ESPETACULARIZAÇÃO DAS MISSAS
Pe. João Inácio Kolling
Apresentação
Seguidamente aparecem
manchetes que envolvem ornamentos, rituais, e, com extravagâncias de padres em
celebrações litúrgicas. De um lado, estes fatos parecem destacar a elevação de
uma hipocrisia funcional de algo divulgado como “fashion”, mas, que se reporta
ao mundo brega da batina, da capa, da sobrepeliz, barrete, etc. Por outro lado,
mais do que enfatizar a dimensão simbólica para remeter às palavras e aos gestos
de Jesus Cristo, estas supostas novidades, hauridas de um passado distante,
refletem uma tendência de espetacularização teatral, para ser apreciada,
consumida e vendida, como toda publicidade de vídeos, fotos, selfies,
indicando, - não o horizonte da memória e dos valores de Jesus Cristo, - mas, o
precípuo da arte teatral.
Quando
as celebrações litúrgicas viram uma dispersão total, com fotos, filmagens,
gestos e uma imensidão de acólitos, coroinhas, cantores fazendo seu showzinho à
parte, mestres de cerimônia controlando minuciosamente todos os detalhes e
gestos a serem feitos; seminaristas, feitos mini-padres, andando de lado para
outro para serem vistos; movimentação com báculo, mitra, água e microfones e
até selfies de concelebrantes nos momentos mais destacados..., já não sobra
mais nada para a dimensão simbólica dos ritos celebrados. Procede-se uma sutil
transposição dos ritos religiosos para o espetáculo midiático.
Diante
deste deslocamento, o momento celebrativo transforma os fiéis participantes do
ato religioso em meros espectadores, sem participação nos ritos. Com isso, relega-se
a celebração comunitária para valorizar-se um ato solene e empolgante de atores
para um grande espetáculo. A sacramentalidade passa a ser substituída pela
representatividade e o presidente da celebração, num procedimento similar ao
ator principal da peça, com seu aparato de vestes, gestos, movimentos e detalhismos
em certos ritos e modulações de voz (muda rapidamente a feição com as máscaras)
passa a entreter o público assistente na expectativa de nele produzir reações
simpáticas e favoráveis a si, com apelo a gritos, palmas, êxtases, “vivas ao santo ou à santa”, tudo para
produzir um momento de grande fascinação nos fiéis.
O
ambiente da Igreja, de espaço celebrativo, passa, então, a constituir-se em
ambiente similar ao dos teatros, próprios para grandes espetáculos (com
iluminação sugestiva e cativante, ordem de assentos, telões, holofotes, cenários,
homilias, tudo na perspectiva de grandioso espetáculo. E, não raramente, o
pregador produz uma ênfase na sua homilia para dramatizar a batalha ferrenha
entre Deus e o diabo, a fim de transformar sua palavra em magia que possa
aumentar a adesão.
Por
outro lado, o louvor espetacularizado vai se incorporando em padres e fiéis
como mediação que facilita a espetacularização do sagrado. Assim, o campo
religioso deixa de lado a dimensão simbólica para enfatizar o espetáculo. Como
o campo religioso entrou na produção de massa do capital cultural, importa sua
veiculação para barganhar influência. Como mais um produto a ser vendido, -
consumido e proporcionador de lucros e vantagens, -o campo religioso constitui também
um espaço ideal para a mitificação de figuras e de posturas ideológicas
dominantes.
1 – Sacramentalidade e dimensão simbólica
Os sacramentos constituem uma
realidade central da vida cristã católica. Sem entrar na polêmica da concepção
essencialista, consideramos como referencial a valiosa observação de Ernst
Cassirer, de que se algo nos distingue radicalmente dos demais seres vivos
sobre a Terra, é o da dimensão simbólica. Os outros seres, podem até fazer
melhor do que nós, muitas coisas aprendidas e humanas, no entanto, não
conseguem expressar algo por meio de símbolos. Podem manifestar sinais de apreço,
de alegria, de imitação, de dor, etc., mas, não comunicam algo por meio de
sinais simbólicos que remetam a outras realidades.
