João Inácio Kolling
Sinopse
A história humana está repleta de polarizações a respeito
do que se entende por ordem e desordem e do que se assume diante destes âmbitos,
seja na lida doméstica, na organização social e no modo de entender o mundo e
suas manifestações. Colocadas como polarizações contrárias
e antagônicas, a defesa unilateral de qualquer uma destas duas posturas pode levar
a extremas crueldades, sempre na argumentação de que a desordem precisa ser
combatida pela ordem, ou vice-versa, quando a ordem se torna a maior causadora
da desordem.
Assim, guerras,
desde ideológicas até os grandes genocídios, costumam ser efetuadas em nome da
ordem e para colocar um limite na desordem. Do mesmo modo, Estados civis e
religiosos, tidos como o mais altaneiro cultivo e expressão da ordem, matam,
eliminam e espoliam os membros da sua agremiação, seja através do exército, da polícia
e de tantos outros mecanismos coercitivos e ameaçadores, até em nome de Deus, para
eliminar todos quantos não aceitam submeter-se à sua ordem.
Parece que estamos num momento em que se evidencia cada
dia mais a estreita conectividade da ordem e da desordem: não constituem
realidades contrárias, nem no universo, nem na condição humana e, menos ainda,
na sua organização social, seja de filosofias, jurisdições, crenças religiosas,
artes ou ciências. Ordem e desordem constituem realidades complementares e,
portanto, constituem realidades dignas de outros olhares para além deste único olhar
direcionado que aprendemos a fitar.
Palavras-chave: ordem – desordem – cosmos
– caos – criacionismo – evolucionismo – nova ordem.
Prólogo
Diante da questão tão cotidiana e evidente em torno do
que é ordem e desordem, as respostas podem ser escabrosas e se refletem nas
lidas diuturnas das diferentes manifestações culturais dos seres humanos –
especialmente nas afirmações das ciências e nas concepções religiosas do mundo –
pois ali se explicitam em muitas e variadas oposições, tais como: tradição e
modernidade, visão sagrada e profana; o certo e errado; a turbulência e a segurança;
a agitação e a paz, etc.
O que sobressai de forma muito evidente é que ordem corresponde
ao que é racional, ao que é ordeiro e organizado, mas, o pensado como ordem,
mantém uma intimidade complexa, enigmática e imprevisível com a desordem. O
estabelecido como ordem, na verdade, também está impregnado com confusão e
instabilidade. Tal imbricação não está somente na organização humana, mas,
também na organização mais ampla do universo.
Nas rápidas ponderações deste texto, aliamo-nos aos que
defendem a inseparabilidade da ordem em relação à desordem, porque a ordem
decorre da desordem, e, a própria ordem produz processos de desordem.
A partir das leis da termodinâmica, é possível repensar
muitas afirmações vinculadas à origem e ao desenvolvimento da vida humana,
sobretudo, diante das concepções criacionistas e evolucionistas. Mas, o mesmo
antagonismo também se reflete no Estado e em torno da auto-poiese e gera crises
a partir de concepções fundamentalistas, tanto pela ótica da ciência quanto da
religião.
O alcance deste
texto é limitado e pretende somente despertar um alargamento de noções que
facilmente geram afirmações categóricas de uma fixidez estável e determinista,
quando se trata de ordem e desordem. Basta observar que na ordem de tantos
fenômenos naturais de ciclones, furacões, chuvas, ventanias, secas e terremotos,
há uma constante desordem que altera suas regularidades previsíveis.
1.
Inseparabilidade
da ordem e da desordem
Ao invés de pensar a ordem
e a desordem como realidades distintas, opostas e adversas, convém pensar que
são elementos constitutivos de uma mesma realidade.
Rui Paz
salienta que para se definir ordem, torna-se necessário considerar diversos
níveis:
a)
A
dos fenômenos que aparecem na natureza física, biológica
e social, onde a ordem é relativamente constante e estável, regular e
repetitiva;
b)
O
da natureza de ordem – que envolve determinismos,
causas e necessidades que levam os fenômenos a certa constância na sequência
dos passos;
c)
O
da ordem como coerência lógica e previsível que se estabelece na
racionalidade, como harmonia e ordem mental, que, por sua vez, envolve cinco noções:
ordem, determinismo, objetividade, causalidade e controle.
