A Antropologia Teológica formula a
pergunta: “o que significa ser humano, à luz da revelação cristã? Ser humano
significa ser encarnado, ser social e lingüístico, ser ao mesmo tempo pecador e
agraciado, e ser sexual, entre muitas dimensões da nossa existência” (ROSS,
Susan).[1]
PREÂMBULO
Antropologia,
como ciência, existe há poucos séculos, mas, como inquietação que desperta
estudos e observações do agir humano, já é milenar. Ao lado de muitas outras
ciências que se ocupam com o estudo do complexo sistema da vida humana, a
Antropologia apresenta uma peculiaridade: quer estudar o ser humano no seu
“todo”, isto é, estudar o que os humanos produzem na sua globalidade, ou seja,
tudo o que envolve a cultura humana.
Sabemos que, ao lado de tantos outros seres
humanos, captamos e produzimos cultura, arte, pensamento, poesia, folclore,
ciência, tradições, leis e tantas outras coisas, mas somos, simultaneamente,
afetados por estas variadas produções humanas. Podemos, pois, definir a
multiplicidade de inventos, criações e descobertas, ao lado de todos os avanços
da humanidade, como equivalentes ou como expressão do que chamamos de cultura.
Portanto, estudar Antropologia significa
ocupar-se com a procura do entendimento de povos, de grupos humanos
específicos, mas, também da humanidade como um “todo”. Tal estudo pode ser
feito sobre aspectos biológicos, físicos, sociais, culturais e até filosóficos,
quando estes procuram entender racionalmente os seres humanos, tanto pelo que
são, quanto pelo que fazem.
A
relação da Antropologia Cultural com a Teologia está em que cultura afeta a religião
e, simultaneamente, concepções teológico-religiosas afetam dimensões da
cultura. Entretanto, quando nos referimos à cultura encontramos certa
dificuldade, porque esta pode ser estudada sob muitas sub-áreas do conhecimento
antropológico, tais como Paleontologia, que se ocupa como o estudo das
origens e da evolução humana; a Somatologia ou Antropologia Física, que
estuda as diferenças físicas, sexuais e outros traços como sanguíneos, além de
outras variedades dos seres humanos; Arqueologia, que estuda objetos de
culturas passadas; Etnografia, que busca entender as diferenças entre
culturas humanas; Etnologia, que estuda características de povos e raças;
Lingüística, que estuda as formas de comunicação e expressão do pensamento
entre distintos grupos humanos; Antropologia Social, que estuda
instituições, processos e estruturas sociais.
Apesar
desta reciprocidade entre Antropologia e Teologia, elas não se ocupam
exatamente da mesma coisa, porque as duas áreas nos remetem ao entendimento dos
seres humanos. Se a Antropologia estuda a religião como um dos importantes
componentes da cultura, a Religião Cristã, por exemplo, parte de um dado de fé,
isto é, parte da revelação de Deus, através de Jesus Cristo. Por isto, a Teologia
não pode ser entendida como simples especulação ou interpretação do que se
manifesta no pensamento teológico cristão, mas tende, particularmente, a
contextualizar e adequar o entendimento da revelação a ambientes culturais que
se modificam com os tempos. Portanto, a adjetivação “Teológica”, que se
acrescenta ao conceito “Antropologia”, indica algo mais do que simplesmente
interpretar o cristianismo, seja pelo que resultou da sua ação ou do que move
suas motivações em torno do que espera alcançar. Daí a perspectiva de alargar o
entendimento antropológico do ser humano, com a riqueza dos elementos da
revelação cristã[2].
Ainda que a Teologia também se ocupe com muitas interpretações, ela os realiza
a partir de dados decorrentes da revelação ou da referencia a Jesus Cristo.[3]
Em outras palavras, uma Antropologia Teológica pode ajudar-nos a alargar e
enriquecer não somente os conhecimentos acumulados em torno do agir humano, mas
pode, também, envolver-nos numa graça maior de um Deus que aponta um caminho
para ser percorrido, a fim de que os seres, que já se consideram humanos,
possam realmente experimentar-se mais humanizados ou mais capazes de entender-se
entre si.
Nesta
breve abordagem dos itens que seguem, procuramos relacionar a Antropologia pelo
lado cultural, no sentido amplo e genérico, para realçar alguns aspectos da
inter-atuação e da interdependência que se estabelece entre Antropologia
Cultural e Teologia. Trata-se, pois, de um texto escrito na perspectiva de
abrir algumas ‘janelas’ para entender a relação da Antropologia com a Teologia,
mas também com o intento de despertar alguma sensibilidade para possíveis
avanços no diálogo entre a ciência religiosa e as ciências humanas.
Mesmo diante do propósito de destacar alguns
aspectos, procuramos nos textos que seguem situar-nos em ponderações ainda mais
limitadas e restritas, porque se constituem apenas de pequenas noções
introdutórias a respeito de alguns aspectos importantes que envolvem a Antropologia
Teológica e, de forma ainda mais delimitada, somente traços da Antropologia
Cristã. Entre o que destacamos, encontram-se os temas: hierofanias, a concepção
do sagrado e do profano, a violência no sagrado, a eroticidade, o mimetismo, o
sacrificialismo, sobretudo relacionados ao percurso da ação cristã.
Ao
lado da herança bíblica do Primeiro Testamento da Bíblia, o cristianismo
primitivo soube dar um original e profundo conceito do valor do ser humano ao
deduzir que ele é “pessoa”. Mesmo diante das outras heranças antigas de sagrado
e de experiências de Deus, a teologia cristã conseguiu assimilar razões
profundas de esperança para conversão e transformação do mundo marcado por
imperialismos e prepotências cruéis. No entanto, ao longo dos tempos, certos
quadros culturais e religiosos cristãos deslocaram e mimetizaram, através de
muitas formas de violência, a mesma prepotência imperialista e colonizadora.
Mesmo assim, não se pode esquecer que, homens e mulheres de muitos lugares e de
muitas condições diferentes, foram protagonistas alegres e exemplares do
engrandecimento humano a partir do projeto de vida apresentado por Jesus Cristo.
I
ALGUMAS HERANÇAS DA ANTROPOLOGIA BÍBLICA
DO PRIMEIRO TESTAMENTO
O
teólogo Urs von Baltazar declarou que a Antropologia Teológica trata de
ponderar sobre a “fala” de Deus, transposta para a linguagem humana. Como seres
humanos, que dependem essencialmente de um mundo envolvente, criado pela
cultura, não entendemos automaticamente outras linguagens, sem primeiro
aprendê-las. Como apenas entendemos signos de linguagem humana, tampouco
conseguiríamos assimilar uma linguagem estritamente divina, porque somente e
ainda com muita dificuldade,[4]
entendemos parte da linguagem dos signos do entendimento humano. Deste modo,
uma linguagem divina ou de outra natureza, simplesmente não nos diria nada. Por
isto, ao pretendermos tratar da fala de Deus, precisamos transpor em linguagem
humana como experimentamos e sentimos esta presença e as interpelações de Deus
que delas decorrem para a nossa vida.
A
Bíblia oferece noções antropológicas muito diversificadas e muito distintas
daquelas noções que as ciências modernas vêm apresentando nos últimos anos a
respeito de religião, fé e experiência de Deus. Apesar das diferenças, não se
pode ignorar que ocorreram grandes avanços para o entendimento destas distintas
expressões humanas.
Ainda
que pensemos a Bíblia como linguagem humana a respeito de como grupos humanos,
ou, pessoas, sentiram e captaram a manifestação de Deus, fica no ar uma
questão: é toda a Bíblia que é mensagem de Deus ou são apenas partes dela?
Podemos
constatar que poucos textos tratam diretamente sobre aspectos da vida humana
(leis, mitos, patriarcas), mas, mesmo os outros, decorrem das formas como
pessoas, em diferentes momentos históricos, sentiram interpelações de Deus.
Ainda que alguns personagens bíblicos tenham comparado Deus como um chefe de
exército capaz de matar, tratava-se de um modo como enquadravam Deus na sua
linguagem humana, e, num determinado momento histórico.
Entretanto,
se pensamos que a Bíblia é uma mensagem de Deus à condição humana e, se Jesus
Cristo é a culminância desta mensagem, então a Bíblia deve ser vista em sua
totalidade, mesmo que alguns textos isolados pareçam não apresentar nada
significativo da parte de Deus. Para as pessoas envolvidas naquela experiência,
todavia, isto representava algo de Deus. Assim, alguns aspectos apresentam uma
relevância especial:
a) - O
uso de referências humanas - Um aspecto antropológico muito importante da
Bíblia é o seu uso de imagens da condição humana. A Bíblia, por exemplo, fala
muito de coração, sem se referir ao órgão propulsor do sangue no organismo, mas
como entendimento do interior das pessoas, dos sentimentos, dos desejos, da
razão e da decisão. O coração está no interior do corpo como sentimento, como
desejo, como razão e como decisão. Ele também é colocado como centro de energia
do corpo. Por vezes, o coração ainda equivale a sentimentos da alma.
Para a Antropologia, mais do que a imagem usada, torna-se
significativo observar o modo como a Bíblia oferece a imagem com vistas a
expressar aspectos invisíveis da vida. Ela exprime no corpo humano o que não é
visível.
b) - Os antropomorfismos - A Bíblia também
revela uso freqüente de antropomorfismos, isto é, usa imagens antropológicas
humanas para falar de Deus. Por exemplo, que Deus “falou”, que Ele é fiel, que
é bom, etc. Também usa antropomorfismos morais, no sentido de que Deus é fonte
de obrigações morais. O antropomorfismo, em tal caso, transmite um conhecimento
moral. Se a conclusão de que Deus cria, fala e age, foi incorporada ao conteúdo
bíblico, é porque estas pessoas de fé queriam passar, para a vida de outras
pessoas, a noção de que o ser humano também pode apresentar outra qualidade de
vida, que pode falar diferente e que pode agir de maneira mais respeitosa e
humanitária.
A Antropologia bíblica ajuda a perceber que, ao longo de
muitos séculos, diferentes grupos humanos se moveram pela fé num Deus que se
relacionava com eles e lhes deixava, contudo, uma constante cobrança para a
transformação, além de seguidas interpelações para que estes seres humanos
pudessem melhorar a qualidade de sua vida. Por trás destas motivações estava
uma noção muito significativa: o centro é Deus e não o ser humano. Os
seres humanos são apenas criaturas ou obras de Deus.
c) - O Pecado - A Antropologia Bíblica também
deixa muito evidente um traço humano que, constantemente, nos envolve: o
doloroso problema do pecado. O livro de Jó, do Primeiro Testamento, reflete
muito bem este paradoxo. No capítulo 42, destaca que quanto mais encontra Deus,
mais se dá conta do pecado. Ali, a noção de pecado não é a de uma infração de
regra, mas pecado é não ter entendido a Deus. Jó fez uma “desantropomorfização”
de Deus (distinguiu e separou Deus das características das pessoas humanas),
pois constatou que há uma grande diferença entre Deus e o ser humano. Por isso
deduziu que os seres humanos não são donos do seu sopro vital...
No século
IV da nossa era cristã desenvolveu-se outra noção sobre o pecado e esta teve
muitas e profundas repercussões nos quadros da Igreja Católica. Na época
começou a desenvolver-se a chamada doutrina pelagiana (de Pelágio) que
desvirtuava a proposta salvadora de
Jesus Cristo. Sustentava que uma pessoa poderia salvar-se e redimir-se com suas
próprias forças. Nenhuma intervenção de outro mundo seria necessária à
salvação. Para justificar tal convicção, estabelecia uma polarização entre Adão
e Jesus Cristo. O primeiro, Adão, seria um exemplo negativo de superação,
enquanto que Jesus Cristo, teria sido um exemplo positivo de como cada pessoa
poderia auto-transcender-se. Os males que se manifestam na vida das pessoas,
todavia, seriam apenas contrariedades da natureza e não teriam nada a ver com a
situação dos pecados das pessoas, tanto pessoais quanto coletivos.
Agostinho de Hipona (ou Santo
Agostinho) estabeleceu grande polêmica contra o pelagianismo ao sustentar que a
salvação somente aconteceria com a graça, dom gratuito de Deus. Por isto,
sustentou também que o pecado de Adão foi transmitido a todos os seres, porém,
a salvação aconteceu através de Jesus Cristo, pois Ele não foi apenas um bom
exemplo, mas foi o salvador de Deus.
Independente desta polêmica e
dos seus efeitos na história da Igreja é possível constatar que existe um mal
nas pessoas, nas sociedades e em toda a humanidade. O modo como estes seres
humanos vivem, com certeza, não preenche adequadamente a noção de que foram
feitas à imagem de Deus. Tal constatação requer um caminho ou um processo de
remissão ou de saída deste estado de pecado, que aconteceria a partir do
batismo... Mesmo que hoje muitas pessoas não pensam e agem como Agostinho de
Hipona, não nos escapamos de uma melancólica constatação: mesmo cientes da
proposta de remissão apontada por Cristo, e ainda que estejamos encantados pela
sua proposta de salvação, agimos de modos que nem sempre concorrem para este
caminho salvador. Esta misteriosa inclinação que nos leva a fazer as coisas
pelo lado avesso tende a alienar da proposta de amor que vem de Deus.
d) - A contingência - Junto com o
problema do pecado, está o da contingência, ou seja, o do limite da nossa
condição humana. Jó constatou que Deus pode fazer tudo e nada lhe é impossível.
Por isso, Jó pode ser interpretado como sinônimo dos sofrimentos nacionais do
período do exílio e do pós-exílio, no século V antes de Cristo. Trezentos anos
mais tarde, diante de uma invasão imperialista muito cruel, o livro dos
Macabeus (2Mc,7,22-23) salienta que uma mãe encoraja os filhos com sua
experiência de fé professada: sente-os como indefesos, mas os convida para que
se entreguem confiantes à providência divina.
Este quadro de algumas referências do Primeiro Testamento da
Bíblia já nos permite contrastar diferenças notáveis da experiência de Deus,
feitas a partir do Novo Testamento, segundo a Antropologia Cristã.
