Preambulo
O termo “luxo”
deriva do latim, - da palavra luxus,
- que significava crescer “através de”. Inicialmente era usado mais no ambiente
agrícola para conotar crescimento em abundância, ou em excesso.
O luxo, como bem
simbólico de excelência, sempre esteve presente na condição humana, mas, ao
longo da história, incorreu em diversas alterações de significado, passando
pela cortesia da partilha e da oferenda para manter reciprocidade com a
instância divina, com os mortos e as forças espirituais, para culminar na
condição de aparência para expressar ostentação e alcance de poder e de superioridade.
Mais tarde, passou
a ser o referencial da mediação para a ascensão social como auto-afirmação
perante a comunidade. Com a emergência da revolução industrial, o luxo, - imitado,
falsificado, “pirateado” e produzido em série, - tornou-se acessível até mesmo
aos pobres, mas, paulatinamente, deixou de ser o vilão da luxúria para
prestar-se, não mais à corrupção da qualidade humana, mas, como melhor
identificador de status social. Tanto por ascendência quanto por posição
adquirida, o luxo, através de grandes lucros, identificava magistralmente a
burguesia.
Sobretudo com as
inovações do significado da moda, o luxo passou a sofrer nova ressignificação,
porque, mesmo sob a desigualdade, vestir-se com determinada marca, pesava mais
do que a barganha da acumulação de riqueza. Aos poucos, a democratização do
luxo passou a enaltecer os comercializadores do luxo e suas lojas se tornaram
referência da veste luxuosa, gerando uma verdadeira guerra em torno do
monopólio de certas marcas, porque a etiqueta era o que mais identificava o
luxo.
Sem demora, as escolhas passaram a ser feitas,
não mais pela etiqueta, mas, pelas motivações afetivas e emocionais.
A partir deste novo foco, o luxo, já na década
de 1990, tornou-se sinônimo do que aparentava juventude, com progressivo
processo de sacralização do corpo; e, assim o luxo deixou de depender
passivamente das grandes corporações, para atrelar-se à força da intimidade dos
sujeitos que o identificaram com um modo de ser e de viver, especialmente a
grupos de pertença, que Michel Maffesoli, denominava de tribalismo urbano, pois,
luxo constituía a identidade de pertença a determinado grupo.
Desta grande guinada da opulência e ostentação
do luxo, para um valor relativizado e reduzido ao que facilitava sujeitos individualizados
e hedonistas, o luxo ficou restrito ao bem-estar do corpo. Com isso, o luxo do
nosso tempo hiper-real, é meio de afirmação de uma imagem pessoal, porquanto se
presta para a condição de ser único, peculiar, e distinto dos demais. Importa o
realce do corpo e do que o enaltece com beleza, saúde e elevado tônus
emocional. Atualmente a cosmetização do corpo eleva ao estado de luxo a
identificação do imagético de uma corporeidade “bonita, gostosa, cheirosa e
dadivosa”.
I
1 - O fenômeno da
sacralização
A propensão de
sacralizar momentos, fatos, modos de ser, ou experiências vivenciadas, está
muito presente no cotidiano da vida humana. Na mesma dimensão estão também os
encantamentos com teorias, propostas e ideologias. Ao se defender algo como
sagrado, - tanto humano quanto divino - produz-se uma espécie de couraça de
defesa ou de proteção deste imaginário, a fim de impedir que outras pessoas lhe
acrescentem ou lhe tirem a grandeza estabelecida como sagrada.
Enquanto que se
protege uma sacralização de algo, seja humano, político, religioso ou de
concepção econômica, produz-se simultaneamente um bloqueio contra as possíveis
tentativas de diminuir ou de superar a hegemonia do encantamento assumido. A
fixidez torna-se assim uma peculiaridade de qualquer sacralização, quer seja
religiosa, política, ou de outra natureza.