Nestes níveis, ocorre uma
recusa vigorosa da desordem,
que tende a ser vista como empecilho da clara razão científica. No entanto, na
ciência moderna tem aparecido desde a metade do século passado, cada vez mais
evidente, que a desordem também se manifesta no saber que pretende erradicar a desordem.
Especialmente o surgimento
do segundo princípio da termodinâmica abre este olhar mais amplo sobre a ordem,
pois, foi constatada a irreversibilidade da degradação da energia, um princípio
de desordem, segundo o qual, o calor se agita e se dispersa e, simultaneamente,
é desorganização.
Tal conclusão afetou todos
os sistemas organizados. O efeito da descoberta deste princípio da
termodinâmica igualmente atinge a ideia de movimento perpétuo que pressupunha
um universo físico como um relógio perfeito e inalterável. Agora, este mesmo
universo é visto como essencialmente caracterizado pela corrupção. Já se torna
inviável pensar o futuro como progresso contínuo, porque nele se mistura a
decadência e a morte, porquanto dinâmicas contrárias no universo revelam ordem
e desordem, organização e desintegração.
Por outro lado, a desordem, também comporta pelo menos
dois níveis:
a) O das irregularidades,
das inconstâncias, instabilidades, acidentes, etc. É o nível que perturba
organizações, desorganiza, desintegra e leva à morte. Envolve igualmente o
barulho que atrapalha a assimilação da mensagem.
b) O do aparecimento do acaso e da
eventualidade (irracionalidade, incoerência, demência,
etc.).
O
referido autor ainda salienta que: ”A
noção de desordem preocupa. A mente é impotente diante de um fenômeno
desordenado. Pior: a desordem provoca a degradação e ruína no universo e na
sociedade. A de que desordem é aquilo que precisa ser eliminado. Na história do
pensamento e da sociedade assistimos a uma recusa permanente da desordem e, é
claro, do acaso”.
Por isso, um erro básico da astrologia
seria precisamente o de excluir o acaso e o acidente, tornando-a assim, um
determinismo da racionalização, pois, como toda pré-ciência, recusa o acaso e a
desordem, seja no entendimento das causas últimas, da moral ou da captação dos
sentidos, das posições políticas ou da desordem na sociedade, pensada, como
anarquia, caos e crime.
2 – Valoração do caos organizado
Do
ponto de vista religioso, a
narrativa do Gênesis, lembra que no “princípio havia o caos”. Deus teria
estabelecida a ordem e teria estendido esta capacidade à condição humana, e,
incumbindo-a da tarefa de colocar ordem no lugar do caos. O
processo histórico humano, no entanto, já nos mostra que o momento presente é
crucial, devido à deterioração das condições de vida. Os efeitos climáticos
aumentam a preocupação em torno do modo econômico adotado pelos seres humanos e
sua organização na produção e no consumo de bens naturais do planeta Terra. Tal sistema vem produzindo profundas
desigualdades e instabilidades na organização da vida.
As chamadas economias ricas revelam-se, na verdade, além
de injustas, perversas na exploração dos bens da terra e causam miséria à maior
parcela do gênero humano. Por outro lado, as guerras, cada vez mais comuns,
revelam que a ordem, tida como soberana, vem causando desordem em grandes
âmbitos do planeta. Aparece também um crescente aumento de comportamentos
doentios, com muitos neuróticos e muitos esquizofrênicos a atrapalhar a
convivência humana.
3 – Desordem e caos no cosmos
Sustenta-se na cosmologia que nosso universo, como na
dedução religiosa do Gênesis, provém de um grande caos. Fala-se em “Big-bang”
ou de outros processos para concluir que a ordem do universo teria se
engendrado no meio da desordem do caos. Assim, a ordem de galáxias, sistemas,
estrelas e planetas teria se formado a partir de evolução do caos.
Sob este enfoque, podemos perceber como ainda hoje, sob a
auto-apreciação dos humanos super-inteligentes, eles vivem agitados por
constantes guerras, não apenas militares, mas, também comerciais em que as
batalhas dos exitosos não mencionam o caos dos perdedores. A denominada boa
gestão tende a ocultar os verdadeiros assaltos feitos a outros, mesmo
dissimulados nas propagandas agressivas e nas informações privilegiadas e
manipuladoras sobre outros, com clara intenção de enganar e de levar muita
vantagem.
