sábado, 28 de agosto de 2021

APROPRIAÇÃO DO SAGRADO

 

 

                        Existe vastíssima literatura sobre o Sagrado. Nosso interesse em abordar este tema se restringe a um pequeno aspecto do tema e que diz respeito à autoridade de quem decreta que um objeto ou lugar seja considerado como âmbito sagrado. Parece que a instância da autoridade religiosa está perdendo sua força em torno do controle do sagrado, diante da indústria cultural que transforma o simbolismo religioso em magia de espetáculo.

            Até poucos séculos atrás, pelo menos na cultura ocidental, a dimensão do sagrado constituía campo precípuo do poder eclesiástico e teológico. Todo o âmbito do sagrado - o santo, o divino, o transcendente, hierático, religioso, etéreo – constituía a essência da religião e do culto. Dependia da administração e veiculação de autoridades religiosas.

Tudo quanto não desfrutava da grandeza do sagrado era considerado como profano. Assim, o âmbito do sagrado constituía o cerne do discurso religioso, a partir das explicações teológicas, e do que o sagrado esperava dos fiéis. No início do século passado, Rudolf Otto alterou este foco ao se sensibilizar, não pela explicação teológica sobre o sagrado, mas, sobre o como uma pessoa experimenta o sagrado. Ao lado de Mircea Eliade, fez perceber que a dimensão religiosa é experimentada com algumas características bem típicas: qualquer objeto experimentado como manifestação do “totalmente outro” (Deus, divino, ou, o sobrenatural) continua a ser o mesmo objeto de antes, mas que, simultaneamente, remete para além do que pode ser expresso pela linguagem humana em torno do acontecimento ocorrido.

Esta experiência, que encanta e que ao mesmo tempo apavora, produz uma sensação distinta de qualquer outra experiência, pois, quando alguém faz tal experiência e a divulga, desperta curiosidade em outras pessoas, e estas, por sua vez, ficam ansiosas com vistas a experimentar o mesmo fenômeno.

Percebemos que há formação espontânea em torno de algumas manifestações hierofânicas (modos como alguém experimenta o sagrado) mas, engendradas por um aspecto mórbido, isto é, pessoas querem promover-se a si mesmas com elevação de santidade. Deixam a nítida impressão de que desejam auto-afirmação e aprovação coletiva. Que os outros venham àquele lugar e comecem a rezar na perspectiva de retorno da experiência hierofânica.

Outras experiências, pessoais ou coletivas, são profundamente estimuladas e divulgadas como afirmação do poder religioso, a partir de autoridades religiosas. Neste caso, com elevada e intensa estimulação de desejos, podem produzir-se alucinações até coletivas de visualização de algo fora do normal. Caso ilustrativo, constitui aquela narrativa de que no Santuário de Lourdes, na França, diversas mil pessoas teriam visto o sol pular de um lado para o outro do céu. Cabe, então, a pergunta: seria a percepção deste fenômeno, algo real e objetivo para milhares de pessoas, sem ser, da mesma forma, perceptível para o resto da população do planeta?

O espantoso aumento de proclamação de santos e santas na Igreja Católica, tem algo muito atinente e favorável ao fenômeno de institucionalização de lugares sagrados, a partir de santuários e grandes templos, comemorativos aos santos e santas e promulgados como espaços nobres do sagrado, com vistas a fomentar intenso turismo religioso.

Percebe-se, assim, que algumas experiências do sagrado suscitam devoções, sentimentos de bem querer e de amor, mas, também podem provocar repulsa e ódio contra outras manifestações religiosas. No entanto, o sentimento religioso que decorre de estímulos favoráveis à sacralidade de determinado objeto ou lugar, também pode incorrer no risco de ser manipulado por autoridades religiosas, e, por isso, facilmente desandar para o mercado, como mais um produto de consumo do campo turístico.

Ao se valerem dos recursos da mídia, as autoridades organizam a relação dos fiéis com aquele espaço. Neste contexto, já não predomina o senso de pertença a uma comunidade, mas, a oferta de um grandioso e belo espetáculo religioso, dentro do horizonte maior da sociedade do espetáculo. Assim, some a antiga noção de que no lugar sagrado, um sujeito fiel reverenciava a Deus ou algo da sua manifestação, e fica mais restrito ao âmbito da organização da sua vida pessoal e aos contornos do seu próprio eu.

Nesta recomposição, o sagrado deixa de remeter para o além e prende motivações de efeitos turísticos. Já não estão em jogo as grandes verdades da Religião, mas, a fragmentada busca de sujeitos individualizados. Ao mesmo tempo, o conteúdo simbólico cede espaço para o ritualismo repetitivo de grandes celebrações, em que rituais profanos se mesclam numa espécie de simulacro para que os assistentes fiquem bem impressionados. Os cantos salientam muito este aspecto porque imitam shows e o modo de interação de cantores profanos com seus públicos. Mais do que a mensagem religiosa e a melodia dos cantos, impõe-se o conteúdo que possa produzir muitas e agradáveis emoções, sob clima de espetáculo.

Sob a dimensão do sagrado, veiculam-se nos lugares sagrados, muitas manifestações distintas do sagrado, mas que se encaixam em estilos de vida que produzem “glamour”, com ambientes e jogos de persuasão. Neste simulacro oferecido a espectadores, o sagrado torna-se similar a qualquer outra encenação efêmera e passageira, desde que possa produzir delírio, celebridade de alguém, e o visível “estrelismo” de quem coordena ou se apresenta nos eventos.

