sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

MEDO DOS MEDOS




            A onipresença de medos, presentes no cotidiano da curta vida humana, revela incontáveis facetas de ameaças, a tal ponto que as experiências passadas que envolveram muito medo, ampliam outros medos de medos similares e, de outros ainda mais cruéis.
            No processo cultural o número dos medos tende a crescer paulatinamente, e também tende a aumentar a variedade de suas incidências. Podem ser difusas, incertas, duvidosas e apresentar incontáveis susceptibilidades de risco: como a de que o calor aumente em demasia, a de que a fome aumente drasticamente, a de que o frio congele demais, a de que pessoas ameacem a vida, a de que a tarefa seja demasiadamente difícil, medo de que ciúmes e invejas venham a matar, medo de que alimentos, a água e o ar possam estar contaminados, medo de gênios humanos maldosos, medo de ódios, de viroses, medo dos preços do petróleo, medo de eventual queda das Bolsas, medo de avião, medo de que a oferta de crédito constitua um golpe... Se estes e inumeráveis outros medos representam ameaça, o clima do pânico tende a aumentar ainda mais o tormento do mundo subjetivo, com a amplitude de acréscimos que lhes são alargados através da fantasia e dos excessivos alertas globais, que veiculam um clima favorável para o constante avivamento dos medos.
            Se os medos reais e objetivos já constituem uma perturbação ao psiquismo humano, a memória dos muitos medos, que já rondaram a vida em tempos passados, tende a antecipar ainda mais os possíveis medos de que muitas outras apavorantes ameaças podem proporcionar. A absorção do entorno humano, que gosta de retomar e recontar os medos experimentados e, os suscetíveis de eventual ocorrência, cria, por sua vez, um clima envolvente de insegurança e de vulnerabilidade a respeito das reais possibilidades de sobreviver aos medos enfadonhos.
            Na frágil confiança de sobreviver aos medos, ainda ameaçam as intensidades e o volume dos medos reais e insinuados. Sair ileso deste emaranhado, ainda requer a capacidade de lidar com diferentes níveis de medos. Sygmunt Baumann (Medo líquido – la sociedade contemoránea y sus temores. Barcelona, Paidós, 2006, p.12) destaca três tipos de perigos:
a)     Ameaças ao corpo e às propriedades;
b)    Ameaças contra a ordem e a estabilidade social;
c)     Ameaças ao lugar que se ocupa no mundo (a posição na hierarquia social, a identidade de classe, de gênero, identidade de etnia, de pertença social e religiosa) e imunidade ante a degradação social, ao lado dos riscos de exclusão social.
            Ao já difícil quadro das interpelações de muitos medos, também o Estado se constitui em fonte de muitos medos. Sobrevive com a pretensão de proteger seus súditos contra múltiplas ameaças e riscos, mas, ele não cumpre as promessas, ou as cumpre muito parcialmente e ainda delega sua batalha contra medos ao âmbito da política pessoal de cada indivíduo.
            O mórbido clima de medos advindos de todos os lados, e, em muitas estratificações de níveis da vida humana, agrava a produção de novos e inquietantes medos com os excessivos alertas globais, em torno de viroses, contaminações, terrorismos, guerras, truculências, enchentes, secas, chacinas, genocídios e o intenso alarmismo de “fake-news” sobre iminência de sinistros.
            Enfim, no caminho ascendente e cada vez mais largo de medos está vindo contra nós, e, - em tamanho colossal, - outro medo: o do “silêncio silenciado”. Trata-se do medo aterrador, de que mesmo estando vivo, se está fadado ao silêncio de ser relegado, preterido, esquecido, não visto, e, se visto, com o nome sujo, e como mero lixo descartável. Assim, nem mesmo os analgésicos desvios da aquisição de objetos novos para ser feliz, acalmam o desconforto das ameaças que, quais ondas provindas de mares, entram até pelo nariz e sufocam a respiração com água muito salgada.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

LUXO NA DIMENSÃO DAS SACRALIZAÇÕES HUMANAS



                                                  