Apesar dos muitos paradigmas ou modelos científicos que
fornecem certo consenso de entendimento da realidade que nos envolve, podemos
observar que eles caem, a toda hora, com inovações de estudos que sustentam
outros modos de entender esta realidade a partir de comprovação de que os
paradigmas vigentes estavam equivocados. Por isso já se fala em “caos
determinístico”, pois, da aparente contradição do caos com o determinismo,
observa-se que a ordem tende a aparecer no meio da desordem, e, que a própria
ordem causa desordem. Por outro lado, mesmo dentro da desordem, também existe
ordem.
A física quântica também nos ajuda a relativizar a ideia
de determinismo, porquanto revela aos físicos a incerteza e a contradição em
torno do movimento e da posição de uma partícula, uma vez que pode ser onda e
corpúsculo ao mesmo tempo. Assim, o universo não é pensável sem a desordem,
pois, se fosse completamente ordenado e organizado, nem daria espaço e
condições para uma evolução. Como a ordem e a desordem coexistem não se pode subestimar
nem uma e nem outra.
“As máquinas
artificiais se estragam rapidamente, embora sejam feitas de componentes bem
confiáveis. As máquinas vivas embora constituídas de componentes que se
estragam rapidamente, as proteínas, escapam, durante certo tempo, da
degradação: é que as células fabricam proteínas novas, os organismos fabricam
células novas, enquanto a máquina artificial é incapaz de se auto-reparar e de
se auto regerenar”.
Enquanto a máquina artificial suporta os efeitos da
desordem porque não se auto-regenera e nem se auto-repara, as organizações
vivas, não apenas toleram certa desordem, mas, também produzem processos de
regeneração que rejuvenescem processos que se degradaram e se regeneraram. Há,
pois, simultânea tolerância, produção e combate à desordem.
Na evolução biológica ocorrem acidentes climáticos por
causa de mudanças ecológicas e reorganizações genéticas, geralmente vistas como
manifestações de desordem o equilíbrio e à homeostase transitória que se delineou.
Assim, muitas coisas que causaram degradação e desintegração, acabaram
reorganizando a vida de maneiras novas.
“Sim, há ordem
nesse universo, mas essa ordem se cria, se desenvolve; se corrompe e se
destrói. Existe muita poeira cósmica (ela é em maior quantidade do que a
matéria organizada) e há muita poeira doméstica quando paramos de varrer, de
espanar, de limpar, isto é, quando deixamos as coisas de lado... No nosso
universo, as estrelas cospem fogo, ardem e finalmente explodem. Há um
incessante barulho de fundo, barulhos diversos no silêncio infinito do espaço”.
Decorrente
disso, tanto a ordem quanto uma desordem, revelam duas faces distintas, ou
tidas como opostas nos processos humanos:
a) A desordem
ostenta por um lado a delinquência, a criminalidade e os atritos com outras
pessoas; mas, por outro lado, ostenta a face da liberdade (que não é a
desordem, mas que pressupõe regras de jogo e muita tolerância para não ficar
atrelada à ordem da lei e na lei da ordem);
b) A ordem
também apresenta uma face de regulações e de proteção para que aconteça a
liberdade, mas, a outra face, coage, impõe e impede a existência da liberdade.
No aspecto humano, percebe-se esta mesma contradição,
pois, o mesmo cérebro que produz razão e equilíbrio, é o cérebro que produz o
desequilíbrio, a demência e a irracionalidade. Tal procedência aponta para a
teoria da complexidade.
O termo “complexo” vem sendo muito usada para designar
algo difícil, complicado e misterioso; algo que não se entende e nem se
consegue assimilar no entendimento. O que leva à teoria da complexidade, no
entanto, envolve um processo da vida:
“A teoria da
complexidade é a parte da ciência que trata do emergente, da biologia e da
inteligência artificial, que, como os organismos vivos, aprendem e se adaptam.
A lógica da ciência da complexidade substitui o determinismo pelo
indeterminismo e a certeza pela incerteza”.
Sob este referencial da incerteza, a palavra caos,
historicamente assimilada como desordem, significa na ciência moderna, a ordem
mascarada de aleatoriedade. Até o que parece caótico é fruto de uma ordem
subliminar, onde os pequenos detalhes, não percebidos, podem causar grandes
efeitos, revelando que não há uma linearidade no universo. A pressuposição
determinista deduzia que tudo dependia da linearidade de causas e efeitos. No
entanto, para a ciência moderna, fenômenos deterministas constituem somente uma
pequena parcela dos eventos naturais. Tudo vai evoluindo e mudando
continuamente e já não se pode pressupor que no universo tudo seja estável e
passivo.