A simbologia nos remete a outros mundos, que
ultrapassam as realidades contingentes e visíveis. Deste modo, um sinal simbólico
visível e palpável, pode remeter aos mundos que vão além do que se expressa na
linguagem escrita, falada ou não verbal. Por exemplo, dar uma rosa, significa
mais do que a questão estética, química e econômica, para significar e
expressar uma realidade totalmente distinta. A bandeira nacional, da mesma
forma, remete para muito além do pano, das cores, e das insígnias. Através dela
nos reportamos ao país, ao povo e a seu modo de vida... Assim, através da
sacramentalidade, a síntese dos traços mais marcantes da atuação de Jesus
Cristo segue sendo atualizada na celebração dos sete sacramentos (ao lado dos
inúmeros outros). Poderíamos, pois, dizer que os sacramentos nos reportam ao
miolo ou à centralidade do que Jesus mais fez, com vistas a nos estimular para
a aproximação paulatina destes mesmos gestos.
Se
a simplicidade da rosa transmite algo que ultrapassa o alcance das palavras,
seria de se esperar que as vestes litúrgicas, simples e discretas, ajudassem ao
conjunto dos ritos celebrados a transportar os fiéis para um outro mundo
possível. Provavelmente não é o que se propicia com muitos roupões vistosos,
cintilantes e com ritos que produzem meros assistentes passivos do espetáculo.
Basta ver que muitos celebrantes conseguem rir de si mesmos e do que fazem,
diante da assembleia. Longe do despojamento, exibem-se sob a ‘teologia do
pano’, com retórica e muitos adereços, mas, - e o que é mais perigoso, - vazios
da dimensão simbólica dos ritos. Quando até bispos padecem deste mal da “pavonice”
das vestes litúrgicas e clericais glamorosas, com exageros na ostentação da
pompa sacral e com insígnias de matéria preciosa, fica a impressão de que este
mundo ritual religioso apenas serve para quem se apresenta e que este já não
espera outra coisa da assembleia do que ser largamente apreciado.
Uma
missa, em certos ambientes e momentos, acaba similar a um grande palco de
teatro com figurinos clericais. Não estaria tal quadro a indicar que, sob os
uniformes, com tantos botõezinhos vermelhos, bricolagens, ‘os reis já estão
nús’ e a dimensão simbólica é engolida pela real e objetiva hipocrisia
funcional?
Talvez
devamos concluir que a crise de vocações sacerdotais constitua muito mais uma
obra de Deus do que falta de resposta dos homens – como a maioria pensa – ou
ainda, como ação do maligno, segundo a argumentação de ultraconservadores. Como
diz Gilberto Borghi, talvez Deus esteja nos propiciando um sinal para que se
desmantele o clericalismo e se comece a pensar mais no como podemos ser uma
comunidade de fé que saiba estar presente e ser eficaz no mundo de hoje.
Não
é por nada que o Papa Francisco nos convoca para uma profunda mudança de
mentalidade na Igreja, sobretudo, contra a rigidez e a facilidade de procurar
refúgio num passado, ao invés de iniciar mudanças significativas. Em discurso
na Cúria Romana ele afirmou que: “a rigidez nasce do medo da mudança”. Mais do
que ocupar lugares, devemos iniciar processos. E, não viver simplesmente uma
época de mudanças, mas, mudança de época. A atitude da rigidez vai disseminando
“estacas e obstáculos” pelo terreno do bem-comum e mina a comunicabilidade com
muito ódio...
2 – Teatro e Espetáculo
Quando
se fala em teatro, evidenciam-se duas dimensões distintas: a que se refere a um
determinado espaço próprio e privativo do meio teatral; ou a compreensão ampla
deste fenômeno, com expressão de alguém, em qualquer lugar, diante de outras
pessoas.