Preambulo
            O termo “luxo” deriva do latim, - da palavra luxus, - que significava crescer “através de”. Inicialmente era usado mais no ambiente agrícola para conotar crescimento em abundância, ou em excesso.
            O luxo, como bem simbólico de excelência, sempre esteve presente na condição humana, mas, ao longo da história, incorreu em diversas alterações de significado, passando pela cortesia da partilha e da oferenda para manter reciprocidade com a instância divina, com os mortos e as forças espirituais, para culminar na condição de aparência para expressar ostentação e alcance de poder e de superioridade.
            Mais tarde, passou a ser o referencial da mediação para a ascensão social como auto-afirmação perante a comunidade. Com a emergência da revolução industrial, o luxo, - imitado, falsificado, “pirateado” e produzido em série, - tornou-se acessível até mesmo aos pobres, mas, paulatinamente, deixou de ser o vilão da luxúria para prestar-se, não mais à corrupção da qualidade humana, mas, como melhor identificador de status social. Tanto por ascendência quanto por posição adquirida, o luxo, através de grandes lucros, identificava magistralmente a burguesia.
            Sobretudo com as inovações do significado da moda, o luxo passou a sofrer nova ressignificação, porque, mesmo sob a desigualdade, vestir-se com determinada marca, pesava mais do que a barganha da acumulação de riqueza. Aos poucos, a democratização do luxo passou a enaltecer os comercializadores do luxo e suas lojas se tornaram referência da veste luxuosa, gerando uma verdadeira guerra em torno do monopólio de certas marcas, porque a etiqueta era o que mais identificava o luxo.
             Sem demora, as escolhas passaram a ser feitas, não mais pela etiqueta, mas, pelas motivações afetivas e emocionais.
             A partir deste novo foco, o luxo, já na década de 1990, tornou-se sinônimo do que aparentava juventude, com progressivo processo de sacralização do corpo; e, assim o luxo deixou de depender passivamente das grandes corporações, para atrelar-se à força da intimidade dos sujeitos que o identificaram com um modo de ser e de viver, especialmente a grupos de pertença, que Michel Maffesoli, denominava de tribalismo urbano, pois, luxo constituía a identidade de pertença a determinado grupo.
             Desta grande guinada da opulência e ostentação do luxo, para um valor relativizado e reduzido ao que facilitava sujeitos individualizados e hedonistas, o luxo ficou restrito ao bem-estar do corpo. Com isso, o luxo do nosso tempo hiper-real, é meio de afirmação de uma imagem pessoal, porquanto se presta para a condição de ser único, peculiar, e distinto dos demais. Importa o realce do corpo e do que o enaltece com beleza, saúde e elevado tônus emocional. Atualmente a cosmetização do corpo eleva ao estado de luxo a identificação do imagético de uma corporeidade “bonita, gostosa, cheirosa e dadivosa”.

                                                                       I
1 - O fenômeno da sacralização

            A propensão de sacralizar momentos, fatos, modos de ser, ou experiências vivenciadas, está muito presente no cotidiano da vida humana. Na mesma dimensão estão também os encantamentos com teorias, propostas e ideologias. Ao se defender algo como sagrado, - tanto humano quanto divino - produz-se uma espécie de couraça de defesa ou de proteção deste imaginário, a fim de impedir que outras pessoas lhe acrescentem ou lhe tirem a grandeza estabelecida como sagrada.
            Enquanto que se protege uma sacralização de algo, seja humano, político, religioso ou de concepção econômica, produz-se simultaneamente um bloqueio contra as possíveis tentativas de diminuir ou de superar a hegemonia do encantamento assumido. A fixidez torna-se assim uma peculiaridade de qualquer sacralização, quer seja religiosa, política, ou de outra natureza.
            No fundo de qualquer sacralização podemos encontrar apegos exagerados dos defensores de uma determinada concepção, porque eles se fecham à possibilidade de contestação ou inovação. Experimentamos durante décadas de ambiente acadêmico uma intensa sacralização de ideias marxistas, ao lado de defensores do pensamento tomista.
            A defesa, proteção e afirmação do conteúdo sacralizado tende a afirmações categóricas e de rotulações contra as possíveis antíteses do conteúdo, que realmente não combinam com inquirições e inquietações filosóficas. Um colega, por exemplo, rechaçava qualquer argumentação, distinta da sua, porque sustentava a existência de uma filosofia perene – a tomista – jamais superável, pois, poderia alguma genialidade chegar perto da capacidade de Tomás de Aquino, mas, igualar-se a ele ou superá-lo, isso jamais seria possível. Não admitia nada acima ou distinto do doutor angelical, colocado no auge da sabedoria humana.
             Na absolutização do pensador medieval, admirável e genial no seu tempo, o colega simplesmente banalizava qualquer coisa que não se enquadrasse na sua convicção a respeito daquele pensador, que viveu sob uma cosmovisão muito diferente e, essencialmente distinta da que envolve nossos dias. Ao não valorizar a menor particularidade advinda dos outros colegas, ele negava categoricamente a possibilidade de aprender algo que pudesse ou acrescentar ou inovar a partir das noções tomistas. Desta forma, banalizava qualquer coisa fora do seu foco de sacralização.
            Da ilustração feita, depreende-se que sacralização e banalização se cruzam, porque quando alguém busca sempre a mesma coisa, nenhuma outra lhe interessa. Este processo minimizador está presente de modo muito similar e evidente nas correntes políticas, religiosas e de outros campos da organização humana, pois já não ocorre um humilde tateio pelo que possa ser melhor e mais abrangente, mas, rebate-se e ataca-se o que é distinto, a fim de assegurar a fixidez de uma noção ou crença sacralizada.
            O luxo também se enquadra nesta sacralização e revela as propensões de controle, mas que, contraditoriamente, acabam esmorecendo diante de outras sacralizações mais insinuadoras. Para realçar esta contradição, destacamos algumas poucas ideias de diferentes momentos históricos a fim de ilustrar o que ocorre com a sacralização de objetos, símbolos, bens raros e mundos simbólicos capazes de modificar imaginários do luxo, longamente estratificados.

