segunda-feira, 16 de agosto de 2021

ESPETACULARIZAÇÃO DAS MISSAS

 

ESPETACULARIZAÇÃO DAS MISSAS

Pe. João Inácio Kolling

Apresentação

 

Seguidamente aparecem manchetes que envolvem ornamentos, rituais, e, com extravagâncias de padres em celebrações litúrgicas. De um lado, estes fatos parecem destacar a elevação de uma hipocrisia funcional de algo divulgado como “fashion”, mas, que se reporta ao mundo brega da batina, da capa, da sobrepeliz, barrete, etc. Por outro lado, mais do que enfatizar a dimensão simbólica para remeter às palavras e aos gestos de Jesus Cristo, estas supostas novidades, hauridas de um passado distante, refletem uma tendência de espetacularização teatral, para ser apreciada, consumida e vendida, como toda publicidade de vídeos, fotos, selfies, indicando, - não o horizonte da memória e dos valores de Jesus Cristo, - mas, o precípuo da arte teatral.

            Quando as celebrações litúrgicas viram uma dispersão total, com fotos, filmagens, gestos e uma imensidão de acólitos, coroinhas, cantores fazendo seu showzinho à parte, mestres de cerimônia controlando minuciosamente todos os detalhes e gestos a serem feitos; seminaristas, feitos mini-padres, andando de lado para outro para serem vistos; movimentação com báculo, mitra, água e microfones e até selfies de concelebrantes nos momentos mais destacados..., já não sobra mais nada para a dimensão simbólica dos ritos celebrados. Procede-se uma sutil transposição dos ritos religiosos para o espetáculo midiático.

            Diante deste deslocamento, o momento celebrativo transforma os fiéis participantes do ato religioso em meros espectadores, sem participação nos ritos. Com isso, relega-se a celebração comunitária para valorizar-se um ato solene e empolgante de atores para um grande espetáculo. A sacramentalidade passa a ser substituída pela representatividade e o presidente da celebração, num procedimento similar ao ator principal da peça, com seu aparato de vestes, gestos, movimentos e detalhismos em certos ritos e modulações de voz (muda rapidamente a feição com as máscaras) passa a entreter o público assistente na expectativa de nele produzir reações simpáticas e favoráveis a si, com apelo a gritos, palmas, êxtases,  “vivas ao santo ou à santa”, tudo para produzir um momento de grande fascinação nos fiéis.

            O ambiente da Igreja, de espaço celebrativo, passa, então, a constituir-se em ambiente similar ao dos teatros, próprios para grandes espetáculos (com iluminação sugestiva e cativante, ordem de assentos, telões, holofotes, cenários, homilias, tudo na perspectiva de grandioso espetáculo. E, não raramente, o pregador produz uma ênfase na sua homilia para dramatizar a batalha ferrenha entre Deus e o diabo, a fim de transformar sua palavra em magia que possa aumentar a adesão.

            Por outro lado, o louvor espetacularizado vai se incorporando em padres e fiéis como mediação que facilita a espetacularização do sagrado. Assim, o campo religioso deixa de lado a dimensão simbólica para enfatizar o espetáculo. Como o campo religioso entrou na produção de massa do capital cultural, importa sua veiculação para barganhar influência. Como mais um produto a ser vendido, - consumido e proporcionador de lucros e vantagens, -o campo religioso constitui também um espaço ideal para a mitificação de figuras e de posturas ideológicas dominantes.

 

1 – Sacramentalidade e dimensão simbólica

 

            Os sacramentos constituem uma realidade central da vida cristã católica. Sem entrar na polêmica da concepção essencialista, consideramos como referencial a valiosa observação de Ernst Cassirer, de que se algo nos distingue radicalmente dos demais seres vivos sobre a Terra, é o da dimensão simbólica. Os outros seres, podem até fazer melhor do que nós, muitas coisas aprendidas e humanas, no entanto, não conseguem expressar algo por meio de símbolos. Podem manifestar sinais de apreço, de alegria, de imitação, de dor, etc., mas, não comunicam algo por meio de sinais simbólicos que remetam a outras realidades.

 A simbologia nos remete a outros mundos, que ultrapassam as realidades contingentes e visíveis. Deste modo, um sinal simbólico visível e palpável, pode remeter aos mundos que vão além do que se expressa na linguagem escrita, falada ou não verbal. Por exemplo, dar uma rosa, significa mais do que a questão estética, química e econômica, para significar e expressar uma realidade totalmente distinta. A bandeira nacional, da mesma forma, remete para muito além do pano, das cores, e das insígnias. Através dela nos reportamos ao país, ao povo e a seu modo de vida... Assim, através da sacramentalidade, a síntese dos traços mais marcantes da atuação de Jesus Cristo segue sendo atualizada na celebração dos sete sacramentos (ao lado dos inúmeros outros). Poderíamos, pois, dizer que os sacramentos nos reportam ao miolo ou à centralidade do que Jesus mais fez, com vistas a nos estimular para a aproximação paulatina destes mesmos gestos.