Sob uma paixão por certezas, a desordem sempre foi
desprezada e a aleatoriedade foi assimilada como afirmação ignorante. No
entanto, para a teoria do caos, a desordem e a instabilidade, bem como o acaso,
é que constituem a norma ou a regra geral. Sob este enfoque, pode-se entender a
teoria da “autopoiese”, ou seja, a teoria da autoprodução.
4 – Ordem e desordem na perspectiva da Auto-poiese
O
termo “autopoiese” (auto = próprio; + poiesis = criação) foi criado em 1970,
pelos biólogos e filósofos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, para salientar
que a vida é produtora de si própria e não é produzida por condicionantes
externos. Eles concluíram que os seres vivos tem a capacidade de se produzirem
a si próprios.
Atualmente, esta noção foi estendida da biologia para
outros campos da ciência, como Antropologia, Psicoterapia, Administração, etc.
Maturana e Varela começaram a se perguntar se a
fenomenologia social também estava ligada a uma fenomenologia biológica. E
deduziram o que pode ser ilustrado numa metáfora: os seres humanos são máquinas
que se produzem a si mesmos. São, pois, produto e produtores de si e funcionam
numa circularidade produtiva. No exemplo de uma mesa, os referidos biólogos
constataram que dá para diminuir o tampo, e, se está redondo, pode-se fazê-lo
quadrado; também podem ser encurtadas as pernas etc., e isto, ainda não lhe
tiraria a característica de ser uma mesa. Mas, uma vez desmontada na sua
organização pela separação das partes, ela deixa de ser mesa.
Nos sistemas vivos, algo similar se manifestaria: muda a
estrutura, que, constantemente se adapta às modificações do ambiente, mas, na
desarticulação da organização, provoca-se a morte. Assim, os sistemas vivos são
determinados por uma estrutura social, mas, também interagem na estrutura de
forma imprevisível. Os seres vivos são determinados, mas não pré-determinados,
porque a estrutura muda constantemente e de forma aleatória, firmando-se a
circularidade, pois, o mundo vivido por nós depende da nossa visão do mundo.
A realidade percebida depende da estrutura da nossa
individualidade pessoal. Deste modo, existem tantas realidades quantas pessoas
as percebem. O observador não é isolado do que observa, pois, uma onça vai
olhar o mundo pela sua estrutura de onça, e, jamais pela configuração do olhar
humano. Também o ser humano olha a cobra de um jeito, que, com certeza, não é o
mesmo jeito de um gavião a observá-la. Assim, nossa visão de mundo sempre é
fragmentada e restrita. Significa que nossa visão nunca nos permite chegar à
verdade objetiva dos outros.
5 – Ordem e desordem na visão estadocêntrica
A ideia de ordem também perpassa uma realidade em crise
profunda na articulação do Estado. Conquistado como parâmetro mais elevado e,
meio mais eficaz de proporcionar boas e satisfatórias relações humanas, o Estado
vive o velho maniqueísmo de se proclamar como a ordem, e o lado do bem; diante
da desordem, simbolizada pelo mal.
Ao pressupor uma ordem previamente estabelecida, e
adotada como o melhor bem-comum, submete os sujeitos particulares para
persuadi-los de que ele, o Estado, é o melhor bem universal, capaz de dar
direito, cidadania, segurança, amparo, proteção e realização aos seus membros.
Assim, impõe, de forma vertical e heterônoma, uma verdadeira barbárie, sob a
alegação de que está evitando a desordem e o caos.
A visão
estadocêntrica, geralmente agrega membros de posturas políticas de direita e de
esquerda, sob uma mesma condição reativa, a fim de convencer os membros de uma
nação, que eles carecem impreterivelmente do Estado. Sem o Estado ficariam
totalmente fragmentados e sujeitos à desordem, sem o Estado, os seus conflitos
seriam intermináveis e as competições jamais encontrariam sossego.
Sob o pretexto de regularizar os conflitos, os políticos
que constituem o Estado, dão a entender que estão acima da sociedade, mas, facilmente
se esquecem de que a competição é inerente à condição humana e não apenas a
cidadãos não tutorados pelo Estado.