1.1  – Luxo entre povos antigos
           
            Os povos antigos, desde as origens mais remotas, deixaram sinais de que se fascinaram por objetos de luxo, e, pelo que tudo indica, sua afinidade com objetos raros e especiais envolvia razões de fé e de espiritualidade. Não havia o senso coletivo de acumulação econômica individualista, como a dos tempos atuais.
            É provável que mesmo antes da domesticação de animais e de plantas já existia uma sensibilidade em torno do luxo. Segundo Giles Lipovetsky[1] a riqueza não era pensada para alguns poucos, pois, festas esplêndidas e com muitos ornamentos atrativos, estavam presentes em todas as sociedades daquela longínqua condição humana. Mesmo com vestimentas e agasalhos rudimentares e, com utensílios muito simples e limitados, as festas envolviam vasto colorido e a beleza de muitos ornamentos. Segundo o referido autor[2] a fabricação do luxo iniciou com a fabricação de bens de elevado custo, pois se tratava de um fenômeno cultural.
            A opulência também revelava uma estreita vinculação com a generosidade, porquanto as oferendas, os presentes e os gastos elevados estavam no foco central dos eventos festivos. Sobretudo chefes e lideranças sentiam-se na obrigação de oferecer muitas festas e banquetes para elevar seu prestígio.
            A generosidade, por sua vez, estava integrada nas regras sociais como forma da partilhar bens simbólicos, especialmente com significados religiosos, míticos e mágicos.
            A partilha desfrutava de uma função social muito interessante porque gestava um sentimento coletivo, que facilitava a pertença dos indivíduos a um determinado grupo social. Desta forma, os indivíduos particulares não se sentiam isolados.
            A doação de presentes refletia também outra peculiaridade ou princípio norteador da vida para pertencer a uma coletividade. Explicitava a centralidade da relação entre indivíduos, com a decorrente relativização das coisas. O efeito maior, certamente, evitava o aspecto acumulativo de riquezas na apropriação de poucas pessoas[3].
            O chefe de um grupo social ao partilhar muitas coisas aos membros do seu grupo, automaticamente, elevava seu prestígio, sem mesmo exercer dominação de barganha política.
            As oferendas, por sua vez, explicitavam certa obrigatoriedade de sintonia com falecidos e os espíritos, pois, perpetuava uma boa reciprocidade com eles.
             Também o consumo nas festividades tinha a original característica de dissipar a riqueza a fim de captar a proteção e a benevolência das forças superiores com vistas a recriar e recomeçar os ciclos de fecundidade na natureza.

