Existe vastíssima literatura sobre o
Sagrado. Nosso interesse em abordar este tema se restringe a um pequeno aspecto
do tema e que diz respeito à autoridade de quem decreta que um objeto ou lugar
seja considerado como âmbito sagrado. Parece que a instância da autoridade
religiosa está perdendo sua força em torno do controle do sagrado, diante da
indústria cultural que transforma o simbolismo religioso em magia de
espetáculo.
Até poucos
séculos atrás, pelo menos na cultura ocidental, a dimensão do sagrado
constituía campo precípuo do poder eclesiástico e teológico. Todo o âmbito do
sagrado - o santo, o divino, o transcendente, hierático, religioso, etéreo –
constituía a essência da religião e do culto. Dependia da administração e
veiculação de autoridades religiosas.
Tudo quanto não desfrutava da
grandeza do sagrado era considerado como profano. Assim, o âmbito do sagrado
constituía o cerne do discurso religioso, a partir das explicações teológicas,
e do que o sagrado esperava dos fiéis. No início do século passado, Rudolf Otto
alterou este foco ao se sensibilizar, não pela explicação teológica sobre o
sagrado, mas, sobre o como uma pessoa experimenta o sagrado. Ao lado de Mircea
Eliade, fez perceber que a dimensão religiosa é experimentada com algumas
características bem típicas: qualquer objeto experimentado como manifestação do
“totalmente outro” (Deus, divino, ou, o sobrenatural) continua a ser o mesmo
objeto de antes, mas que, simultaneamente, remete para além do que pode ser
expresso pela linguagem humana em torno do acontecimento ocorrido.
Esta experiência, que encanta e que
ao mesmo tempo apavora, produz uma sensação distinta de qualquer outra
experiência, pois, quando alguém faz tal experiência e a divulga, desperta
curiosidade em outras pessoas, e estas, por sua vez, ficam ansiosas com vistas
a experimentar o mesmo fenômeno.
Percebemos que há formação espontânea
em torno de algumas manifestações hierofânicas (modos como alguém experimenta o
sagrado) mas, engendradas por um aspecto mórbido, isto é, pessoas querem
promover-se a si mesmas com elevação de santidade. Deixam a nítida impressão de
que desejam auto-afirmação e aprovação coletiva. Que os outros venham àquele
lugar e comecem a rezar na perspectiva de retorno da experiência hierofânica.
Outras experiências, pessoais ou
coletivas, são profundamente estimuladas e divulgadas como afirmação do poder
religioso, a partir de autoridades religiosas. Neste caso, com elevada e
intensa estimulação de desejos, podem produzir-se alucinações até coletivas de
visualização de algo fora do normal. Caso ilustrativo, constitui aquela
narrativa de que no Santuário de Lourdes, na França, diversas mil pessoas
teriam visto o sol pular de um lado para o outro do céu. Cabe, então, a
pergunta: seria a percepção deste fenômeno, algo real e objetivo para milhares
de pessoas, sem ser, da mesma forma, perceptível para o resto da população do
planeta?
O espantoso aumento de proclamação de
santos e santas na Igreja Católica, tem algo muito atinente e favorável ao
fenômeno de institucionalização de lugares sagrados, a partir de santuários e
grandes templos, comemorativos aos santos e santas e promulgados como espaços
nobres do sagrado, com vistas a fomentar intenso turismo religioso.
Percebe-se, assim, que algumas
experiências do sagrado suscitam devoções, sentimentos de bem querer e de amor,
mas, também podem provocar repulsa e ódio contra outras manifestações
religiosas. No entanto, o sentimento religioso que decorre de estímulos
favoráveis à sacralidade de determinado objeto ou lugar, também pode incorrer
no risco de ser manipulado por autoridades religiosas, e, por isso, facilmente
desandar para o mercado, como mais um produto de consumo do campo turístico.
Ao se valerem dos recursos da mídia,
as autoridades organizam a relação dos fiéis com aquele espaço. Neste contexto,
já não predomina o senso de pertença a uma comunidade, mas, a oferta de um
grandioso e belo espetáculo religioso, dentro do horizonte maior da sociedade
do espetáculo. Assim, some a antiga noção de que no lugar sagrado, um sujeito
fiel reverenciava a Deus ou algo da sua manifestação, e fica mais restrito ao
âmbito da organização da sua vida pessoal e aos contornos do seu próprio eu.
