quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O sujeito lambisgóia



Michel, quando ainda era menino pequeno, recebeu pelo menos uma dúzia de apelidos. De vez em quando as pessoas mais próximas, até demonstravam dó, pois sabiam que Michel era fruto de um ambiente familiar, no qual se mentia e se exagerava ao máximo em tudo quanto era narrado. Nada era pequeno e nada era insignificante.
Na boca do parentesco de Michel, um fato banal e rotineiro adquiria ar de algo extraordinário. Esta ancestralidade propiciou a Michel uma rara inteligência para fazer fatos comuns adquirir empolgação. Era colheita fora do comum, era chuva de proporções diluvianas, era briga de correr sangue por oito dias e era prejuízo que implicava em milhões, quando os valores, na verdade, não passavam de alguns reais.
Como sabia tudo um pouco melhor e com mais detalhes do que os outros, os colegas passaram a considerar Michel um presunçoso, que facilmente diminuía os colegas, pois, sempre sabia algo mais do que eles a respeito de alguns detalhes de fatos dos quais sequer havia participado.
Um dia, um colega seu, o Marcos, não se sabe de onde e como chegou ao termo, aplicou mais um apelido ao Michel: Lambisgóia. Quando foram bater no Dicionário para saber o que o termo significava, perceberam que o termo realmente conferia com os traços mais proeminentes e explícitos da vida de Michel: pretensioso, intrometido e mexerico da vida alheia.
No estudo, Michel deixava todo mundo para trás, pois, assim como sabia mentir, assim também sabia assimilar conteúdos e sempre se saía muito bem nas provas. No jogo de futebol, sabia falar, encenar, mandar, orientar, mas não passava de um legítimo perna-de-pau. Era péssimo tanto para chutar, quanto para driblar e dar passes. Em compensação, sabia comentar, como ninguém, todos os lances.
Próximo da formatura na Faculdade, a turma de Michel resolveu fazer uma reserva de dinheiro para passar alguns dias na praia. Tudo se encaminhou conforme o planejado e ao chegarem à beira do mar, todos encantados com a imensidão das borbulhantes e ruidosas águas do mar, Michel já se pôs a frente dos demais para explicar como se tinha que lidar com as ondas do mar. Como se fosse um velho marinheiro, acostumado aos segredos do Oceano Atlântico, foi dando exemplos de como agir na hora que viesse uma onda, mas, ao dar o exemplo, veio uma onda e o levou de roldão. Nas águas rasas, os demais, apavorados com o repentino sumiço de Michel, viram logo as pernas brancas fazerem um giro pelo ar, noutro instante apareceu o dorso avermelhado e por fim, o pum-pum branco de quem havia perdido a sunga. Logo mais, meio cambaleante, a tosse o fez expirar água salgada pelo nariz, pela boca e, na impressão, até pelos olhos, ele, conseguiu finalmente firmar-se de pé e aos gritos pedia ajuda para procurar a “hapa” (Sequer consegui pronunciar “chapa” (a dentadura) que se esvaíra na cruel esfrega que levou das ondas do mar. Ao ver que ninguém o socorria, meteu a mão para esconder os documentos genitais, e, todo desajeitado saiu em disparada rumo à hospedagem, que por sorte ficava a 50 metros de distância. Enquanto corria, podia perceber-se que as costas, os joelhos e os cotovelos estavam ensangüentados devido aos esfregões que levou no turbilhão das ondas e da areia. Desta vez, ninguém conseguiu gozá-lo, pois, ao chegarem à hospedagem, ele havia se vestido, ajuntado seus apetrechos e, muito rapidamente, se esvaído daquele ambiente. Dias depois, no retorno, encontraram Michel cheio de grau, com nova prótese dentária, como se nada lhe tivesse acontecido. Nem então perdeu a característica de lambisgóia, pois não evidenciou qualquer sinal de se ter afetado por algo menos grandioso do que suas interpretações sobre as coisas e os fatos.