1.2 – Luxo nos tempos medievais

            Longe de entrar nos meandros das sacralizações e dos luxos deste longo período histórico, salientamos, aqui, apenas uma postura oficial da Igreja católica, que, simultaneamente, revelou suas contradições.
            Sabemos que a Igreja articulou ao longo do tempo uma síntese para melhor vivenciar os dez mandamentos, herdados do judaísmo, e, por isso, alertava os fiéis contra a tríplice concupiscência (pecados gerais, veniais e mortais) que produziam os pecados capitais e facilitavam o deslizamento para outros vícios. No século XIV, estavam bem delineados os pecados capitais: gula, avareza, ira, inveja, preguiça, soberba e luxúria, que, por sua vez, eram assimilados numa dupla dimensão: a da frágil dependência a paixões, e, por outro lado, levavam ao desejo passional e egoísta pelo prazer sexual e material.
            Segundo Rainer Souza,[4] na baixa idade média, a Igreja, estabelecida em praticamente todo o território europeu, cultivava um ideário que a tornou uma organização poderosa, a tal ponto de influenciar as decisões de reis e de nobres. Embora a argumentação visasse evitar o acúmulo, a barganha da influência permitiu-lhe o ajuntamento de riquezas e a conservação de grandes quantias de terras e outros bens. Parte das lideranças também se envolveu na vida de luxúria. Ao lado das contestações dos que assumiam uma vida de total desapego a bens materiais, outros, porém, se afastaram paulatinamente das orientações relativas à acumulação de bens, e passaram a viver na luxúria.
            No século XVI críticas ferozes atingiam a Igreja católica, porque ela, de um lado condenava o luxo e a usura, mas, paralelamente, parcela do seu clero vivia em luxo e vida mundana. Ao mesmo tempo, ocorria corrupção neste setor do clero, enquanto que parcela expressiva do clero restante – o chamado baixo clero - vivia na similar ignorância religiosa das pessoas comuns.
            O alto clero chegou também ao descalabro de praticar a simonia, pois, comprava e vendia bens espirituais, sobretudo, através do comércio de relíquias de origem duvidosa e de imagens de santos consideradas sagrados. Chegou a comercializar até indulgências, pois os doadores, mediante ajuda às obras da Igreja, obteriam bens espirituais de salvação.
            Segundo Inácio Medeiros[5] a condenação do lucro excessivo por parte da Igreja, ante o incipiente espírito capitalista comercial da época, recebeu atenção e simpatia da ética protestante. Os ambiciosos acumuladores de bens, insatisfeitos com a orientação da Igreja católica, já não desejavam partilha, mas, a possibilidade de crescer progressivamente na acumulação de luxo, com acumulação de bens simbólicos culturais de prestigiado status.

1.3 – Luxo no Estado moderno
           
       Como a ética protestante passou a assimilar o êxito e sucesso econômico, tidos como sinal da bênção de Deus, estimulou largamente o desejo e a ambição de ampliar ainda mais esta graça. O Estado moderno, nesta perspectiva, introduziu a divisão de classes, e, com escalonamento de muitas categorias e níveis, facilitou a ajuntamento de riquezas. Ao mesmo tempo, permitiu centralizar-se no controle dos muitos níveis sociais. Deste processo, resultaram prédios vistosos, palácios, jardins, e muita suntuosidade para ressaltar a eminência do poder superior do Estado.
            Neste mundo hierarquizado, o esplendor de uns, estabeleceu uma estrutura de correspondência: desigualdade e indigência para a maioria dos demais, pois, tudo passou a ser estratificado pela quantidade de posses, de gastos, e, pelo modo de se vestir e de fazer festas e solenes funerais. A nova ordem hierarquizada provocou um deslocamento do luxo sagrado para o luxo profano e passou a esnobar o luxo público, em detrimento do luxo particular.
            O lugar do vínculo com o mundo superior ou divino passou a ser deslocado para o mundo da futilidade, pois, ao invés da partilha, a grandeza sacralizada virou sinônimo de “empoderamento” e de entesouramento com barganha política. Assim, as grandes comoções de celebrações religiosas cederam seu lugar de excelência aos eventos políticos. Dali para frente, já não se passaria a esperar boa aliança e reciprocidade com a instância divina, mas, criaram-se outros rituais que passaram a reafirmar a dominação. Seres meramente humanos passaram à presunção de ocupação dos poderes hierárquicos superiores, como todo-poderosos, a fim de realçar e afirmar que a instância mais elevada sobre os grupos humanos era constituída pelo Estado.

