quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O poder da mandioca cozida



        Entre os tubérculos do uso cotidiano da culinária brasileira, certamente nenhum se presta melhor do que a mandioca para costumeiros comentários.
Quer seja chamada de aipim, de macacheira ou de maniveira, a mandioca, uma das plantas da família das euforbiáceas, é rica fonte de amidos e, seus tubérculos radiculares, geralmente, protuberantes e alongados, prestam-se, sobretudo, para conversas de duplo significado, especialmente nos jantares e nos almoços festivos.
Teriam estes tubérculos, mais moles ou endurecidos, algum poder mágico, afrodisíaco, ou exotérico, capaz de despertar uma meta-linguagem tão ampla?
Sabe-se que dentre as inúmeras variedades destes tubérculos, uns são venenosos, alguns apresentam coloração esbranquiçada, outros, amarelada e, dependendo das características do solo, uns são mais fibrosos e outros mais polpudos.
A mandioca fornece variados subprodutos da alimentação cotidiana e básica. Pode ser da mandioca brava ou da mandioca doce; da mandioca mansa ou da mandioquinha; do quintal ou do mandiocal; da farinha, ou da farofa; da fécula, ou do polvilho; do polvilho doce, ou do polvilho azedado; do amido ou da tapioca; da goma ou da farinha amilácea; da farinha d’água ou do beiju; de beiju moqueca ou membeca; da beijucuruba ou do beijuguaçu; ou, ainda, do líquido fermentado e azedo que indígenas preparam para inebriar-se e, eventualmente, embriagar-se nos momentos festivos. Pode ainda o subproduto alimentar ser da folha tostada para as misturas poli-vitamínicas que salvam a vida de crianças e pessoas subnutridas; ou da mandioca simplesmente cozida na água ou cozida e fritada; da mandioca com sal ou sem sal; e, do bolo de mandioca ou da sua massa como ingrediente básico para maionese na ausência de batatinha inglesa.
Como tantas outras palavras portadoras de sentidos ambivalentes, os significados em torno da mandioca aparecem especialmente nas tênues modalidades de expressão. Se uns a apreciam ao lado das carnes gordurosas, picantes e bem temperadas, com sal ou sem sal, isto até não é muito relevante; mas, o que certamente não foge da costumeira conversa é a apreciação do estado físico dos pedaços de tubérculos da mandioca servida. Aí, sim, o assunto tende a ser o mesmo: ou porque esta mandioca está dura ou porque está mole. E a digressão da conversa rapidamente enreda para o dono da mandioca ou para quem a deixou mais sólida, rígida ou amolecida.
 Curiosamente, não é conversa exclusiva de homens, ou só de mulheres, aliás, será que em algum ambiente festivo este assunto não envolve comentários e muitos olhares que se cruzam e se entrecruzam com certa malícia?
Poder-se-ia, pois, concluir que a mandioca, de fato, tem um poder afrodizíaco superior ao do amendoim ou de qualquer outra iguaria das refeições festivas. Este poder, todavia, não resulta tanto da composição química destes multi-utilizáveis tubérculos, quanto da força da persuasão da aparência física. E o que estaria a revelar esta forte incidência? Seria tal meta-linguagem um sintoma dos desejos eróticos, que se ativam, mais do que em outras circunstâncias, quando misturadas às múltiplas fantasias que se propiciam nos momentos festivos?  Ou seria uma expressão quase compulsiva das dificuldades que são amargadas no âmago da interioridade e sobre as quais, nem na cama e nem em outros momentos, os casais encontram coragem para explicitá-las?
Pode-se facilmente imaginar que a capacidade de partilhar sentimentos de fracasso ante a mitologização do orgasmo, da potência viril e juvenil, seja masculina ou feminina, é assunto delicado, porque tal partilha pode favorecer que o companheiro ou a companheira usem tal declaração como arma colonizadora, de cobrança e até mesmo para mapear preconceituosamente sua conduta. Facilita um deslocamento: “por que você não funciona?” Desloca-se, assim, o problema pessoal para o suposto problema da outra pessoa. Neste caso, a partilha poderia inibir cada vez mais o efeito esperado, porque o ato relacional já não estaria se movendo por amor ou paixão, mas, por uma rigorosa cobrança de compromisso de êxito: você tem a obrigação de propiciar muito prazer para mim!
O medo de não corresponder à expectativa alheia, leva ao silêncio sobre estas frustrações. Afinal, poderia alguém falar à vontade à sua “cara-metade” que não consegue orgasmo ou que o obtém precocemente, ou sem satisfação, sem pressupor que, com isso, seja colonizado, espoliado e, até sujeito a ficar relegado, para dar à outra “cara-metade” o direito de procurar uma terceira pessoa que a complete com mais prazer na cama?
Quando o imperativo da obrigação de propiciar satisfação a outra pessoa se impõe, esta cobrança vai despertar neuroses inibidoras, sejam masculinas ou femininas.
É possível que a polarização das conversas em torno da mandioca, nas horas festivas, esteja funcionando como processo catártico, porque o assunto envolve dois aspectos: de um lado, os cheiros, os perfumes, os trajes e a descontração, certamente oferecem um elevado potencial estimulador da energia sexual ou da libido, para fantasias mais íntimas e complementares, pois esta grandeza humana, nos momentos festivos, permite às pessoas reportar-se para outros mundos possíveis. Por outro lado, pode-se também imaginar que o clima de descontração da festa permita extravasar o que normalmente não se conversa, pois, com caipirinha e os aperitivos mais picantes, sobretudo, quando acompanhados por alguma outra bebida alcoólica, formam um potente inibidor ou diluente das censuras do subconsciente sobre o insconsciente e, deste modo, autorizam o insconsciente a soltar o que realmente está em jogo: o grande mito de nossos tempos, vendido e divulgado por todos os meios de comunicação, não satisfaz. Este mito insinua que a felicidade eqüivale a relações exitosas e que o desfrute no relacionamento sexual, segundo a conhecida “lei do Gerson”, deve levar a vantagem em tudo! Tal atribuição de causa não permite reconhecer que o instrumento viril masculino está mais ou menos capaz de manter-se erétil e satisfazer anseios femininos mais profundos, pois a falta de diálogo e a capacidade de criar um clima de bem-querer levam a um embotamento dos dois lados. Explicitar este desconforto tão íntimo, tão subjetivo e tão arriscado, cria medos, e, por isto mesmo, a mandioca, mais do que por suas riquezas nutricionais e suas variáveis na adaptação de iguarias alimentares, impregna-se de um poder fantástico, que desperta dos baús do inconsciente, que, em torno do “duro” e do “mole”, há incontáveis seres humanos precisando exteriorizar, de maneira sutil e irônica, uma desconfortável decepção com o que cotidianamente acontece no âmbito da cama.
Por este benéfico serviço, a mandioca cozida já deveria ser merecedora do reconhecimento de utilidade pública, quem sabe com a declaração do “Dia da Mandioca” e, com direito a assegurar desconto nas horas psicoterapêuticas.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

    Criativa e super-rápida na inovação, A era digital facilita a vida e a ação, Mas enfraquece relacionamentos, E produz humanos em...