quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Brincar com a vida



            O título desperta de imediato, duas possíveis intelecções comuns e naturalmente evidentes: que não se pode brincar com a vida, pois deve ser levada a sério, e que, quem brinca se envolve com algo específico da fase infantil, e, portanto, inadequado para a vida adulta. Em outras palavras, adulto precisa ser sisudo, preocupado e determinado.
            Ainda quando o ato de brincar é pensado positivamente, tende a ser relativizado ao estágio da infância ou à prática de atividades lúdicas e esportivas. Neste perfil positivo também se sobressaem pelo menos três entendimentos muito distintos:
a)      Brincar com os outros, que geralmente envolve chacota e alguém do grupo é transformado em “bode expiatório” para o deleite e a gozação dos demais. Até mesmo as piadas e anedotas tendem ao uso da exploração de sutis formas discriminadoras contra as vítimas dos grupos sociais;
b)      Outra situação é a de que o presumido jogo de diversão, passatempo ou entretenimento (jogos, torneios, campeonatos, corridas, olimpíadas...), na verdade, constitui guerra de disputas acirradas em que se precisa dominar e subjugar o adversário. Para isso vale tudo, desde torcida organizada, apelação à força bruta e até aos procedimentos altamente desleais, ofensivos e, acima de tudo, sorrateiramente discriminatórios e antiéticos.
c)      Entende-se, ainda, que o ato de brincar constitui algo precípuo da vida dos filhos e, por isso, os pais e professores são orientados de múltiplas formas sobre o modo de proceder para uma adequada orientação.