1.4 – Luxo em nossos dias

            O luxo aristocrático medieval destacou eminentemente a glória e o prestígio das pessoas poderosas, que, através dos artigos luxuosos, salientavam seu poder e sua auto-afirmação. Por isso, desejavam peças únicas, genuínas, sem outras similares.
            A modernidade, por sua vez, passou a dar ênfase a uma lógica diversa, sobretudo, com a alta costura. Os costureiros, que antes eram anônimos, passaram a uma proeminência destacada em torno do que produziam como sendo de bom gosto.
            Aos poucos surgiram os mercadores da moda, e passaram a ser prestigiados através de casas comerciais que enalteciam a glória dos movedores da moda. Progressivamente a mecanização passou a produzir semi-luxo (tanto luxo falsificado quanto o luxo feito de matéria-prima irrisória, para joias, imagens, móveis e pinturas) e o uso deste material inferior passou a imitar e a concorrer com o material de luxo superior. Deste processo de pirataria de imitação de materiais originais, o luxo passou a democratizar-se e os preços acessíveis facilitaram o acesso e venda às instâncias sociais inferiores.
            Sem demora, o surgimento do marketing do luxo fez surgir gigantes mundiais, para prestigiar certos produtos e produzindo verdadeiras guerras em torno de algumas ofertas de luxo, que alargou seu consumo globalizado.
   As campanhas de marketing com ofertas hiper-realistas em torno da produção em série para o grande consumo global levou à aquisição generalizada de produtos fúteis, como perfumes, marcas de tecido, de carro e de tantos outros objetos acessíveis até mesmo a pobres.
Produtos ao alcance de todos gerou uma nova ordem: a do consumo de supérfluos, em que a maneira burguesa de absorver objetos de luxo se ampliou para todas as condições humanas. Assim a sociedade moderna emergente alargou os valores individualistas e hedonistas que acabaram transformando o luxo em necessidade para o bem-estar pessoal.[6] Com isso a simbologia de luxo e de riqueza passou à equivalência de consumo e de ostentação individual.
A partir da década de 1980 as disputas pelo monopólio do luxo passaram a enaltecer a marca de quem produzia o luxo como símbolo de excelência. A marca tornou-se o significante absoluto da identidade do luxo. E o produto passou a constitui-se em mera mediação para o alcance da marca e a condição de ostentá-la. Em decorrência, a procura passou a ser maior que a oferta porque aos consumidores interessava a exibição da etiqueta.
Com todas estas inovações do significado do luxo, os anos recentes apontam para mais uma inovação da característica do luxo: já não visa mais indivíduos atrelados ao controle social, como o do estado, mas ao consumo individualizado com vistas a produzir fortes emoções. Trata-se do luxo de poder exibir determinada marca. Sob esta dinâmica do consumo individual acabou subsumindo a hierarquia do status, que uma vez era auferido pelo luxo ostensivo para ostentar condições privilegiadas. Desta forma, sumiu a distinção de ricos e pobres; a de quem manda e a de quem precisa obedecer; ou de quem é conservador ou inovador. Todos são induzidos ao mesmo consumo de luxo para afigurar-se como ídolos ou estrelas, mesmo que seja para alguns fugazes segundos de mídia.
Na década de 1990, Michel Maffesoli[7] interpretava um fenômeno novo que se mostrava visível na vida urbana: a do surgimento de tribos urbanas. Este tribalismo mostrava que as escolhas de bens luxuosos, dependia da base afetiva e emocional. Assim, os valores do trabalho como meio de elevação do status para mais honras e poderes, indicavam um deslocamento para o que propiciasse prazer e emoções agradáveis. Com isso, também a noção de moda deslocou-se da imagética de aparência rica para o que fornecesse identificação com juventude. A hegemonia da auto-afirmação social foi tomada pela hegemonia que sacralizasse o corpo.
Sob o patamar do novo referencial de luxo ligado ao corpo, a cosmetização passou ao status mais elevado do luxo. Tornava-se valioso tudo quanto evitasse aparência de envelhecimento. O novo referencial levou, aos poucos, a cirurgias estéticas como fator sacralizado do novo significado para o luxo.
O valor do luxo passou a depender da intimidade de quem o desejava e passou a relacionar-se com imaginários ligados a um modo de viver. Relegada a questão econômica e de prestígio, o luxo passou a significar forma de ser e de viver.
Os indivíduos consumistas de luxo, mais do que pensar no poder social e de ascensão, desejam ser muito singulares e originais através de combinações e aparatos de enfeite ou, com o uso de bricolagens e adornos que pudessem distingui-los dos demais. Assim, o luxo perdeu sua referencia de promoção do acesso a determinadas categorias sociais elevadas, e passou a explicitar-se pelo que constitui a melhor afirmação da imagem pessoal. Ao deixar de expressar riqueza, o luxo sofreu mais uma ressignificação porque o artifício do ornamento passou a centralizar outro referencial para os símbolos de luxo, longe da aspiração das honras e do poder de domínio.
Ao invés de honras e poderes, o consumo de luxo sacralizou indivíduos esbeltos, “sarados”, magros e de elevado astral subjetivo.           Deste modo, luxo implica em condições para submeter-se a cirurgias estéticas, fazer terapias, frequentar ambientes de beleza e cultivar programas de lazer, de energetização e de relax.
Longe da perspectiva dos significados anteriores do luxo, o realce do novo significado é o do corpo cultivado, belo, saudável, para culminar num tônus emocional elevado que permita larga fruição da vida. Desta nova concepção do luxo, o indivíduo consumidor de luxo torna-se a medida do seu consumo: sente-se poderoso ao escolher o que precisa para ficar “bonito, gostoso e cheiroso”.