A
Antropologia Cristã parte da noção de que Deus se deu a conhecer por meio de
Cristo, no Espírito Santo. Tal concepção recupera elementos do Primeiro Testamento
e destaca conseqüências desta nova leitura da ação de Deus, sintetizada no Segundo
Testamento.
Do Primeiro
Testamento, recuperou-se a significativa noção de que os seres humanos se
constituíam em “imagem de Deus”, porque vinham exercendo o primado ou o
controle sobre as outras formas de vida no planeta. Esta perspectiva nos ajuda
a entender porque o livro do Gênesis colocou o ser humano no centro do Éden, ou
do paraíso.
O Segundo Testamento faz uma releitura desta
antiga interpretação e enfatiza que Cristo é o novo Adão. Trata-se de uma
orientação escatológica para o sentido da vida e não apenas da capacidade de
estar acima dos outros seres que vivem no planeta Terra.
0utra importante noção da Antropologia Cristã é a de que o
ser humano é chamado a ser filho de Deus, através de Jesus Cristo. Significa
que, Nele, nos tornamos de filiação divina.
Uma terceira e importante noção da Antropologia Cristã é a de
que a plenitude do ser humano não se resume apenas a do que ele consegue fazer
ou conquistar, mas no poder contar com a graça gratuita e imerecida por parte
de Deus.
Uma quarta característica da Antropologia cristã é a da
defesa da unidade do ser humano, isto é, não sustenta a dualidade, divisão ou
separação de corpo e alma. Como criaturas humanas, somos, ao mesmo tempo,
mundanos e transcendentes a este mundo. Podemos relacionar-nos com Deus. Apesar
da herança grega, que repassou à cultura ocidental a noção da dualidade em que
ocorre a superioridade ou o primado da alma sobre o corpo, a tradição bíblica e
cristã se norteou por uma concepção bem distinta: o corpo não foi considerado
ruim ou inferior.
A grandeza da vida que envolve o corpo humano está, não em
liberar a alma para sair do corpo, mas na condição de que o ser humano, na
totalidade do seu corpo, está aberto à transcendência. O ser humano não é
apenas um sujeito a mais no mundo, mas é pessoa, única e que não
encontra outra igual. Como pessoas, somos seres humanos distintos de todos os
outros seres que nos cercam. Uma pessoa tem valor e dignidade. Ela tem valor
absoluto, porque o tem para Deus. A pessoa não tem liberdade, mas é liberdade,
porque tem as condições e as capacidades de auto-determinação. Na liberdade, a
pessoa humana pode optar em relação ao que vai fazer consigo mesma. Por isso, liberdade
não tem nada a ver com capricho ou com a vontade repentina de fazer qualquer
coisa que bate na cabeça, mas resulta de uma condição da nossa responsabilidade
humana, pois, nos tornamos mais plenos e mais livres, quando optamos pelo bem.
Isto também significa que podemos libertar-nos pelo Espírito, romper amarras de
egoísmo e de pecado. A liberdade existe até mesmo em relação a Deus e à sua
Palavra, pois Ele não nos obriga e nem nos força a aceitá-la, mas a oferece
para a nossa decisão.
Como criatura pessoal e livre, o ser humano está
necessariamente aberto ao mundo e aos outros, e, neste exercício, exprime sua
transcendência. Ele precisa do mundo que o rodeia para subsistir; tem
capacidade de transformar este mundo que o rodeia e ainda é constituído pela
potencialidade de abrir-lhe novas possibilidades. Portanto, o trabalho tem um
âmbito cósmico, o que leva à conclusão de que uma pessoa humana é co-criadora,
com Deus. Por experimentar perpétua insatisfação em relação ao que alcança e ao
que deseja, o ser humano tem um sentido para além do mundo. Na capacidade de
comunhão com as pessoas, o ser humano encontra condições para lidar consigo
mesmo e, e de forma mais satisfatória com as outras pessoas. Enquanto pessoa,
no encontro com o outro, o ser humano lida com um valor absoluto. Por isso, o
relacionamento humano oferece condições de tanscendência ao que envolve as
pessoas.
II
TRAÇOS ANTROPOLÓGICOS DO SAGRADO
CRISTÃO ANTIGO
A concepção do sagrado cristão é extraordinariamente
original. Parte do princípio de que Jesus Cristo é o Santo de Deus. A especial
relação que Jesus Cristo viveu com Deus, fez com que se tornasse mediador de
uma nova aliança. Nesta nova aliança, Deus comunica em plenitude a santidade e
a justiça. Por isto, a novidade do sagrado cristão significa que Jesus conduz
os seres humanos à santidade.
De acordo com René Girard, mesmo que os cristãos nem sempre o
apliquem na prática, o específico do cristianismo está em subverter
constantemente o primitivo e o mítico em nosso mundo. O cristianismo seria,
pois, um princípio desorganizador da sociedade, que costuma revelar-se mítica
em muitos aspectos. Mas, como os cristãos geralmente não são muito cristãos,
tendem a não ser profundamente coerentes com o específico cristão, e, não raras
vezes, tornam-se rigorosos sustentadores de certos mitos da sociedade. E o que
seriam estes mitos? Para Girard, são os argumentos usados para fechar a boca
das vítimas, ou então, a história narrada apenas de acordo com a leitura dos
perseguidores[5].
O conjunto de ritos para expressar o enquadramento neste
projeto de Jesus Cristo é que veio a constituir, historicamente, um povo e uma
comunidade humana. É por isto que a vida cristã começa com os ritos de
iniciação cristã. Na verdade, estes ritos agregam questões cósmicas e culturais
e levam a uma consagração do mundo (atualmente vem se procedendo a
dessacralização). Um texto ilustrativo é Ap 4,3-8: santo, santo, santo é Deus
onipotente... No Ap 6,10: destaca-se que os primeiros mártires pedem vingança
pelo sangue derramado ao Deus santo e verídico... Jo 17, afirma que Jesus se
dirige para Deus: “Pai Santo” e pede que guarde os discípulos. Lucas (15)
considera Jesus como divino e, diversos outros textos ressaltam que Jesus
Cristo é o santo de Deus.
Uma diferença bem saliente se estabelece em relação ao Primeiro
Testamento: lá o sacerdote fazia uma mediação entre o sagrado transcendente e o
sagrado cultual. O Segundo Testamento destaca que o sagrado do culto deriva
diretamente de Jesus Cristo.
A carta aos Hebreus (4,27-30) ressalta que a comunidade de
Jerusalém estava cheia do Espírito Santo. Interpretava-se como Igreja,
santificada por Cristo. Significava igualmente, que o envolvimento de Deus, de
Jesus Cristo e do Espírito Santo se manifestavam no meio do povo. Também o
texto de Ap 14,12 expressa este entendimento ao dizer que a Igreja é santa.
Uma peculiaridade da concepção do sagrado no Segundo
Testamento não é o sagrado meramente sociológico, nem de tabu ou de proibições,
mas, o sagrado fundamentado no Deus que é Pai, Filho e Espírito. Disto resulta
uma grande novidade: a Igreja é o povo santo unido a Deus. O sagrado é
percebido como uma realidade que se encontra além da percepção do círculo da
existência humana, mas, este mesmo sagrado nasce da experiência que o homem faz
do divino. Trata-se, pois, de uma experiência humana, e tampouco a
entenderíamos se não fosse humana. Mesmo assim, a experiência humana não
consegue apreender toda a dimensão do sagrado, pois apenas a capta em
fragmentos que se manifestam em tempos, pessoas, coisas e lugares.
Deus não é nem sagrado e nem profano, mas SANTO, enquanto que
o sagrado se manifesta entre o divino e o profano. Num longo período do
primeiro testamento da Bíblia, Israel, por exemplo, entendia Deus como
absolutamente transcendente, mas procurava acessá-lo pelo sagrado pagão
purificado, ou seja, adaptando ritos de outros povos chamados de pagãos, como
queimar vísceras de animais em altares do Templo. Já o sagrado cristão se
fundamenta na pessoa de Jesus Cristo
No final da década de 1950, Mircea Eliade, iniciou um estudo
ainda mais distinto, um estudo do sagrado, não apenas pelo que tem de
irracional, mas pelo que revela na sua totalidade. Constatou que o sagrado é o
oposto do profano. Uma pessoa entra em contato com o sagrado quando este se
manifesta à pessoa. Esta experiência passou a ser denominada de hierofania (ou
seja, envolve um fato em que o sagrado nos revela algo).
III
O CONCEITO DE PESSOA DA ANTROPOLOGIA
CRISTÃ
Da noção de sagrado e de criatura, feita à imagem de Deus,
segundo o Primeiro Testamento da Bíblia, resultou também uma original concepção
do ser humano no pensamento cristão. O ser humano, em vez de significar algo,
como em outras culturas antigas, recebeu no ambiente cristão o entendimento de
ser “alguém”. Não é “algo”, mas é “alguém”. Tal conceito foi decorrência da
noção de criatura, por parte de Deus. Constituída em “alguém”, a pessoa humana
passaria a ser assimilada como convidada especial a participar dos planos de
Deus.
A concepção do ser humano como “pessoa” é originalmente cristã. Quando
usamos o termo “pessoa” no âmbito da linguagem familiar, geralmente a
identificamos com maturidade e responsabilidade. É quase como dizer “está
ficando gente”. Representa, pois, uma aproximação com bom comportamento.
Todavia, pensar o conceito de pessoa apenas pelo aspecto ético-moral, seria
empobrecer muito seu significado. Por isto, torna-se importante a recuperação
da origem etimológica e semântica da palavra “pessoa”. O conceito mais antigo
relaciona “pessoa” a “máscara”.
Os etruscos, um dos povos que formaram a cultura latina, usavam há mil e
quinhentos anos antes de Cristo, o termo PERSHU para designar as máscaras de
modelos usados em representações teatrais. No ambiente grego, cerca de quinhentos
anos antes de Cristo, a conotação dada ao termo máscara equivalia a rosto ou
cara, nas representações que os atores faziam de outros personagens. Na cultura
grega, no entanto, o ser humano não era valorizado pela sua dimensão corpórea,
mas pelo seu espírito, ou seja, pelas idéias poderiam levar a estabelecer
contatos com o divino, com o perfeito e com o eterno. Por isso a preocupação
grega não girava em torno dos seres humanos, mas em torno do que fosse
universal. O ser individualizado não representava foco de maiores interesses de
entendimento.
O verbo latino PERSONARE, muito próximo do termo “persona” e, também do
verbo “ressonare” (= ser sonoro ou ressoar), faz lembrar o mesmo papel do ator
que procura fazer ressoar no auditório o som imitado de quem representa. Mesmo
neste quadro, o termo pessoa ficou associado à máscara. Como uma mesma máscara
não se prestava para representar distintos personagens, a máscara passou a
representar o papel ou um procedimento da pessoa que o ator procurava destacar
através da imitação, quer fosse real ou fictícia.
Destes antecedentes todos, resultou uma conseqüência prática: uma pessoa
é um alguém, real ou fictício, escondido atrás de uma máscara. Em outras
palavras, trata-se da personalidade que se esconde atrás de cada rosto.
O Segundo Testamento aprofundou esta noção de boa
relação com Deus, pois assimilou que esta honra era também uma graça concedida
por Deus para fazer acontecer a “nova criação”.
Na concepção do Primeiro Testamento já havia sido salientado que o ser humano
é um ser que dialoga com Deus e capaz de assumir responsabilidades através do
dom que Deus oferecia. O ser humano era visto como um agente relacional de
conversa. Nesta perspectiva o Segundo Testamento apresentou Jesus Cristo como
um primoroso modelo desta relação de conversa com Deus. Tal noção evidenciou
dois aspectos importantes: um ser humano é convidado por Deus a estabelecer
relações de diálogo com outros seres humanos para se sentir ele mesmo.
Este duplo aspecto oferecia ao ser humano a condição de ser único.
Portanto, um ser humano não é a mesma coisa do que as outras pessoas. Ainda
q1ue o agir com os outros tenha em vista uma auto-realização, Deus apresenta um
projeto para melhor viabilizar esta dupla fonte de realização. Aceitar o
projeto de Deus não significaria, pois, negar-se a si mesmo, mas acolher uma
mediação para melhores relações com os outros e, evidentemente, consigo mesmo.
Dali também resultou a tríplice dimensão de abertura ao mundo, aos outros e a
Deus. A salvação de uma pessoa não poderia acontecer sem simultâneo processo de
salvação sócio-política e do ambiente macro-social. Bem sabemos que num momento
histórico relativamente recente, esta noção passou a ser assimilada como
salvação individual da própria alma.
Para nossas ponderações,
muda alguma coisa se damos uma ou outra conotação ao termo “pessoa”?
O pensamento moderno
tende a usar mais o termo “indivíduo” do que o de “pessoa”, uma conotação mais
ligada ao aspecto físico de um ser humano. Diversos pensadores cristãos como Mounier,
Marcel e Maritain enfatizaram que o termo pessoa deve realçar sua capacidade de
transcendência sobre o mundo: é capaz de estabelecer comunhão e ao mesmo tempo
é livre e capaz de abrir-se a múltiplas formas de vida.
O pensamento moderno,
por sua vez, ao dar ênfase ao termo indivíduo, justifica que ele, na verdade,
não é algo original e genuíno e tampouco vive o que é especificamente seu, pois
é mero fruto da socialização e das estruturas sociais, políticas, econômicas,
educacionais, etc. Do empirismo inglês herdamos a noção de que, ao nascer,
somos como uma folha em branco sobre a qual se escreve a história, boa ou má,
segundo a educação. Na verdade, atualmente, tudo indica que uma pessoa se
caracteriza por traços bem mais amplos e variados do que os da influência do
meio social.
A conciliação destes
enfoques não desvia certas polêmicas: mesmo que a declaração universal dos
direitos humanos insista que todos os seres humanos são constituídos de
dignidade, fica no ar a dúvida sobre que dignidade e que grau de dignidade.