No fundo de
qualquer sacralização podemos encontrar apegos exagerados dos defensores de uma
determinada concepção, porque eles se fecham à possibilidade de contestação ou
inovação. Experimentamos durante décadas de ambiente acadêmico uma intensa
sacralização de ideias marxistas, ao lado de defensores do pensamento tomista.
A defesa, proteção
e afirmação do conteúdo sacralizado tende a afirmações categóricas e de
rotulações contra as possíveis antíteses do conteúdo, que realmente não
combinam com inquirições e inquietações filosóficas. Um colega, por exemplo, rechaçava
qualquer argumentação, distinta da sua, porque sustentava a existência de uma
filosofia perene – a tomista – jamais superável, pois, poderia alguma
genialidade chegar perto da capacidade de Tomás de Aquino, mas, igualar-se a
ele ou superá-lo, isso jamais seria possível. Não admitia nada acima ou
distinto do doutor angelical, colocado no auge da sabedoria humana.
Na absolutização do pensador medieval,
admirável e genial no seu tempo, o colega simplesmente banalizava qualquer
coisa que não se enquadrasse na sua convicção a respeito daquele pensador, que
viveu sob uma cosmovisão muito diferente e, essencialmente distinta da que
envolve nossos dias. Ao não valorizar a menor particularidade advinda dos
outros colegas, ele negava categoricamente a possibilidade de aprender algo que
pudesse ou acrescentar ou inovar a partir das noções tomistas. Desta forma,
banalizava qualquer coisa fora do seu foco de sacralização.
Da ilustração
feita, depreende-se que sacralização e banalização se cruzam, porque quando alguém
busca sempre a mesma coisa, nenhuma outra lhe interessa. Este processo
minimizador está presente de modo muito similar e evidente nas correntes
políticas, religiosas e de outros campos da organização humana, pois já não
ocorre um humilde tateio pelo que possa ser melhor e mais abrangente, mas,
rebate-se e ataca-se o que é distinto, a fim de assegurar a fixidez de uma
noção ou crença sacralizada.
O luxo também se
enquadra nesta sacralização e revela as propensões de controle, mas que,
contraditoriamente, acabam esmorecendo diante de outras sacralizações mais
insinuadoras. Para realçar esta contradição, destacamos algumas poucas ideias
de diferentes momentos históricos a fim de ilustrar o que ocorre com a
sacralização de objetos, símbolos, bens raros e mundos simbólicos capazes de
modificar imaginários do luxo, longamente estratificados.
1.1 – Luxo entre povos
antigos
Os povos antigos, desde
as origens mais remotas, deixaram sinais de que se fascinaram por objetos de
luxo, e, pelo que tudo indica, sua afinidade com objetos raros e especiais envolvia
razões de fé e de espiritualidade. Não havia o senso coletivo de acumulação
econômica individualista, como a dos tempos atuais.
É provável que
mesmo antes da domesticação de animais e de plantas já existia uma
sensibilidade em torno do luxo. Segundo Giles Lipovetsky
a riqueza não era pensada para alguns poucos, pois, festas esplêndidas e com
muitos ornamentos atrativos, estavam presentes em todas as sociedades daquela
longínqua condição humana. Mesmo com vestimentas e agasalhos rudimentares e,
com utensílios muito simples e limitados, as festas envolviam vasto colorido e
a beleza de muitos ornamentos. Segundo o referido autor
a fabricação do luxo iniciou com a fabricação de bens de elevado custo, pois se
tratava de um fenômeno cultural.
A opulência também
revelava uma estreita vinculação com a generosidade, porquanto as oferendas, os
presentes e os gastos elevados estavam no foco central dos eventos festivos.
Sobretudo chefes e lideranças sentiam-se na obrigação de oferecer muitas festas
e banquetes para elevar seu prestígio.
A generosidade,
por sua vez, estava integrada nas regras sociais como forma da partilhar bens
simbólicos, especialmente com significados religiosos, míticos e mágicos.
A partilha desfrutava
de uma função social muito interessante porque gestava um sentimento coletivo,
que facilitava a pertença dos indivíduos a um determinado grupo social. Desta
forma, os indivíduos particulares não se sentiam isolados.