II PARTE

Luxo nos espaços de celebração religiosa

   A vetusta significação de utilizar o luxo como expressão de gratuidade e oferenda de dádiva à instância superior do âmbito de Deus, ou para manter edificante reciprocidade com os mortos e as forças divinas, sofreu ao longo do tempo a osmose das inovações de significados da aquisição de luxo, próprias das características dos diferentes momentos culturais. No entanto, estaria esta nova conotação do luxo atual, marcada por um traço expressivo da cultura hodierna, presente nos espaços de celebração?
Apesar das múltiplas misturas sincréticas, envolvendo estilos, arquiteturas, tipos de decoração e, de clima nas celebrações litúrgicas - com fortes marcas de múltiplos traços culturais - com entornos distintos para momentos religiosos e festivos, parece, no entanto, evidenciar-se uma direção antagônica ao do movimento cultural. Muitas pessoas que se envolvem na edificação de suntuosos espaços de celebração e os sacralizam como os lugares eminentes da ação divina, não almejam o pano de fundo que move o luxo relacionado ao corpo a partir de escolhas subjetivas, mas, com a megalomania das obras suntuosas visam elevar seu poder pessoal com vistas a angariar reconhecimento social.
Nossa impressão é a de que no âmbito dos tempos religiosos vem ocorrendo um movimento contraditório:
a)     De um lado a insistência no aparato do templo, com elevadíssimos gastos para afirmação de que Deus age única e precipuamente naquele espaço nobre. Um exemplo ilustrativo é o da edificação do santuário do Divino Pai Eterno, de Trindade – Goiás. O organizador da construção, em programas diários na TV, apelava, há alguns anos, com muito imagético em torno da sua pessoa, que todos os católicos espalhados pelo país enviassem contribuições regulares, e que doassem suas joias para edificação daquela obra monumental, pois, teria que ser o melhor e mais bonito lugar do planeta Terra, para a presença e morada de Deus.
b)    De outro lado, pastores evangélicos condenam incisivamente o uso de imagens de pessoas santas em Igrejas católicas, vistas como idolatria, mas, fazem simultânea apologética de sacralização do templo evangélico e da pessoa que nele se constitui em mediação do agir de Deus. No lugar da sacralização de imagens, manifestam intensa sacralização do pastor que, em nome de Deus, age por meio dele, para grandes curas e milagres. O notável ressurgimento da Teologia da Prosperidade sustenta veementemente a bênção financeira, como sendo o que Deus mais deseja para todas as pessoas. Esta sacralização do “empoderamento” pessoal relativiza a pobreza e a doença, como sinais de pecado e fraqueza, mas, que podem ser suplantadas pela fé.  A isto se acrescenta que o alcance da riqueza como bênção de Deus, somente é alcançável pela fé de quem vai aquele espaço religioso e que se vincula ao mais poderoso mediador de Deus: o pastor, ou a pastora, que, ali, possuem o poder do milagre instantâneo.
        Na verdade, os arautos desta perspectiva sacralizadora do templo e do pregador, querem multiplicar o caminho da expansão e da abundância de bens materiais, mas, não revelam o mesmo denodo para organizar um milagre mais discreto que permita alcance de crédito da moeda corrente para que, todas as pessoas pobres e doentes, sejam favorecidas pelos bens acumulados por algumas pessoas ou grupos.
         No fundo, parece não haver interesse em torno de uma sociedade mais igualitária ou justa a partir da partilha de bens como Jesus Cristo propugnou, mas importa o atrelamento ao suposto agir de Deus, que somente age naquele espaço sagrado do templo e do espaço ainda mais sagrado de quem ali – com transe e muita persuasão - irradia a ação instantânea de Deus.[8]
Quando a sensibilidade estética sacraliza o corpo, a aposta em hiper-construções e santuários, parece mover-se também numa hiper-realidade que visa reafirmação de poder em torno do que é sacralizado.
Segundo o professor da Universidade de Lisboa, Paulo Barroso[9], a semiose do espaço religioso decorre da crença de que determinado lugar irradia fluídos sagrados. Isso gera uma divisão no entendimento do espaço: há o sagrado e o profano, e as pessoas que frequentam o espaço sagrado, transformam aquele espaço em patrimônio espiritual, que é cotidianamente recriado através de uma psicologia coletiva.
Através da semiose, que é um processo de apreender ou dar-se conta de que os signos remetem a outra realidade, o lugar sagrado é preenchido de símbolos que o evidenciam tratar-se de um lugar sagrado. Este reconhecimento alimenta a fé e as vivências.