Com isso, os rituais religiosos perdem sua carga semântica das origens e das tradições, e, passam a remeter, cada dia mais, para o simbolismo do mercado. Ao mesmo tempo, os rituais se desatrelam do seu significado religioso e das tradições que o cultivaram, para adequar-se à indústria cultural e seus critérios de sucesso. Na mídia, especialmente a televisiva, vem ocorrendo paulatina reprodução de rituais, hierarquias, mitos e símbolos da procedência de ritualização religiosa, mas, os novos programas são ritualizados para a espetacularização, a fim de captar audiência dos mais variados segmentos da sociedade e ampliar o melhor alcance de sucesso.

Os meios de comunicação social conseguem absorver e se apropriar de poder mágico para deixar a impressão de que suas verdades veiculadas apontam para a solução de todos os mais variados tipos de problemas que se manifestam na sociedade. Trata-se de um messianismo sem referência a Deus, com a suposta condição de indicar o que promove a justiça e o bem-estar entre as pessoas. Ocorre, no entanto, uma notável diferença em relação ao que os ritos religiosos se propõem: a apropriação da mídia gera angústia e frustração, ao invés de propiciar serenidade e segurança para lidar com as dificuldades. Ao mesmo tempo, a mídia tende a sacralizar seus ritos com vistas a oferecer um poder simbólico e afirmar seu próprio poder como sendo o catalizador mágico que transforma tudo em espetáculo. Deste modo, consome-se um mundo produzido, simplesmente para ser consumido, e que já não interfere no caos da vida e, nem tampouco consegue ordená-lo, porquanto se restringe ao espetáculo.

O campo turístico, no contexto da indústria turística, vai adorar qualquer organização de manifestações religiosas e sagradas, pois, favorece o trade turístico que se apropria da experiência fundante, da mesma forma como a autoridade religiosa decretou aquele objeto ou espaço como âmbito sagrado. Deste modo, um objeto religioso, como qualquer outro objeto, ou espaço atraente, interessa pelas possíveis rotas turísticas, como o Vaticano para os católicos; Meca para os muçulmanos, Jerusalém para os judeus. Nossos dias, no entanto, deslocam a razão de ser do sagrado para um vasto consumismo e, estes lugares, declarados sagrados, integram, como quaisquer outros produtos, a economia de cidades ou países.

Se por exemplo, lembramos as romarias ao santuário de Nossa Senhora Aparecida, no Brasil, vemos que o poder religioso foi apropriado de formas que o significado vivenciado por pobres pescadores, acabou transformado numa grande manifestação à ‘poderosa deusa, protetora do Brasil’. Se dez ou mais milhões de romeiros visitam aquele espaço no correr de cada ano, é porque além do memorial originário da experiência sagrada ali ocorrida, ocorre uma publicidade muito bem orquestrada, tanto por autoridades religiosas, quanto de civis e econômicas.

Se ainda ocorrem motivações religiosas em torno da visitação ao espaço de romaria, certamente já se revelam predominantes as razões turísticas em torno da infra-estrutura, a fim de que aquele lugar produza o máximo de atração para largo consumo de hotelaria, de comércio, de alimentação, de entretenimento e de lazer. Assim, os romeiros tornam-se os clientes principais para manter uma economia em torno de um rico nicho de entretenimento. Os espaços, tidos como sagrados, precisam ser consumidos. Se, com isto, difundem, aparentemente, a religião e recrutam possíveis novos fiéis, transformam, simultaneamente, o lugar sagrado em lugar profano como qualquer outro para o alcance de êxito comercial.

A desapropriação do sagrado leva os fiéis turistas a assimilar aquele lugar de referência sagrada como lugar totalmente similar ao de qualquer outro espaço turístico.

BIBLIOGRAFIA

BROGNI, Jaqueline de Souza e TRICÁRICO, Luciano Torres. A apropriação e transformação do espaço religioso: Pestana Convento do Carmo, Bahia. In: CULTUR, ano 13 – nº 01 – fev/2019.

JALUSKA, Taciane e JUNQUEIRA, Sérgio. A utilização dos espaços sagrados pelo turismo religioso e suas possibilidades como ferramenta auxiliar para o estabelecimento de diálogo entre as nações. In: http://www.mpsp.mp.br>portal>TodosOsLivros> pdf

NASCIMENTO, Alan Faber do; e SOUZA, Vítor Chaves do. O turismo religioso na sociedade líquido-moderna: apropriação da fé pelo trade turístico. In: dialnet-OTurismoReligiosoNaSociedadeLiquidomoderna-7433464-pdf

PATIAS, Jaime Carlos. O sagrado e o profano: do rito religioso ao espetáculo midiático. In: pluricom.com.br/fórum/o-sagrado-e-o-profano-do-rito-religioso-ao-espetaculo-midiatico

RODRIGUES, Ana Carolina. O sagrado no consumo: apropriação de elementos religiosos na arquitetura do Parkshopping Barigüi.  In: acerrvodigital.ufpr/handle/1884/43439

VELIQ, Fabiano. O retorno do sagrado na contemporaneidade: uma leitura possível. In: domtotal.com/noticia/1459958/2020/07/o-retorno-do-sagrado-na-contemporanedade-uma-leitura-posivel/

 

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