            Se a simplicidade da rosa transmite algo que ultrapassa o alcance das palavras, seria de se esperar que as vestes litúrgicas, simples e discretas, ajudassem ao conjunto dos ritos celebrados a transportar os fiéis para um outro mundo possível. Provavelmente não é o que se propicia com muitos roupões vistosos, cintilantes e com ritos que produzem meros assistentes passivos do espetáculo. Basta ver que muitos celebrantes conseguem rir de si mesmos e do que fazem, diante da assembleia. Longe do despojamento, exibem-se sob a ‘teologia do pano’, com retórica e muitos adereços, mas, - e o que é mais perigoso, - vazios da dimensão simbólica dos ritos. Quando até bispos padecem deste mal da “pavonice” das vestes litúrgicas e clericais glamorosas, com exageros na ostentação da pompa sacral e com insígnias de matéria preciosa, fica a impressão de que este mundo ritual religioso apenas serve para quem se apresenta e que este já não espera outra coisa da assembleia do que ser largamente apreciado.

            Uma missa, em certos ambientes e momentos, acaba similar a um grande palco de teatro com figurinos clericais. Não estaria tal quadro a indicar que, sob os uniformes, com tantos botõezinhos vermelhos, bricolagens, ‘os reis já estão nús’ e a dimensão simbólica é engolida pela real e objetiva hipocrisia funcional?

            Talvez devamos concluir que a crise de vocações sacerdotais constitua muito mais uma obra de Deus do que falta de resposta dos homens – como a maioria pensa – ou ainda, como ação do maligno, segundo a argumentação de ultraconservadores. Como diz Gilberto Borghi, talvez Deus esteja nos propiciando um sinal para que se desmantele o clericalismo e se comece a pensar mais no como podemos ser uma comunidade de fé que saiba estar presente e ser eficaz no mundo de hoje.

            Não é por nada que o Papa Francisco nos convoca para uma profunda mudança de mentalidade na Igreja, sobretudo, contra a rigidez e a facilidade de procurar refúgio num passado, ao invés de iniciar mudanças significativas. Em discurso na Cúria Romana ele afirmou que: “a rigidez nasce do medo da mudança”. Mais do que ocupar lugares, devemos iniciar processos. E, não viver simplesmente uma época de mudanças, mas, mudança de época. A atitude da rigidez vai disseminando “estacas e obstáculos” pelo terreno do bem-comum e mina a comunicabilidade com muito ódio...

           

2 – Teatro e Espetáculo

 

            Quando se fala em teatro, evidenciam-se duas dimensões distintas: a que se refere a um determinado espaço próprio e privativo do meio teatral; ou a compreensão ampla deste fenômeno, com expressão de alguém, em qualquer lugar, diante de outras pessoas.

            Como uma das grandes dimensões da condição humana, a teatralidade, pode tanto significar a especificidade do campo cênico, como também abarcar a convivência social. Desta forma, quando se qualifica alguém por estar fazendo teatro, pode referir-se ao específico dos palcos, mas também, à realidade ampla das encenações feitas diante das outras pessoas.

            Nas duas dimensões evoca-se um elemento central: o foco do outro, porquanto, somente diante de alguém que olha, tem sentido fazer teatro. Creio que ninguém faz teatro para si mesmo, a não ser para gozar de uma gafe ocorrida em outro ambiente.

            Se a teatralidade depende de uma ou de muitas pessoas que olham, reflete que a estética de algo artístico sempre visa um receptor que possa encantar-se ou mover-se para determinadas emoções. Isto revela que a teatralidade sempre implica em disfarce.

            É interessante observar que, historicamente, o teatro grego nasceu do caráter religioso das representações feitas ao ar livre de praças, mas, já na cultura romana, sofreu alteração da sua razão de ser, pois, ao invés de se constituir em expressão religiosa, passou para um momento profano de diversão e entretenimento. Na Idade Média, o teatro voltou à dimensão religiosa para representar os grandes sinais da fé cristã e o seu significado.

            Nas quedas para a dimensão da teatralidade, muitas missas de nossos dias, voltam a enaltecer e a ostentar o figurino teatral, que muito apela ao disfarce (troca de vestes, troca de pintura, uso de máscara...) para retratar a moda da vestimenta de um momento histórico, mas, enriquecida e ampliada com sua fantasia estetizada, a fim de impactar com a riqueza da sua representação. Daí este fenômeno de encantamento pela aparência e pela suntuosidade das roupas, com os olhares, os meneios, os sorrisos, especialmente aqueles de mentirinha, e a imagética de ser uma pessoa “super”.

           

3 – Disfarce

 

            Disfarçar é um componente muito marcante do cotidiano da vida humana. Significa desejo de impactar quem olha, pois, se não tem nenhum potencial expectador, de nada adiantaria disfarçar-se.

            O disfarce somente tem função e sentido mediante visualização alheia, mas, existem diferenças nos disfarces. Por exemplo se comparamos o jaleco de um médico e a veste litúrgica de um padre, esta veste apresenta maior teatralidade que a do jaleco devido aos significados transcendentais, enquanto que o jaleco do médico tem uma função prática. A lida do médico, numa consulta, vale-se do jaleco por questões de higiene e identificação com a função que exerce.