A doação de
presentes refletia também outra peculiaridade ou princípio norteador da vida para
pertencer a uma coletividade. Explicitava a centralidade da relação entre
indivíduos, com a decorrente relativização das coisas. O efeito maior,
certamente, evitava o aspecto acumulativo de riquezas na apropriação de poucas
pessoas.
O chefe de um
grupo social ao partilhar muitas coisas aos membros do seu grupo,
automaticamente, elevava seu prestígio, sem mesmo exercer dominação de barganha
política.
As oferendas, por
sua vez, explicitavam certa obrigatoriedade de sintonia com falecidos e os
espíritos, pois, perpetuava uma boa reciprocidade com eles.
Também o consumo nas festividades tinha a
original característica de dissipar a riqueza a fim de captar a proteção e a
benevolência das forças superiores com vistas a recriar e recomeçar os ciclos
de fecundidade na natureza.
1.2 – Luxo nos tempos medievais
Longe de entrar nos
meandros das sacralizações e dos luxos deste longo período histórico, salientamos,
aqui, apenas uma postura oficial da Igreja católica, que, simultaneamente,
revelou suas contradições.
Sabemos que a
Igreja articulou ao longo do tempo uma síntese para melhor vivenciar os dez
mandamentos, herdados do judaísmo, e, por isso, alertava os fiéis contra a
tríplice concupiscência (pecados gerais, veniais e mortais) que produziam os
pecados capitais e facilitavam o deslizamento para outros vícios. No século
XIV, estavam bem delineados os pecados capitais: gula, avareza, ira, inveja,
preguiça, soberba e luxúria, que, por sua vez, eram assimilados numa dupla
dimensão: a da frágil dependência a paixões, e, por outro lado, levavam ao
desejo passional e egoísta pelo prazer sexual e material.
Segundo Rainer
Souza,
na baixa idade média, a Igreja, estabelecida em praticamente todo o território
europeu, cultivava um ideário que a tornou uma organização poderosa, a tal
ponto de influenciar as decisões de reis e de nobres. Embora a argumentação
visasse evitar o acúmulo, a barganha da influência permitiu-lhe o ajuntamento
de riquezas e a conservação de grandes quantias de terras e outros bens. Parte
das lideranças também se envolveu na vida de luxúria. Ao lado das contestações
dos que assumiam uma vida de total desapego a bens materiais, outros, porém, se
afastaram paulatinamente das orientações relativas à acumulação de bens, e
passaram a viver na luxúria.
No século XVI
críticas ferozes atingiam a Igreja católica, porque ela, de um lado condenava o
luxo e a usura, mas, paralelamente, parcela do seu clero vivia em luxo e vida
mundana. Ao mesmo tempo, ocorria corrupção neste setor do clero, enquanto que
parcela expressiva do clero restante – o chamado baixo clero - vivia na similar
ignorância religiosa das pessoas comuns.
O alto clero
chegou também ao descalabro de praticar a simonia, pois, comprava e vendia bens
espirituais, sobretudo, através do comércio de relíquias de origem duvidosa e de
imagens de santos consideradas sagrados. Chegou a comercializar até
indulgências, pois os doadores, mediante ajuda às obras da Igreja, obteriam
bens espirituais de salvação.
Segundo Inácio
Medeiros
a condenação do lucro excessivo por parte da Igreja, ante o incipiente espírito
capitalista comercial da época, recebeu atenção e simpatia da ética
protestante. Os ambiciosos acumuladores de bens, insatisfeitos com a orientação
da Igreja católica, já não desejavam partilha, mas, a possibilidade de crescer
progressivamente na acumulação de luxo, com acumulação de bens simbólicos
culturais de prestigiado status.