O Joãozão do revólver



Além do seu porte proeminente e de uma barrigona do tamanho de um trem, seu “Joãozão” ficou conhecido como jogador de baralho, beberrão e por arrumar muitas encrencas. Até ali tudo normal para um cidadão comum, como tantos outros sujeitos que realizam façanhas similares. A diferença estava em que seu “Joãozão” era um padre.
Nos seus auto-elogios, o “Joãozão” alegava que sempre foi o notável dos estudantes, pois sempre teve as melhores notas e sempre priorizou estudar as coisas mais difíceis a fim de poder discutir com os professores de deixá-los em apuros. Na verdade, tratava-se do oposto, pois suas médias finais geralmente giravam em torno da nota 5,0 e em muitas disciplinas deve ter recebido esta nota por mera complacência de professores, já que estava estudando para ser padre.
Tinha um vozeirão excepcional, talvez porque, como jovem, aprendeu a tocar trombone e, com isso, tenha reforçado sua capacidade respiratória com extraordinário fôlego para falar alto. Nos arroubos patéticos dos sermões persuadia os ouvintes a seguir fielmente suas indicações.
No seu “Joãozão”, como no seu tamanho tudo era superlativo e sua fala sempre estava no grau aumentativo. Dali certamente decorreu o apelido pelo qual era conhecido. Se alguém falasse qualquer coisa, ele sempre sabia arrematar com outro assunto mais bombástico no qual ele se impunha como herói. Os mais maldosos costumavam dizer que tudo isso era fruto do protuberante volume dos instrumentos genitais. Soube-se mais tarde que tal volume era decorrente de uma enorme hérnia escrotal. Ao submeter-se a uma cirurgia reparadora, deve ter enchido o espaço esvaziado com mais disfarces ousados da sua onipotência. Encurtando as tergiversações sobre os aludidos efeitos da cirurgia, ele, na verdade, deve ter tido também alguma protuberância resultante de alguns parafusos frouxos no psiquismo. Ele realmente apresentava sinais evidentes de morbidez mental, pois, sob o complexo messiânico e a mania de grandeza, escondia-se uma pessoa perturbada, frágil e muito limitada. Tinha, todavia a capacidade de persuasão capaz de transformar fatos corriqueiros através de extraordinária ampliação fantasiosa, a ponto de impressionar e induzir as pessoas a aceitar como verídicas as coisas que falava. Pelo menos dava a entender que acreditava nas mentiras que ia contando, o que tornava difícil saber se algo do que falava tinha algum fundamento real. Ouvi-lo falar costumava despertar muitos risos, mesmo um tanto disfarçados e dissuadidos, pois, ficava evidente a sua visível megalomania.
Como padre, seu “Joãozão” parecia refletir um profundo recalque sexual, que era extravasado em obras faraônicas, como Igrejas e Salões, que sempre tinham que ser maiores do que a capacidade da população e a necessidade da comunidade.
Andando no “Opalão” Comodoro que, segundo dizia, resultou das vitórias de uma noite de jogo de baralho, ele se impunha não somente pelo seu carrão vistoso, mas também porque fazia questão de exibir o revólver calibre 38, exposto de formas a se tornar visível na cintura.
Um dia seu “Joãozão”, ao andar a 160 km por hora no seu Opala Comodoro, foi surpreendido e abordado por Agentes da Polícia Rodoviária Federal e conseguiu ser mais rápido do que os agentes para sacar seu revólver e os fez correr sob a mira da sua arma. Não calculou, contudo, que os agentes fossem avisar o próximo posto e ali um pelotão o esperou com metralhadoras e armamento pesado. Aí teve que amargar uma humilhante prisão, totalmente contrária aos poderes da megalomania. Mas, até este tropeço de suas manias de grandeza foi de duração curta porque pode contar com a intervenção do bispo a seu favor, uma vez que este intermediou sua soltura, mediante fiança e sob a alegação de bons antecedentes na vida de padre. Desta vez, perdeu o “38” e ficou acuado por alguns dias. Entretanto, duas semanas depois já estava com outro revólver “38”, novinho e lustrado, que segundo alegou, teria resultado das vitórias de uma noite de jogo de baralho.
Seu “Joãozão” costumava proclamar-se doutor psicólogo, e, por onde andava, quer em celebrações ou outros espaços, falava das curas e da evidente inveja que causava nos médicos, psiquiatras e psicólogos, que, por sua vez, ficavam simplesmente sem serviço e, por esta razão, o perseguiam sistematicamente. Tal argumento sempre acabava convencendo algumas pessoas para ir procurá-lo com a expectativa de livrar-se de algumas moléstias e doenças.
Muita gente humilde e ingênua, de fato não percebia as artimanhas de seu curandeirismo e da charlatanice que se escondia nos seus procedimentos de consulta, pois mandava as pessoas apertar firmemente as mãos, para formar um punho cerrado e, ao mandar abrir os dedos, interpretava as manchas avermelhadas que ficavam registradas na palma da mão com o aperto dos dedos. Assustava cada cliente com uma doença grave, geralmente câncer, e imediatamente a acalmava mostrando o remédio homeopático que curaria especificamente esta doença em alguns dias. Ao voltarem, os assustados eram surpreendidos com a revisão do aperto dos dedos e a simpática informação de que os sintomas da doença estavam completamente desaparecidos. Além de eufóricas, as pessoas presumidamente curadas, já aproveitavam a ocasião para dar-lhe alguma gorjeta e para comprar mais alguns outros remédios, pois seu “Joãozão” tinha uma prateleira cheia de vidrinhos de remédio para todas as doenças possíveis e imagináveis e, com preços devidamente correspondentes às potencialidades de cura de cada vidrinho.
Num dia seu “Joãozão”, apesar de todo seu ar messiânico e superior ao do comum dos mortais, se deu mal com o resultado de uma consulta: tratava-se de uma mulher que há poucos dias tivera gêmeos, mas estava sem leite para amamentá-los. Foi consultar o padre “Joãozão”.
O “doutorzão” mandou que ela tirasse a blusa e o sutiã, deu umas balançadas nos seis de cima para baixo e vice-versa com o dorso de uma das mãos e disse que poderia ir para casa, pois assim que chegasse lá, já teria o leite suficiente para amamentar os gêmeos.
A mulher, ao regressar da dita consulta, contou logo ao marido o que sucedera nos procedimentos efetuados e descreveu os detalhes da consulta feita pelo seu “Joãozão”. O marido foi ficando paulatinamente mais tenso e, um vermelhão foi aumentando a rigidez do seu rosto. Nem a deixou concluir o relato da consulta e já agarrou um facão que estava próximo, e entrando no carro, disparou furioso rumo à casa paroquial onde seu “Joãozão” estava atendendo outra cliente. Ao chegar lá, entrou, sem pedir licença, e já foi batendo o facão para todo o lado e, aos berros, prometendo picar seu “Joãozão” em pedaços. Desta vez, o grandalhão, conseguiu flexionar sua enorme barriga antes mesmo de sacar o revólver 38, e, muito rapidamente saltou pela janela que se encontrava aberta atrás da escrivaninha, e, qual anta no meio do mato, foi causando estalo em folhas secas e folhagens do jardim para evadir-se do ambiente. Desta vez, a megalomania fraquejou, o “Joãozão” esqueceu o revólver e desapareceu definitivamente. Foi refugiar-se em outra cidade próxima e, como já estava enfrentando processos por charlatanismo, acabou também sendo destituído das funções de padre e resolveu aquietar-se na periferia de uma cidade grande.


O Jacó do Frederico



            O Jacó era um moço extrovertido, sempre tinha assunto para muitas horas de conversa. Gostava de vir, acompanhado de seu irmão Celso, fazer visitas à nossa casa.
            Geralmente vinha de pés descalços. Com o passar de alguns anos, fora agraciado por um corpo alto, robusto e forte, beirando um metro e noventa centímetros de altura e, aqueles pés de calçar sapatos com número 45 para mais, constituíam o maior foco dos desvios de atenção.
            Ao se retribuir a visita à casa de Jacó, já não eram aqueles pés enormes que prendiam a atenção, mas a cabeça e o rosto do seu Frederico, pai do Jacó. Formavam um conjunto luminoso diante dos raios dos pequenos lampiões movidos a querozene, refletidos pelo vermelho intenso do rosto inchado de tanto tomar cachaça e da cabeça careca, que parecia fazer parte do mesmo círculo de irradiação da cor avermelhada.
            Quando não andava bêbado demais, o seu Frederico era muito divertido, porque sua conversa, intercalada por tosse intensa, e as constantes cusparadas de catarro, geralmente era hilariante.
            Alcoólatra inveterado desde muitos anos, Frederico não produzia, com seu trabalho nas lidas agrícolas, mais do que o necessário para matar a sede de cachaça. A esposa e os filhos, mesmo sem maiores recursos, asseguravam o suprimento alimentar e se apresentavam no nível social da comunidade.
            Embora Frederico tivesse morrido cedo, pensava-se que seus filhos jamais iriam enveredar pelo caminho do pai, mas, foi ledo engano. Poucos anos depois de casados, Jacó e Celso imitaram o itinerário da dependência alcoólica do pai.
             Celso, diante de cirrose hepática aguda, conseguiu depois de muita lida médica abandonar o vício e, ainda hoje, continua a ser um homem discreto e bom, mas Jacó, o especial amigo, continua alegre e divertido como nos tempos de menino, mas herdou, com as terras do pai, o mesmo defeito de gostar demais da pinga. Pelo menos num traço superou largamente o pai: trabalha ainda menos e, de fato, se não tivesse a esposa trabalhando numa função pública, já estaria morto, de fome e sede, há muito tempo.
            Numa outra peculiaridade Jacó também superou seu pai, pois, Frederico somente bebia às escondidas na casa. Jacó tem um ritual diário e muito especial. Bebe nos bares e nas festas e, em todos os dias, leva uma garrafa para casa. Faz rodízio nos bares da cidade e vai a cada dia num outro bar comprar a dita garrafa de cachaça para disfarçar seu consumo. Assim que chega ao bar, animado e conversador, vai falando para o bodegueiro e os demais que ali se encontram:
- Pois é! O pessoal me avisou que vai fazer uma visita lá em casa, hoje de noite, e, o melhor e mais fácil e mais barato para expressar-lhes um sinal de acolhida, é oferecer-lhes uma caipirinha!
            Ele já tem uns bolsos tão grandes nas calças que neles esconde a garrafa e sai andando sem despertar suspeitas nos transeuntes que eventualmente o olham de alto a baixo. Embora Jacó receba visitas só de vez em quando, ele se encarrega de secar a garrafa de pinga todos os dias, porque ela poderia azedar de um dia para outro e vir a fazer mal à saúde.
            Sem considerar o capítulo da preguiça do Jacó, ele pode sofrer, mas não se queixa para ninguém. Da estrada até a casa onde Jacó mora, existe mato e inço de todo tipo imaginável. O que mais tem é Guanchuma. Volta e meia, alguns rapazes vão lá e amarram dois pés de Guanchuma, puxando um de cada lado, sobre o trilho, e o Jacó, que não costuma olhar para o chão quando caminha, enrosca nesta arapuca, cai feio como uma árvore serrada no pé do tronco, se retorce, mas, não emite xingamentos contra ninguém e nem reclama da vida. Nem mesmo quando vão especular sobre os tais tombos para saberem se a garrafa de cachaça foi salva ou não, ele não se atrapalha: tem sempre uma explicação bem humorada para explicar o dito sinistro.
            A cabeça do Jacó já se encontra careca igual à do seu falecido pai Frederico. O rosto já se encontra redondo e inchado como era o do seu pai, mas num aspecto Jacó ainda leva vantagem: não está ainda com tosse brônquica aguda, nem com cirrose hepática avançada e ainda não cospe catarro como seu pai Frederico.
            Seria fatalidade da vida que a história de um pai se repete na vida de um filho? Seria uma predisposição genética ou uma labilidade psíquica, ou uma indução do ambiente cultural?
O bom companheiro Jacó, desde os tempos de infância, continua a ser o bom e alegre homem que não perde nenhum evento social da comunidade e sempre está de boa lua com a vida. Presume-se que a malvada cachaça, deve preencher, pelo menos no desejo, o suprimento de uma série de labilidades subjetivas ou de frustração afetiva.
 Por outro lado, representa também a dimensão contraditória da produção deste líquido estimulante, pois o excessivo bombardeio das propagandas sobre os benefícios do consumo desta malvada pinga, visa somente o lucro do vendedor. Neste caso, o bom Jacó do consumo diário é mais uma pobre vítima de um sistema perverso que alardeia o vício e mata antes do tempo normal da duração da vida.

