IV
PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DAS
EXPERIÊNCIAS DO SAGRADO
Um traço marcante dos
seres humanos, mais profundo do que aparentemente parece ser, é o de que eles
tendem a fazer experiências muito variadas do sagrado ou do divino. Estas
experiências são chamadas de hierofanias.
Hierofanias são as formas como as pessoas experimentam a
manifestação do sagrado ou do divino.
A história das religiões revela grande quantidade de
hierofanias, desde as do encanto ante uma pedra, até a revelação de Jesus
Cristo ou a aparição de santos e de santas.
Atualmente,
poucas pessoas tendem a aceitar as experiências do sagrado a partir de pedras,
árvores ou flores e bichos. Na verdade, não significa uma adoração de pedras,
imagens ou lugares, mas, de constatar como estas pedras ou os outros objetos
revelam algo sagrado. Ainda que uma pedra continue sendo pedra, acaba, ao mesmo
tempo, sendo outra coisa. Por isso, as pessoas mais arcaicas e primitivas
procuravam viver no sagrado ou perto de objetos sagrados. Para elas, o sagrado
era sinônimo de poder perene e eficaz. Disso, resultou o estabelecimento de uma
oposição entre sagrado e profano. A pessoa religiosa, através deste poder, quer
encher-se do sagrado e estar profundamente dentro da realidade. Ela quer
permanecer o máximo de tempo no espaço sagrado. Quer saturar-se deste poder.
Somente a partir dos últimos séculos é que começou a ser
pensado o mundo, na sua totalidade, sem vínculo com a sacralidade. Por este
motivo, percebemos, hoje, um grande precipício entre sagrado e profano. A
natureza, os objetos, as casas, certas relações e até o sexo, bem como, muitos
lugares, foram considerados sagrados ou como meios para entrar em contato com o
sagrado.
O homem moderno
dessacraliza estes espaços e estas mediações. Bastaria comparar o entendimento
da terra para um agricultor, um caçador e um cidadão urbano...
Conforme Eliade, “para o homem religioso, o espaço não é
homogêneo: o espaço apresenta rupturas, quebras, há porções de espaço
qualitativamente diferentes das outras”.[6]
Como ilustração, serve o texto de Ex, 3,5.
Enquanto o espaço
sagrado é forte, os outros espaços são amorfos. O sagrado é visto como o único
elemento real e que dá forma e sentido ao que o rodeia. Neste sentido, o
sagrado acaba dando um sentido ontológico ao mundo. Em outras palavras, o
sagrado faz o espaço tornar-se homogêneo a partir de um centro que o organiza.
Já a concepção
dessacralizada do profano, entende o espaço como neutro e homogêneo. No
entanto, mesmo que existam posturas profanas, estas geralmente não são puras,
pois, até mesmo na concepção do profano, ocorre mescla de elementos da
concepção do sagrado.
Como é destacado o sagrado na Bíblia? Que Deus se manifesta
como um Ser pessoal e que se dirige aos seres humanos (aos fiéis) e lhes propõe
uma aliança: dispõe-se a guiá-los ou conduzi-los no caminho da vida. Este Deus
pode aparecer a qualquer pessoa. Isaías, por exemplo, destaca que Ele é santo e
que Ele formula um convite para que o povo também se torne santo.
V
O SAGRADO E O PROFANO
As experiências hierofânicas, ou do sagrado, levam ao
estabelecimento de uma polarização entre sagrado
e profano. É uma forma de dividir o mundo e as coisas, situando-os em áreas
ou campos distintos.
Em 1917, um livro de Rudolph Otto provocou grandes
repercussões ao oferecer um novo enfoque sobre o significado da religião. Em
vez de preocupar-se com as idéias sobre Deus e sobre a religião, Rudolph Otto
se preocupou pelo entendimento do modo como as pessoas experimentam Deus e a
Religião, ou seja, estudou as modalidades de experiência religiosa. Até então,
muitos escritores, especialmente teólogos, haviam escrito idéias sobre
experiências e deduções relativas a Deus. As conseqüências práticas que
resultaram destas idéias poderiam, no entanto, estar absolutamente distantes de
Deus. Otto procurou entender como alguém experimenta o “Deus vivo”, o que é
algo muito diferente, mas também muito significativo para nosso estudo de
Antropologia Teológica.
Uma importante constatação de Otto foi perceber que a
experiência do sagrado não é algo racional. Uma experiência do sagrado
normalmente envolve dois sentimentos muito estranhos: pavor e encantamento
ante a experiência numinosa, ou seja, experimentamos, ao mesmo tempo, uma
grande força de atração para Deus e, simultaneamente, medo e repulsa. Este
temor e pavor revelam-se como “mysterium fascinans” (experiência de algo que
atrai e apavora ao mesmo tempo). Experimenta-se o sagrado como o “totalmente
outro” e a linguagem humana é incapaz de expressar adequadamente como se
experimenta este “totalmente outro”.
O sagrado, segundo Rudolph Otto, é o fundamento das
religiões. É o princípio vivo que envolve três modalidades de manifestação:
a) O numinoso, algo marcante que nos leva ao “mysterium
fascinans”;
b)
O santo, valor numinoso que se opõe ao que é profano.
c)
O sacro, categoria do espírito que leva a descobrir o
numinoso.
O sagrado é sempre reconhecido como potência de uma ordem
muito diversa da ordem das forças que existem na natureza. Por isto a
manifestação do sagrado é uma hierofania.
VI
O SAGRADO E O DIVINO
Se, de um lado, o “sagrado” é visto como algo distinto
das forças da natureza, ele fica situado em que âmbito? Podemos situá-lo nas
instâncias superiores, divinas ou de outro mundo, e ligar-nos a esta
exterioridade para salvar o nosso mundo decaído e frágil, ou, podemos
satisfazer-nos com os valores racionais que orientam nosso mundo técnico,
científico e moderno.
A
resposta é complicada porque estamos imersos num mundo racional, mas que também
agrega os valores da religião e do âmbito divino. Todavia, quando nos referimos
à religião, seriam todas ou somente algumas delas? A globalização da
racionalidade fez com que também a religião viesse a se tornar um objeto de
exportação. Esta trans-nacionalização faz com que certas agremiações religiosas
entram em muitos segmentos de diferentes sociedades nacionais. Tal fenômeno,
evidentemente nos leva a constatar que o termo “religião” se presta para muitas
interpretações muito distintas umas das outras.
Enquanto
algumas formas religiosas apelam em favor de uma abertura para o “outro mundo”,
o divino, muitas outras se sentem plenamente confortáveis na adequação às
regras do mercado internacional. Por isso Luiz Roberto Benedetti salienta que
vem ocorrendo uma reconfiguração da religião na sociedade. [7] O
consumo da religião parece tornar-se mais importante do que transformação de
situações humanas inadequadas. Mesmo que o iluminismo e todo o prolongado
processo de secularização tenham preconizado o fim da religião, esta, ao
contrário, se manifesta muito mais intensa e aguda, mas, agregada ao mundo
secular e se apresenta como religião indiferente aos tradicionais grupos
religiosos. Portanto, mais do que pertencer a uma determinada religião, a religião
leva as pessoas a fazer escolhas subjetivas. Assim, em vez de dogmas, normas e
orientações divinas, o fato religioso leva as pessoas a escolher livremente os
variados produtos nas prateleiras dos grandes mercados.
Este
deslocamento do papel da religião vai provocar uma alteração na relação entre
divino e sagrado. O Sociólogo Allain Touraine sustenta que o divino foi
deslocado para o interior dos indivíduos.[8]
Estes interiorizam certos valores e estes é que lhe indicam as luzes para o
caminho da vida. Observa-se, portanto, que o divino, que por longo tempo
histórico foi estabelecido como algo que está além do nosso mundo, precisa
incidir sobre este mundo para transformá-lo. Esta ótica teria permitido a
certas pessoas manipular o divino para justificar seu próprio poder sobre as
pessoas. É praticamente o que Immanuel Kant já havia formulado ao levantar a
suspeita de que, quando alguém fala para outras pessoas a respeito do que Deus
delas espera, poderia, na verdade, estar sendo veiculado apenas o desejo desta pessoa
pretender controlar as outras que a escutam. Ao invés de proclamar a vontade de
Deus, estaria afirmando apenas o seu poder de controle dos ouvintes.
Para
Touraine, Jesus de Nazaré, no que fez e falou, teria colocado um encerramento
no processo de utilizar-se o divino para manipular politicamente as pessoas e
justificar seu exercício de poder. De certa forma, ele teria ajudado a deslocar
o divino do “mundo do além” para o mundo da interioridade humana.
Mesmo
situando o divino nesta interioridade humana, esta ainda pode oferecer a
tentação de julgar o mundo de forma negativa, a partir da luz exterior e
condenar a vida pelo seu materialismo, pelo seu hedonismo e pelos seus
interesses mercantilistas. O sistema capitalista, de certa forma, ajudou a
tirar da religião a capacidade de manipular politicamente as pessoas a partir
de um suposto poder divino. Desta forma o que seria o lado benéfico deste
deslocamento do divino, da exterioridade do outro mundo para a interioridade
humana, representa, todavia, um novo problema: se o divino emerge do interior
de cada sujeito já não se carece de nenhuma instituição religiosa, como a
Igreja Católica e tantas outras.
O
espargir de muitas emoções religiosas, pode não constituir um avanço real para
a superação da fragilidade humana: ainda que a entrada do divino para a
intimidade humana possa parecer louvável, e, aparentemente reafirmar os
fundamentos cristológicos, pode o próprio sentimento divino da interioridade,
voltar a ser exercido como um poder tirano e que instrumentaliza as outras
pessoas segundo as leis do mercado. Já veiculado como um produto a mais nas
prateleiras do consumo, o divino, fica na mesma e velha função manipuladora das
pessoas. Se apenas o mundo interior é a fonte para ditar o que é divino,
sagrado e bom, pode ainda alguém, que está além do nosso mundo, nos dizer algo
para não ficarmos na mera condição de lagartas que consomem as folhas que
manipuladores nos tratam?
VII
O SIMBÓLICO E O DIABÓLICO
Na vida pessoal, coletiva e também na vida da Terra,
no universo, move-se o jogo de duas forças contrárias, chamadas de dialéticas,
ou, no qual uma interage sobre a outra. Enquanto a vida se mobiliza para
fatores de agregação, ocorre, simultaneamente, a ação de forças dispersivas. É
o que Leonardo Boff expressou através dos termos “sim-bólico” e “dia-bólico”.
Simbólico significa ajuntar, agregar e fazer
convergir. O termo também equivale ao sinal que distingue alguém, ou algo, de
outras coisas. Por exemplo, uma camiseta de um time de futebol, ou a logomarca
de uma empresa, constitui sinal simbólico para identificar os membros que os
representam, sejam religiosos, esportivos ou comerciais. Através do sinal
simbólico conhecido, facilmente identificamos traços específicos de agregação
de grupos sociais, por razões das mais variadas.
Diabólico é tudo o que desagrega, desune, separa e
desconecta. Numa relação matrimonial, ou qualquer outro processo de aproximação
entre pessoas para toda espécie de alianças ou negociações – que representam
forças simbólicas – atua, paralelamente, um processo próximo e parecido de
fatores que levam a rupturas, desencontros, inimizades e discordâncias. Basta
observar nosso mundo social: junto aos enormes empenhos para a harmonia e
unidade, ocorrem incontáveis processos inversos e adversos que tendem para
rupturas, exclusões e tentativas de morte, por guerras e outras ameaças.
O bom deste embate de forças contrárias é que até
hoje, nunca uma chegou a anular a outra de forma absoluta. O equilíbrio nem
sempre agradável e nem sempre fácil é um jogo que dá dinamismo à vida.
Leonardo Boff salienta que o diabólico e o simbólico
são princípios que estruturam não apenas as relações humanas e sociais, mas
também a natureza e o cosmos. A natureza, por exemplo, apresenta, de um lado,
fenômenos de agregação, associação, interdependência e complementariedade, enquanto
que, simultaneamente e, por outro lado, faz eclodir imensas forças de caça,
destruição e morte em grandes proporções, como os causados por vulcões,
terremotos, maremotos, choques do planeta com meteoros, etc.
Esta luta dialética ultrapassa as dimensões do nosso
quadro humano e se revela na disputa de espaço de sobrevida das plantas e dos animais.
Trata-se de uma disputa frenética, envolvendo mecanismos de salvação e de morte
ao mesmo tempo. Com relação às plantas, não é diferente. Ocorrem disputas
ferrenhas entre terra e água, entre seres machos e fêmeas, enfim, ao lado da
busca de beleza e da harmonia, atua uma grande voracidade que leva à destruição
e morte.
Voltando à nossa condição humana, podemos ainda
constatar que a busca de equilíbrio diante dos incontáveis riscos e mecanismos
de morte, aponta para um extraordinário desvelo em favor de nascimentos, sonhos
e esperanças que deles podem emergir. A nossa querida mãe Terra também
apresenta esta contradição: de um lado fornece vitaminas, sais, aminoácidos,
fibras, carbo-hidratos e muitos outros elementos vitais, mas, de outro lado,
produz toxinas, bactérias e formas de vida que atentam radicalmente contra a
nossa existência.
Mesmo que a inteligência humana tenha dado passos
gigantescos e fantásticos para melhorar a qualidade de vida, de saúde e de
sobrevivência no Planeta, esta mesma inteligência produziu armas incontáveis e
sofisticadas para matar sistematicamente seres humanos que, violenta ou pacificamente,
querem viver e ser felizes.
A nossa condição humana, riquíssima pela produção
artística, científica, técnica, religiosa e cultural, não consegue esconder esta
escancarada contraposição de polarizações, mobilizadas entre o melhor e o pior.
Enquanto, de um lado, se produzem gestos de extraordinária grandeza humana,
outros são de degradação destes mesmos alcances. São forças de transformação e
de superação, convivendo com forças entrópicas e de exterminação. Este jogo
diabólico e simbólico também pode ser constatado em nossos processos psíquicos
e emocionais, ao lado da sua manifestação na Terra e no universo. Estaríamos,
pois, fadados a este determinismo?