1.3 – Luxo no Estado moderno
Como a ética
protestante passou a assimilar o êxito e sucesso econômico, tidos como sinal da
bênção de Deus, estimulou largamente o desejo e a ambição de ampliar ainda mais
esta graça. O Estado moderno, nesta perspectiva, introduziu a divisão de
classes, e, com escalonamento de muitas categorias e níveis, facilitou a
ajuntamento de riquezas. Ao mesmo tempo, permitiu centralizar-se no controle
dos muitos níveis sociais. Deste processo, resultaram prédios vistosos,
palácios, jardins, e muita suntuosidade para ressaltar a eminência do poder
superior do Estado.
Neste mundo hierarquizado, o esplendor de uns,
estabeleceu uma estrutura de correspondência: desigualdade e indigência para a
maioria dos demais, pois, tudo passou a ser estratificado pela quantidade de
posses, de gastos, e, pelo modo de se vestir e de fazer festas e solenes
funerais. A nova ordem hierarquizada provocou um deslocamento do luxo sagrado
para o luxo profano e passou a esnobar o luxo público, em detrimento do luxo
particular.
O lugar do vínculo com o mundo superior ou divino passou
a ser deslocado para o mundo da futilidade, pois, ao invés da partilha, a
grandeza sacralizada virou sinônimo de “empoderamento” e de entesouramento com
barganha política. Assim, as grandes comoções de celebrações religiosas cederam
seu lugar de excelência aos eventos políticos. Dali para frente, já não se passaria
a esperar boa aliança e reciprocidade com a instância divina, mas, criaram-se
outros rituais que passaram a reafirmar a dominação. Seres meramente humanos
passaram à presunção de ocupação dos poderes hierárquicos superiores, como
todo-poderosos, a fim de realçar e afirmar que a instância mais elevada sobre
os grupos humanos era constituída pelo Estado.
1.4 – Luxo em nossos dias
O luxo aristocrático medieval destacou eminentemente a
glória e o prestígio das pessoas poderosas, que, através dos artigos luxuosos,
salientavam seu poder e sua auto-afirmação. Por isso, desejavam peças únicas,
genuínas, sem outras similares.
A modernidade, por sua vez, passou a dar ênfase a uma lógica
diversa, sobretudo, com a alta costura. Os costureiros, que antes eram anônimos,
passaram a uma proeminência destacada em torno do que produziam como sendo de
bom gosto.
Aos poucos surgiram os mercadores da moda, e passaram a
ser prestigiados através de casas comerciais que enalteciam a glória dos
movedores da moda. Progressivamente a mecanização passou a produzir semi-luxo (tanto
luxo falsificado quanto o luxo feito de matéria-prima irrisória, para joias,
imagens, móveis e pinturas) e o uso deste material inferior passou a imitar e a
concorrer com o material de luxo superior. Deste processo de pirataria de
imitação de materiais originais, o luxo passou a democratizar-se e os preços
acessíveis facilitaram o acesso e venda às instâncias sociais inferiores.
Sem demora, o surgimento do marketing do luxo fez surgir
gigantes mundiais, para prestigiar certos produtos e produzindo verdadeiras
guerras em torno de algumas ofertas de luxo, que alargou seu consumo
globalizado.
As campanhas de marketing
com ofertas hiper-realistas em torno da produção em série para o grande consumo
global levou à aquisição generalizada de produtos fúteis, como perfumes, marcas
de tecido, de carro e de tantos outros objetos acessíveis até mesmo a pobres.
Produtos ao alcance de todos gerou uma nova ordem: a do consumo de
supérfluos, em que a maneira burguesa de absorver objetos de luxo se ampliou
para todas as condições humanas. Assim a sociedade moderna emergente alargou os
valores individualistas e hedonistas que acabaram transformando o luxo em
necessidade para o bem-estar pessoal.
Com isso a simbologia de luxo e de riqueza passou à equivalência de consumo e
de ostentação individual.