O boi Alegre e o Sereno



No tempo em que Morocó ainda se constituía numa comunidade rural de aproximadamente 100 famílias, todos os moradores dependiam das lidas agrícolas e todos possuíam pelo menos uma junta de bois para as lidas cotidianas.
Seu Breno, não muito afoito para as lidas da lavoura, mostrava propensão mais acentuada para ficar sentado na sombra e tomar muito chimarrão ao longo do dia e se alguém o visitava, era rico em lamúrias sobre os tempos difíceis e as fatalidades da vida. No comentário dos outros, mesmo vendo como os outros lavravam e gritavam com tudo quanto o pulmão lhes permitisse, tanto o nome dos bois quanto palavrões com vistas a admoestar os bois a fim de que andassem na linha, e evitassem que os vergalhões ficassem desproporcionais e mal alinhados, seu Breno não despertava sua desconfiança para empreender algo similar.
Os gritos com os bois constituíam uma disputa parecida com a dos galos nos terreiros e cada um queria impressionar mais e melhor os demais a respeito de sua dedicação e de seu rendimento no serviço. Os bois acabavam, então, como bodes expiatórios de muitos xingamentos e impropérios, mas a finalidade deste tratamento ríspido era a de que andassem bem alinhados e em ritmo acelerado. Por isso, ocorria verdadeira disputa para começar a despertar a aurora em pleno serviço de aração e continuar gritando até na escuridão da noite para demonstrar resistência física e ambição por produzir mais do que os outros.
 A dedicação pelo êxito e superação dos demais costumava fazer ribombar pela planície a expressão mais comum usada no xingamento dos bois: “Seu filho da puta!” Provavelmente também constituía catarse para extravasar todas as outras raivas retidas e reprimidas diante da esposa e dos filhos. Até os bois se acostumaram à expressão coletiva e ao ouvi-la, aceleravam, pelo menos por alguns metros, o ritmo dos passos. Os lavradores, por sua vez, primavam para que os bois andassem no ritmo mais acelerado possível por muitas horas a fio. Queriam que a sulcagem rendesse o máximo ao longo de um dia. Tal disputa rendia assuntos de conversa nos domingos, sobretudo antes e depois das celebrações religiosas.
Na casa de Breno, o cavalo, os porcos, as galinhas, os bois e as vacas sempre sofriam de deficiências alimentares. As galinhas não botavam ovos, os porcos adoeciam a toda hora, as vacas não davam leite e os bois sofriam de fraqueza generalizada e não agüentavam puxar o arado durante o dia todo. Eles, além de sofrerem de DNA, pois sua data de nascimento era muito antiga, andavam bem adequados para certos conceitos e gostos de estética. Eram esqueléticos como algumas modelos que desfilam nas passarelas, e, mesmo que os nomes fossem simpáticos, pois um era chamado de Alegre e o outro de Sereno, não significava que a vida deles era fácil. O Sereno teve o azar de ver seu nome substituído, porque a vinda de um novo vizinho tinha o mesmo nome. Se chegasse ao conhecimento de que um boi do vizinho mais próximo fosse chamado pelo nome de Sereno, com certeza, interpretaria o caso como ofensa grave.
Se o Sereno já era vagaroso, fraco e de pouco pique de arrancada, agora, teve que conformar-se com um segundo batismo que lhe auferiu o nome de Brazino. O procedimento deve ter mexido na auto-estima do velho boi e, no dia seguinte, em pleno serviço de aração, ele caiu e morreu. Mas logo este boi! Ele não apresentava barriga proeminente como indicativo de doenças cardiovasculares, nem sofria com problemas de colesterol, nem com excesso de açúcar no sangue e nem mesmo com elevado índice de triglicerídeos e de creatinina. Tudo indicava que tinha definhado por pelo menos dois outros fatores relacionados: subnutrição e velhice. Se o fato entristeceu seu velho parceiro de infortúnio, o boi Alegre, o episódio prestou-se, contudo, para inúmeros e debochados comentários da vizinhança a respeito do azar que este boi teve ao longo da sua vida, uma vez que teve que viver tantos anos sob regime de intensa privação alimentar.
Por uma aparente e triste sina, o boi Alegre perdeu suas referências e, poucas semanas depois, também foi encontrado morto próximo do estábulo. A gozação tornou-se ainda mais difundida e todo mundo comentava o trágico desfecho da vida dos bois do seu Breno. Alguns foram mais diretos e explícitos e lhe falaram que boi também come pasto. Mesmo sem levar muito a sério os conselhos que recebia, seu Breno teve que comprar outra junta de bois.
O azar do seu Breno foi o de que era época de aração e ele não encontrava boi manso para tais lidas. Andou por diversos dias à procura de bois e, por fim, teve que conformar-se com a aquisição de bois pequenos, ainda fracos para o arrocho de dias inteiros de aração, mas, pelo menos eram compatíveis com o pouco dinheiro que seu Breno dispunha para adquiri-los. Se os bois mortos eram lerdos, estes novos, não obedeciam nenhum comando e se mostravam literalmente anárquicos diante das ordens dadas por Breno.
Inconformado com a péssima qualidade dos bois, Breno voltou a quem os vendera, a fim de reclamar das graves limitações dos bois e pensando em devolvê-los. Ao explicar as características da conduta dos dois desobedientes, ficou pelo menos elucidado que se tratava de um problema da falta de tradutor. Segundo o ex-dono, os boizinhos haviam sido amansados sob comandos em língua alemã e que não entendiam nada e nenhum comando dado em língua portuguesa. Seu Breno voltou para casa, um tanto desconfiado, e, no dia seguinte começou a falar em alemão com eles. Foi então que teve a grata surpresa de constatar que os boizinhos eram dóceis e obedientes. Mesmo assim, a nova dupla teria pela frente uma evidência de tempos muito difíceis de serem vividos. Teriam que tornar-se fortes com pouco trato. Sem demora, pareciam apresentar mais chifre que cabeça e era fácil contar os vales entre as costelas. Para continuar o deboche, os vizinhos difundiram que aqueles bois do Breno enganavam a torcida porque apresentavam suas gorduras escondidas debaixo das costelas.