Boff salientou algo muito importante: “O sim-bólico haure forças do dia-bólico. É a
nossa esperança”.[9]
Em outras palavras, o anseio pelo humano emerge do
mundo tenebroso, pois, necessitamos transformar forças diabólicas em forças
simbólicas para continuar a viver e, ainda, na tarefa de redimir a humanidade e
a natureza que nos envolve.
VIII
A CONSAGRAÇÃO DE LUGARES SAGRADOS
Da separação de lugares sagrados e profanos, da contraposição
de obras e gestos simbólicos e diabólicos, decorre ainda outra conseqüência
polêmica, que é a de consagrar lugares sagrados. Assim, ao se consagrar uma
caverna, uma montanha, um lugar pitoresco de uma planície, ou uma Igreja,
Basílica ou Catedral, bem como altares e outros espaços similares, quer-se
criar um espaço especial para se estabelecer um contato com outro espaço, que é
o divino, e estabelecer uma interação. No pressuposto deste ato, está a noção
de que sem um vínculo divino este mesmo espaço pode voltar a tornar-se um caos,
ou seja, um lugar profano. Por isto, o lugar sagrado passa a ser interpretado
como o lugar de relação com o outro mundo. Este sentimento profundamente
religioso deixa entender que o nosso mundo é um lugar que tem lugares mais
próximos de Deus e que, a partir destes lugares especiais, pode-se atingir o
mundo de Deus. O mundo sagrado ou consagrado passa, então, a ser entendido como
um lugar mais alto e próximo para um contato com o outro mundo.
Esta relação de lugares sagrados e profanos tem um reflexo
diário em nossa vida através da porta. É impressionante como a porta separa
mundos, a começar pelo mundo sagrado e profano. Por exemplo, a porta de uma
Igreja na cidade separa dois mundos nitidamente distintos. Para uma pessoa
religiosa, da porta para dentro é lugar de Deus, que merece respeito e certas
posturas que são bem diversas das que são permitidas no lado de fora, no mundo
profano. Dali, para a rua ou para a praça, já acontece todo outro jeito de
relações humanas. Basta reparar que, muitas vezes, do lado de fora da porta da
Igreja estão mendigos, andarilhos e que ali fazem qualquer coisa, desde defecar
a relações sexuais, brigas, furtos, assaltos, e, sem maiores constrangimentos.
O que se pode perceber é que um determinado espaço, não
implica necessariamente em experiências homogêneas, pois até mesmo para pessoas
não religiosas, o lado de fora da Igreja pode ter significados distintos; uns
querem cultivar ou contemplar a beleza da praça, outros querem namorar nesta
praça e outros se servem deste espaço como lugar de moradia. Um determinado
lugar pode ser mais sagrado para um do que para outro, especialmente, quando
faz lembrar algo importante que ali aconteceu, como uma bonita festa, uma
socialização significativa, uma simpatia, um primeiro namoro, etc. Este exemplo
da praça também se manifesta em relação a residências, onde certos rituais,
como beijos, continências, prostrações e toques de mão sobre o ombro, etc.,
servem como indicador de separação para a ida a outros espaços. A separação de
sagrado e profano ainda pode ser vista por outro prisma: a relação entre caos e
cosmos.
IX
O CAOS E O COSMOS
A imagem de sagrado e profano também perpassa outra
contraposição: a de caos e cosmos. Era idéia comum dos povos antigos separar o
espaço habitado como sendo o mundo, ou o cosmos, e, o resto, como mundo
desconhecido, ou como caos (fonte de medos, de espectros e de demônios).
Podemos perceber que esta não é apenas uma questão de povos antigos. Em nossos
dias, ainda prossegue muito distinta esta separação entre caos e cosmos. Até
mesmo as nossas cidades apresentam espaços de cosmos (áreas nobres, estéticas,
belas e ornamentadas, como certas praças...) e outros lugares tidos como caos
(brejos, lixões, espaços ermos), onde não só aparecem ratos, maus elementos,
mas também maus espíritos para a experiência de muitos habitantes.
Segundo
Mircea Eliade, “o sagrado funda o mundo, lugar onde o sagrado se manifestou,
e por isto está na ordem cósmica”.[10]
Na contrapartida, lidamos de forma bem distinta com os espaços territoriais não
conhecidos. Queremos, ali, desfazer o caos e desbravar estas áreas para que se
transformem em cosmos, ou seja, em lugares do nosso mundo sagrado. Normalmente
os pioneiros de uma cidade ou de uma região costumam sentir-se numa tarefa
divina que é a de desbravar para criar um cosmos (seu mundo) neste lugar ou
região que era tida como caos (outro mundo). Até mesmo as pessoas de uma
região, quando vão para outra, costumam cultivar este sentimento. Dali decorre
a facilidade de discriminar e fazer sair daquele espaço, em nome da ordem e do
cosmos, os que ali residiam...
X
ÍCONES E ÍDOLOS
Ícones, imagens e ídolos podem ser interpretados com uma
mesma significação. Positivamente, o significado é de retrato, imitação, idéia,
ou imaginação. Usam-se, também estes termos para um significado negativo de
falsificação enganosa ou de erro de imitação.
Nos quadros cristãos, o termo “ídolo” geralmente recebe uma
significação pejorativa, pois é visto como objeto de idolatria. Quando uma imagem ou um ícone teria esta
dimensão enganosa ou ilusória?
Os ícones, imagens ou ídolos, ao remeterem para além do mundo
sensível, são vistos como ícones no sentido positivo. Caso fiquem restritos
apenas ao mundo sensível, então, são interpretados como ídolos. A grande
dificuldade está em estabelecer uma divisória e a condição entre o mundo
sensível e supra-sensível, isto é, qual é a linha da divisa e quem diz que uma
imagem é ícone ou idolatria?
Uma imagem ou ícone, segundo uma crença tradicional, é um
instrumento revelador do divino, ou seja, este objeto visível permite a
manifestação do invisível. Podemos, pois, considerar como exemplo as imagens de
santos ou de outras expressões do sagrado, que, para muitos católicos, é
assunto inquestionável que eles remetem para além do sensível.
A pergunta
impertinente que se pode levantar a este respeito é a seguinte: quem diz o que
remete e o que não remete para além do sensível? Seria alguma autoridade
eclesiástica? Poucas pessoas denunciam
estas imagens como ídolos. Quando autoridades eclesiásticas declaram que estas
imagens ou ícones que remetem para além do sensível, pressupõem que o ícone tem
uma virtualidade em si mesmo que é a de revelar o outro mundo, o divino. Por
exemplo, uma imagem de Cristo ou de alguma pessoa declarada santa, mais do que
o retrato do personagem histórico, presume-se que esta imagem exprima uma experiência
espiritual de santidade. O ser humano, com este objeto, participa do divino. Em
outras palavras, este objeto remete à realidade invisível do divino. Torna-se,
por isto, muito secundário o papel artístico de quem fez esta imagem, pois,
centraliza-se o que a Igreja ensina a este respeito. Portanto, estimula-se o
uso dos ícones para repelir os ídolos. Supõe-se que o ídolo atrai, convence e
arrasta para si mesmo no mundo sensível e que não tem nenhuma capacidade de
levar para além do sensível.
Por outro lado, quando o ícone tem a capacidade de mostrar e
revelar o divino, atribui-se a ele um pressuposto de que tenha certa luz
interior e própria, capaz de remeter ao transcendente.
O pensamento moderno sustenta, bem ao contrário, que não é
possível este salto do ícone para o ultra-sensível. Sustenta-se, especialmente
no pensamento filosófico, que qualquer obra de arte, seja religiosa ou de outra
natureza, é apenas uma representação intelectual de realidades humanas ou
sobrenaturais.
No pensamento teológico ainda parece predominar a noção de
que um objeto visível pode remeter ao invisível, o que gera polêmicas: pode um
discurso ou um ícone, da realidade humana e temporal contatar-se com o divino e
o atemporal?
Na verdade, somente podemos discursar sobre Deus a partir de
realidades humanas que nos envolvem. Por isto, o discurso teológico pode
facilmente esconder, como Kant já denunciou, que se justifica o poder e a
verdade em nome de Deus para um exercício banal de imposição sobre as pessoas,
isto é, o que se prega como sendo exigência de Deus, pode não passar de um
desejo do pregador.
Possivelmente seja melhor contar com medidas humanas do que
aceitar esplendores de indicações categóricas deduzidas de ícones sobre as
realidades ultra-sensíveis.
XI
CONDENAÇÃO E SALVAÇÃO
Outra contraposição humana é a de separar duas forças de
vida: a condenável que é o mal; e a boa, a que salva.
O mal é um tema extremamente aberto e difícil de ser
conceituado porque pode ser situado no corpo do ser humano, na sociedade, no
mundo e até fora do nosso mundo sensível, ou seja, em Deus e outras instâncias
divinas.
Sabemos que o mal não existe em si, em estado puro, como a
essência de certos produtos. Mesmo assim, percebemos que está profundamente
presente na realidade humana. Em certos momentos, parece ser bem mais forte do
que nossa capacidade de lidar com ele. Segundo Herman Häring, “o mal como
tal não existe: a palavra ‘mal’ é atropelada pela multiplicidade e de suas
formas reais, por isso, o ‘mal’ é sempre mais do que nós somos capazes de
imaginar e de compreender. É esta uma razão importante, embora não definitiva,
do fascínio que ele exerce”.[11]
De forma geral, podemos identificar o mal como uma misteriosa
inclinação que nos leva a fazer o avesso das coisas. Por que haveria este
fascínio? Mesmo assimilado com fatos e situações muito variadas, o mal se
encontra presente na vida humana. Facilmente lemos e interpretamos os fatos
numa polarização: ou são bons ou são maus. Assim, violências, desvios e outros
procedimentos injustos podem ser interpretados como maus pelas vítimas, mas
muito bons pelos infratores.
A dificuldade para definir o mal está em que ele nunca é
visto pela mesma coisa. Há uma recriação e constante formulação de novos rostos
ou exteriorizações do mal. Em relação a qualquer coisa nova que se inventa ou
se descobre, logo aparece uma postura antagônica, interpretada como mal, porque
se usa o invento para finalidades maldosas.
O quadro das religiões é outro exemplo bem ilustrativo:
querem apenas fazer o bem e salvar as pessoas. No entanto, umas em relação a
outras, representam incontáveis situações de violência, desrespeito,
difamações, exorcismos e, de vez em quando, implicam em terrorismo, guerras e
mortes.
O mal não só vem sendo personificado com muitos rostos, mas
também é detectado por trás de muitas máscaras do relacionamento das pessoas.
Como Herman Häring escreveu, “o insondável e o banal, o sentimento de
extremo poder e o absurdo andam juntos. Manifestamente, fascínio e horror andam
juntos”.[12]
Por isto o mal não é detectado apenas em alguns seres
humanos. Ele prejudica fortes e fracos, ricos e pobres, opressores e oprimidos,
torturadores e castigados... Os culpados tendem a falar do mal que seus
torturados lhes causaram. Em decorrência, nem todo culpado se auto-interpreta
como culpado. Nota-se, pois, que o mal pode ser ocultado, disfarçado e até
mesmo abstraído de um fato para outro.
Quer real ou quer imaginário, o mal induz à construção de
mundos físicos, psíquicos, históricos e sociais com a pretensão de delimitar
seu campo de ação, e proporcionar bem-estar, conforto e segurança às pessoas que
se enquadram no alvo de interesses. Ao se fazer tal procedimento, já aparece o
mal intencionado, cruel e procurado para outras pessoas ou grupos sociais.
Portanto, quem se move numa ação para combater o mal, pode ver-se personificado
como mal para outras pessoas que pensam de forma diferente.
O mal se apresenta de forma misteriosa porque nunca se revela
escancaradamente, mas se esconde em conceitos de ordem, de justiça, de regras e
de leis. Quanta gente sente um prazer sádico ao poder torturar e fazer outras
pessoas sofrer! Assim, até regimes sociais, tanto totalitários quanto os
chamados democráticos, apresentam como alvo, a destruição de outros regimes.
Algo parecido também se manifesta nas diferentes religiões que se proclamam no
direito e no dever de salvar. Constata-se, pois, que até o nobre ato de salvar
não está totalmente isento dos riscos de ser interpretado como manifestação do
mal. Pode ser por ferir o respeito ao diferente, por demonização indevida, por
mecanismos dominadores e totalitários e por auto-imagem de superioridade em
relação a outras religiões similares.
Herman Häring salienta que, teologicamente, ocorrem três
níveis de fascínio pelo mal:
a) Fascínio
pelo irracional – apesar de toda uma sistemática insistência de discursos
políticos, econômicos, religiosos e sociais em torno da necessária
racionalidade que ainda falta na convivência humana, repara-se que a tendência
humana ao irracional parece ser bem superior em muitos momentos históricos.
Mesmo diante dos quadros do bom, certo, correto, justo e digno, ocorrem
constantes deslizes e fascínios pelo avesso destas valorizações. Ao lado do que
é bom e que salva, há um fascínio pelo mal. Pode ser nos pensamentos, nas
relações quanto nas contravenções.
No quadro cristão ainda persiste uma profunda influência
agostiniana, segundo a qual o mal decorre de três fatores: da liberdade, da
ausência do bem e da herança do pecado. Teoricamente esta discussão é complexa:
a salvação que vem de Deus teria a força para erradicar o mal. Estaria Deus
cumprindo esta promessa? E se o Deus da salvação não está resolvendo este
problema, estaria Ele sendo maldoso ou fraco? Ou estaria este Deus querendo
tantos abismos e mazelas na condição humana?
b) O
fascínio pela luta - As esperanças, ou messiânicas de salvação, ou
meramente humanas para conquistar bens, domínios e posses, agregam uma perversa
perspectiva para dominar outras pessoas e elevar nossos sentimentos de riqueza,
seja simbólica, de honra, de poder, ou de horizontes desvendados no caminho da
santidade.