A partir da década de 1980 as disputas pelo monopólio do luxo
passaram a enaltecer a marca de quem produzia o luxo como símbolo de
excelência. A marca tornou-se o significante absoluto da identidade do luxo. E
o produto passou a constitui-se em mera mediação para o alcance da marca e a
condição de ostentá-la. Em decorrência, a procura passou a ser maior que a
oferta porque aos consumidores interessava a exibição da etiqueta.
Com todas estas inovações do significado do luxo, os anos recentes
apontam para mais uma inovação da característica do luxo: já não visa mais
indivíduos atrelados ao controle social, como o do estado, mas ao consumo
individualizado com vistas a produzir fortes emoções. Trata-se do luxo de poder
exibir determinada marca. Sob esta dinâmica do consumo individual acabou
subsumindo a hierarquia do status, que uma vez era auferido pelo luxo ostensivo
para ostentar condições privilegiadas. Desta forma, sumiu a distinção de ricos
e pobres; a de quem manda e a de quem precisa obedecer; ou de quem é
conservador ou inovador. Todos são induzidos ao mesmo consumo de luxo para
afigurar-se como ídolos ou estrelas, mesmo que seja para alguns fugazes
segundos de mídia.
Na década de 1990, Michel Maffesoli
interpretava um fenômeno novo que se mostrava visível na vida urbana: a do
surgimento de tribos urbanas. Este tribalismo mostrava que as escolhas de bens
luxuosos, dependia da base afetiva e emocional. Assim, os valores do trabalho
como meio de elevação do status para mais honras e poderes, indicavam um
deslocamento para o que propiciasse prazer e emoções agradáveis. Com isso,
também a noção de moda deslocou-se da imagética de aparência rica para o que
fornecesse identificação com juventude. A hegemonia da auto-afirmação social
foi tomada pela hegemonia que sacralizasse o corpo.
Sob o patamar do novo referencial de luxo ligado ao corpo, a
cosmetização passou ao status mais elevado do luxo. Tornava-se valioso tudo
quanto evitasse aparência de envelhecimento. O novo referencial levou, aos
poucos, a cirurgias estéticas como fator sacralizado do novo significado para o
luxo.
O valor do luxo passou a depender da intimidade de quem o desejava
e passou a relacionar-se com imaginários ligados a um modo de viver. Relegada a
questão econômica e de prestígio, o luxo passou a significar forma de ser e de
viver.
Os indivíduos consumistas de luxo, mais do que pensar no poder
social e de ascensão, desejam ser muito singulares e originais através de
combinações e aparatos de enfeite ou, com o uso de bricolagens e adornos que pudessem
distingui-los dos demais. Assim, o luxo perdeu sua referencia de promoção do
acesso a determinadas categorias sociais elevadas, e passou a explicitar-se pelo
que constitui a melhor afirmação da imagem pessoal. Ao deixar de expressar
riqueza, o luxo sofreu mais uma ressignificação porque o artifício do ornamento
passou a centralizar outro referencial para os símbolos de luxo, longe da
aspiração das honras e do poder de domínio.
Ao invés de honras e poderes, o consumo de luxo sacralizou
indivíduos esbeltos, “sarados”, magros e de elevado astral subjetivo. Deste modo, luxo implica em condições
para submeter-se a cirurgias estéticas, fazer terapias, frequentar ambientes de
beleza e cultivar programas de lazer, de energetização e de relax.
Longe da perspectiva dos significados anteriores do luxo, o realce do
novo significado é o do corpo cultivado, belo, saudável, para culminar num
tônus emocional elevado que permita larga fruição da vida. Desta nova concepção
do luxo, o indivíduo consumidor de luxo torna-se a medida do seu consumo:
sente-se poderoso ao escolher o que precisa para ficar “bonito, gostoso e
cheiroso”.
II PARTE
Luxo nos espaços de
celebração religiosa
A vetusta significação de utilizar
o luxo como expressão de gratuidade e oferenda de dádiva à instância superior
do âmbito de Deus, ou para manter edificante reciprocidade com os mortos e as
forças divinas, sofreu ao longo do tempo a osmose das inovações de significados
da aquisição de luxo, próprias das características dos diferentes momentos
culturais. No entanto, estaria esta nova conotação do luxo atual, marcada por
um traço expressivo da cultura hodierna, presente nos espaços de celebração?
