo real e objetivo para milhares de pessoas, sem ser, da mesma forma, perceptível para o resto da população do planeta?

O espantoso aumento de proclamação de santos e santas na Igreja Católica, tem algo muito atinente e favorável ao fenômeno de institucionalização de lugares sagrados, a partir de santuários e grandes templos, comemorativos aos santos e santas e promulgados como espaços nobres do sagrado, com vistas a fomentar intenso turismo religioso.

Percebe-se, assim, que algumas experiências do sagrado suscitam devoções, sentimentos de bem querer e de amor, mas, também podem provocar repulsa e ódio contra outras manifestações religiosas. No entanto, o sentimento religioso que decorre de estímulos favoráveis à sacralidade de determinado objeto ou lugar, também pode incorrer no risco de ser manipulado por autoridades religiosas, e, por isso, facilmente desandar para o mercado, como mais um produto de consumo do campo turístico.

Ao se valerem dos recursos da mídia, as autoridades organizam a relação dos fiéis com aquele espaço. Neste contexto, já não predomina o senso de pertença a uma comunidade, mas, a oferta de um grandioso e belo espetáculo religioso, dentro do horizonte maior da sociedade do espetáculo. Assim, some a antiga noção de que no lugar sagrado, um sujeito fiel reverenciava a Deus ou algo da sua manifestação, e fica mais restrito ao âmbito da organização da sua vida pessoal e aos contornos do seu próprio eu.

Nesta recomposição, o sagrado deixa de remeter para o além e prende motivações de efeitos turísticos. Já não estão em jogo as grandes verdades da Religião, mas, a fragmentada busca de sujeitos individualizados. Ao mesmo tempo, o conteúdo simbólico cede espaço para o ritualismo repetitivo de grandes celebrações, em que rituais profanos se mesclam numa espécie de simulacro para que os assistentes fiquem bem impressionados. Os cantos salientam muito este aspecto porque imitam shows e o modo de interação de cantores profanos com seus públicos. Mais do que a mensagem religiosa e a melodia dos cantos, impõe-se o conteúdo que possa produzir muitas e agradáveis emoções, sob clima de espetáculo.

Sob a dimensão do sagrado, veiculam-se nos lugares sagrados, muitas manifestações distintas do sagrado, mas que se encaixam em estilos de vida que produzem “glamour”, com ambientes e jogos de persuasão. Neste simulacro oferecido a espectadores, o sagrado torna-se similar a qualquer outra encenação efêmera e passageira, desde que possa produzir delírio, celebridade de alguém, e o visível “estrelismo” de quem coordena ou se apresenta nos eventos.

Com isso, os rituais religiosos perdem sua carga semântica das origens e das tradições, e, passam a remeter, cada dia mais, para o simbolismo do mercado. Ao mesmo tempo, os rituais se desatrelam do seu significado religioso e das tradições que o cultivaram, para adequar-se à indústria cultural e seus critérios de sucesso. Na mídia, especialmente a televisiva, vem ocorrendo paulatina reprodução de rituais, hierarquias, mitos e símbolos da procedência de ritualização religiosa, mas, os novos programas são ritualizados para a espetacularização, a fim de captar audiência dos mais variados segmentos da sociedade e ampliar o melhor alcance de sucesso.

Os meios de comunicação social conseguem absorver e se apropriar de poder mágico para deixar a impressão de que suas verdades veiculadas apontam para a solução de todos os mais variados tipos de problemas que se manifestam na sociedade. Trata-se de um messianismo sem referência a Deus, com a suposta condição de indicar o que promove a justiça e o bem-estar entre as pessoas. Ocorre, no entanto, uma notável diferença em relação ao que os ritos religiosos se propõem: a apropriação da mídia gera angústia e frustração, ao invés de propiciar serenidade e segurança para lidar com as dificuldades. Ao mesmo tempo, a mídia tende a sacralizar seus ritos com vistas a oferecer um poder simbólico e afirmar seu próprio poder como sendo o catalizador mágico que transforma tudo em espetáculo. Deste modo, consome-se um mundo produzido, simplesmente para ser consumido, e que já não interfere no caos da vida e, nem tampouco consegue ordená-lo, porquanto se restringe ao espetáculo.