No vasto repertório relativo ao ato de brincar são também amplíssimas as orientações técnicas, as formas sugeridas, os agentes indicados, os modos insinuados, as categorias estabelecidas, os referenciais, os conselhos e as orientações sobre como seguir as regras. Tampouco faltam orientações legislativas sobre o direito de brincar, sobre os lugares para brincar, sobre os tipos de brinquedo mais indicados, sobre os lugares e os espaços mais eficazes para brincar, sobre projetos e artes de brincar, e sobre agentes de ocupação e brinquedo nas festas e eventos os mais variados.
À parte destas considerações, encontramos também vasta literatura sobre entendimentos muito distintos relativos ao ato de brincar. Livros, palestras, sites de Internet, disketes e DVDs querem ensinar como brincar e como entreter as crianças da melhor e mais saudável forma. Tudo isso não é certamente material para ser jogado fora. Entretanto, cabe uma pergunta: porque tanta regra e parafernália para brincar normalmente só para crianças?
Parece que pela linguagem freudiana tudo isso estaria envolvendo uma evasão da realidade, próprio da idade infantil, a fim de dar fluxo à fantasia como uma das manifestações de desejo de sobrevivência. No entanto parece, igualmente, que o ato de brincar envolve atividades mais vitais e mais amplas do que a fantasia representa para o ser humano: no brincar a criança explora o ambiente, adquire informações, desenvolve habilidades de psico-motricidade, mas, ao lado destas dimensões cognitivas e de aprendizagem, cabe observar que é no ato de brincar que uma criança mais se integra ao meio-ambiente familiar e social. Humberto Maturana e Gerda Werden Zöller em “Amar e Brincar – os fundamentos esquecidos do humano” sustentam que o brincar é essencial para a sobrevivência de uma criança. Se a mãe e o entorno não propiciam certo limiar de capacidade no brincar com a criança, ela simplesmente não sobrevive.
A criança, ao brincar, descobre a plenitude do seu existir. Brincar constitui, pois, um estado interior que gera experiências subjetivas. É dali que decorre um novo significado para o ato de brincar dos adultos.
 Se atividades lúdicas são consideradas saudáveis, embora nem sempre para todos os envolvidos, porque se brinca descarregando tensões, raivas, mágoas e outros sentimentos sádicos sobre vítimas expiatórias que passam a ser gozados, muito mais saudáveis se tornam quando nos livram dos bloqueios e das cargas de tensão através da catarse.
 A catarse que leva a extravasar nosso mundo interior e subjetivo, por onde circulam em alta rotação muitos medos, ajuda a clarear e definir melhor a própria identidade pessoal. Trata-se, pois, de algo muito significativo, porque se deixa de encobrir o mundo interior para destacar o que se considera importante na perseguição de outras pessoas, através de humor, de sátira ou de gozação.
O ato de colocar outra pessoa na berlinda para gerar risos e situações hilárias e de chacota é um brincar que normalmente distancia e rompe, uma vez que a vítima do grupo, ou seu “bode expiatório” se sente ridicularizado e diminuído seja pelo apelido ou pela forma de explorar um cacoete, um traço físico ou outro modo genuíno de ser. Para ele, tal procedimento não diverte. Pode-se observar que toda a gozação que acontece à custa da miséria alheia, mesmo que seja divertida, perde a dimensão da ludicidade.
Por outro lado, brincar a partir de uma dimensão mais interna e subjetiva não significa ludicidade narcizista, no sentido de auto-encantamento, pois a história antiga conta que Narcizo ao se perceber espelhado nas águas paradas de um lago, ficou tão encantado consigo que resolveu casar-se consigo mesmo.
Haveria alguma outra razão para maior capacidade de brincar na vida dos adultos?
Primeiramente os adultos revelam algo estranho em relação à fase infantil. Foram gradualmente induzidos a se tornarem sérios e, na medida em que os anos de escolarização foram aumentando, foi na mesma proporção diminuindo a capacidade de brincar como estado de espírito e de consciência.
Marcas de uma antiga ancestralidade indo-européia acabaram desenvolvendo um traço cultural muito peculiar e forte que consiste numa estruturação tríplice: dominar, controlar e apropriar-se. Desta herança cultural européia decorreram muitas características comuns dos ambientes socializantes: primeira, a de estabelecer hierarquias e divisas diante dos que são considerados inimigos e que devem ser perseguidos, distanciados, ou então, incorporados ou eliminados.
 Desta peculiaridade temos um triste retrospecto de guerras, de disputas por áreas ou bens simbólicos e materiais, e, um processo altamente predatório, mesmo movido por lutas de independência e de autonomia. Disto sempre sobra profunda amargura para diversidades biológicas e culturais. Quantos grupos humanos são forçados a assimilar a cultura dominante e a renunciar às suas riquezas vindas de longa ancestralidade?
O resultado deste modo hegemônico de socialização e de inserção das pessoas nos ambientes culturais direcionados para determinados tipos de emoção, - que passam a ser assimilados e imitados, - deixa-nos diante de tanto desperdício, tanta destruição quer da natureza ou de lares e até mesmo de ambientes culturais. Vemos muitos processos de exclusão e de injustiça. Por fim, este modo de nos emocionar específico de conquistadores, valoriza eminentemente a emoção do raciocinar para controlar. Com isso, o mundo subjetivo se torna um vulcão prestes a eclodir a qualquer instante e por pouca coisa.
Possivelmente uma das melhores perspectivas, tanto para a vida pessoal quanto coletiva, seja a de recuperar novamente um lado perdido na arqueologia da história humana, e também do itinerário pessoal da infância de cada pessoa: a de brincar com os limites, com as desgraças, as perdas e os fracassos, e por isso mesmo, encontrar prazer em colaborar, em estar presente na vida dos outros de formas simples, leves e menos hierarquizadas.
Então, com certeza, poderá voltar o dinamismo de uma força dinâmica dos longos anos do início da nossa vida, capaz de reativar a capacidade de brincar com o próprio passado, incluindo também seus fiascos, deslizes, quedas e tantas situações silenciadas, disfarçadas e reprimidas que atrapalham a psique e a auto-imagem. Brincar com todas as marcas negativas do passado ajudará a sentir menos peso do inconsciente e de sub-consciente no dia-a-dia da vida e a viver um estado de espírito mais hilário e descomplicado.




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