Como a busca de êxito, seja no campo humano que for, tende a
provocar amarguras, decepções, mágoas e desencantos, está ali um potencial para
a ação vingativa, porque a frustração do alcance de metas estabelecidas gera um
novo potencial de violência e de luta para reaver o que foi perdido.
Procede-se, desta forma, um combate do mal para combater outro mal. Uma vida,
mal vivida, é potencialidade para ação que gera outro mal. Muitas vezes esta
vida é assim induzida por educação. Por exemplo, como entender o fascínio dos
mercenários de guerra e dos soldados que deliram e se sentem extasiados quando
conseguem matar, torturar e levar outros ao sofrimento?
c) Fascínio
pelo transcendente – Aquilo que é interpretado como mal, também tende a
provocar julgamentos subjetivos, e muitas vezes, projeções enganosas. A
tendência humana, ao julgar algo, é a de lhe atribuir valor moral, e, por isso,
logo passa a deduzir sobre o que não deveria estar acontecendo. Ademais, o mal
não se restringe apenas ao que queremos controlar e manter sob rédeas, mas, o
que foge do controle e das rédeas. Por exemplo, se como cristãos desejamos uma
sociedade justa, igualitária e boa e que tenha um futuro promissor, segundo a
rica herança do messianismo bíblico, ao desejarmos viver esta perspectiva,
vamos encontrar dificuldades de muitas naturezas que não conseguimos controlar
e que estão além de nossas forças e da nossa boa vontade.
Esta incapacidade de estabelecer controle sobre o mal pode
provocar uma crise: afinal, pode mesmo realizar-se esta esperança messiânica?
Além disso, a vontade de fazer acontecer o bem sobre o mal, pode facilmente
degenerar em fascínio para destruir e demolir coisas que, para outros, são
abençoadas e boas. Por ali já se pode deduzir que o mal detestado facilmente
implica em outro mal com vistas a combatê-lo. Este risco também está muito
visível no campo religioso: para combater um mal fora de um quadro religioso,
usa-se de uma maldade da mesma natureza. Assim, muitas expectativas em torno do
reino de Deus não passam de “reino do capeta” para as vítimas.
O problema é que, nos seres humanos, afloram efeitos
inconscientes de desejos frustrados e que levam a deslocar agressões para
outros focos e superstições ou ainda, a expectativas de que Deus resolva tudo
em nosso lugar, até mesmo os problemas que nós mesmos nos criamos. Vale o que
Immanuel Kant referiu a Jó, no sentido de que convém gritar a dor, mas isto
ainda não significa que, com tal procedimento, tudo já esteja resolvido.
Sobretudo no pensamento da cristandade católica pensou-se a ação de Deus ao
lado do terrível Satã que ofuscava quaisquer sonhos. O mal não fica dissolvido
com meros sonhos e com cultivo de sentimentos de que Deus possa derrotar as
forças de Satã. O mal, tão presente no mundo pode induzir-nos a pensar que Deus
está perdendo a batalha. Entretanto, ainda que o mal seja incontestável,
especialmente quando é sofrimento alheio, e, quando se age em favor das pessoas
que se encontram neste sofrimento, aí o fascínio do mal realmente perde
capacidade de expandir-se.[13]
Este jogo, que
envolve maldição e salvação, é, na verdade a contraposição de bem e mal. Tal
quadro nos coloca, a partir das raízes bíblicas, duas perspectivas distintas de
lidar com os acontecimentos e com os projetos para o futuro da humanidade:
a)
A perspectiva do Gênesis – que pressupõe a revelação
divina e a ação de Deus na história concreta para eliminar o mal que ali se
estabeleceu. O mundo teria sido criado bom (paraíso), mas o mal produziu o
pecado, a morte e a ruína da criação. Assim, o mal foi personificado na
serpente (teria sido a cultura Cananéia que ameaçava a fragilidade das 12
tribos de Israel?). Isto coloca um limite: ou as pessoas obedecem a Deus, ou
seguem a serpente – o mal.
b)
A perspectiva do Profetismo - que apresenta uma
mensagem de salvação para o mundo presente. A profecia apocalíptica faz uma
advertência a respeito do que vai acontecer no fim. Num quadro de perseguição e
de muitas hostilidades, a perspectiva apocalíptica apresenta um horizonte de
esperança e de estímulo para que se agüente o sofrimento até o fim, pois,
então, o mal será eliminado em todas as suas formas. Acredita-se, pois, na
erradicação do dragão, ou do mal.
Bem, se o paralelismo entre bem e mal já se torna difícil de
ser equacionado, como interpretar, então, os que vivem a religião sem Deus?
O ateísmo foi provocado num momento histórico-cultural
cristão. Então, o suposto mal passou a ser delineado precisamente na imagem
autoritária de Deus, que se prestava muito mais para legitimar o poder do que
para estabelecer o bem e a salvação entre as pessoas. Isto serve,
particularmente para questionar nossos quadros de fé cristã: pode a experiência
que fazemos do divino levar-nos a comportamentos autoritários e repressivos?
Parece que não deveria levar-nos a tais práticas de abusos do poder político e
que, em nome de Deus, implicaram em profundas injustiças humanas dentro e fora
da Igreja.
Ao contrário de que muitos desejam, a história cristã passou
ao mundo, de forma muito intensa e escancarada, a imagem de um Deus injusto e
opressor, ao invés de um Deus que aponta caminhos de experiências mais
místicas, de um Ser superior capaz de vencer as vivas, vagas e indeterminadas
manifestações do mal com tudo quanto a ele associamos.
XII
TEMPLO E CORPO
Se nos reportamos às origens
do cristianismo, podemos lembrar que uma grande polêmica se estabeleceu em
torno da relativização do Templo, feita por Jesus Cristo. O Templo constituía o
símbolo do sagrado. Jesus, ao proclamar a importância do corpo, relegou a
primazia do Templo e, por isto mesmo, acabou atingido na sua vulnerabilidade
corpórea: uma morte humilhante.
O
conceito sacralizado do templo fez com que, em nome de Deus, fosse tramada a
morte de quem mais queria a vida e um projeto humano a favor da vida. O que
mais pesou para a execução de Jesus Cristo foi o sentimento ferido que partiu
de dentro do Templo, lugar considerado como o da moradia de Deus.
Algo
similar a este episódio já se repetiu inúmeras vezes ao longo da história. De
instâncias consideradas especiais da parte de Deus, desrespeitou-se o corpo
humano e, a partir das “luzes” oriundas dos templos, massacraram-se templos
corpóreos.
A
experiência das comunidades cristãs primitivas, que procurou orientar-se no
modo de ser como Jesus lidou com as pessoas, procurou sacralizar o corpo humano,
como espaço das fragilidades humanas, mas também, como lugar eminente da
manifestação de Deus e de irradiação das interpelações de Deus. A dimensão sagrada
do corpo, todavia, não foi suficiente para que dos espaços de templos de grande
aparato arquitetônico fossem profanadores de sagrados templos corpóreos. A
história da Igreja católica ofereceu tristes ilustrações de abusos de poder,
exercidos no interior de Templos e em nome de Deus. Por isto, ainda em nossos
dias, parece ser mais fácil construir uma edificação pomposa do que elevar
algumas milésimas instâncias o respeito e a dignidade aos seres humanos.
XIII
A VIOLÊNCIA HUMANA
Trata-se de um tema extremamente difícil. Dada a sua
amplitude e as variadas formas em que aparecem violências humanas, cabe até
mesmo uma pergunta cabal: é possível dar uma resposta mais adequada do que
aquelas que as ciências e as explicações religiosas forneceram até o momento?
A dificuldade de delimitação nasce da variedade de violências
que se cruzam nas relações humanas. Podem ser físicas como as de bandidos,
assaltantes e policiais; ou mesmo as que ocorrem nas famílias, em grupos,
comunidades e relações internacionais. Mesmo esta variedade de agressões pode
variar entre formas psicológicas, simbólicas e morais, e ainda, podem ser as
que provocam fome, extorsão abusiva, descaso, roubo, homicídio, etc.
Seguidamente nos envolvemos em situações nas quais sentimos
pessoas agredidas vivenciarem medos, traumas, pânicos e outros mecanismos de
perturbação emocional. De modo geral, tendemos a pensar a agressão como
manifestação em que nos sentimos vítimas. No entanto, há também outro lado, o
de que nós que nos interpretamos não agressivos, também enfrentamos ímpetos de
raiva, de ódio, de vingança e de outros descontroles que levam a ameaçar e até
a atentar contra a vida de outras pessoas. Da nossa parte, também decorrem
sadismos que implicam em sentir certa intensidade de prazer quando outros
fracassam ou são agredidos. Ao lado deste traço, temos facilidade de apelar
para punições e castigos, sejam os prescritos em códigos de justiça ou os que
nós mesmos inventamos. Até mesmo em muitas manifestações religiosas um forte
sadismo se expressa quando se espera que Deus execute a tarefa da vingança em
nosso lugar.
Considerando apenas estes dois aspectos, a violência que vem
dos outros e a que resulta da nossa parte, dá para acreditar que possamos ser
não agressivos?
Segundo Darwin, somos agressivos porque herdamos este traço
dos animais. Como eles, também nós seres humanos estaríamos agredindo porque
estamos mergulhados na luta pela sobrevivência e, nesta disputa sempre ocorre
uma relação de fortes e de fracos. Entretanto, não existem animais que cooperam
e que levam vida coletiva? Seria isto apenas um instinto de auto-defesa? Nós,
de fato, não temos o veneno de certas cobras perigosas e nem garras ou dentes
afiados como certos animais. No entanto, somos capazes de potencializar estas
formas através de nossos inventos e de armas de destruição que utilizamos com
toda facilidade. Apesar disso, porque somos agressivos?
a)
Um dos elementos de nossa agressividade está
relacionado aos nossos interesses. Como estes interesses estão sendo re-criados,
estimulados, e justificados, o planeta Terra está longe de oferecer tanto
quanto os seres humanos desejam. Se desejos quase infinitos provocam
desrespeito das regras estabelecidas e aos mecanismos de controle social, seria
isto culpa do Estado que não regula os limites dos interesses? E, se tivesse
tal capacidade, como iria conter as cargas de frustração que este controle
geraria e as conseqüentes formas agressivas resultantes deste controle?
Esta
situação já é suficiente para nos apontar que um governo forte e uma rigorosa
legislação ainda não significam erradicação da violência humana, especialmente
se pensamos a vida nos espaços urbanos porque ali naturalmente vão sendo
gerados grupos marginais e fora do âmbito das leis estabelecidas.
b) Se nos pensamos
totalmente distintos do mundo animal, ou se nos pensamos filhos do mundo
animal, mas dotados da positividade dos traços de cooperação, como explicar
tanta injustiça e agressão entre grupos humanos?
Mesmo que
sustentamos nossa natural predisposição para simpatia, para a compaixão, para o
entendimento ou da racionalidade que deve prevalecer para que possa haver
convivência pacífica, seria possível uma sociedade sem violências?
c) Caso assumamos o ponto de vista do pensamento cristão, que aponta
perdão como caminho de comunhão e de solidariedade e entendimento, quem é que
propiciaria uma possível condição de paz e harmonia: o rigor das autoridades,
ou a submissão á instância divina? A história nos ilustra que muitos argumentos
autoritários, mesmo religiosos, apelaram para os castigos e para as retaliações
divinas sobre os infratores das regras estabelecidas. E quando estas regras já
são caducas, como significam violência, até mesmo da parte de quem, em nome de
Deus, quer implantar a ordem e a paz!
Precisamos
necessariamente reconhecer que toda a história do pensamento cristão nunca
esteve imune de situações de agressão e violência, seja na relação com outras
formas de expressão religiosa ou na relação do interior da própria organização
da Igreja.
Estes três aspectos
permitem formular uma pergunta sobre as raízes mais distantes da agressividade
humana: ela é marca registrada da criação?
Se nos reportamos ao referencial bíblico, aparece ali a noção
de que a criação foi um ato de bondade e que veio a ser depravada pela fraqueza
humana. Ou começou a criação numa situação caótica e que, com a ação redentora
de Jesus Cristo nos redime aos poucos? E os que não estão neste projeto, podem
restaurar-se por meio do amor e da justiça? Uma interpretação possível é a de
que somos agressivos por natureza, mas, que podemos redimir-nos pela graça que
Deus nos oferece. Mas quem não entra nesta estrutura salvadora, teria a
perspectiva de ameaçar com atos agressivos? Ou seria a agressividade, apenas um
fruto da desigualdade social?
Toda a evangelização, toda a boa vontade e todos os atos
empreendidos para diminuir a desigualdade social, ou movidos pela graça de Deus
ou pela iniciativa humana, ainda não deram passos definitivos para erradicar a
agressividade humana. Mesmo que bruxas foram queimadas e tantas outras pessoas
foram condenadas à morte, com vistas a se estabelecer a paz, geralmente
acirraram outras manifestações de violência iguais ou piores.
A apregoada emancipação humana, segundo a sustentação
clássica do Iluminismo também não nos leva a sonhos mais fáceis de suplantação
da agressividade, porque o próprio Iluminismo gerou extraordinárias formas de
violência.
XIV
VIOLÊNCIA COMO CONSTANTE
ANTROPOLÓGICA
Os fantásticos avanços humanos, técnicos, científicos
e iluministas revelam um paralelismo constante de derramamento de muito sangue.
O discurso de que a educação seria capaz de superar
a prática de atos violentos entre os seres humanos, mostra-se decepcionante,
pois, o dinamismo pedagógico nos horizontes do sistema capitalista é gerador de
profundas desigualdades, e que, por sua vez, desperta novos processos de
violência. A educação tem mostrado pouca eficiência na capacidade de regenerar
os seres humanos para características menos violentas.