Apesar das múltiplas misturas sincréticas, envolvendo estilos,
arquiteturas, tipos de decoração e, de clima nas celebrações litúrgicas - com
fortes marcas de múltiplos traços culturais - com entornos distintos para
momentos religiosos e festivos, parece, no entanto, evidenciar-se uma direção antagônica
ao do movimento cultural. Muitas pessoas que se envolvem na edificação de
suntuosos espaços de celebração e os sacralizam como os lugares eminentes da
ação divina, não almejam o pano de fundo que move o luxo relacionado ao corpo a
partir de escolhas subjetivas, mas, com a megalomania das obras suntuosas visam
elevar seu poder pessoal com vistas a angariar reconhecimento social.
Nossa impressão é a de que no âmbito dos tempos religiosos vem
ocorrendo um movimento contraditório:
a)
De um lado a insistência
no aparato do templo, com elevadíssimos gastos para afirmação de que Deus age
única e precipuamente naquele espaço nobre. Um exemplo ilustrativo é o da
edificação do santuário do Divino Pai Eterno, de Trindade – Goiás. O
organizador da construção, em programas diários na TV, apelava, há alguns anos,
com muito imagético em torno da sua pessoa, que todos os católicos espalhados
pelo país enviassem contribuições regulares, e que doassem suas joias para
edificação daquela obra monumental, pois, teria que ser o melhor e mais bonito
lugar do planeta Terra, para a presença e morada de Deus.
b)
De outro lado, pastores
evangélicos condenam incisivamente o uso de imagens de pessoas santas em
Igrejas católicas, vistas como idolatria, mas, fazem simultânea apologética de sacralização
do templo evangélico e da pessoa que nele se constitui em mediação do agir de
Deus. No lugar da sacralização de imagens, manifestam intensa sacralização do
pastor que, em nome de Deus, age por meio dele, para grandes curas e milagres.
O notável ressurgimento da Teologia da Prosperidade sustenta veementemente a
bênção financeira, como sendo o que Deus mais deseja para todas as pessoas.
Esta sacralização do “empoderamento” pessoal relativiza a pobreza e a doença,
como sinais de pecado e fraqueza, mas, que podem ser suplantadas pela fé. A isto se acrescenta que o alcance da riqueza
como bênção de Deus, somente é alcançável pela fé de quem vai aquele espaço
religioso e que se vincula ao mais poderoso mediador de Deus: o pastor, ou a
pastora, que, ali, possuem o poder do milagre instantâneo.
Na verdade, os arautos desta perspectiva
sacralizadora do templo e do pregador, querem multiplicar o caminho da expansão
e da abundância de bens materiais, mas, não revelam o mesmo denodo para organizar
um milagre mais discreto que permita alcance de crédito da moeda corrente para
que, todas as pessoas pobres e doentes, sejam favorecidas pelos bens acumulados
por algumas pessoas ou grupos.
No fundo, parece não haver interesse em torno
de uma sociedade mais igualitária ou justa a partir da partilha de bens como
Jesus Cristo propugnou, mas importa o atrelamento ao suposto agir de Deus, que
somente age naquele espaço sagrado do templo e do espaço ainda mais sagrado de
quem ali – com transe e muita persuasão - irradia a ação instantânea de Deus.
Quando a sensibilidade estética sacraliza o corpo, a aposta em
hiper-construções e santuários, parece mover-se também numa hiper-realidade que
visa reafirmação de poder em torno do que é sacralizado.
Segundo o professor da Universidade de Lisboa, Paulo Barroso,
a semiose do espaço religioso decorre da crença de que determinado lugar
irradia fluídos sagrados. Isso gera uma divisão no entendimento do espaço: há o
sagrado e o profano, e as pessoas que frequentam o espaço sagrado, transformam
aquele espaço em patrimônio espiritual, que é cotidianamente recriado através
de uma psicologia coletiva.