A vetusta mandona



            Dona Jesuína tem a subida honra de encontrar-se em provecta idade. Apesar de seu rico passado, ela, no entanto, intriga pela forma como manda nas pessoas. Tudo bem que foi supermãe e professora por longo tempo, mas parece viver demais dos louros deste passado. O rosto enrugado gera certa condescendência com sua vida de muitas histórias, mas dona Jesuína ainda se mantém altiva e não dá sinais de entregar-se tão cedo no super-controle dos filhos.
            A infância da dona Jesuína foi deveras difícil. A gestação foi de alto risco e, o nascimento, marcado por um clima de inseguranças e de incertezas. Ela, todavia, sobreviveu. A infância foi humilde, despretensiosa e marcada por muitas intrigas em torno do seu legado. Na adolescência, Jesuína começou a experimentar o valor dos encantamentos e sua imagem tornou-se notória e ela passou a ser ovacionada até por quem a relegou à existência desprezível. Como era humilde, discreta e servidora, soube transcender os contratempos e abrir-se como uma bela flor para enlevo das almas benditas.
            Na medida em que Jesuína se tornou adulta, começou a encher-se de poder, de autoconfiança e de pretensões universalistas. Se uns a admiravam pela beleza de suas obras e pela sua bela imagem, outros passaram a vê-la como uma grande dama da humanidade. Enquanto ia se distanciando e se esquecendo gradualmente mais da sua origem, Jesuína passou a entusiasmar-se, proporcionalmente mais, pelo alcance infinito do seu presumido poder, pois, descobriu que seu poder era espiritual e que, por isto mesmo, deveria fazê-lo chegar até os confins da Terra. Adveio dali a convicção de que deveria reger todos os povos e todas as culturas do planeta. Vieram, então, negociatas, intervenções, e uma série de procedimentos autoritários e nada simpáticos.
            O casamento de Jesuína com o fastidioso e egrégio poder, propiciou-lhe muitos filhos, mas, também muitas ciumeiras, intrigas e descontroles da boa índole. Alguns filhos chegaram a ameaçar ruptura de relações com a família, mas dona Jesuína tinha um poderoso amparo para não ceder em nada: fundamentava-se na tradição e no que considerava o mais natural e precípuo da natureza humana. Ainda que alguns dos filhos quisessem mover dona Jesuína para ceder em alguns pontos do relacionamento, ela, no entanto, mostrava o grande anel no dedo anular, como expressão mais excelsa da plenitude da sua aliança, e os mandava ficar calados. Ademais, gostava demais apontar para a touca branca que escondem seus cabelos, agora já grisalhos, para salientar que esta se constitui no apanágio do que de melhor fez ao longo de toda a sua existência.
            Os tempos foram passando e parte dos filhos de dona Jesuína resolveu romper com os laços familiares, mas, ela, prossegue impassível seu itinerário de poder estribado sobre a extensa tradição do seu passado. Por isso mesmo, se auto-interpreta como mãe e professora, que sabe ensinar e educar para as certezas do futuro. Embora diga que ninguém como ela sabe acolher os filhinhos debaixo das asas, igual a uma choca que ampara e que protege os pintainhos, dona Jesuína sequer chega a cogitar outras possibilidades de eventuais formas de relação que não sejam as de mãe e professora.
            A seu favor dona Jesuína, não soma apenas o passado, mas, também a condição de ser a melhor mediadora para o futuro dos filhos. Tal argumentação lhe propicia imensa segurança em torno do que faz e do que manda. Nas conversas gerais dona Jesuína sabe tudo o que os outros precisam fazer para serem felizes, mas ela mesma dá poucos sinais que poderiam servir de indício desta sabedoria da sua maternidade agregada ao magistério.
            Hoje, vetusta, sobrevivente exitosa de longa história de dificuldades solucionadas, dona Jesuína se auto-apresenta como aquela mulher sábia que possui as virtualidades de orientar para além dos seus filhos, e que, sua palavra está impregnada de uma força especial para transformar vidas mediante lumes que aponta para a humanidade.

 O despautério é que pouca gente escuta efetivamente dona Jesuína. Alguns aparentam escutá-la, falam muito do seu nome e do seu rico passado, mas passam distantes de fazer o que ela pede. Outros a escutam para alguns aspectos convenientes e em alguns momentos festivos, mas, não a levam a sério em nada. Outros, ainda, procuram o calor sob suas asas apenas para desfrutar das vantagens que não encontrariam sob outras asas, caso tivessem que assumir sua história pessoal. Alguns, evidentemente, leais, sinceros, desfrutam dos mimos de dona Jesuína porque se colocam ao seu lado para afirmar o poder, mas com a evidente expectativa de aproximar-se na ascendência a dona Jesuína e também mandar como ela. Ainda outro pequeno resto dos filhos, pelo menos, se esforça para ser coerente ao que ela ensinou e apesar de considerá-la um tanto desprovida dos plenos poderes da lucidez de outrora, lembram que ela como professora, de fato, falava alto demais e com excessivo autoritarismo, mas, que continua a ser a boa mãe Jesuína que apesar de seu jeito de ser mandona, afirma valores dignos de serem vividos.

