domingo, 13 de outubro de 2013

O canelinha

Nascido na beira do rio Uruguai, Canelinha, apelido de Pedro Vargas, deve ter aprendido a lidar com pesca e caça desde o tempo da gestação. Foi educado e especializado para lidar com canoa, pesca e caça que era muito farta na beirada do Rio Uruguai, nos tempos em que toda a região do oeste catarinense era envolvida pelos mistérios das vastas, onduladas e cerradas florestas. Filho de pais muito pobres, Canelinha, como todos os que moravam na beira do rio Uruguai, aprendeu cedo a lidar com os imprevistos da caça e da pesca. Nem sempre o suprimento de carne era suficiente para o consumo e para a venda regular. O apelido “Canelinha” poderia referir-se a pernas finas, ainda mais, as de quem sempre andava sobre canoas e as sapecava no sol, todos os dias, além das decorrências de quem nem sempre fazia fartas e regulares refeições. A razão do apelido, no entanto, nasceu de uma viagem às ruínas de São Miguel, na região missioneira do Rio Grande do Sul. Na época em que as sepulturas dos indígenas, ali enterrados, vinham sendo violadas com a suspeita de que poderiam estar ladeadas com muito ouro e outras preciosidades, estas sepulturas feitas de pedra sobre o solo, deixavam os restos mortais expostos ao tempo e ao vento. Pedro impressionou-se com a espessura de alguns ossos e resolveu recolher um fêmur de índio, possivelmente de um troncudo índio guarani, pensando em utilizá-lo para o feitio de um especial cabo de facão, ou “fincão” segundo a linguagem mineira. Se o intento era dos mais nobres, o resultado foi dos mais deprimentes. Ao chegar à casa dos pais com o dito osso de índio para ser utilizado como cabo de facão, além de uma saraivada de xingamentos, teve que levar o osso de volta ao lugar onde fora tirado. Embora o osso tenha dado a impressão de ser uma “canelona”, o fato de Pedro o classificar de “canelinha”, rendeu-lhe o apelido e que acabou ocupando o espaço do seu nome registrado no cartório. Tudo indica que Pedro absorveu bem o apelido e se valeu dele para ampliar sua característica de mentir espantosamente, sobretudo, quando os assuntos envolviam caças, pescas e lidas com fatos misteriosos da mata. Canelinha desenvolveu, aos poucos, uma habilidade de fazer rapaduras com muito amendoim e que ele denominava de “xororoca”. Muita gente ia à sua casa para comer “xororoca” e ficar ouvindo, durante longas horas, histórias e mentiras adaptadas por Canelinha. Mais do que algum presumido potencial do amendoim, os assuntos é que causavam efeitos afrodisíacos na fantasia dos mistérios de águas e matas e potencializavam o imaginário das coisas misteriosas descritas nos menores detalhes. E quando alguém suspeitava do exagero, Canelinha repetia, impreterivelmente, a mesma expressão: Mas moço! Estou te falando! Volta e meia pegava alguém num trocadilho pitoresco. Numa ocasião falava de uma caçada, frustrante, pois, andando o dia todo à procura de algum animal silvestre, nada encontrou. Não apareceu sequer uma pomba para ser abatida. Voltava todo desluzido para casa e, já próximo da residência, percebeu um movimento numa touceira de capim no meio de brejo. Viu que poderia ser até mesmo uma pessoa. Certificou-se bem para ver se o movimento não era de gente e detonou o tiro de espingarda, daquelas chamadas “espera um pouco”, pois, tinha que ser recarregada através de cano, o que sempre implicava em razoável demora. Ao verificar o efeito do tiro, disse que juntou noventa e nove preás mortos só com aquela disparada de chumbo. Então José, espantado, o interpelou: Porque não arredonda o número para cem? A resposta veio séria e imediata: Moço, eu estou lhe falando! Você acha que eu iria sujar minha consciência por causa de um preá? Estou lhe falando! Ninguém perdia o humor porque todos já sabiam que as horas de “xororoca” envolviam muitas mentiras e adaptação de causos imaginados. Todos já estavam tão acostumados com as mentiras do Canelinha, que num dia um bom grupo, acabou entrando na onda da sua mentira. Estavam reunidos cerca de vinte homens numa roda na frente da Igreja, esperando a chegada do padre para a celebração da Missa e, em conversa animada. Quando Canelinha vinha chegando para se inserir na roda da conversa, alguém se antecipou e já pediu: - Canelinha, conte uma mentira para nós? Ele, na sua tradicional pose altaneira de aparente seriedade, imediatamente respondeu: Não. Hoje não posso. Aconteceu uma coisa muito triste, pois acabou de morrer nosso amigo José, que morava a cerca de quinhentos metros de distância, homem muito conhecido e estimado na comunidade. Sem dar maiores explicações, Canelinha falou que já estava indo para lá. Tudo lhe ajudou para que a mentira desse certo. Ao lado da Igreja havia uma área de mato que escondia o rumo da casa de José. Foi andando sério naquela direção, mas contornou o mato, pegou outra estrada, para voltar ao pátio da Igreja. Enquanto isso, a roda de conversa foi imediatamente desfeita e, num clima de espanto e pavor, todos se deslocaram no rumo da casa de José. Ao chegar ali, nenhum ambiente de choro e, nem de velório, mas viram que Mariana estava aparando os bigodes de José para deixá-lo mais elegante e aprumado, pois estavam prestes a sair para a celebração religiosa. Foi então que, muito destrambelhados, perceberam que Canelinha, de fato, lhes aplicara mais uma mentira.

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