            A teatralidade constitui um fenômeno de alguém exibir-se para ser visto, e, geralmente, sob um jogo de enganação e fingimento. A essência da teatralidade está situada nesta dinâmica do fingimento e da enganação, ou para imitar alguém, ou para disfarçar-se em alguém; por exemplo, um homem fazer de conta que é mulher, ou vice-versa. A arte cênica está precisamente no disfarce tão bem feito para que o expectador não perceba quem realmente está representando aquele papel. Tal contexto remete à função da representatividade, que facilmente substitui a teatralidade.

            Basta lembrar que a primeira acepção do significado de pessoa foi a de máscara. As pessoas, de acordo com os ambientes e costumes seguem fazendo representações. Por exemplo um casamento, festa religiosa, baile, jantar festivo. Ali ocorre uma diversidade de representações de vestes, ritos e cerimônias, culturalmente assimiladas e mantidas. E, pelas representações conhecem-se as pessoas. Cai na vista quem segue o figurino, se quebra protocolos ou se entra no clima da festa. Estes momentos também permitem delinear a identidade pelo auto-conhecimento, através das resistências, censuras ou da adesão ao ambiente ensejado.

            As máscaras, - não necessariamente as de caricaturas, - nos proporcionam a noção de quem os outros são para nós e de quem nós mesmos somos e desejamos ser para os outros. No entanto, as máscaras podem efetuar um grande falseamento das relações. Facilmente elas deixam transparecer este falseamento através de idealizações e confirmam aquele ditado popular: “engane-me que eu gosto de ver”! O conjunto dos aparatos cênicos, com ambientes, figurinos, cenários e músicas de um ritual, expressam o desejo de que a realidade cotidiana alcance os desejos da representação feita. Assim, nos mascaramentos e nas representações, transparece algo utópico e idealizado, com vistas a ser alcançado. A própria realidade difícil da vida leva a esbarrar no mundo fantástico dos sonhos.

            A teatralidade já constitui, em si mesma, um fenômeno de representação por valer-se do recurso do engano e do fingimento para interpretar um personagem. Assim, se um homem se disfarça de mulher, isto só tem significado para quem o assiste. O fingimento entra como coadjuvante para que o disfarce produza algum sentido. Imagine-se tal procedimento de um homem disfarçado de mulher, sozinho no quarto ou no banheiro! Diante de eventual expectador, o disfarce produz o mecanismo da teatralidade. No jogo entre quem vê e quem disfarça, está a teatralidade. Assim, para algo ser considerado teatral deve conter um jogo de representações.

            O importante na teatralidade é produzir uma persuasão no interlocutor, de tal forma, que possa pensar que é assim mesmo. A sedução vai proporcionar este resultado mediante um fenômeno de espetacularização.

 

4 – Espetacularização

 

            Significa transformar algo em espetáculo, ou para banalizar, ou para polemizar. Espetacularização (do latim specs = o que chama a atenção, que prende o olhar) constitui uma operação típica da vida social, sobretudo na sociedade de massas. Consiste em transformar e transmitir fatos ou realidades através do espetáculo, a fim de que sejam consumidos. A história humana está cheia de transformações de eventos públicos, sociais e até subjetivos, em espetáculos. Um caso bem ilustrativo e muito antigo é o dos gladiadores no coliseu de Roma.

Estes sujeitos viravam objetos manipulados para o entretenimento das massas. Na verdade, constituíam meio de entretenimento e de alienação, bem como de manipulação das massas exploradas e excluídas pelo poder imperial. Assim, outros episódios, como os da inquisição na Igreja medieval e, em tantas outras organizações modernas, repete-se a espetacularização para entreter sujeitos a fim de que olhem, mas, não participem do que está em jogo. Apenas consomem o que está sendo espetacularizado. Há um disfarce de um olhar de quem comanda os olhares.

Assim, um padre, quando se situa no campo da espetacularização, acaba condicionando os assistentes da assembleia litúrgica e dificulta sua capacidade de organização, pois torna-se mero gladiador a serviço de um outro poder, para entretê-los, e, para que fiquem atrelados aos seus procedimentos, sem remeter aos significados sacramentais dos feitos de Jesus Cristo.

Certamente não é interessante que o campo religioso passe a restringir-se a mero   espetáculo, sem a dimensão simbólica dos sacramentos e sua capacidade de transcendência para praticar as obras de Cristo. Tampouco ajuda à razão de ser dos rituais religiosos, o encantamento pelos disfarces e representações teatrais que, na verdade esvaziam o culto religioso. Por conseguinte, urge relegar a bricolagem dos panos para consumo de bens religiosos e apostar em clima e ambientes que permitam a eficácia dos sacramentos, para colaborar na construção do Reino de Deus.

O lugar reconhecido do padre na comunidade cristã, em mudança de época, parece requerer outro lugar e outra identidade, despojados do atual quadro de aparatos midiáticos, para se mover, eminentemente, por uma espiritualidade de novos aerópagos da pequenez interior, da misericórdia, da eco-espiritualidade, e da sede de alargamento de comunhão.

 

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