A decisão diante dos fatos trágicos



            Até os mais empenhados na busca de boa qualidade de vida e os que desejam viver intensamente as coisas novas e bonitas da vida, não se escapam da contingência de ter que lidar com perdas, com mágoas, com decepções imprevistas e com repercussões que abalam a vida. Aumenta também, cada dia mais, a necessidade de aprender a lidar com doenças graves, como câncer e com acidentes trágicos que mudam radicalmente a vida de indivíduos de um instante para outro. Enquanto que a vida destas pessoas estabelece um claro limiar entre o antes e o depois, são obrigadas a lidar com a nova situação, e, para sobreviver, não podem ficar lamentando as perdas do “antes” que desapareceu, mas precisam substituir a sensação desta perda e de vazio por uma positiva escolha de atitudes a serem tomadas diante da restrição que se impôs ao corpo.
            De fato, sem poder decisório, a vida dos fracassados se torna um tormento para muitas pessoas. No entanto, não precisamos andar muito para encontrar pessoas que revelam extraordinário poder decisório, e, estupenda capacidade de aceitar limitações irreversíveis, decorrentes de acidentes ou de extirpações para conter doenças malignas e deficiências graves. Ainda que repentinamente limitadas, estas pessoas conseguem tomar atitudes diante da vida e dar-lhe um sentido, de modos que se torne rica e cheia de muita satisfação. Equivale a dizer que o acidente quebrou o pescoço, e, mesmo na paralisia, não quebrou a vida. Descobrem razões para sentir-se bem e transformar os limites em algo genuinamente humano, peculiar e realizador.
            Mesmo quem não se vê diretamente envolvido por imprevistos graves e profundos, não está livre de ter que usar seu poder decisório diante de culpas, de dores e de sofrimentos, tanto pessoais quanto alheios. Isto indica que a vida pode, em quaisquer situações, tornar-se significativa. Depende do que se decide e do sentido que se dás aos sofrimentos e às limitações imprevistas. Esta escolha radical, segundo o psiquiatra austríaco Viktor Frankl, pode ser feita seguindo três grandes avenidas e todas elas podem levar à realização.
            A primeira avenida é a do trabalho, especialmente quando oportuniza possibilidades de criar e não se constitui em mera repetição de movimentos rotineiros e mecanizados como o de ter que desossar pelo menos três coxas de frango por minuto ao longo de todo expediente diário de serviço, tarefa cotidiana de muitos empregados da Sadia em Lucas do Rio Verde, MT.
            A segunda avenida é a de compartilhar a individualidade com alguém, isto é, uma relação de amor, mas entendido como sendo muito mais do que um relacionamento sexual.

            A terceira avenida é a de lidar com as doenças incuráveis e com as limitações profundas decorrentes de tragédias, acidentes ou da própria idade. Ao aceitar-se o condicionamento, na condição de que não se tem outro jeito para lidar, pode a vida, naquilo que ainda lhe é possível, ser transformada em significado profundo, até o último suspiro, para morrer dignamente. Mudam as oportunidades e as potencialidades, mas não muda a possibilidade de se estabelecer um sentido e profundo significado para a vida, como o de amar alguém, – de preferência muitas pessoas, - e agüentar honesta e corajosamente o sofrimento, com um estilo novo dado à própria existência. (Da entrevista de Viktor Frankl, no Canadá, sobre o tema: O Homem Vive. Trad. de Felipe Cherubin. Disponível em  http://www.endireitar.org/ )  

Entre o trono e o altar



            Alguns momentos históricos da cultura ocidental dos últimos séculos registraram estreita relação entre religião e política. Esta relação, como a da conquista ibérica na América Latina, mostrou acentuada afinidade entre espada e cruz, ou explicitado de outra forma, a conquista foi efetuada sob o signo da cruz católica. Embora a maioria dos atuais países latino-americanos ainda tenha presente em suas constituições alguma referência explícita ao catolicismo, a relação tende a tornar-se mais heterogênea e, pelo menos oficialmente, vem se estabelecendo uma relação de separação entre Estado e Religião.
            Apesar da grande divergência de opiniões sobre esta relação entre Estado e Igreja, e mesmo que no caso brasileiro tenha-se estabelecido uma definida separação, permanecem um tanto duvidosas as formas desta autonomia. Seriam meras forças paralelas e rivais? Caberia à religião indicar rumos à política do Estado, ou, competiria ao Estado o direito de estabelecer ingerências sobre o âmbito religioso?
            Deixando de lado as muitas polêmicas mais antigas, parece que a proximidade entre as duas forças sociais se cruza e se inverte, de vez em quando, nas competências. É sobre este pequeno aspecto que tencionamos ponderar brevemente. O paradoxo se estabelece da seguinte forma: se a religião pode interferir nos procedimentos do Estado e se, de outro lado, o Estado pode expressar suas políticas através de formas religiosas.
            Na prática, observamos que, em muitas situações, grupos religiosos de diversas denominações apelam a todos os recursos possíveis para atuar sobre o Estado, a fim de favorecer seus interesses religiosos. Observamos, igualmente, que muitos políticos lidam de formas similares às dos religiosos para agir sobre grupos humanos, e, com muitos discursos religiosos. Em alguns casos, as mesmas pessoas agregam tanto funções religiosas quanto políticas.
            Temos a impressão de que, tanto a rivalidade das competências quanto o exercício das distintas funções, pode mover-se por um mesmo foco: o de dirigir e controlar o comportamento dos outros. Certamente os dois campos de atuação se arvoram o direito e a necessária missão desta atividade, mas, ambos correm os mesmos riscos de agir sob bases fundamentalistas e, desta forma, produzem múltiplos tipos de medo a fim de poder controlar as pessoas.
A produção de medos leva políticos a muitas apelações religiosas e leva crentes de entidades religiosas a explícitas interferências nas atividades políticas. Neste aparente avanço de um campo sobre o que, em tese, pertence ao outro, revela-se, na verdade, que os dois campos perdem a relevância do que pretendem constituir para o bem dos seres humanos. Quando a política pressupõe a religião como serviço auxiliar para melhor organizar a vida coletiva, incorre na mesma situação da religião que interfere nos rumos políticos com a justificação de que tal atividade constitua a essência da sua missão. Assim, os dois movimentos procuram criar e apontar medos, a fim de poderem agir sobre os amedrontados e levá-los à resignação dos seus propósitos.

Será que alguém ainda daria peso ao Estado, se este não cultivasse bem orquestrada e harmônica forma de produzir medos? Sem os medos, simplesmente se daria conta de que o Estado pode ser perfeitamente dispensável. O mesmo se poderia aplicar à Religião. Portanto, mais do proclamar o fim destas forças sociais e socializantes, convêm que ambas se movam por outros parâmetros do que os do cultivo de medos.