Se a conflitividade constitui uma realidade inegável, a
capacidade de cooperar, por sua vez, depende de aprendizagem, pois, a sociedade
humana é, segundo Augusto de Franco,
incapaz de gerar a esperada ordem a partir da cooperação. Por isso, o Estado se
arroga o direito de impor a ordem. E já nem se pergunta se a ordem é justa, ou
injusta, mas, simplesmente a justifica pelo necessário combate à desordem.
A insatisfação generalizada com o Estado deve-se
exatamente à sua concepção de ordem, pois, para assegurar a soberania:
discrimina, prende pessoas, tortura e elimina aquelas pessoas ou grupos que não
se submetem, e provoca verdadeiras catástrofes humanas. Assim, em nome da
defesa dos valores mais sagrados, um Estado particular regula a vida de um povo
e normatiza a partir da força militar e da capacidade econômica tudo quanto
quer fazer em nome da ordem.
Nota-se, pois, um verdadeiro paradoxo quando a ordem é a
que mais desordena a vida em nossos tempos.
“A
ordem, segundo a modernidade, é uma ordem jurídica, estatal, minimalista em
teoria e maximalista na prática. A jurisdição progressiva das relações sociais
é uma luta sisífica contra pressentimentos de desordem que, ao serem aplacados,
cria um vazio que só novas desordens podem preencher... Curiosamente,
no entanto, o direito não se imune deste caminhar incessante sobre as águas da
desordem. Ao caminhar, ele próprio desordena-se, fragmenta-se, pluraliza-se,
descentra-se. A ordem que não sabe pensar a desordem acaba sempre por ser pela
desordem”.
Um
olhar retrospectivo sobre a evolução do estado brasileiro não nos livra de uma
associação à imagem do lobo do homem, que apenas estabelece deveres, mas que confere
pouquíssimos direitos. O próprio sentido de povo como nação, nasceu de
mobilizações muito ligadas a questões etnocêntricas: “No Brasil, o Estado veio associado à escravidão, à internacionalização
das riquezas e à pilhagem da cultura e da economia. Tornou-se um Estado
patrimonialista: um poder político marcado pela privatização do espaço público
e pelo uso/abuso das instituições a fim de dominar os pobres, trabalhadores,
escravos e mestiços. O direito sempre esteve associado ao patrimônio privado, à
centralização da renda, aos direitos individuais dos grandes proprietários de
riquezas e dos ‘donos do poder’(no dizer de Raymundo Faoro). Com essa rota
distorcida do poder e do direito, formamos nossas míopes noções de segurança
jurídica e de segurança nacional”.
Neste processo de formação, o ordenamento jurídico
brasileiro sempre associou de maneira especial segurança pública com a
segurança nacional, colocando, desta maneira, O Estado como instância altaneira
sobre a vida do povo.
A relação ambígua entre ordem e desordem afeta também
outra polêmica muito ampla envolvendo concepções religiosas e científicas. É a
questão criacionismo e evolucionismo.
6 – Ordem e desordem na relação entre criacionismo ou evolucionismo?
A
polêmica costuma estabelecer-se entre a defesa acirrada de uma concepção contra
outra. Nosso entendimento é o de que o criacionismo não seja necessariamente o
antagonismo da evolução. Sem entrar nos meandros do que pode ferir a
sensibilidade de uns ou de outros, o entendimento da noção bíblica, não exclui,
por obrigação, o surgimento humano a partir de um processo de evolução emergente
do caos.
Ao assimilar a alegoria da criação, efetuada em sete
dias, relacionado ao horizonte dos dados da Paleontologia, percebemos que a
simbologia do número sete (“7”) refere-se a algo não mensurável. Na época da
redação do texto do Gênesis a contagem do tempo não era como esta de nossos
dias, de uma semana com sete dias. Desta forma, sete dias equivalem aos bilhões
e milhões de anos em que se desencadeou a formação do planeta Terra e, o mais
recente surgimento dos seres humanos neste planeta (sexto dia).
Costuma-se dizer,
numa comparação ao relógio com a longa história da formação da Terra, e do
aparecimento dos hominídeos neste longo processo evolutivo de um tempo
imensurável, eles teriam surgido às 23 horas, cinquenta e nove minutos e 59
segundos.
Os mencionados sete dias – pensados como tempos
imensuráveis, com grandes e possíveis estágios da formação da Terra e do
surgimento da vida, corresponde à intuição da narrativa bíblica dos possíveis
passos deste grandioso fenômeno que se expandiu a partir de etapas em grandes
períodos históricos e que culminaram no surgimento dos seres humanos.