Através da semiose, que é um processo de apreender ou dar-se conta
de que os signos remetem a outra realidade, o lugar sagrado é preenchido de
símbolos que o evidenciam tratar-se de um lugar sagrado. Este reconhecimento
alimenta a fé e as vivências.
A semiose do espaço sagrado sempre depende de muitas memórias
reificadas, porque, com elas, a ordem simbólica ressemantiza e distingue aquele
espaço dos outros. Por isso, os santuários dependem do culto mito-poiético,
envolvendo diversos aspectos:
a)
Lendas e estórias
populares que justifiquem aquele espaço que é muito especial a partir de uma
experiência hierofânica e que eleva aquele espaço à dignidade do culto porque é
santo deste uma origem remota e distante;
b)
Ícones e relíquias
expostas legitimam e confirmam o sentido que aquele espaço sagrado precisa para
o culto;
c)
Formação e
sustentação de crenças e de estados de espírito levam a acreditar e a admitir
que aquela realidade religiosa se configure como verdadeira;
d)
A formação de associações de fiéis,
solidamente constituídas por elevado número de membros, incrementa o culto e
afirma o mito de que aquele lugar torna sensível o sagrado inteligível.
Resulta deste quadro, que um santuário geralmente apresenta
algumas características comuns: um motivo que o distingue dos outros espaços
sagrados; uma localização bem sugestiva; uma origem que tem um substrato
religioso ou espiritual envolvente; e meios que o transformam em fator de
convergência espiritual. Segundo Paulo Barroso: “o mito é, por conseguinte, a linguagem ou a forma de expressão e de
interpretação simbólica do espaço sagrado”. Por isso o fator
mito-poiético vai articulando mito e fé para justificar razões de ocupar aquele
espaço para que o sagrado possa se reproduzir.
A iconografia bonita e atraente sempre foi interpretada na Igreja
católica como mediação educadora da fé. Além de constituir expressão da fé, a
iconografia é, igualmente, espaço para educação da fé, pois funciona como uma
catequese que remete a um testemunho silencioso.
O documento conciliar Sacrossantam Concilium, do Vaticano II,
enfatiza no nº 34 que as cerimônias litúrgicas devem impregnar-se de “nobre
simplicidade”. Quanto às artes sacras e alfaias, como expressão religiosa,
deveriam relacionar-se com a infinita beleza de Deus, expressa em obras
humanas, com a finalidade de contribuir para uma sincera conversão das pessoas
para Deus (SC, 122). As alfaias podem servir belamente ao decoro do culto. No
entanto, ao incentivar a arte sacra, o documento alerta que esta deveria visar
a nobre beleza e não a mera suntuosidade, valendo o mesmo para vestes sacras e
ornamentos (SC, 124). Na forma a construção das Igrejas deveria prevalecer o
cuidado diligente a fim de que sejam funcionais. As imagens sacras “sejam
expostas com moderação quanto ao número, com conveniência quanto à ordem...
para evitar devoções menos corretas” (SC, 125). O estilo da liturgia e a
icongrafia deveria ser simples e austero com foi a vida de Jesus Cristo.
Esta bela orientação, todavia bate de frente com um espírito
utilitarista que manipula os elementos simples da natureza e os deturpa em sua
simbologia para constituí-los em mercadorias, descartáveis e substituíveis como
quaisquer outros objetos. Assim, a arte sacra perde a dimensão de gratuidade,
de conversão e de gratidão a Deus. Impõe-se, então, um devocionismo que tende a
impregnar de luxo as imagens, com evidente prejuízo de toda a dimensão
mistérica. Caso bem ilustrativo ocorreu no passado de nosso país com o estilo
barroco e neoclássico, que minimizou a dimensão simbólica e a do significado da
arte sacra, para despertar mero encantamento pela perfeição artística da obra.