O despautério de Dona Clotilde




            Clotilde emigrou da região norte do Estado do Rio Grande do Sul para a capital, Porto Alegre. Na bagagem dos poucos pertences veio também a marca cultural da influência dos índios kaigangues que não usam a consoante “l” e a substituem por “r”. Desta forma, dona Clotilde costumava apresentar-se pelo nome de “Crotirde” Souza. Assim também falava em “probrema” e tantos outros termos com “r” gutural acentuado, o que tornava sua fala muito peculiar e interessante.
            Dona Clotilde era uma mulher franzina, sempre bem arrumada, mas, seu olhar parecia transluzir algo mais melancólico e que apontava para algum sofrimento mais velado e que ela não conseguia esconder-se totalmente através da dedicação e das dádivas que levava às pessoas. Sempre arranjava algum motivo para chegar à casa de alguém, nem que fosse para lhes dar dois a três chuchus colhidos antes do tempo de maturação. Partilhava um pouco de tudo. Tratava-se de uma vovó que visitava muito as pessoas da vila onde residia. Também o “Zé”, seu marido era muito social e amável nas conversas. Parecia uma dupla extremamente feliz. Eles estavam economicamente estáveis e seguros, com os filhos todos casados e ajeitando sua vida.
            Clotilde e “Zé” eram muito estimados porque estavam constituídos em referência de muita alegria nas conversas. Do olhar de dona Clotilde, todavia, emergia um ar mais tristonho e sofrido. Alguém poderia logo inquirir a respeito desta contradição, pois, se ela era uma mulher alegre, animada e conversadeira sobre tudo quanto era assunto, não poderia expressar um olhar triste. Ela, no entanto, sofria com uma obsessão: não queria vivenciar a fraqueza de sentir fantasias sexuais. Ninguém fez pesquisa arqueológica para saber se tal sintoma era fruto de uma educação religiosa puritana e escrupulosa ou se era problema afetivo que a levou a desenvolver, desde os primórdios da sua existência, alguns sentimentos de culpa, ou se constituía remorso por excessivas fantasias libidinosas.
            O sofrimento de dona Clotilde, de fato, vinha das profundezas de um sentimento mal orientado. Aprendeu ou assimilou que era importante rezar o terço a fim evadir-se das tentações que envolvessem atrações masculinas. Sem dar-se conta, ao pretender rezar para não sentir tentações, já mexia no baú do inconsciente e de lá fervilhavam muitas e variadas fantasias. Sua conclusão lógica era a de que não rezava com suficiente piedade e concentração, ou que, precisamente nesta hora, o capeta estivesse se aproveitando da ocasião para seduzi-la para o seu lado, com muitas fantasias nada recomendáveis para uma vovozinha de bem com a vida.
            Como os resultados se mostrassem literalmente ineficientes para vencer as tentações demoníacas, a opção de Clotilde foi a de intensificar as rezas de terço. Sem dar-se conta de que ao simples desejo de rezar para não ter tentações, elas já começavam a fluir e a vagar soltamente pelas vastas planuras do seu psiquismo. O processo chegou a tal ponto que Clotilde entrou num processo de culpa profunda diante de Deus. Na medida em que mais se empenhava para não ter tentações, mais elas lhe apareciam na mente. Isso, diante de Deus, significava um fracasso e uma evidência de que Ele já devia ter desistido de apostar na salvação do Clotilde e já a devia ter descontado entre as possíveis ovelhas do seu rebanho. Este sentimento de já estar condenada criava um tormento subjetivo na vida de Clotilde, de tal forma que, mesmo disfarçando alegria e bem-estar com tudo na vida, ostentava um olhar soturno.
            O auge da culpa apareceu num momento de oração, quando em meio ao exercício do mantra da repetição das ave-marias, ao invés de entrar num nível alfa de consciência para encher-se de forças superiores às tentações, visualizou Jesus e sua mãe em atos e gestos obscenos. O fato despertou uma culpa profunda e certamente nociva como um câncer de cérebro, pois fez desmoronar toda a alegria e a vontade de encontrar-se com as pessoas. Como não partilhasse isso nem para seu esposo, foi se fechando em seu quarto e não queria mais conversar com ninguém. No entanto, como visitava costumeiramente muitas famílias, e era amiga do padre, este, ao sentir sua ausência, foi até sua casa para saber o que estava acontecendo com dona Clotilde.
            Com muita dificuldade e relutância, dona Clotilde conseguiu, enfim exteriorizar a razão do seu despautério. Em meio a um choro compulsivo, regado com lágrimas que não conseguiam transportar para fora todo o sentimento de culpa, dona Clotilde conseguiu, pelo menos encontrar espaço para contar o sofrimento, sem sentir-se ainda mais condenada. O padre lhe mostrou, a partir dos estudos de Karl Yung, de que este assunto se situava no campo psíquico das “sombras”, termo criado pelo afamado psicólogo e usado para expressar que não existe total controle sobre o campo das fantasias. Elas aparecem independentemente da religião e da boa vontade, mas, quando se quer não tê-las, então elas são despertas no psiquismo com carga ainda mais intensa. Em outras palavras, tudo o que se quer negar no psiquismo, acaba enchendo ainda mais o próprio psiquismo. Portanto, o campo das fantasias não estaria situado no campo moral da culpa e do pecado, mas, das “sombras”, sobre as quais não se possui controle absoluto. Restaria, por conseguinte, admitir que em qualquer momento do dia e da noite, acordado ou sonhando, rezando ou fazendo gracejos, qualquer pessoa normal vive a contingência de sentir-se focada em fantasias sexuais. Deus nos fez ser assim. O ato de aceitar estas “sombras” faz com que, elas rapidamente se dispersam em razão de outros focos de atenção, e, como as nuvens, se volatilizam e se evadem para deixar espaço para outras emoções. Por isso, se lhe aparecessem quaisquer imagens, mesmo na hora da oração, o fundamental seria aceitá-las e rezar para Deus que está sentindo exatamente isso como manifestação do seu psiquismo.

            Poucos dias depois, dona Clotilde voltou ao seu itinerário de visitas e, com uma diferença no olhar: o cultivo da soturna culpa deu margem e espaço para a aceitação das fantasias e Clotilde voltou a ser ainda mais irradiante e entusiasmada pela vida do que era antes deste momento de crise.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Brincar com a vida



            O título desperta de imediato, duas possíveis intelecções comuns e naturalmente evidentes: que não se pode brincar com a vida, pois deve ser levada a sério, e que, quem brinca se envolve com algo específico da fase infantil, e, portanto, inadequado para a vida adulta. Em outras palavras, adulto precisa ser sisudo, preocupado e determinado.
            Ainda quando o ato de brincar é pensado positivamente, tende a ser relativizado ao estágio da infância ou à prática de atividades lúdicas e esportivas. Neste perfil positivo também se sobressaem pelo menos três entendimentos muito distintos:
a)      Brincar com os outros, que geralmente envolve chacota e alguém do grupo é transformado em “bode expiatório” para o deleite e a gozação dos demais. Até mesmo as piadas e anedotas tendem ao uso da exploração de sutis formas discriminadoras contra as vítimas dos grupos sociais;
b)      Outra situação é a de que o presumido jogo de diversão, passatempo ou entretenimento (jogos, torneios, campeonatos, corridas, olimpíadas...), na verdade, constitui guerra de disputas acirradas em que se precisa dominar e subjugar o adversário. Para isso vale tudo, desde torcida organizada, apelação à força bruta e até aos procedimentos altamente desleais, ofensivos e, acima de tudo, sorrateiramente discriminatórios e antiéticos.
c)      Entende-se, ainda, que o ato de brincar constitui algo precípuo da vida dos filhos e, por isso, os pais e professores são orientados de múltiplas formas sobre o modo de proceder para uma adequada orientação.