Assim, o que se afirma em nome da paleontologia,
significa a mesma coisa que a intuição do olhar religioso de um judeu, que, ao
contemplar este fenômeno grandioso do universo, sentiu que, no fundamento desta
grandiosidade, estava a mão do amor de Deus. Certamente a capacidade de Deus
não fica desmerecida e nem diminuída, se no seu amor, o pressuposto do que fizera
em sete dias, na verdade, possa ter levado muitos bilhões de anos.
Uma leitura fundamentalista e literal dos textos
bíblicos, que sequer tiveram a pretensão de serem científicos, porquanto
expressaram uma experiência religiosa de alguém que percebeu a existência de um
mistério de amor maior do que o alcançável de ser feito e ajustado pelo ser
humano.
Mesmo a dedução científica de um possível “Big Bang” ou,
qualquer outro fenômeno que tenha engendrado o início deste imenso cosmos,
paira - para além da ciência e da religião, - uma incerteza, porque não existem
dados objetivos que assegurem a comprovação da causa última desta existência.
Tanto do ponto de vista religioso, quanto do científico, convêm, pois, certa
cautela: é possível que algum dia alguém chegue a constatações muito distintas
e diferentes!
Entretanto, ocorre na concepção religiosa, sobretudo, na
mais fundamentalista, a convicção de que cada criatura humana é obra direta do
criador, e que, por isso, não faria parte das contingências de caos e ordem do
longo processo de evolução do planeta Terra. Supõem que a alma, advinda de fora
deste universo, estaria vinculada a uma ordem que está além dele. Por isso,
torna-se comum a adoção de posições categórica como a que estabelece a
contraposição criacionista e evolucionista:
a) O criacionismo – a
sustentar que o universo fez o percurso do caminho perfeito e bem organizado
para a crescente desorganização. Deus teria criado o mundo perfeito, mas, o
pecado instalado no mundo, teria desencadeado um processo de desequilíbrio e
destruição. A religião teria, por isso, a incumbência de religar esta fonte
primigênia decaída, ao amor de Deus.
A
afirmação da origem criacionista entende que o caminho do universo vai e da
ordem para a desordem, ou seja, da complexidade para a simplicidade.
b) O evolucionismo – por
sua vez, considera inaceitável essa degradação, porquanto afirma precipuamente
o inverso: que do caos e da desorganização ocorreu um processo evolutivo para
maior organização.
Nesta perspectiva da
ciência, Júlio César Borges afirma: “Toda
a vida na Terra obedeceu na sua criação ou evolução, como queiram, certamente a
primeira Lei. O somatório de todas as alimentações, mais todas as excreções,
todas as respirações, todas as sínteses de componentes, todo calor absorvido ou
gerado, todas as fossilizações, todos os descendentes, quer evoluam, mutem ou
se alterem, na história da Terra, independentemente deste período de tempo, é
constante, pois a vida perde energia, juntamente com a Terra e o próprio
sistema solar, para o espaço exterior, simplesmente isso”.
Isso, porque estaríamos
fundamentalmente dependentes da energia, observação que gerou as duas leis da
Termodinâmica, envolvendo a energia e seus efeitos: “1ª Lei: A energia é conservada, não pode ser criada ou destruída,
apenas transformada; 2ª Lei: Um processo será espontâneo se o caos do universo
aumentar”.
Júlio César Borges também
salienta que: “nos processos espontâneos existe
uma tendência a aumentar o grau da desordem. O universo sempre tende para a
desordem crescente: em todos os processos naturais a entropia do universo
aumenta.
A entropia, por
conseguinte, está relacionada à desordem de um sistema, pois, tudo tende ao
caos e, a própria ordem é um caso limitado no interior da desordem.
Enfim, parece que nada diminui a nossa condição humana,
se deixamos de nos entender como parte deste processo evolutivo em que a
desordem do amor de Deus permitiu nossa existência.
Possivelmente
vamos continuar na paradoxalidade de oscilar entre a ordem e a desordem. Como
diz Mirela Ribeiro, “Uma eterna oscilação
entre ordem e desordem tem influenciado, na tradição ocidental, concepções de
mundo, traduzidas em filosofia, artes e ciências. Até meados do século XX, o
mudo podia ser percebido como ordem a partir de certezas da objetividade, da
medição e da previsão... A partir daí, realidades incertas, fronteiras móveis,
jogos de possíveis, exploram uma cartografia do imprevisível”.