A semiose do espaço sagrado sempre depende de muitas memórias reificadas, porque, com elas, a ordem simbólica ressemantiza e distingue aquele espaço dos outros. Por isso, os santuários dependem do culto mito-poiético, envolvendo diversos aspectos:
a)     Lendas e estórias populares que justifiquem aquele espaço que é muito especial a partir de uma experiência hierofânica e que eleva aquele espaço à dignidade do culto porque é santo deste uma origem remota e distante;
b)    Ícones e relíquias expostas legitimam e confirmam o sentido que aquele espaço sagrado precisa para o culto;
c)     Formação e sustentação de crenças e de estados de espírito levam a acreditar e a admitir que aquela realidade religiosa se configure como verdadeira;
d)     A formação de associações de fiéis, solidamente constituídas por elevado número de membros, incrementa o culto e afirma o mito de que aquele lugar torna sensível o sagrado inteligível.
            Resulta deste quadro, que um santuário geralmente apresenta algumas características comuns: um motivo que o distingue dos outros espaços sagrados; uma localização bem sugestiva; uma origem que tem um substrato religioso ou espiritual envolvente; e meios que o transformam em fator de convergência espiritual. Segundo Paulo Barroso: “o mito é, por conseguinte, a linguagem ou a forma de expressão e de interpretação simbólica do espaço sagrado”[10]. Por isso o fator mito-poiético vai articulando mito e fé para justificar razões de ocupar aquele espaço para que o sagrado possa se reproduzir.
A iconografia bonita e atraente sempre foi interpretada na Igreja católica como mediação educadora da fé. Além de constituir expressão da fé, a iconografia é, igualmente, espaço para educação da fé, pois funciona como uma catequese que remete a um testemunho silencioso.
O documento conciliar Sacrossantam Concilium, do Vaticano II, enfatiza no nº 34 que as cerimônias litúrgicas devem impregnar-se de “nobre simplicidade”. Quanto às artes sacras e alfaias, como expressão religiosa, deveriam relacionar-se com a infinita beleza de Deus, expressa em obras humanas, com a finalidade de contribuir para uma sincera conversão das pessoas para Deus (SC, 122). As alfaias podem servir belamente ao decoro do culto. No entanto, ao incentivar a arte sacra, o documento alerta que esta deveria visar a nobre beleza e não a mera suntuosidade, valendo o mesmo para vestes sacras e ornamentos (SC, 124). Na forma a construção das Igrejas deveria prevalecer o cuidado diligente a fim de que sejam funcionais. As imagens sacras “sejam expostas com moderação quanto ao número, com conveniência quanto à ordem... para evitar devoções menos corretas” (SC, 125). O estilo da liturgia e a icongrafia deveria ser simples e austero com foi a vida de Jesus Cristo.
Esta bela orientação, todavia bate de frente com um espírito utilitarista que manipula os elementos simples da natureza e os deturpa em sua simbologia para constituí-los em mercadorias, descartáveis e substituíveis como quaisquer outros objetos. Assim, a arte sacra perde a dimensão de gratuidade, de conversão e de gratidão a Deus. Impõe-se, então, um devocionismo que tende a impregnar de luxo as imagens, com evidente prejuízo de toda a dimensão mistérica. Caso bem ilustrativo ocorreu no passado de nosso país com o estilo barroco e neoclássico, que minimizou a dimensão simbólica e a do significado da arte sacra, para despertar mero encantamento pela perfeição artística da obra. Sem esta dimensão de interpelação religiosa, veiculou-se um tipo de imagem de Cristo que o apresenta como um típico homem europeu e, sua mãe Maria, como uma dama rica e bem ornamentada com joias. Desta forma, a arte deixou de constituir-se um veículo da fé, para realçar-se o artista ou mecenas que a entronizou, pois, nobres e ricos, bem como eclesiásticos e civis simplesmente encomendavam obras que expressassem elevado grau de perfeição dos contornos do corpo.
A arte sacra católica sempre procurou realçar dois conceitos na produção de obras: a) Mistagogia – como meios de levar a uma progressiva participação no mistério (os grandes sinais do amor de Deus revelados em Jesus Cristo) a fim de alargar a qualidade humana interior com Deus; b) Mistania – expressão desta sintonia harmoniosa com alargamento de gestos edificantes e humanitários. Desta forma, o grande conjunto da arte sacra, envolvendo arquitetura, ornamentação e alfaias, bem como matéria prima da arte, visa evitar a radicalização ou o exclusivismo de um modo conceitual desencarnado que não facilita a encarnação da fé, mas apenas enaltece a autorreferência de quem a produziu e de quem a encomendou[11].