O campo turístico, no contexto da indústria turística, vai adorar qualquer organização de manifestações religiosas e sagradas, pois, favorece o trade turístico que se apropria da experiência fundante, da mesma forma como a autoridade religiosa decretou aquele objeto ou espaço como âmbito sagrado. Deste modo, um objeto religioso, como qualquer outro objeto, ou espaço atraente, interessa pelas possíveis rotas turísticas, como o Vaticano para os católicos; Meca para os muçulmanos, Jerusalém para os judeus. Nossos dias, no entanto, deslocam a razão de ser do sagrado para um vasto consumismo e, estes lugares, declarados sagrados, integram, como quaisquer outros produtos, a economia de cidades ou países.

Se por exemplo, lembramos as romarias ao santuário de Nossa Senhora Aparecida, no Brasil, vemos que o poder religioso foi apropriado de formas que o significado vivenciado por pobres pescadores, acabou transformado numa grande manifestação à ‘poderosa deusa, protetora do Brasil’. Se dez ou mais milhões de romeiros visitam aquele espaço no correr de cada ano, é porque além do memorial originário da experiência sagrada ali ocorrida, ocorre uma publicidade muito bem orquestrada, tanto por autoridades religiosas, quanto de civis e econômicas.

Se ainda ocorrem motivações religiosas em torno da visitação ao espaço de romaria, certamente já se revelam predominantes as razões turísticas em torno da infra-estrutura, a fim de que aquele lugar produza o máximo de atração para largo consumo de hotelaria, de comércio, de alimentação, de entretenimento e de lazer. Assim, os romeiros tornam-se os clientes principais para manter uma economia em torno de um rico nicho de entretenimento. Os espaços, tidos como sagrados, precisam ser consumidos. Se, com isto, difundem, aparentemente, a religião e recrutam possíveis novos fiéis, transformam, simultaneamente, o lugar sagrado em lugar profano como qualquer outro para o alcance de êxito comercial.

A desapropriação do sagrado leva os fiéis turistas a assimilar aquele lugar de referência sagrada como lugar totalmente similar ao de qualquer outro espaço turístico.

BIBLIOGRAFIA

BROGNI, Jaqueline de Souza e TRICÁRICO, Luciano Torres. A apropriação e transformação do espaço religioso: Pestana Convento do Carmo, Bahia. In: CULTUR, ano 13 – nº 01 – fev/2019.

JALUSKA, Taciane e JUNQUEIRA, Sérgio. A utilização dos espaços sagrados pelo turismo religioso e suas possibilidades como ferramenta auxiliar para o estabelecimento de diálogo entre as nações. In: http://www.mpsp.mp.br>portal>TodosOsLivros> pdf

NASCIMENTO, Alan Faber do; e SOUZA, Vítor Chaves do. O turismo religioso na sociedade líquido-moderna: apropriação da fé pelo trade turístico. In: dialnet-OTurismoReligiosoNaSociedadeLiquidomoderna-7433464-pdf

PATIAS, Jaime Carlos. O sagrado e o profano: do rito religioso ao espetáculo midiático. In: pluricom.com.br/fórum/o-sagrado-e-o-profano-do-rito-religioso-ao-espetaculo-midiatico

RODRIGUES, Ana Carolina. O sagrado no consumo: apropriação de elementos religiosos na arquitetura do Parkshopping Barigüi.  In: acerrvodigital.ufpr/handle/1884/43439

VELIQ, Fabiano. O retorno do sagrado na contemporaneidade: uma leitura possível. In: domtotal.com/noticia/1459958/2020/07/o-retorno-do-sagrado-na-contemporanedade-uma-leitura-posivel/

 

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

ESPETACULARIZAÇÃO DAS MISSAS

 

ESPETACULARIZAÇÃO DAS MISSAS

Pe. João Inácio Kolling

Apresentação

 

Seguidamente aparecem manchetes que envolvem ornamentos, rituais, e, com extravagâncias de padres em celebrações litúrgicas. De um lado, estes fatos parecem destacar a elevação de uma hipocrisia funcional de algo divulgado como “fashion”, mas, que se reporta ao mundo brega da batina, da capa, da sobrepeliz, barrete, etc. Por outro lado, mais do que enfatizar a dimensão simbólica para remeter às palavras e aos gestos de Jesus Cristo, estas supostas novidades, hauridas de um passado distante, refletem uma tendência de espetacularização teatral, para ser apreciada, consumida e vendida, como toda publicidade de vídeos, fotos, selfies, indicando, - não o horizonte da memória e dos valores de Jesus Cristo, - mas, o precípuo da arte teatral.