No vasto repertório relativo ao ato de brincar são também amplíssimas as orientações técnicas, as formas sugeridas, os agentes indicados, os modos insinuados, as categorias estabelecidas, os referenciais, os conselhos e as orientações sobre como seguir as regras. Tampouco faltam orientações legislativas sobre o direito de brincar, sobre os lugares para brincar, sobre os tipos de brinquedo mais indicados, sobre os lugares e os espaços mais eficazes para brincar, sobre projetos e artes de brincar, e sobre agentes de ocupação e brinquedo nas festas e eventos os mais variados.
À parte destas considerações, encontramos também vasta literatura sobre entendimentos muito distintos relativos ao ato de brincar. Livros, palestras, sites de Internet, disketes e DVDs querem ensinar como brincar e como entreter as crianças da melhor e mais saudável forma. Tudo isso não é certamente material para ser jogado fora. Entretanto, cabe uma pergunta: porque tanta regra e parafernália para brincar normalmente só para crianças?
Parece que pela linguagem freudiana tudo isso estaria envolvendo uma evasão da realidade, próprio da idade infantil, a fim de dar fluxo à fantasia como uma das manifestações de desejo de sobrevivência. No entanto parece, igualmente, que o ato de brincar envolve atividades mais vitais e mais amplas do que a fantasia representa para o ser humano: no brincar a criança explora o ambiente, adquire informações, desenvolve habilidades de psico-motricidade, mas, ao lado destas dimensões cognitivas e de aprendizagem, cabe observar que é no ato de brincar que uma criança mais se integra ao meio-ambiente familiar e social. Humberto Maturana e Gerda Werden Zöller em “Amar e Brincar – os fundamentos esquecidos do humano” sustentam que o brincar é essencial para a sobrevivência de uma criança. Se a mãe e o entorno não propiciam certo limiar de capacidade no brincar com a criança, ela simplesmente não sobrevive.
A criança, ao brincar, descobre a plenitude do seu existir. Brincar constitui, pois, um estado interior que gera experiências subjetivas. É dali que decorre um novo significado para o ato de brincar dos adultos.
 Se atividades lúdicas são consideradas saudáveis, embora nem sempre para todos os envolvidos, porque se brinca descarregando tensões, raivas, mágoas e outros sentimentos sádicos sobre vítimas expiatórias que passam a ser gozados, muito mais saudáveis se tornam quando nos livram dos bloqueios e das cargas de tensão através da catarse.
 A catarse que leva a extravasar nosso mundo interior e subjetivo, por onde circulam em alta rotação muitos medos, ajuda a clarear e definir melhor a própria identidade pessoal. Trata-se, pois, de algo muito significativo, porque se deixa de encobrir o mundo interior para destacar o que se considera importante na perseguição de outras pessoas, através de humor, de sátira ou de gozação.
O ato de colocar outra pessoa na berlinda para gerar risos e situações hilárias e de chacota é um brincar que normalmente distancia e rompe, uma vez que a vítima do grupo, ou seu “bode expiatório” se sente ridicularizado e diminuído seja pelo apelido ou pela forma de explorar um cacoete, um traço físico ou outro modo genuíno de ser. Para ele, tal procedimento não diverte. Pode-se observar que toda a gozação que acontece à custa da miséria alheia, mesmo que seja divertida, perde a dimensão da ludicidade.
Por outro lado, brincar a partir de uma dimensão mais interna e subjetiva não significa ludicidade narcizista, no sentido de auto-encantamento, pois a história antiga conta que Narcizo ao se perceber espelhado nas águas paradas de um lago, ficou tão encantado consigo que resolveu casar-se consigo mesmo.
Haveria alguma outra razão para maior capacidade de brincar na vida dos adultos?
Primeiramente os adultos revelam algo estranho em relação à fase infantil. Foram gradualmente induzidos a se tornarem sérios e, na medida em que os anos de escolarização foram aumentando, foi na mesma proporção diminuindo a capacidade de brincar como estado de espírito e de consciência.
Marcas de uma antiga ancestralidade indo-européia acabaram desenvolvendo um traço cultural muito peculiar e forte que consiste numa estruturação tríplice: dominar, controlar e apropriar-se. Desta herança cultural européia decorreram muitas características comuns dos ambientes socializantes: primeira, a de estabelecer hierarquias e divisas diante dos que são considerados inimigos e que devem ser perseguidos, distanciados, ou então, incorporados ou eliminados.
 Desta peculiaridade temos um triste retrospecto de guerras, de disputas por áreas ou bens simbólicos e materiais, e, um processo altamente predatório, mesmo movido por lutas de independência e de autonomia. Disto sempre sobra profunda amargura para diversidades biológicas e culturais. Quantos grupos humanos são forçados a assimilar a cultura dominante e a renunciar às suas riquezas vindas de longa ancestralidade?
O resultado deste modo hegemônico de socialização e de inserção das pessoas nos ambientes culturais direcionados para determinados tipos de emoção, - que passam a ser assimilados e imitados, - deixa-nos diante de tanto desperdício, tanta destruição quer da natureza ou de lares e até mesmo de ambientes culturais. Vemos muitos processos de exclusão e de injustiça. Por fim, este modo de nos emocionar específico de conquistadores, valoriza eminentemente a emoção do raciocinar para controlar. Com isso, o mundo subjetivo se torna um vulcão prestes a eclodir a qualquer instante e por pouca coisa.
Possivelmente uma das melhores perspectivas, tanto para a vida pessoal quanto coletiva, seja a de recuperar novamente um lado perdido na arqueologia da história humana, e também do itinerário pessoal da infância de cada pessoa: a de brincar com os limites, com as desgraças, as perdas e os fracassos, e por isso mesmo, encontrar prazer em colaborar, em estar presente na vida dos outros de formas simples, leves e menos hierarquizadas.
Então, com certeza, poderá voltar o dinamismo de uma força dinâmica dos longos anos do início da nossa vida, capaz de reativar a capacidade de brincar com o próprio passado, incluindo também seus fiascos, deslizes, quedas e tantas situações silenciadas, disfarçadas e reprimidas que atrapalham a psique e a auto-imagem. Brincar com todas as marcas negativas do passado ajudará a sentir menos peso do inconsciente e de sub-consciente no dia-a-dia da vida e a viver um estado de espírito mais hilário e descomplicado.




Contextos



A rapidez das inovações e das novidades,
Fragmenta tradições e hábitos cotidianos;
Aponta mil horizontes para as vaidades,
Mas não esconde os diuturnos desenganos.

Na relativização de tradicionais valores,
Da pertença, da família e da comunidade:
Evade-se a partilha dos humanos pendores,
Geradora dos caminhos da lúdica integridade.

Nas relações, cada dia, mais virtuais,
Emergem novas formas de interação;
Que engolem costumeiros referenciais,
E apontam o rumo da indeterminação.

Afrouxados os antigos vínculos culturais,
A crença se prende no relativo e no provisório;
E, distante das referências ancestrais,
Tudo passa a ser visto pelo transitório.