Epílogo

   Aparentemente o longo percurso da sacralização do luxo fez um itinerário de democratização do acesso aos bens considerados luxuosos. Também os espaços sagrados dos templos e das pessoas que agem em nome de Deus parecem oferecer acesso ao sagrado a quaisquer interessados na fé. Mas, esta convocação fica delimitada e atrelada a um contexto mais amplo da indução de que a acumulação da riqueza significa bênção de Deus, que se compraz com o aumento de riqueza das pessoas.
Em linha paralela à presumida graça e bênção relacionada à prosperidade de quem tem muita fé, a promessa para crentes fervorosos, esconde o fantástico e estupendo crescimento das pessoas mais ricas do planeta, com ainda mais espantoso empobrecimento dos seres humanos mais pobres.
Como nas antigas e modernas desigualdades, as roupagens sacralizadas, quer de políticas ou de sacralizações religiosas, com hiper-oferta de mediações, sejam da parte de Deus ou das políticas de consumo para os que querem ser mais abençoados com mais riqueza e acumulação, não consegue esconder suficientemente, sob as mentiras e falsas promessas, o fatalismo cruel, advindo dos próprios ambientes sociais, que nunca os deixará próximos dos poucos agraciados com a sacralidade dos seus bens materiais, e com a suposta graça de Deus.
Vem sendo produzida e bem insinuada uma mentira maior que sabe manipular com maestria a boa fé das pessoas, sem afetar os fatores de exclusão a que estão submetidos. Por mais que estes excluídos e relegados aprimorem seu talento pessoal, por mais que se esforcem e por mais que se dediquem a um movimento de superação, são enganados pelo jogo dos que os fazem sonhar, mas que, jamais os promoverá à igualdade, a ponto de se submeterem a viver como eles, com um salário mínimo.
Um luxo democratizado para todos ainda está inacessível, fora do âmbito consumista, porque a maioria dos seres humanos não consegue viver a partir do que seu coração lhes dita para serem mais felizes; mas, precisam viver sujeitos e submetidos aos que lhes imputam muitas exigências e os fazem sonhar com muitas mentiras. Desta forma, os modos de vida humana, com cooperação, amizade, generosidade, confiança, respeito e acesso igualitário aos bens humanos de todos, seguem soterrados pela rivalidade e competição, porque o extraordinário enriquecimento de alguns poucos, jamais estará disponível para os demais. Como Zygmunt Bauman[12] salienta o mundo de nossas vidas, - desregrado, individualizado, obsessivo com crescimento, de consumo do ‘salve-se quem puder’, - leva-nos a vivenciar uma distância enorme os ideais e a realidade e entre as palavras e os fatos.



[1] LIPOVETSKY, GILES. El lujo eterno. Barcelona: Anagrama, 2014, p. 21.
[2] Idem, p.23
[3] Idem, p. 26.
[4] In: mundoeducacao.bol.vol.com.br/historiageral/heresias-medievais-htm – acess. 20/02/2020.
[5] MEDEIROS, Inácio. Igreja na Idade Moderna: fatores que impulsionaram a reforma protestante. In: a12.com.redaçaoa12/historia-da-igreja-na-idade-moderna-fatores-que-impulsionaram-a-reforma-protestante Acess. 20/02/2020
[6]  ROUX, Eliete. Tiempo de lujo, tiempo de marcas, p.136. In: Lipovettski, Giles. El lujo eterno. Barcelona: Anagrama, 204.
[7] Le Contremplation du monde, figures du style communaire. Paris: 1993.
[8] Segundo Nogueira Fernando Costa, a Teologia da Libertação, ao contrário, parte da premissa de que o Evangelho requer opção preferencial pelos pobres. É uma interpretação analítica e antropológica fortemente voltada à solução dos problemas sociais, e por isso mesmo, vem sendo acusada de ser marxista, de ser relativista e de constituir um cristianismo materializado, mas mostra-se aberta a ecumenismo e com menos dogmas. (In: Teologia da Prosperidade contra Teologia da Libertação do crédito. jornalggn.com.br/artigos/teologia-da-prosperidade-contra-teologia-da-libertação-do crédito-por-fernando-nogueira-da-costa – Publicado e acessado em 20/02/2020)
[9]  BARROSO, Paulo. Semiose do espaço – sacralização geográfica e construção de patrimônio intangível, FCSH-UNL: Universidade de Lisboa, Portugal.
[10] Barroso, Paulo. Semiose do espaço: sacralização geográfica e construção de patrimônio intangível. In: research.unl.pt/ws/portafiles/portal/12763828/Patrimonializa_o_e_Sustentabilidade_do_Patrimônio_Reflex_o_eProspectiva_HighRes_100_110.pdf – acessado em 23/02/2020.
[11] MARIANI, Ceci Batista e VILHENA, Maria Ângela. Teologia e arte – expressões de transcendência, caminhos de renovação. São Paulo, Paulinas.
[12] BAUMANN, ZYGMUNT. La riqueza de unos pocos nos beneficia a todos? Buenos Aires: Paidós, 2014, p. 103-104.

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

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