            Quando as celebrações litúrgicas viram uma dispersão total, com fotos, filmagens, gestos e uma imensidão de acólitos, coroinhas, cantores fazendo seu showzinho à parte, mestres de cerimônia controlando minuciosamente todos os detalhes e gestos a serem feitos; seminaristas, feitos mini-padres, andando de lado para outro para serem vistos; movimentação com báculo, mitra, água e microfones e até selfies de concelebrantes nos momentos mais destacados..., já não sobra mais nada para a dimensão simbólica dos ritos celebrados. Procede-se uma sutil transposição dos ritos religiosos para o espetáculo midiático.

            Diante deste deslocamento, o momento celebrativo transforma os fiéis participantes do ato religioso em meros espectadores, sem participação nos ritos. Com isso, relega-se a celebração comunitária para valorizar-se um ato solene e empolgante de atores para um grande espetáculo. A sacramentalidade passa a ser substituída pela representatividade e o presidente da celebração, num procedimento similar ao ator principal da peça, com seu aparato de vestes, gestos, movimentos e detalhismos em certos ritos e modulações de voz (muda rapidamente a feição com as máscaras) passa a entreter o público assistente na expectativa de nele produzir reações simpáticas e favoráveis a si, com apelo a gritos, palmas, êxtases,  “vivas ao santo ou à santa”, tudo para produzir um momento de grande fascinação nos fiéis.

            O ambiente da Igreja, de espaço celebrativo, passa, então, a constituir-se em ambiente similar ao dos teatros, próprios para grandes espetáculos (com iluminação sugestiva e cativante, ordem de assentos, telões, holofotes, cenários, homilias, tudo na perspectiva de grandioso espetáculo. E, não raramente, o pregador produz uma ênfase na sua homilia para dramatizar a batalha ferrenha entre Deus e o diabo, a fim de transformar sua palavra em magia que possa aumentar a adesão.

            Por outro lado, o louvor espetacularizado vai se incorporando em padres e fiéis como mediação que facilita a espetacularização do sagrado. Assim, o campo religioso deixa de lado a dimensão simbólica para enfatizar o espetáculo. Como o campo religioso entrou na produção de massa do capital cultural, importa sua veiculação para barganhar influência. Como mais um produto a ser vendido, - consumido e proporcionador de lucros e vantagens, -o campo religioso constitui também um espaço ideal para a mitificação de figuras e de posturas ideológicas dominantes.

 

1 – Sacramentalidade e dimensão simbólica

 

            Os sacramentos constituem uma realidade central da vida cristã católica. Sem entrar na polêmica da concepção essencialista, consideramos como referencial a valiosa observação de Ernst Cassirer, de que se algo nos distingue radicalmente dos demais seres vivos sobre a Terra, é o da dimensão simbólica. Os outros seres, podem até fazer melhor do que nós, muitas coisas aprendidas e humanas, no entanto, não conseguem expressar algo por meio de símbolos. Podem manifestar sinais de apreço, de alegria, de imitação, de dor, etc., mas, não comunicam algo por meio de sinais simbólicos que remetam a outras realidades.

 A simbologia nos remete a outros mundos, que ultrapassam as realidades contingentes e visíveis. Deste modo, um sinal simbólico visível e palpável, pode remeter aos mundos que vão além do que se expressa na linguagem escrita, falada ou não verbal. Por exemplo, dar uma rosa, significa mais do que a questão estética, química e econômica, para significar e expressar uma realidade totalmente distinta. A bandeira nacional, da mesma forma, remete para muito além do pano, das cores, e das insígnias. Através dela nos reportamos ao país, ao povo e a seu modo de vida... Assim, através da sacramentalidade, a síntese dos traços mais marcantes da atuação de Jesus Cristo segue sendo atualizada na celebração dos sete sacramentos (ao lado dos inúmeros outros). Poderíamos, pois, dizer que os sacramentos nos reportam ao miolo ou à centralidade do que Jesus mais fez, com vistas a nos estimular para a aproximação paulatina destes mesmos gestos.