A violência humana revela-se em muitas dimensões: a)
quanto à natureza – ocorre pouca preocupação para reverter uma rota de
destruição do sistema necessário às condições da vida. O armamentismo, as
grandes guerras e todo o arsenal bélico nos fazem antever outras guerras,
genocídios, tão ou mais cruéis quanto os dos últimos séculos. Mesmo esta
memória não sensibiliza para despertar as mentes humanas para um futuro de
menos violência; b) quanto às relações pessoais - não se consegue vislumbrar um
horizonte auspicioso a partir de arrependimentos das violências praticadas. As
muitas terapias que tentam reorientar as tendências mórbidas para a prática de
violências também não atingem as fontes da violência, pois não conseguem mudar
a cultura; c) quanto à genética – as manchetes das possibilidades de atuação no
código genético para evitar predisposições que levem às condutas desviadas, não
indicam boas soluções porque as violências parecem originar-se muito mais da
cultura do que da genética; d) quanto à cultura – constata-se que sua marca
dominante é da violência; seja na ironia ante o diferente, no ataque verbal e
escrito ou o simbólico de todas as regras e artes. Nelas aparece como uma
constante a violência, que se manifesta, sobretudo, pelo Estado e pelas
organizações jurídicas porque se impõem com verdadeira brutalidade sobre os
membros da sociedade. Basta lembrar somente o horizonte das exclusões e das
negações... Até dos que pretendem controlar as ameaças de violência originam-se
atos violentos. O combate de uma violência automaticamente gera mecanismos de
revide e de outra violência, seja física ou simbólica.
Ao lado dos desejos e das expectativas para uma
convivência de paz e de entendimento vemos que muitos seres humanos se tornam
agressivos precisamente na luta para o alcance destas metas. Muitas regras
estabelecidas e aceitas, sem maior questionamento, também induzem a atos
violentos, até mesmo os sexuais: “se
considerarmos as relação sexual, não poderemos negar sua estrutura básica
‘agressiva’. A sexualidade, com ‘ fato bruto’, mas também as suas
transformações eróticas são inconcebíveis sem um fundamento agressivo de
desejo. Mas este fundamento está sujeito a constantes e profundas mudanças
culturais”.[14]
Como o simples ato de falar já é fonte indiscutível
de violências, a fala dos poderosos também tende a constituir-se em fonte maior
de violência do que a reação dos oprimidos. Muitas situações da vida nos levam
à dolorosa experiência de que as palavras podem matar. Por isto, cabe a
pergunta: podemos eliminar violências humanas sem outras violências?
XV
O MIMETISMO DA VIOLÊNCIA
O desejo que leva as pessoas humanas a querer estabelecer
ordem no meio do caos, também leva a uma forma sutil de disfarce da violência.
Se, por exemplo, tomamos um caso conhecido da Igreja Católica na Idade Média,
que foi o de queimar bruxas e pessoas heréticas na frente das catedrais,
ocorria algo interessante. Ao se queimar uma vítima, cantava-se o hino “Te
Deum”, um hino de louvor a Deus.
A questão importante
para o nosso entendimento é o do porque se queimava alguma pessoa acusada: o
motivo comum era o de que praticava sacrifícios não estabelecidos na ordem
oficial. Não se reparava que o fato de matar aquela pessoa significava outro
sacrifício. Por isso, ao se condenar alguém ao sacrifício, se cometia um novo
sacrifício, mas sem sentimento de culpa por tal ato. Ao contrário, elevava-se
um louvor a Deus, porque se considerava ter colocado ordem no meio do caos.
Curiosamente isto não foi apenas um problema da inquisição
católica. Aconteceu em toda a história humana, aconteceu na colonização da
América, e, se repete nas guerras e nas múltiplas formas de genocídio,
tranqüilamente toleradas em nossos dias. Basta lembrar que os genocídios da
invasão colonial americana eram justificados pelo argumento de que aqueles
povos americanos cometiam sacrifícios humanos. Portanto, também fora da Igreja,
e hoje, particularmente, nos governos civis e em todas as instâncias do poder,
se repetem os mesmos fenômenos de queimação das “bruxas”, isto é, em nome da
ordem, matam-se milhares de pessoas, sem nenhum constrangimento de que tais
atos sejam de sacrifícios humanos até piores do que os da inquisição.
Quando analisamos
notícias que envolvem mortes em tiroteios, tais como as das favelas do Rio de
Janeiro ou de São Paulo, repete-se algo parecido: os valorosos heróis da
polícia ou da pátria eliminaram um “marginal” ou um “elemento ameaçador” à
sociedade... Parece que toda a sociedade consente pacificamente que tal ato foi
necessário, e tampouco o interpreta como um sacrifício humano. Desta forma,
podemos entender que, em muitos outros comportamentos humanos, está escondido
um desejo mimético de violência. Por que mimético?
Mimetismo é o termo
usado para caracterizar a adaptação de certos animais ao meio-ambiente, a tal
ponto que se confundem com ele. Por exemplo, muitos sapinhos, rãs e outros
insetos e animais adquirem a mesma coloração das plantas nas quais vivem, a
ponto de serem confundidos com aquelas plantas. Grande parte dos animais
apresenta traços desta adequação ao meio-ambiente e isto lhes serve de
auto-defesa ou de disfarce para captar outras presas. Entre os seres humanos,
ocorre algo muito parecido nas relações. Sobretudo na violência, refletem-se
estes disfarces.
Já vimos, acima, que até em torno do sagrado ocorrem
violências. Assim, em muitas outras formas de relacionamento humano se
reproduzem violências bem disfarçadas e, por vezes, até justificadas como sendo
atos de amor ou procedimentos estritamente necessários para se manter a ordem diante
das ameaças de confusão e de caos.
Podemos perceber que não é toda a realidade humana que se
encontra envolvida neste mimetismo. Mesmo assim, a perspectiva do mimetismo da
violência representa uma janela aberta que nos permite constatar muitos âmbitos
da vida, envolvidos em atos violentos, mas, disfarçados como necessário
procedimento de estabelecer ordem no meio do caos.
Isto ajuda a entender
tanta violência entre os seres humanos e, especialmente, a partir das
instituições sociais. Em nome de estatutos, ou das regras máximas de um Estado
ou de qualquer outra organização, cometem-se verdadeiras barbaridades e que
contrastam profundamente com os discursos de harmonia, de paz e de serenidade
na convivência. Recuperando uma experiência da linguagem religiosa da Bíblia,
significa o pecado original, ou, esta natural inclinação para fazer outras
pessoas sofrer. Parece que já nascemos com esta predisposição. Sempre que
interpretamos algo como caótico, confuso ou ameaçador, passamos a valer-nos de
formas miméticas de violência, com vistas a estabelecer ordem.
Ao desejar a ordem disfarçamos, no desejo mimético, nossos
mecanismos de agressão e de violência. Por exemplo, se os pais batem nos seus
filhos, não vão dizer-lhes que é por raiva, mas porque os amam e que querem
tirá-los do caos do erro, do risco e do perigo. Portanto, ao lado dos bons
argumentos para muitos atos humanitários e de ação em favor do bem comum,
escondem-se disfarces de violência.
Em certos grupos
sociais tal fenômeno se torna bem explícito quando apelam a instâncias
superiores e se interpretam certas posturas agressivas e violentas, como sendo
interpelações do Espírito Santo, mas que podem estar simplesmente escondendo
desejos miméticos de controle para uma presumida ordem, até em torno dos desejos
mais sagrados.
O livro do profeta
Jeremias, do Primeiro Testamento da Bíblia, ilustra bem este traço. Dirige-se a
Deus para falar-lhe do sofrimento ao qual está submetido, mas expressa profunda
confiança de que Deus se encarregue de proceder à devida e merecedora vingança.
Poderíamos perguntar-nos sobre o porquê de tanto desejo
mimético em nossas relações humanas. Segundo René Girard, o motivo principal
está em focarmos um mesmo objeto. Por exemplo, quando duas pessoas querem um
mesmo objeto, surge a rivalidade e, toda a relação humana que envolve
reciprocidade implica em situações semelhantes, isto é, aceitar e não aceitar,
sondar e não sondar o que uma pessoa está fazendo e, estas situações geram
discordâncias.
Da mesma forma, as
relações entre raças, culturas e povos, produzem ambições distintas em torno de
desejos despertados e, ao se pretender a consecução destes desejos, tende-se a
agir sobre outros de forma violenta, mas, de forma disfarçada em fundamentos de
regras estabelecidas ou, em direitos proclamados. O caso se assemelha a uma
disputa de duas meninas pequenas pela posse da mesma boneca. Se uma é
considerada a dona da boneca, a outra não quer aceitar este direito. Na
disputa, o objeto acaba facilmente destruído. Assim, também numa oposição de
idéias, de argumentos e de defesas ideológicas, encontra-se escondido, de forma
geral, um desejo de posse, de espaços, de cargos ou de objetos. No afã de
apropriação, cria-se oposição ao outro, mas, alega-se causa nobre e
humanitária.
Quando a disputa em torno de um objeto leva à morte, tende-se
à criação de novas regras a fim de que outras pessoas não repitam o que a
vítima fez. Segundo René Girard, todas as instituições humanas decorrem de três
pilares: a) o interdito – estabelecer regras para evitar que outras pessoas
façam o que a vítima fez; b) o rito – fazer o que a vítima fez para salvar-nos;
c) o mito – que procura recordar continuamente estes fatos salvíficos.[15]
O que pode significar a teoria mimética da violência
humana? Em primeiro lugar, nos ajuda a
desmistificar os mecanismos de violência que se encontram estabelecidos em
muitas instâncias da organização humana, sejam as de Igreja, de serviços
chamados de pastorais, de governos, de relações familiares e cotidianas.
Portanto, não se pode pensar que apenas famílias mal estruturadas praticam
violências. Elas não constituem a única fonte desencadeadora dos desejos que
levam a disputa, mas, manifestam como tantos outros níveis da organização
humana, formas violentas nas relações.
Por outro lado, o conhecimento desta realidade humana da
violência disfarçada, nos ajuda cultivar um pouco mais a capacidade lúdica e de
humor, no sentido da sabedoria da concepção bíblica, isto é, entender como em
nossas relações políticas, econômicas e sociais, se reproduzem violências, mas,
que também podem apontar uma perspectiva de salvação. Em outras palavras, eu
posso ser melhor do que a banalidade de muitos mimetismos violentos da lida
normal com outras pessoas. Não preciso entrar no mesmo nível de violência.
XVI
A VIOLÊNCIA DO SAGRADO
Facilmente
constatamos o efeito da dessacralização do mundo e do modo como esta
dessacralização agride o mundo, tido, por muito tempo, como lugar sagrado.
Poderia, em contrapartida, o sagrado também manifestar formas de violência?
Um
importante estudioso francês, René Girard, sustenta que o sagrado também exerce
violência. Para ele, os sacrifícios constituem expressão privilegiada de
violência, ainda que, aparentemente, não exista violência nestes atos. Defende
ele que o sacrifício resulta da substituição de uma violência. Por exemplo, há
pessoas que imolam animais para substituir a violência praticada contra certas
pessoas achegadas. Em outras palavras, acaba-se dando a entender que a
substituição da morte de pessoas pela morte de animais, significa que a vida
destes importa menos. Ademais, não é apenas uma questão envolvendo o corpo
humano, mas há violências e mecanismos de destruição em correntes afetivas.
Ocorrem certos deslocamentos parecidos com o que acontece no meio das galinhas:
quando uma se coloca de vítima, todas as outras deslocam sua agressividade,
agredindo esta vítima.
Segundo Girard, não se suprime e nem se elimina a violência,
mas apenas se consegue acalmá-la quando é desviada ou enganada... Por isso, os
rituais de um sacrifício não constituem uma relação entre os sacrificadores e a
divindade, mas um ato que disfarça uma violência. O sacrificador realmente não
conhece o que está por trás do sacrifício. Há um pressuposto de que Deus esteja
exigindo vítimas e que Ele somente se acalma quando se lhe oferecem vítimas.
Era a questão do deus fenício Molloch, que exigia sacrifícios de seres humanos
e que levava o exército a caçar escravos para matar, a cada dia, algum deles.
De acordo com Girard, os rituais de sacrifício não passariam
de rituais coletivos de transferência (raivas, rivalidades, rancores, etc.).
Seriam projeções sobre as vítimas. Nesta substituição, a vítima passaria a
oferecer proteção aos membros que realizaram o sacrifício e levaria a um
deslocamento da sua violência. Desta forma, um grupo agredido, ameniza sua
agressividade, suas disputas e hostilidades contra outros que o agrediram. As
vítimas podem ser humanas. É o que podemos perceber na relação da polícia com o
bandido. Ao se afirmar que é bandido ou marginal, insinua-se que devia mesmo
ser morto. Do mesmo modo eliminam-se prisioneiros, reis, etc.
Sem o deslocamento, a violência seguiria um curso espontâneo,
gerando vinganças e represálias intermináveis. Bem sabemos o quanto um ato
violento tende a produzir outros atos violentos. Portanto, um ato violento pode
levar a um ato de vingança, ou ao deslocamento do sacrificialismo.
Como enxergamos a lida com as vinganças? É possível constatar
que alguns grupos, bem como certas regiões, têm mais propensão para cometer
vinganças privadas. Outros grupos ou outras regiões aceitam mais e melhor as
regras judiciárias, e se conformam, aos poucos, com os julgamentos das últimas
instâncias. Na verdade, o que ocorre no sistema judiciário? Por exemplo, caso eu roube o dinheiro de uma
pessoa, o que faz o sistema judiciário? Aplicará uma represália,
considerando-se soberano, para impedir que eu insista com apelações sobre a
última palavra dita.
E se ocorrer que o sistema público não descubra meu furto, é
possível que a vítima vá tentar uma vingança privada contra mim. Assim,
acontece, de forma geral, em nossas socializações: a vingança vai criando,
continuamente, novas vítimas. E quando a vingança não é vingada ou não se
aplicam represálias, então se procura um amparo mais amplo para que se cobre
justiça: é a famosa expressão “queremos justiça”, que tantas vezes ouvimos.