Tanto na física quântica, quanto nas filosofias e nas
vanguardas da arte, misturam-se as duas realidades da ordem e da desordem e
propiciam relações complexas, enigmáticas e altamente imprevisíveis. Aquilo
que, num momento, é pensado como o melhor da ordem, não deixa de estar
misturado com muita insegurança, confusão e instabilidade, e acaba relegado em
outro momento como inadequado.
Com certeza, toda busca de ordem vai continuar
acompanhado de uma atinente fermentação de desordem e que, por sua vez, vai mediar
algo novo.
Ainda continuaremos reféns de uma noção muito comum que
identifica a ordem com racionalidade e boa organização e que o sensível, o
intuitivo e o poético façam parte da desordem. Trata-se de herança cultural já
muito antiga, pois o filosofo Platão já deduziu que a desordem causa a
contingência e a destruição. Mas, o tempo moderno mudou esta noção e o sensível
já não é mais tão demonizado como foi em tempos antigos e tão relativizado como
expressão frágil da desordem.
Basta observar como, seguidamente, nós nos encontramos
diante da desordem: é todo o envolvimento com as doenças, contaminações, com as
violências físicas, políticas, religiosas e este constante assédio de
inseguranças, medos, dúvidas e hesitações tipicamente desordenadas.
De certa forma o passado nos oferece um substrato ou
suporte para assimilar muitas coisas como sendo do âmbito da ordem. Isso até
propicia uma sensação de segurança. No entanto, tudo se mescla com a desordem
ante qualquer possibilidade de inovação, mudança e opção por algo novo. É uma
espécie de dialética em que constantemente oscilamos entre o desejo da ordem e
a efetiva manifestação da desordem.
Epílogo
Apesar do grande impacto das concepções evolucionistas no
entendimento da vida e do cosmos, certamente, esta ordem estabelecida na
capacidade racional de explicar cientificamente os passos da evolução para a
auto-poiese da vida, e da constante inter-atuação das ordens e das desordens,
integra uma realidade muito mais ampla do que a nossa. E, ainda encontrará -
devido à própria provisoriedade dos paradigmas de conhecimento – um dia em que
alguém conseguirá enxergar as teias e os emaranhados destas concepções em torno
do universo e da vida, sob um olhar muito diverso deste que ocupa nossas mentes
e nossas convicções.
Como a curta história humana tem revelado grandes
reviravoltas nas explicações dadas como evidentes, como definitivas e
categóricas, poderão ainda surgir muitas outras em tempos vindouros a partir de
surpresas aleatórias e do acaso.
O mesmo fenômeno poderá acontecer no campo das
interpretações de experiências religiosas, sem que isto diminua a grandeza da
condição humana e a capacidade criadora, ou desencadeadora de um longo
processo, que alguém, muito além de nós, chamado de Deus ou de outro nome ou, inominável,
tenha engendrado este grande enigma do universo e da vida humana, como um sinal
evidente do seu bem-querer.
Muito fato aleatório e casual poderá estar por trás de
tudo quanto já foi determinado como definitivo e rigorosamente comprovado.
Poderão, pois, dos imensos repertórios da desordem, ainda advir incontáveis
outras ordens melhores do que estas dos nossos tempos. E como o papa Francisco
insiste, cabe também à Igreja abrir-se para novos entendimentos da razão de sua
existência e, para tanto, precisa, impreterivelmente, ser uma “Igreja em
saída”. Mais do que firmar-se nas estáticas afirmações de uma imagem
solidificada, cabe-lhe procurar outro modo de ser e de agir.
Por outro lado, diante dos processos entrópicos da
energia, podemos aceitar que, assim como o cosmos, a Terra e a vida humana
passam por um processo gradualmente destrutivo, que também nossa
individualidade, o Estado, a Religião, e toda a produção cultural humana, aumentam
a desordem, e, esta mesma energia do seu definhamento, pode eclodir em novas
características de cosmos, de mundo e de instituições sociais na condição
humana. Deste modo, mais do que lamentar a falta de ordem em certas
instituições, convém focar os olhos para formas menos desordenadas. Que apareçam
novos céus e novas terras; novos seres e novas estruturas sociais!
Enfim, quando a principal causa da desordem decorre da
ordem, significa que a ordem já está caduca e que outra ordem melhor precisa
ser articulada.