            Se a simplicidade da rosa transmite algo que ultrapassa o alcance das palavras, seria de se esperar que as vestes litúrgicas, simples e discretas, ajudassem ao conjunto dos ritos celebrados a transportar os fiéis para um outro mundo possível. Provavelmente não é o que se propicia com muitos roupões vistosos, cintilantes e com ritos que produzem meros assistentes passivos do espetáculo. Basta ver que muitos celebrantes conseguem rir de si mesmos e do que fazem, diante da assembleia. Longe do despojamento, exibem-se sob a ‘teologia do pano’, com retórica e muitos adereços, mas, - e o que é mais perigoso, - vazios da dimensão simbólica dos ritos. Quando até bispos padecem deste mal da “pavonice” das vestes litúrgicas e clericais glamorosas, com exageros na ostentação da pompa sacral e com insígnias de matéria preciosa, fica a impressão de que este mundo ritual religioso apenas serve para quem se apresenta e que este já não espera outra coisa da assembleia do que ser largamente apreciado.

            Uma missa, em certos ambientes e momentos, acaba similar a um grande palco de teatro com figurinos clericais. Não estaria tal quadro a indicar que, sob os uniformes, com tantos botõezinhos vermelhos, bricolagens, ‘os reis já estão nús’ e a dimensão simbólica é engolida pela real e objetiva hipocrisia funcional?

            Talvez devamos concluir que a crise de vocações sacerdotais constitua muito mais uma obra de Deus do que falta de resposta dos homens – como a maioria pensa – ou ainda, como ação do maligno, segundo a argumentação de ultraconservadores. Como diz Gilberto Borghi, talvez Deus esteja nos propiciando um sinal para que se desmantele o clericalismo e se comece a pensar mais no como podemos ser uma comunidade de fé que saiba estar presente e ser eficaz no mundo de hoje.

            Não é por nada que o Papa Francisco nos convoca para uma profunda mudança de mentalidade na Igreja, sobretudo, contra a rigidez e a facilidade de procurar refúgio num passado, ao invés de iniciar mudanças significativas. Em discurso na Cúria Romana ele afirmou que: “a rigidez nasce do medo da mudança”. Mais do que ocupar lugares, devemos iniciar processos. E, não viver simplesmente uma época de mudanças, mas, mudança de época. A atitude da rigidez vai disseminando “estacas e obstáculos” pelo terreno do bem-comum e mina a comunicabilidade com muito ódio...

           

2 – Teatro e Espetáculo

 

            Quando se fala em teatro, evidenciam-se duas dimensões distintas: a que se refere a um determinado espaço próprio e privativo do meio teatral; ou a compreensão ampla deste fenômeno, com expressão de alguém, em qualquer lugar, diante de outras pessoas.

            Como uma das grandes dimensões da condição humana, a teatralidade, pode tanto significar a especificidade do campo cênico, como também abarcar a convivência social. Desta forma, quando se qualifica alguém por estar fazendo teatro, pode referir-se ao específico dos palcos, mas também, à realidade ampla das encenações feitas diante das outras pessoas.

            Nas duas dimensões evoca-se um elemento central: o foco do outro, porquanto, somente diante de alguém que olha, tem sentido fazer teatro. Creio que ninguém faz teatro para si mesmo, a não ser para gozar de uma gafe ocorrida em outro ambiente.

            Se a teatralidade depende de uma ou de muitas pessoas que olham, reflete que a estética de algo artístico sempre visa um receptor que possa encantar-se ou mover-se para determinadas emoções. Isto revela que a teatralidade sempre implica em disfarce.

            É interessante observar que, historicamente, o teatro grego nasceu do caráter religioso das representações feitas ao ar livre de praças, mas, já na cultura romana, sofreu alteração da sua razão de ser, pois, ao invés de se constituir em expressão religiosa, passou para um momento profano de diversão e entretenimento. Na Idade Média, o teatro voltou à dimensão religiosa para representar os grandes sinais da fé cristã e o seu significado.