Sem esta dimensão de interpelação religiosa, veiculou-se um tipo de imagem de
Cristo que o apresenta como um típico homem europeu e, sua mãe Maria, como uma
dama rica e bem ornamentada com joias. Desta forma, a arte deixou de
constituir-se um veículo da fé, para realçar-se o artista ou mecenas que a entronizou,
pois, nobres e ricos, bem como eclesiásticos e civis simplesmente encomendavam
obras que expressassem elevado grau de perfeição dos contornos do corpo.
A arte sacra católica sempre procurou realçar dois conceitos na
produção de obras: a) Mistagogia – como meios de levar a uma progressiva
participação no mistério (os grandes sinais do amor de Deus revelados em Jesus
Cristo) a fim de alargar a qualidade humana interior com Deus; b) Mistania –
expressão desta sintonia harmoniosa com alargamento de gestos edificantes e
humanitários. Desta forma, o grande conjunto da arte sacra, envolvendo
arquitetura, ornamentação e alfaias, bem como matéria prima da arte, visa
evitar a radicalização ou o exclusivismo de um modo conceitual desencarnado que
não facilita a encarnação da fé, mas apenas enaltece a autorreferência de quem
a produziu e de quem a encomendou.
Epílogo
Aparentemente o longo percurso da sacralização do luxo fez um
itinerário de democratização do acesso aos bens considerados luxuosos. Também
os espaços sagrados dos templos e das pessoas que agem em nome de Deus parecem
oferecer acesso ao sagrado a quaisquer interessados na fé. Mas, esta convocação
fica delimitada e atrelada a um contexto mais amplo da indução de que a
acumulação da riqueza significa bênção de Deus, que se compraz com o aumento de
riqueza das pessoas.
Em linha paralela à presumida graça e bênção relacionada à
prosperidade de quem tem muita fé, a promessa para crentes fervorosos, esconde o
fantástico e estupendo crescimento das pessoas mais ricas do planeta, com ainda
mais espantoso empobrecimento dos seres humanos mais pobres.
Como nas antigas e modernas desigualdades, as roupagens sacralizadas,
quer de políticas ou de sacralizações religiosas, com hiper-oferta de mediações,
sejam da parte de Deus ou das políticas de consumo para os que querem ser mais
abençoados com mais riqueza e acumulação, não consegue esconder suficientemente,
sob as mentiras e falsas promessas, o fatalismo cruel, advindo dos próprios
ambientes sociais, que nunca os deixará próximos dos poucos agraciados com a
sacralidade dos seus bens materiais, e com a suposta graça de Deus.
Vem sendo produzida e bem insinuada uma mentira maior que sabe
manipular com maestria a boa fé das pessoas, sem afetar os fatores de exclusão
a que estão submetidos. Por mais que estes excluídos e relegados aprimorem seu
talento pessoal, por mais que se esforcem e por mais que se dediquem a um movimento
de superação, são enganados pelo jogo dos que os fazem sonhar, mas que, jamais
os promoverá à igualdade, a ponto de se submeterem a viver como eles, com um
salário mínimo.
Um luxo democratizado para todos ainda está inacessível, fora do
âmbito consumista, porque a maioria dos seres humanos não consegue viver a
partir do que seu coração lhes dita para serem mais felizes; mas, precisam
viver sujeitos e submetidos aos que lhes imputam muitas exigências e os fazem
sonhar com muitas mentiras. Desta forma, os modos de vida humana, com
cooperação, amizade, generosidade, confiança, respeito e acesso igualitário aos
bens humanos de todos, seguem soterrados pela rivalidade e competição, porque o
extraordinário enriquecimento de alguns poucos, jamais estará disponível para
os demais. Como Zygmunt Bauman
salienta o mundo de nossas vidas, - desregrado, individualizado, obsessivo com
crescimento, de consumo do ‘salve-se quem puder’, - leva-nos a vivenciar uma
distância enorme os ideais e a realidade e entre as palavras e os fatos.