Como
uma das grandes dimensões da condição humana, a teatralidade, pode tanto
significar a especificidade do campo cênico, como também abarcar a convivência
social. Desta forma, quando se qualifica alguém por estar fazendo teatro, pode
referir-se ao específico dos palcos, mas também, à realidade ampla das
encenações feitas diante das outras pessoas.
Nas
duas dimensões evoca-se um elemento central: o foco do outro, porquanto,
somente diante de alguém que olha, tem sentido fazer teatro. Creio que ninguém
faz teatro para si mesmo, a não ser para gozar de uma gafe ocorrida em outro
ambiente.
Se
a teatralidade depende de uma ou de muitas pessoas que olham, reflete que a
estética de algo artístico sempre visa um receptor que possa encantar-se ou
mover-se para determinadas emoções. Isto revela que a teatralidade sempre
implica em disfarce.
É
interessante observar que, historicamente, o teatro grego nasceu do caráter
religioso das representações feitas ao ar livre de praças, mas, já na cultura
romana, sofreu alteração da sua razão de ser, pois, ao invés de se constituir
em expressão religiosa, passou para um momento profano de diversão e
entretenimento. Na Idade Média, o teatro voltou à dimensão religiosa para representar
os grandes sinais da fé cristã e o seu significado.
Nas
quedas para a dimensão da teatralidade, muitas missas de nossos dias, voltam a
enaltecer e a ostentar o figurino teatral, que muito apela ao disfarce (troca
de vestes, troca de pintura, uso de máscara...) para retratar a moda da
vestimenta de um momento histórico, mas, enriquecida e ampliada com sua fantasia
estetizada, a fim de impactar com a riqueza da sua representação. Daí este
fenômeno de encantamento pela aparência e pela suntuosidade das roupas, com os
olhares, os meneios, os sorrisos, especialmente aqueles de mentirinha, e a
imagética de ser uma pessoa “super”.
3 – Disfarce
Disfarçar
é um componente muito marcante do cotidiano da vida humana. Significa desejo de
impactar quem olha, pois, se não tem nenhum potencial expectador, de nada
adiantaria disfarçar-se.
O
disfarce somente tem função e sentido mediante visualização alheia, mas,
existem diferenças nos disfarces. Por exemplo se comparamos o jaleco de um
médico e a veste litúrgica de um padre, esta veste apresenta maior teatralidade
que a do jaleco devido aos significados transcendentais, enquanto que o jaleco
do médico tem uma função prática. A lida do médico, numa consulta, vale-se do
jaleco por questões de higiene e identificação com a função que exerce.
A
teatralidade constitui um fenômeno de alguém exibir-se para ser visto, e,
geralmente, sob um jogo de enganação e fingimento. A essência da teatralidade
está situada nesta dinâmica do fingimento e da enganação, ou para imitar alguém,
ou para disfarçar-se em alguém; por exemplo, um homem fazer de conta que é
mulher, ou vice-versa. A arte cênica está precisamente no disfarce tão bem
feito para que o expectador não perceba quem realmente está representando
aquele papel. Tal contexto remete à função da representatividade, que
facilmente substitui a teatralidade.
Basta
lembrar que a primeira acepção do significado de pessoa foi a de máscara. As
pessoas, de acordo com os ambientes e costumes seguem fazendo representações.
Por exemplo um casamento, festa religiosa, baile, jantar festivo. Ali ocorre
uma diversidade de representações de vestes, ritos e cerimônias, culturalmente
assimiladas e mantidas. E, pelas representações conhecem-se as pessoas. Cai na
vista quem segue o figurino, se quebra protocolos ou se entra no clima da festa.
Estes momentos também permitem delinear a identidade pelo auto-conhecimento, através
das resistências, censuras ou da adesão ao ambiente ensejado.