            Nas quedas para a dimensão da teatralidade, muitas missas de nossos dias, voltam a enaltecer e a ostentar o figurino teatral, que muito apela ao disfarce (troca de vestes, troca de pintura, uso de máscara...) para retratar a moda da vestimenta de um momento histórico, mas, enriquecida e ampliada com sua fantasia estetizada, a fim de impactar com a riqueza da sua representação. Daí este fenômeno de encantamento pela aparência e pela suntuosidade das roupas, com os olhares, os meneios, os sorrisos, especialmente aqueles de mentirinha, e a imagética de ser uma pessoa “super”.

           

3 – Disfarce

 

            Disfarçar é um componente muito marcante do cotidiano da vida humana. Significa desejo de impactar quem olha, pois, se não tem nenhum potencial expectador, de nada adiantaria disfarçar-se.

            O disfarce somente tem função e sentido mediante visualização alheia, mas, existem diferenças nos disfarces. Por exemplo se comparamos o jaleco de um médico e a veste litúrgica de um padre, esta veste apresenta maior teatralidade que a do jaleco devido aos significados transcendentais, enquanto que o jaleco do médico tem uma função prática. A lida do médico, numa consulta, vale-se do jaleco por questões de higiene e identificação com a função que exerce.

            A teatralidade constitui um fenômeno de alguém exibir-se para ser visto, e, geralmente, sob um jogo de enganação e fingimento. A essência da teatralidade está situada nesta dinâmica do fingimento e da enganação, ou para imitar alguém, ou para disfarçar-se em alguém; por exemplo, um homem fazer de conta que é mulher, ou vice-versa. A arte cênica está precisamente no disfarce tão bem feito para que o expectador não perceba quem realmente está representando aquele papel. Tal contexto remete à função da representatividade, que facilmente substitui a teatralidade.

            Basta lembrar que a primeira acepção do significado de pessoa foi a de máscara. As pessoas, de acordo com os ambientes e costumes seguem fazendo representações. Por exemplo um casamento, festa religiosa, baile, jantar festivo. Ali ocorre uma diversidade de representações de vestes, ritos e cerimônias, culturalmente assimiladas e mantidas. E, pelas representações conhecem-se as pessoas. Cai na vista quem segue o figurino, se quebra protocolos ou se entra no clima da festa. Estes momentos também permitem delinear a identidade pelo auto-conhecimento, através das resistências, censuras ou da adesão ao ambiente ensejado.

            As máscaras, - não necessariamente as de caricaturas, - nos proporcionam a noção de quem os outros são para nós e de quem nós mesmos somos e desejamos ser para os outros. No entanto, as máscaras podem efetuar um grande falseamento das relações. Facilmente elas deixam transparecer este falseamento através de idealizações e confirmam aquele ditado popular: “engane-me que eu gosto de ver”! O conjunto dos aparatos cênicos, com ambientes, figurinos, cenários e músicas de um ritual, expressam o desejo de que a realidade cotidiana alcance os desejos da representação feita. Assim, nos mascaramentos e nas representações, transparece algo utópico e idealizado, com vistas a ser alcançado. A própria realidade difícil da vida leva a esbarrar no mundo fantástico dos sonhos.

            A teatralidade já constitui, em si mesma, um fenômeno de representação por valer-se do recurso do engano e do fingimento para interpretar um personagem. Assim, se um homem se disfarça de mulher, isto só tem significado para quem o assiste. O fingimento entra como coadjuvante para que o disfarce produza algum sentido. Imagine-se tal procedimento de um homem disfarçado de mulher, sozinho no quarto ou no banheiro! Diante de eventual expectador, o disfarce produz o mecanismo da teatralidade. No jogo entre quem vê e quem disfarça, está a teatralidade. Assim, para algo ser considerado teatral deve conter um jogo de representações.

            O importante na teatralidade é produzir uma persuasão no interlocutor, de tal forma, que possa pensar que é assim mesmo. A sedução vai proporcionar este resultado mediante um fenômeno de espetacularização.