Existiria
ainda, segundo Girard, outro jeito de ocultar a vingança: a de apelar para a
religião. Os povos antigos faziam rituais mágicos e sacrifícios. Atualmente, é
mais comum que as pessoas façam uma racionalização. O sacrifício, portanto,
exerce um papel preventivo contra a vingança. Ele impede que se alastrem
indefinidamente os mecanismos de vingança. É por isto que se apela com tanta
intensidade contra os efeitos da vingança, pois tendem a ser piores do que os
da agressão. É como um dependente de álcool, que é induzido a de afirmar que
não vai beber o primeiro gole, ou o obeso que deve dizer para si mesmo que,
naquele dia, vai conter sua voracidade para comer muito. Assim, também, o
sacrifício tenta evitar a vingança.
A vítima usada no sacrifício, geralmente não é a culpada, mas
o imolado sofre para livrar a vingança do outro. Se a vítima voltasse a afetar
o agressor, passaria a gerar nova violência, o que também seria visto como
impureza ritual. Disto decorre a evidente conseqüência: que não se busque a
vingança. Certamente não precisamos ir longe para perceber o quanto um ato de
vingança é contagiante, uma vez que a violência gera violência, toda vez que
ocorre mecanismo de vingança. Em muitas situações este extremo chega a tal
ponto que parece impossível apaziguar os ânimos sem derramamento de sangue. E
quantas vezes já foram provocadas verdadeiras catástrofes, simplesmente porque
se pretendia impedir o avanço da violência.
Girard ainda destaca outro elemento da violência: quando uma
comunidade se vê envolvida por atos violentos ou calamidades que não consegue
controlar, busca impetuosamente um “bode expiatório”. Até em derrota de jogo,
seja de futebol ou de baralho, acontece algo parecido. Descarrega-se no outro a
culpa do fracasso. Outro caso muito em voga: quando acontece um acidente
aéreo... Desloca-se todo o problema para achar a caixa-preta, como se ela, ao
revelar o porquê do acidente, pudesse resolver alguma coisa capaz de anular o
que aconteceu. No sentido geral, parece que a destruição da vítima expiatória
vai livrar as pessoas daquele mal. Para Girard, isto é apenas a descarga da
violência interior. É como um analgésico que acalma rapidamente os ímpetos de
uma dor ou machucadura. A história humana está repleta de ilustrações sobre
enormes amplitudes de violência que atingiram certas comunidades. As vésperas
de nossas eleições políticas constituem bela ilustração desta alteração de
ânimos. Ocorre que os atos de vingança são, muitas vezes, agravados por
fanatismos que cegam os agressores a tal ponto que se tornam incapazes de
enxergar sua própria violência e percebem apenas violência de seus adversários
ou opositores.
Ocorrem casos em que a violência somente cessa quando se
realiza uma vingança massiva e coletiva e que leva o outro grupo a um
conformismo ou a uma adaptação. A violência se encontra presente até mesmo na
cultura, uma vez que ela cria, gesta e se move em torno de violências. A Grécia
antiga mantinha os chamados Fármacos (pharmakos), prisioneiros desgraçados que
eram sacrificados em momentos de perigo. Porém, antes de serem mortos, eram
levados pelas ruas para que pudessem absorver todo tipo de males que ali se
manifestavam. Sua morte, depois, produzia um efeito analgésico ou catártico, e
a cidade se enchia da convicção de que, em troca desta morte, receberia um
misterioso benefício. É o que ainda hoje podemos escutar quando muita gente
fala da morte de certas pessoas não desejadas...
Para Girard, este retorno misterioso do que se espera a
partir do sacrifício de alguém, equivale ao sagrado, que, por sua vez,
apresenta exigências detalhadas e assustadoras em torno do que vai acontecer.
Sob este aspecto, pode-se perceber que a violência vem do fora (do sagrado) e
incide sobre os homens. Vemos também que os azares, as doenças e as mortes
costumam ser atribuídas a Deus ou ao âmbito do sagrado. Tudo isto faz com que a
alma do sagrado seja a violência e, por isso mesmo, a necessidade de se manter
certa distância do sagrado. Não se deve tocá-lo, e se deve ter muito cuidado na
execução dos rituais.
Qual seria, enfim, o serviço prestado pelo sagrado?
Simplesmente o de atrapalhar a violência humana a partir de uma ameaça
transcendente. Esta ameaça somente pode ser acalmada com certos critérios e
quando, numa predisposição de modéstia, se aceitam estes critérios do sagrado.
A função do sagrado ainda nos remete a outra questão: como
seria uma comunidade humana sem as sanções e ameaças do sagrado? A conclusão
deixa uma conotação de que o pensamento religioso representa certo medo diante
do que atos de violência ou de vingança divina possam exercer sobre o fiel, o
piedoso, o temente e bondoso, bem como, sobre um núcleo comunitário ou sobre a
cidade. Em outras palavras, significa que eu não brigo aqui, a fim de evitar o
sofrimento de violências divinas e sobre-humanas. Neste caso, a raiz da
violência se situa no além e só deixa de crescer em nosso meio, graças aos
ritos cultuais.
XVII
A VIOLÊNCIA DO EROTISMO
Vimos acima que, em nome do sagrado, cometem-se atos
violentos. Teria o erotismo o mesmo pano de fundo? Há quem sustenta que também
os atos amorosos geram violências. Se, por exemplo, reparamos como um ato de
relação sexual é apreciado pela sociedade, constatamos que, na maioria dos
casos, estão impregnados de violência. Classificam-se os pressupostos
infratores como sendo estupradores, pedófilos, agressivos, despudorados,
monstros, etc. Muda apenas a interpretação dos fatos. Quando um ato de erotismo
envolve entrega, o referido fato é interpretado como sendo de amor. No entanto,
se não ocorre entrega, então, é assimilado como sendo estupro ou violência
sexual.
O ato erótico costuma violar os seres que nele se envolvem.
Seja por motivações envolvendo o sagrado, ou quaisquer outros, como o da
afeição dos amantes, um ser atinge o outro no mais íntimo do seu ser; e, para
tanto, precisa romper o fechamento que o parceiro ou a parceira lhe
estabelecem. Talvez, seja por isto que se manifesta um ar de vergonha e de
cumplicidade em torno do ato de despir-se. Por que, no geral, as pessoas sentem
tanta vergonha para despir-se diante de outras pessoas estranhas? O erotismo
envolve obscenidade e normalmente a paixão erótica torna-se ato de violência,
porque implica em sofrimentos, tanto físicos, quanto morais.
Poderíamos, então, indagar: o que um ato erótico tem a ver
com sacrifício religioso? G. Bataille fez, em 1957, uma análise desta questão e
sustentou que o sacrifício não implica somente em nudez, mas em morte real e
corporal da vítima.[16]
Um sacrifício, como um ato amoroso, implica em destruição, tanto no sentido
pessoal, quanto corporal. O sacrifício, bem como o ato amoroso, quer a
comunhão, o contato absoluto, o transcendente.
Podemos, no entanto,
ponderar a partir da teoria de Tomas Kuhn, que sustenta o princípio da
contradição. Transpondo-o para o ato amoroso ou de comunhão com o divino, tudo
o que atrai, também repele. A simples conseqüência de um ato sexual, movido por
intensa atração, caso não houvesse repulsa, acabaria em morte dos envolvidos.
Basta reparar que quantia relativamente alta de uniões amorosas acaba em ódios
profundos e até em mortes.
Existe nesta relação
um duplo aspecto: de um lado, o efeito da proibição, seja institucional ou
moral; e de outro lado, o ato sexual rompe uma tendência de “enclausuramento”
que leva a pessoa a refugiar-se em si mesma. Para a experiência de quem
interpreta o ato sexual como agressivo, há uma força transcendente que se
impõe, seja o mundo das leis e das proibições, ou das restrições religiosas,
que acabam criando um mundo de coação. Por isto funciona um processo
contraditório que é o da transgressão das regras ou proibições estabelecidas.
As transgressões são,
na verdade, formas de suspensão das proibições, sem, todavia anulá-las. Talvez
por isto que na Bíblia, desde os seus primórdios já foram estabelecidos dois
mandamentos: não matar e não fornicar, (ou estabelecer relações sexuais fora do
casamento).
G. Bataille fez sua análise partindo de uma realidade
contraditória de todo ser humano: é incompleto e quer encher-se de completude.
Constatamo-nos incompletos, mas obsessivos pela completude, seja com outra
pessoa, que identificamos como um “TU”, ou o totalmente outro e absoluto, que
denominamos Deus.
Para o referido autor,
o erotismo exerce esta mesma força propulsora para a completude. Ainda que não
seja pensado na perspectiva moral, o erotismo visa atingir a mesma completude.
Tal contradição de incompletude diante do desejo profundo de completude é que
ocorre na fusão sexual. Mesmo como relação meramente carnal, envolve uma
atitude essencialmente religiosa de transcendência. É por isto que o erotismo
sagrado do ocidente é uma busca do amor de Deus.
A morte é a violência máxima porque tira a incompletude do
nosso viver e remete para além desta incompletude. Deste modo, quando ocorre
uma morte, quer-se saber da pessoa responsável pelo ocorrido e o cadáver é
apenas a prova da violência. Assim também, ao se enterrar o corpo, os
familiares e amigos querem preservar-se do efeito desta violência, isto é, não
querem ser atingidos da mesma forma.
Para Bataille esta é a nossa profunda contradição, pois nos
encontramos amplamente controlados por proibições (o que é uma violência), mas
sentimos um ímpeto da mesma intensidade para rompê-las. O mesmo tipo de
agressão de guerra, de um homicídio ou de outras formas de violência, ocorre
também na relação sexual. O sexo, como a morte, provoca horror e fascínio por
algo que possa regenerar. Situa-se no quadro acima mencionado de Rudolf Otto,
ao descrever o “numinoso” (experiência do sagrado), como tremendum fascinans
(que atrai e que ao mesmo tempo apavora).
Segundo Bataille, não é possível fazer a passagem da
incompletude para a completude desejada, sem a mediação da violência. Um ato
erótico, tal como a morte, representa um ato violento que é movido pelo desejo
de completar a incompletude, ainda que propulsionada por um profundo ato de
amor.
A violência do
erotismo estaria num nível metafísico, porque o erotismo se move para atingir o
mais íntimo do ser humano. Portanto, por trás da eroticidade está um processo
movido pelo desejo de dissolução da incompletude na pessoa.
Assim, o feminino
dissolve o masculino e o masculino dissolve o feminino. A eroticidade visa destruir
as estruturas fechadas de quem quer se proteger. Por isso, implica no ato de
despir-se. A nudez do fechado da incompletude para buscar a completude. Dali
também resulta que o termo “obsceno” implica na violência da raiz da vida
amorosa, porque leva os corpos a abrir-se para a completude através de atos que
costumamos chamar de obscenos.
Estes atos, na
verdade, perturbam os corpos envolvidos, mesmo que se manifeste num mero
erotismo de coração ou de afeição dos amantes, porque introduzem medos de desordem
nas promessas de felicidade que haviam sido apontadas como sinal de completude
e, por esta razão, geram sofrimento. Se a relação sexual realmente propiciasse
a completude desejada, ela implicaria em morte, conseqüência evidente de uma
permanência prolongada da fusão amorosa.
A dedução lógica destas ponderações de Bataille é a de a que
o ato amoroso sempre implica em violência, porque, violando o desejo de
fechamento individual pressupõe na abertura à outra pessoa, a expectativa de
completude do seu ser. É por esta razão que Bataille viu na ação erótica uma
relação com o sacrifício religioso. Num sacrifício não ocorre apenas um
despir-se, mas a morte real da vítima. E os assistentes deste procedimento
pressupõem captar, através dela, a dimensão do sagrado.
Esta ótica de Bataille pode despertar-nos uma ponderação: se
as prescrições proibitivas geram transgressões, como fica o mandamento do não
matar e não fornicar? Por outro lado, é a sexualidade humana mesmo uma
realidade que sempre vai frustrar porque nunca leva à completude desejada? E,
se levasse à completude, levaria necessariamente à morte?
Para nossa capacidade de síntese, é importante considerar a
sexualidade não apenas como fonte de fraqueza e de pecado, mas tampouco pode
ficar restrita qualquer banal passatempo. A história revelou exageros de tabus
e de condenações sobre o sexo. Certamente não significa que, hoje, sem os
tabus, se possa fazer tudo quanto é imaginável neste assunto. Como criaturas
sexuadas, envolvemos sexualidade em todas as nossas relações. Mesmo vivendo num
tempo em que se questionam conceitos sobre identidades sexuais, sabemos que a
sexualidade envolve tanto a nossa personalidade, quanto nossas experiências de
Deus.
Em nossos dias, está manifesta uma crise entre o exercício da
sexualidade e a prática da sexualidade, que, por longo tempo, foi afetada por
muitas normas proibitivas. Entretanto, como a sexualidade é uma dimensão básica
da vida, já nos damos conta de que a sexualidade é muito mais ampla do que
relações genitais. A polêmica se estabelece, sobretudo, entre a normatividade
da Igreja Católica sobre o comportamento sexual (como, quando e para que fim)
e, por outro lado, uma intensa estimulação de genitalidade, como mercado de
consumo e apontado como o melhor caminho do prazer e da dissolução de todos os
males.
Evidentemente, ocorre uma defasagem e certo desconforto entre
o que a Igreja Católica e o que as Ciências Humanas sustentam sobre a vida
sexual. Muitas pessoas de fato herdaram regras morais extremamente rígidas da
tradição católica, a tal ponto que, sobre este assunto, tudo é grave.
Ainda que levemos em conta um pouco menos o peso moral da
herança histórica, não podemos deixar de observar que muitíssimas relações
sexuais humanas são altamente sintomáticas de falta de amor, pois
instrumentalizam outras pessoas e as fazem sofrer por meros interesses
egoístas. Na perspectiva cristã emerge a noção de que não se pode separar sexo
de amor, de ternura e de afeto. Nem sempre a centralidade do sexo na vida está
sendo expressão de amor. Há, de fato, uma massiva estimulação sexual e até
mesmo de auto-erotismo que banaliza e que coisifica outros seres humanos.
