Clotilde
emigrou da região norte do Estado do Rio Grande do Sul para a capital, Porto
Alegre. Na bagagem dos poucos pertences veio também a marca cultural da
influência dos índios kaigangues que não usam a consoante “l” e a substituem
por “r”. Desta forma, dona Clotilde costumava apresentar-se pelo nome de
“Crotirde” Souza. Assim também falava em “probrema” e tantos outros termos com
“r” gutural acentuado, o que tornava sua fala muito peculiar e interessante.
Dona Clotilde era uma mulher franzina, sempre bem arrumada, mas, seu
olhar parecia transluzir algo mais melancólico e que apontava para algum
sofrimento mais velado e que ela não conseguia esconder-se totalmente através
da dedicação e das dádivas que levava às pessoas. Sempre arranjava algum motivo
para chegar à casa de alguém, nem que fosse para lhes dar dois a três chuchus
colhidos antes do tempo de maturação. Partilhava um pouco de tudo. Tratava-se
de uma vovó que visitava muito as pessoas da vila onde residia. Também o “Zé”,
seu marido era muito social e amável nas conversas. Parecia uma dupla
extremamente feliz. Eles estavam economicamente estáveis e seguros, com os
filhos todos casados e ajeitando sua vida.
Clotilde e
“Zé” eram muito estimados porque estavam constituídos em referência de muita
alegria nas conversas. Do olhar de dona Clotilde, todavia, emergia um ar mais
tristonho e sofrido. Alguém poderia logo inquirir a respeito desta contradição,
pois, se ela era uma mulher alegre, animada e conversadeira sobre tudo quanto
era assunto, não poderia expressar um olhar triste. Ela, no entanto, sofria com
uma obsessão: não queria vivenciar a fraqueza de sentir fantasias sexuais.
Ninguém fez pesquisa arqueológica para saber se tal sintoma era fruto de uma
educação religiosa puritana e escrupulosa ou se era problema afetivo que a
levou a desenvolver, desde os primórdios da sua existência, alguns sentimentos
de culpa, ou se constituía remorso por excessivas fantasias libidinosas.
O sofrimento
de dona Clotilde, de fato, vinha das profundezas de um sentimento mal
orientado. Aprendeu ou assimilou que era importante rezar o terço a fim evadir-se
das tentações que envolvessem atrações masculinas. Sem dar-se conta, ao pretender
rezar para não sentir tentações, já mexia no baú do inconsciente e de lá
fervilhavam muitas e variadas fantasias. Sua conclusão lógica era a de que não
rezava com suficiente piedade e concentração, ou que, precisamente nesta hora,
o capeta estivesse se aproveitando da ocasião para seduzi-la para o seu lado,
com muitas fantasias nada recomendáveis para uma vovozinha de bem com a vida.
Como os
resultados se mostrassem literalmente ineficientes para vencer as tentações
demoníacas, a opção de Clotilde foi a de intensificar as rezas de terço. Sem
dar-se conta de que ao simples desejo de rezar para não ter tentações, elas já
começavam a fluir e a vagar soltamente pelas vastas planuras do seu psiquismo.
O processo chegou a tal ponto que Clotilde entrou num processo de culpa
profunda diante de Deus. Na medida em que mais se empenhava para não ter
tentações, mais elas lhe apareciam na mente. Isso, diante de Deus, significava
um fracasso e uma evidência de que Ele já devia ter desistido de apostar na
salvação do Clotilde e já a devia ter descontado entre as possíveis ovelhas do
seu rebanho. Este sentimento de já estar condenada criava um tormento subjetivo
na vida de Clotilde, de tal forma que, mesmo disfarçando alegria e bem-estar
com tudo na vida, ostentava um olhar soturno.
O auge da
culpa apareceu num momento de oração, quando em meio ao exercício do mantra da
repetição das ave-marias, ao invés de entrar num nível alfa de consciência para
encher-se de forças superiores às tentações, visualizou Jesus e sua mãe em atos
e gestos obscenos. O fato despertou uma culpa profunda e certamente nociva como
um câncer de cérebro, pois fez desmoronar toda a alegria e a vontade de
encontrar-se com as pessoas. Como não partilhasse isso nem para seu esposo, foi
se fechando em seu quarto e não queria mais conversar com ninguém. No entanto,
como visitava costumeiramente muitas famílias, e era amiga do padre, este, ao
sentir sua ausência, foi até sua casa para saber o que estava acontecendo com
dona Clotilde.
Com muita
dificuldade e relutância, dona Clotilde conseguiu, enfim exteriorizar a razão
do seu despautério. Em meio a um choro compulsivo, regado com lágrimas que não
conseguiam transportar para fora todo o sentimento de culpa, dona Clotilde
conseguiu, pelo menos encontrar espaço para contar o sofrimento, sem sentir-se
ainda mais condenada. O padre lhe mostrou, a partir dos estudos de Karl Yung,
de que este assunto se situava no campo psíquico das “sombras”, termo criado
pelo afamado psicólogo e usado para expressar que não existe total controle
sobre o campo das fantasias. Elas aparecem independentemente da religião e da
boa vontade, mas, quando se quer não tê-las, então elas são despertas no
psiquismo com carga ainda mais intensa. Em outras palavras, tudo o que se quer
negar no psiquismo, acaba enchendo ainda mais o próprio psiquismo. Portanto, o
campo das fantasias não estaria situado no campo moral da culpa e do pecado,
mas, das “sombras”, sobre as quais não se possui controle absoluto. Restaria,
por conseguinte, admitir que em qualquer momento do dia e da noite, acordado ou
sonhando, rezando ou fazendo gracejos, qualquer pessoa normal vive a
contingência de sentir-se focada em fantasias sexuais. Deus nos fez ser assim.
O ato de aceitar estas “sombras” faz com que, elas rapidamente se dispersam em
razão de outros focos de atenção, e, como as nuvens, se volatilizam e se evadem
para deixar espaço para outras emoções. Por isso, se lhe aparecessem quaisquer
imagens, mesmo na hora da oração, o fundamental seria aceitá-las e rezar para
Deus que está sentindo exatamente isso como manifestação do seu psiquismo.
Poucos dias
depois, dona Clotilde voltou ao seu itinerário de visitas e, com uma diferença
no olhar: o cultivo da soturna culpa deu margem e espaço para a aceitação das
fantasias e Clotilde voltou a ser ainda mais irradiante e entusiasmada pela
vida do que era antes deste momento de crise.
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