 

4 – Espetacularização

 

            Significa transformar algo em espetáculo, ou para banalizar, ou para polemizar. Espetacularização (do latim specs = o que chama a atenção, que prende o olhar) constitui uma operação típica da vida social, sobretudo na sociedade de massas. Consiste em transformar e transmitir fatos ou realidades através do espetáculo, a fim de que sejam consumidos. A história humana está cheia de transformações de eventos públicos, sociais e até subjetivos, em espetáculos. Um caso bem ilustrativo e muito antigo é o dos gladiadores no coliseu de Roma.

Estes sujeitos viravam objetos manipulados para o entretenimento das massas. Na verdade, constituíam meio de entretenimento e de alienação, bem como de manipulação das massas exploradas e excluídas pelo poder imperial. Assim, outros episódios, como os da inquisição na Igreja medieval e, em tantas outras organizações modernas, repete-se a espetacularização para entreter sujeitos a fim de que olhem, mas, não participem do que está em jogo. Apenas consomem o que está sendo espetacularizado. Há um disfarce de um olhar de quem comanda os olhares.

Assim, um padre, quando se situa no campo da espetacularização, acaba condicionando os assistentes da assembleia litúrgica e dificulta sua capacidade de organização, pois torna-se mero gladiador a serviço de um outro poder, para entretê-los, e, para que fiquem atrelados aos seus procedimentos, sem remeter aos significados sacramentais dos feitos de Jesus Cristo.

Certamente não é interessante que o campo religioso passe a restringir-se a mero   espetáculo, sem a dimensão simbólica dos sacramentos e sua capacidade de transcendência para praticar as obras de Cristo. Tampouco ajuda à razão de ser dos rituais religiosos, o encantamento pelos disfarces e representações teatrais que, na verdade esvaziam o culto religioso. Por conseguinte, urge relegar a bricolagem dos panos para consumo de bens religiosos e apostar em clima e ambientes que permitam a eficácia dos sacramentos, para colaborar na construção do Reino de Deus.

O lugar reconhecido do padre na comunidade cristã, em mudança de época, parece requerer outro lugar e outra identidade, despojados do atual quadro de aparatos midiáticos, para se mover, eminentemente, por uma espiritualidade de novos aerópagos da pequenez interior, da misericórdia, da eco-espiritualidade, e da sede de alargamento de comunhão.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ALMEIDA, Gabriela e FILHO, José Cardoso (Org.) Comunicação, estética e política: epistemologias, problemas e pesquisas. Curitiba: appris,2020.

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CATÃO, Francisco. A Igreja e a mudança de época. In: português.clonline.org/historias/encontros/2018/09/19/Francisco-catao-igreja-mudança-epoca

CARVALHO, Jorge de. ‘Espetacularização’ e ‘Canibalização’ das culturas populares na américa Latina. Revista ANTRHROPOLÓGICAS, ano 14, vol. 21 (1): 39 – 76 (2010.

CORNAGO, Óscar. Que és la teatralidade? Paradigmas estéticos de la Modernidad. In: archivoarte.uclm.es/textos/que-ews-la-teatralidad-paradigmas-esteticos-de-la-modernidad/ Acessado dia 31/07/2021.

JUNQUEIRA, Flávia. A teatralidade da vida cotidiana. In: dicionariodeteatro.blogspot.com/2012/08-a-teatralidade-da-vida-cotidiana-flavia.html/

LIMA, Luiger Andrade Cavalcanti de. Um santo espetáculo: a música evangélica como produto mercadológico e a espetacularização e divinizações de seus artistas. In: htpp://dx.doi.org/10.35521/unitas.v3i2.329

MOSTAÇO, Edelcio. Considerações sobre o conceito de teatralidade. In: DAPesquisa, Florianópolis, v. 2, nº 4, p. 056 – 061, 2007.

PAPA FRANCISCO. Discurso à Cúria Romana no dia 21 de dezembro de 2019. In: vaticannews.va/pt/papa/News/2019-12/papa-francisco-discurso-natal-curia-romana.html

SCAPIN, Bruno. Que tipo de padre forma o seminário? In: ihu.unisinos.br/186-noticias-noticias-2017/571042-que-tipo-de-padre-forma-o-seminario

THOMAZ, Suzana. Teatralidade, entre teorias e práticas: um olhar sobre a abordagem do Theätre du Soleil. In: scielo.br/j/rbep/a/NVsMHLPV7ftpTTndrs9MgNx/?format=pd&lang=pt

 

 

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