XIII
O SACRIFICIALISMO
Sabemos que na história antiga ocorreram formas muito
variadas de práticas sacrificiais. Os fundamentos bíblicos, ao tratarem do
primeiro grande líder Abraão, revelam que nele aconteceu uma grande mudança no
modo de praticar sacrifícios. Segundo o costume da sua região e da sua época,
um casal, ao ter o primeiro filho, o sacrificava, na expectativa de que tal
procedimento aplacaria as raivas de Deus e Ele, satisfeito, passaria a
conceder-lhes, então, muitos outros filhos. Abraão rompeu a tradição ao
substituir seu primeiro filho por um cordeiro. Escolheu um animal para servir
de vítima no lugar de seu filho. De Abraão para frente, tornar-se-ia habitual o
procedimento de vítimas sacrificadas (animais) para relacionar-se com Deus.
Ainda que o sacrifício de touros e de outros animais tenha
chegado ao tempo recente de Jesus Cristo, isto ainda não significa que
desapareceu o sacrificialismo. Em nossos dias, persistem muitas lógicas
sacrificiais, produtoras de muitas vítimas, não apenas de animais, mas de
pessoas humanas. São vítimas que morrem em decorrência de guerras, ditaduras,
doutrinas de segurança nacional e tantas outras organizações sociais e
governamentais que deterioram a qualidade da vida de grandes parcelas de seres
humanos. Um sistema de vida, quando se revela injusto e sacrificial, significa
morte de seres humanos, todos os dias. Da nossa história brasileira recente, de
quinhentos e poucos anos, resultou uma triste constatação: as maiores matanças
acabaram sendo declaradas como guerras justas e como meio de supervalorização
de regras institucionais.
Das raízes do cristianismo, sabemos que Jesus de Nazaré, ao
apresentar à condição humana uma proposta alternativa ao sacrificialismo, tanto
de animais quanto de seres humanos, fez com que caísse vítima de sacrifício só
porque apresentou a lei do amor como projeto de contrapartida dos sacrifícios...
Jesus deixou um indicativo importante do ponto de vista antropológico: declarou
a radical sacralidade do ser humano.
Franz Hinkelammert[17]
faz uma importante e necessária distinção entre “auto-sacrifício” e “dom de
si”. Auto-sacrificio significa sacrificar-se ou aceitar ser sacrificado. Na
história humana aparecem muitos personagens que aceitaram ser sacrificados. Um
caso bem ilustrativo é o do mito grego de Ifigênia. Seu pai Agamenon queria
invadir Tróia e deixou o exército em prontidão para encaminhar os ataques, mas
como não tinha vento para a partida dos navios, mandou os videntes realizassem
uma consulta junto aos deuses para ver o porquê deste fato. Foram dizer ao rei
que alguns deuses estavam chateados com ele por uma série de razões e somente
liberariam a soltura dos ventos se o rei sacrificasse sua filha que estava
prestes a casar-se. Mesmo que a mãe relutasse contra o sacrifício da filha,
esta aceitou ser sacrificada e, quando foi consumado o sacrifício, os ventos se
tornaram favoráveis para o deslocamento dos navios de guerra.
Sócrates, da filosofia grega também serve de ilustração.
Condenado á morte porque estaria corrompendo os jovens, ao orientá-los para que
pensassem em outra coisa do que apenas tornar-se soldados para morrer
estupidamente nas guerras. Em razão disto, Sócrates foi convidado a beber uma
dose da seiva venenosa de uma planta chamada Cicuta. Ele tomou e morreu. Na
Bíblia ocorre um caso parecido em Juízes, 11,36: a filha de Jefté aceita ser sacrificada...
Assim, também na Idade Média desenvolveu-se uma interpretação da morte de Jesus
Cristo. Como Deus queria que ele morresse pelos pecados humanos, ele aceitou
pacificamente ser sacrificado. Na verdade, pode-se interpretar a morte de Jesus
numa perspectiva muito diferente e mais significativa: foi como “dom de si” que
o levou á morte, isto é, Ele acabou sendo crucificado por ter sido
profundamente coerente com um projeto de vida, e que, na linguagem religiosa,
chamamos Projeto do Reino. O que o tornou agradável a Deus não foi uma submissa
de aceitação da morte, mas a coerência do que o levou a esta morte.
Hinkelammert ainda faz outra observação significativa que é a
de distinguir anti-sacrifício de não sacrifício. Podemos envolver-nos em lutas
anti-sacrificiais como o mundo moderno tanto apregoa, mas em nome desta defesa,
continuar sacrificando milhões de seres humanos. Nossa inquietação maior
deveria ser a da não sacrificialidade, ou seja, ir além dos sacrifícios a fim
de que pessoas humanas deixem de ser sacrificadas. Podemos ver isto na história
recente da América, onde povos foram dizimados porque praticavam sacrifícios
deferentes dos habituais da cultura européia e tal anti-sacrificialismo não foi
suficiente para levar os colonizadores a não matar estes povos. Algo parecido ocorre
ainda hoje em relação às criticas que se fazem contra a inquisição da Igreja
Católica medieval. Há uma reação contrária àqueles sacrifícios e, no entanto,
mata-se em sacrifício muito mais e de forma muito mais cruel. Isto indica que a
preocupação maior deveria mesmo ser em torno do não-sacrificialismo.
XIX
A VIOLÊNCIA DA RELIGIÃO
Quanto
ao fato de constatar religiões envolvidas em manifestações hostis e de
violência variada, não restam dúvidas. A questão de interesse, todavia é a de
saber se a religião é violenta por natureza ou se são pessoas que manipulam a
religião para fins violentos.
A
existência das variadas religiões, grandes e pequenas, não conseguiu, até hoje,
eliminar a violência da condição humana. Isto ainda não significa que a
violência seja elemento constitutivo da religião.
Mesmo
que a maioria das guerras, senão todas, t4enham nas raízes motivações
religiosas ou interesses de grupos religiosos, a religião possui um enorme
potencial de elementos para diminuir, restringir e superar as violências. Muito
disso depende de quem está na liderança de agremiações religiosas. O
cristianismo ostenta um belo exemplo, pois, das suas origens até o século IV
não conciliava religião com guerra. Infelizmente, poucas correntes religiosas
cristãs mantiveram este princípio.
Por
que a religião acaba, então, envolvida em violências?
Em
primeiro lugar, os seres humanos têm a capacidade de cultivar, em nome da
religião, violências, quer por tendências fanáticas, fundamentalistas ou
inovadoras. Nesta perspectiva uma religião pode incrementar e estimular o
desencadeamento de guerras ou atrocidades. Mais do que isto, convém lembrar que
a religião também é afetada pela estrutura da organização humana e que se
revela altamente violenta. Muitas leis humanas levam a violências porque são
injustas, outras, porque são coercitivas, repressoras e aterrorizadoras.
Significa, portanto, que a causa das violências está além das religiões e, pelo
menos em nosso contexto cultural dependem muito mais do sistema capitalista que
se mundializa do que por deficiência congênita da religião.
O
sistema capitalista é gerador de um duplo modo de violência: pela repressão e
por levar indiretamente à morte grande parte do gênero humano pela pobreza que
causa, matando, aos poucos e de forma quase silenciosa.
Ao
lidar com as pessoas nos moldes capitalistas, a religião pode solidificar
fundamentalismos políticos e econômicos que ajudam a massacrar outros seres
humanos. Este risco aumenta na medida em que a religião se presta para manipular
e sustentar procedimentos injustos.
Mesmo
que a orientação capitalista não se oriente por valores religiosos, pode contar
com a ajuda de aliados provenientes de grupos religiosos e melhor justificar
barbáries em nome de Deus e da paz. A religião se presta, pois para uma
sustentação ideológica da violência.
A
religião tampouco causa o fundamentalismo político e econômico do sistema
capitalista, mas pode prestar-se muito bem para esta justificação.
Em
segundo lugar, a religião, ao lado das demais buscas humanas contra a
violência, precisa vencer a adoração do ídolo da riqueza que a torna conivente
nos mecanismos de violência que decorrem das buscas de riqueza.
Por
isto, ao desejar associar-se aos movimentos da não violência, a religião
precisa lidar com os grilhões causadores da violência. Para John Sobrino, “se isto não for feito, é inútil, vão e
hipócrita criticar a violência que sobrevirá depois”.[18] Tal
ação não precisa necessariamente ser bélica e terrorista, mas requer que se
caracterize por uma postura profética, ideológica, crítica e construtiva.
Como
não se vislumbram indicativos categóricos para eliminar a violência, cabe-nos
ajudar na humanização da violência, isto é, minimizar os efeitos da violência e
ampliar as condições de bem-estar das pessoas que nos envolvem. Do contrário,
enquanto nos envolvemos na ideologia da riqueza, impreterivelmente ajudamos a
gerar vítimas de violência.
EPÍLOGO
Longe de exaurir toda a riqueza antropológica que a
Bíblia e a teologia cristã apresentam para a Antropologia Religiosa, destacamos
alguns elementos centrais de valores humanos, não apenas pensados, mas
particularmente sentidos por povos que estiveram à margem dos grandes poderes
hegemônicos mundiais. Toda esta riqueza, que também se constitui numa aventura
e fragilidade de experiências de fé com um Deus amoroso e dialogante, todavia,
nos abre a sensibilidade para o vasto campo das hierofanias e os modos
histórico-culturais em que tais experiências do divino ou do “totalmente outro”
foram sentidas. Disto decorre uma questão muito séria para a Religião: como
acolher os dados de uma ciência especulativa como a Antropologia e como
oferecer os dados da Revelação divina, devidamente contextualizados para
momentos históricos, com peculiaridades próprias de linguagem e de experiência
do sagrado e do profano de cada época?
Na Religião ocorre um evidente risco de se exercer
uma violência em nome do sagrado, quando se quer sustentar uma linguagem hierofânica
para toda a multiplicidade de diferenças culturais. Ao se prender
excessivamente a certas epistemologias ou tradições filosóficas interesseiras e,
ao declará-las perenes, pode distanciar-se profundamente do que mais interessa
aos seres humanos que é a plenitude da sua existência. Em outras palavras, a Religião
pode transformar-se numa grande fonte colonizadora de mentes e de intelectos a
partir de preceitos espirituais que facilmente fogem dos mais profundos anseios
humanos.
A Antropologia, por sua vez, ao lidar com dados
revelados e não manipuláveis para comprovações científicas, pode, também,
restringir o profundo senso religioso da humanidade a meras manifestações
culturais, criadas e divulgadas a partir de ceras pretensões de quadros
sociais.
Além destes aspectos, salientamos no texto uma
estranha polarização que se estabelece entre sagrado e profano, sagrado e
divino, caos e cosmos, simbólico e diabólico, ícones e imagens, demonização e
salvação que, de fato, nos situa num estranho quadro de auto-imagem ante as
violências, mimetizadas ou claramente manifestas, que mais tendem a matar e a
excluir do que a salvar. Uma evidência da nossa pequena abordagem merecedora de
mais dados de entendimento é esta da desafiadora questão do como apresentar um
projeto de salvação e de esperanças para o futuro da humanidade, que não implique
em colonização, seja intelectual, espiritual ou cultural ou, seja de mortes e
de satanização das diferenças. Sentimos, na verdade, que a maior ameaça de
eliminação da vida humana no planeta Terra depende muito mais dos conceitos de
sagrado e de religioso do que dos recursos das armas letais.
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In: CONCILIUM/272 – 1997/4, p. 144 – 154.
[1] ROSS,
Susan. Maria: humana, feminina, divina? In:
CONCILIUM, 327- 2008/4, p. 29.
[2] Evidentemente,
outras religiões não cristãs também apresentam riquíssimos referenciais religiosos
e teológicos. Nesta abordagem, porém, limitamo-nos ao quadro religioso cristão.
[3] O fundamento da Teologia na Revelação não
significa unidade na interpretação teológica. Basta comparar alguns teólogos
como Rahner, Congar, Metz, Chenu, Barth, Tillich e outros. A leitura da
Revelação a partir de distintos lugares, sejam culturais ou geográficos,
implica em diversificadas conclusões.
[4] Basta lembrar a dificuldade para entender uma
língua diferente dentre as inúmeras que existem em nossos dias!
[6] No livro O sagrado e o Profano, p. 21.
[7] No Artigo Religião,
Crises e Transformações. In: VIDA PASTORAL, maio-junho de 2009, Ano 50, no.
266, p. 21.
[8] Idem, ibidem, p. 23.
[9] BOFF, Leonardo. O despertar da Águia – o dia-bólico e o sim-bólico na construção da
realidade, p. 167.
[10] ELIADE,
Mircea. O sagrado e o Profano – a essência das religiões. São Paulo:
Martins Fontes, 1992, p. 28.
[11] Segundo Herman HÄRING em CONCILIUM/274 –
1998/1, p.34.
[12] Idem, p. 34-35.
[13] Idem, ibidem, p. 53.
[14] WILS, J. P. A violência como constante antropológica. In: CONCILIUM/272 –
1997/4, p. 148.
[15] Em René Girard com teólogos da libertação,
p. 53.
[16] - De acordo com Luis Maldonado em La
violência de lo Sagrado – crueldad versus oblatividad o el ritual del
sacrificio, Salamanca: Ed. Sigueme, 1974, p. 159.
[17] No livro René Girard com teólogos da
libertação, p. 36.
[18] SOBRINO, John. A redenção da violência. In: CONCILIUM/272 – 1997/4, p. 65.
Esta parte do estudo na opinião, foi de muito valor, pois aprendi muito e vou levar para o meu crescimento educacional e pedagógico. É muita informação para aqueles querem aprender.
ResponderExcluirEsta parte que li na minha opinião foi de um valor fundamental, prendi e vou levar como experiência para meus estudos.
ResponderExcluirEsta parte que li na minha opinião foi de um valor fundamental, prendi e vou levar como experiência para meus estudos.
ResponderExcluirEsta parte que li na minha opinião foi de um valor fundamental, prendi e vou levar como experiência para meus estudos.
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