Nesta recomposição, o sagrado deixa
de remeter para o além e prende motivações de efeitos turísticos. Já não estão
em jogo as grandes verdades da Religião, mas, a fragmentada busca de sujeitos
individualizados. Ao mesmo tempo, o conteúdo simbólico cede espaço para o
ritualismo repetitivo de grandes celebrações, em que rituais profanos se
mesclam numa espécie de simulacro para que os assistentes fiquem bem
impressionados. Os cantos salientam muito este aspecto porque imitam shows e o
modo de interação de cantores profanos com seus públicos. Mais do que a
mensagem religiosa e a melodia dos cantos, impõe-se o conteúdo que possa
produzir muitas e agradáveis emoções, sob clima de espetáculo.
Sob a dimensão do sagrado,
veiculam-se nos lugares sagrados, muitas manifestações distintas do sagrado,
mas que se encaixam em estilos de vida que produzem “glamour”, com ambientes e
jogos de persuasão. Neste simulacro oferecido a espectadores, o sagrado
torna-se similar a qualquer outra encenação efêmera e passageira, desde que
possa produzir delírio, celebridade de alguém, e o visível “estrelismo” de quem
coordena ou se apresenta nos eventos.
Com isso, os rituais religiosos
perdem sua carga semântica das origens e das tradições, e, passam a remeter,
cada dia mais, para o simbolismo do mercado. Ao mesmo tempo, os rituais se
desatrelam do seu significado religioso e das tradições que o cultivaram, para
adequar-se à indústria cultural e seus critérios de sucesso. Na mídia,
especialmente a televisiva, vem ocorrendo paulatina reprodução de rituais,
hierarquias, mitos e símbolos da procedência de ritualização religiosa, mas, os
novos programas são ritualizados para a espetacularização, a fim de captar
audiência dos mais variados segmentos da sociedade e ampliar o melhor alcance
de sucesso.
Os meios de comunicação social
conseguem absorver e se apropriar de poder mágico para deixar a impressão de
que suas verdades veiculadas apontam para a solução de todos os mais variados
tipos de problemas que se manifestam na sociedade. Trata-se de um messianismo
sem referência a Deus, com a suposta condição de indicar o que promove a
justiça e o bem-estar entre as pessoas. Ocorre, no entanto, uma notável
diferença em relação ao que os ritos religiosos se propõem: a apropriação da
mídia gera angústia e frustração, ao invés de propiciar serenidade e segurança
para lidar com as dificuldades. Ao mesmo tempo, a mídia tende a sacralizar seus
ritos com vistas a oferecer um poder simbólico e afirmar seu próprio poder como
sendo o catalizador mágico que transforma tudo em espetáculo. Deste modo,
consome-se um mundo produzido, simplesmente para ser consumido, e que já não
interfere no caos da vida e, nem tampouco consegue ordená-lo, porquanto se
restringe ao espetáculo.
O campo turístico, no contexto da
indústria turística, vai adorar qualquer organização de manifestações
religiosas e sagradas, pois, favorece o trade turístico que se apropria da
experiência fundante, da mesma forma como a autoridade religiosa decretou
aquele objeto ou espaço como âmbito sagrado. Deste modo, um objeto religioso,
como qualquer outro objeto, ou espaço atraente, interessa pelas possíveis rotas
turísticas, como o Vaticano para os católicos; Meca para os muçulmanos, Jerusalém
para os judeus. Nossos dias, no entanto, deslocam a razão de ser do sagrado
para um vasto consumismo e, estes lugares, declarados sagrados, integram, como
quaisquer outros produtos, a economia de cidades ou países.
Se por exemplo, lembramos as romarias
ao santuário de Nossa Senhora Aparecida, no Brasil, vemos que o poder religioso
foi apropriado de formas que o significado vivenciado por pobres pescadores,
acabou transformado numa grande manifestação à ‘poderosa deusa, protetora do
Brasil’. Se dez ou mais milhões de romeiros visitam aquele espaço no correr de cada
ano, é porque além do memorial originário da experiência sagrada ali ocorrida,
ocorre uma publicidade muito bem orquestrada, tanto por autoridades religiosas,
quanto de civis e econômicas.
Se ainda ocorrem motivações
religiosas em torno da visitação ao espaço de romaria, certamente já se revelam
predominantes as razões turísticas em torno da infra-estrutura, a fim de que
aquele lugar produza o máximo de atração para largo consumo de hotelaria, de comércio,
de alimentação, de entretenimento e de lazer. Assim, os romeiros tornam-se os
clientes principais para manter uma economia em torno de um rico nicho de
entretenimento. Os espaços, tidos como sagrados, precisam ser consumidos. Se,
com isto, difundem, aparentemente, a religião e recrutam possíveis novos fiéis,
transformam, simultaneamente, o lugar sagrado em lugar profano como qualquer
outro para o alcance de êxito comercial.
A desapropriação do sagrado leva os
fiéis turistas a assimilar aquele lugar de referência sagrada como lugar
totalmente similar ao de qualquer outro espaço turístico.
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