As
máscaras, - não necessariamente as de caricaturas, - nos proporcionam a noção
de quem os outros são para nós e de quem nós mesmos somos e desejamos ser para
os outros. No entanto, as máscaras podem efetuar um grande falseamento das
relações. Facilmente elas deixam transparecer este falseamento através de
idealizações e confirmam aquele ditado popular: “engane-me que eu gosto de
ver”! O conjunto dos aparatos cênicos, com ambientes, figurinos, cenários e
músicas de um ritual, expressam o desejo de que a realidade cotidiana alcance
os desejos da representação feita. Assim, nos mascaramentos e nas
representações, transparece algo utópico e idealizado, com vistas a ser
alcançado. A própria realidade difícil da vida leva a esbarrar no mundo
fantástico dos sonhos.
A
teatralidade já constitui, em si mesma, um fenômeno de representação por
valer-se do recurso do engano e do fingimento para interpretar um personagem.
Assim, se um homem se disfarça de mulher, isto só tem significado para quem o
assiste. O fingimento entra como coadjuvante para que o disfarce produza algum
sentido. Imagine-se tal procedimento de um homem disfarçado de mulher, sozinho
no quarto ou no banheiro! Diante de eventual expectador, o disfarce produz o
mecanismo da teatralidade. No jogo entre quem vê e quem disfarça, está a
teatralidade. Assim, para algo ser considerado teatral deve conter um jogo de
representações.
O
importante na teatralidade é produzir uma persuasão no interlocutor, de tal
forma, que possa pensar que é assim mesmo. A sedução vai proporcionar este
resultado mediante um fenômeno de espetacularização.
4 – Espetacularização
Significa
transformar algo em espetáculo, ou para banalizar, ou para polemizar.
Espetacularização (do latim specs = o
que chama a atenção, que prende o olhar) constitui uma operação típica da vida
social, sobretudo na sociedade de massas. Consiste em transformar e transmitir
fatos ou realidades através do espetáculo, a fim de que sejam consumidos. A
história humana está cheia de transformações de eventos públicos, sociais e até
subjetivos, em espetáculos. Um caso bem ilustrativo e muito antigo é o dos
gladiadores no coliseu de Roma.
Estes sujeitos viravam
objetos manipulados para o entretenimento das massas. Na verdade, constituíam
meio de entretenimento e de alienação, bem como de manipulação das massas
exploradas e excluídas pelo poder imperial. Assim, outros episódios, como os da
inquisição na Igreja medieval e, em tantas outras organizações modernas,
repete-se a espetacularização para entreter sujeitos a fim de que olhem, mas,
não participem do que está em jogo. Apenas consomem o que está sendo
espetacularizado. Há um disfarce de um olhar de quem comanda os olhares.
Assim, um padre, quando
se situa no campo da espetacularização, acaba condicionando os assistentes da
assembleia litúrgica e dificulta sua capacidade de organização, pois torna-se
mero gladiador a serviço de um outro poder, para entretê-los, e, para que fiquem
atrelados aos seus procedimentos, sem remeter aos significados sacramentais dos
feitos de Jesus Cristo.
Certamente não é
interessante que o campo religioso passe a restringir-se a mero espetáculo, sem a dimensão simbólica dos
sacramentos e sua capacidade de transcendência para praticar as obras de
Cristo. Tampouco ajuda à razão de ser dos rituais religiosos, o encantamento
pelos disfarces e representações teatrais que, na verdade esvaziam o culto
religioso. Por conseguinte, urge relegar a bricolagem dos panos para consumo de
bens religiosos e apostar em clima e ambientes que permitam a eficácia dos
sacramentos, para colaborar na construção do Reino de Deus.
O lugar reconhecido do
padre na comunidade cristã, em mudança de época, parece requerer outro lugar e
outra identidade, despojados do atual quadro de aparatos midiáticos, para se mover,
eminentemente, por uma espiritualidade de novos aerópagos da pequenez interior,
da misericórdia, da eco-espiritualidade, e da sede de alargamento de comunhão.
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