A segurança aparente é buscada,
No consumo, ao infinito, da imagem;
Onde a aparência pode ser idolatrada,
E o que mais importa é a roupagem.

O intimismo subjetivo e solipsista,
Abre na virtualidade um horizonte:
Escorregar ao infinito em pista,
Que em coisa alguma confronte.

Na busca de respostas utilitaristas,
O universal é tomado pelo singular;
E na adoração dos ídolos consumistas,
Suga-se até o sangue da veia jugular.

Bom seria reencontrar o prazer de colaborar,
Para não ser mero expectador;
De quem age em nosso lugar,
E facilmente se torna aproveitador.


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A rua como lugar da patologia social

           Assim como existem patologias físicas, somáticas e psíquicas nos indivíduos, ocorrem patologias sociais que afetam a imagem e o bem-estar coletivo. A rua não só revela o coletivo no seu crescimento material e cultural, mas também explicita muitas de suas doenças, pois constitui elemento central das edificações urbanas modernas. Nenhum espaço agrega tanto quanto a rua os contrastes e as contradições da diferenciação social e do antagonismo da qualidade de algumas ruas e avenidas em relação a outras, bem como, o que as ladeia: desde casas miseráveis a mansões suntuosas, tudo reflete a clássica diferenciação de classes sociais, chaga viva e muito visível da doença social de nossos dias.
 A simples classificação de centro, periferia, vila, bairro residencial, bairro operário, favela, etc., revela o horizonte das profundas desigualdades sociais que ali se manifestam, seja na plena e irradiante luz solar do dia, na luminosidade romântica do luar, ou na mais recôndita escuridão da noite.
As últimas décadas foram particularmente favoráveis para separar de forma visível e escancarar o preclaro distanciamento de lugares, de formas e de sujeitos, segundo seus níveis sociais conquistados ou perdidos. É assim que se ostenta o lugar dos funcionários de banco, dos dentistas, dos médicos, dos agrônomos, dos advogados, enfim, das entidades que se auto-interpretam com certo status nos bens simbólicos da cultura estabelecida. Por outro lado, também se definem os lugares dos beberrões de pinga, dos mundos perversos e das condições desprezadas.
Se a rua, de um lado, separa todos estes mundos em constantes mobilizações, ela passa a constituir-se, também, num outro e novo espaço, o do consumo, o da eletrônica, o da telemática e da visualização de todo tipo de combinações aleatórias que possam levar ao aumento de desejos. Assim, na medida em que desaparecem as tradicionais formas de vínculos de pertença, como partido, classe, ideologia, religião, família, os novos lugares sociais tendem a criar um mundo altamente hiper-real e de espantosa exposição, a tal ponto que já não comporta a necessária ordem e nem respeito às mais elementares regras de eficiência. Ali tudo se atropela em função de grandes promoções, de shows, de mercados, de anúncios, e de visualização do que se encontra para além das vitrines.
 Os que tendem a se mostrar impacientes com muitas coisas, se submetem com relativa resignação às enormes filas de bancos e lotéricas. Tudo é suportado em função dos sonhos e do prazer haurido diante do que os olhos possam visualizar. A onda está nas possibilidades de deslizar, de patinar, se não é no real das escadas rolantes, dos elevadores, dos carros, das motos, das bicicletas e dos skates, então, no mundo solto da imaginação, da fantasia dos espetáculos, dos vídeo-games, dos caça-níqueis, dos parques, das loterias, enfim, onde se pode escorregar até o infinito, para fruir novas emoções.
A rua, ao lado do que agrega para as fantasias, constitui também espaço proeminente para o trágico e a tragédia. Como a vida da “pólis” grega, na fase da decadência urbana do período clássico, a rua continua a ser um lugar unidirecional para revelar estilos, poderes econômicos, excentricidades, estereótipos consumistas, modismos, mistura do trágico com o cômico, do triste com o alegre, do sério com a irreverente, do bom-senso com a estupidez. A rua revela não só a condição do lugar que se habita, mas também as concepções coletivas, as tensões, as resistências culturais e os desequilíbrios da ordem estabelecida.
 Apesar da sinalização moderna, nem todos quantos andam na rua a pensam e sentem como rua. Para alguns, ainda é uma estrada de vilarejo, na qual se pode andar na contramão, estacionar em sentido contrário, ultrapassar pela esquerda e pela direita, parar no meio da pista para conversar com outro motorista, dirigir atendendo celular ou ingerindo sorvete, ou, ainda, imprimindo uma velocidade abusiva além dos limites, ou tão lenta que congestiona o trânsito. O que significa mostrar-lhes estranheza? Faz lembrar os velhos “coronelismos”.
A rua, enfim, ainda constitui um lugar de excelência para se andar do jeito que se acha bom e, para se apossar dos espaços, sem muito desvelo pelas básicas regras oficiais de trânsito, sejam da indicação que forem. Por isso, a rua já não constitui um lugar de pensamento e de organização racional, mas o lugar dos sintomas mórbidos da organização da cidade.
 Pedreiros, ao construírem casas ou reformarem lojas, ocupam, sem maiores inquietações, todo o espaço do passeio com material de construção e artefatos para o serviço, e estendem sua área de serviço até mesmo para a pista de trânsito, a fim de ali preparar concreto, massa de levantamento e para depositar seus equipamentos.
 Ciclistas jogam a bicicleta no meio da calçada enfrente às portas de lojas, dos bancos e parecem sequer se importar com o que isso possa representar para outros transeuntes.
 Assim, um olhar simples e fenomenológico, permite captar muitos elementos contraditórios no espaço da rua.
A rua constitui igualmente o espaço da ausência de sensibilidade quanto ao uso e abuso de som, de descarga de carros e de motos, o que a torna uma verdadeira parafernália de poluição acústica, lugar de lixo jogado de qualquer jeito e em qualquer lugar, de cacos das garrafas de cerveja, latas de alumínio, copos descartáveis e de outros produtos plásticos espalhados por toda parte, sobretudo, nos lugares de comícios políticos, festas populares, áreas próximas a escolas e de outros eventos festivos.
 A calçada, propugnada como área exclusiva para a circulação de pedestres, sobretudo a das principais ruas e avenidas, apresenta, na verdade, uma função de ocupação múltipla: para uns, é o lugar da venda; para outros, é a sala ampliada para colocação de cadeiras, bancos e rodas de conversa; para outros, é o lugar do estacionamento da sua moto ou do seu carro, nada se importando com o que um pedestre precisa fazer para contornar o espaço territorial reservado; para outros ainda, é o lugar para as conversas de grupo, extensão dos restaurantes e bares, para sentar e tomar cerveja, para vender espetinho e lugar para observar os transeuntes.
A calçada é também o lugar do despejo das folhas que caem no pátio da casa, o lugar para jogar fora os resíduos fecais do cachorro; o lugar para se jogar tocos de cigarro, restos de alimentos, embalagens descartáveis de picolés e tantos outros produtos de venda, como se fosse o pátio de uma Fazenda, onde cachorros, galinhas, patos e outros animais domésticos se encarregam de fazer a reciclagem.
Evidencia-se, ao mesmo tempo, uma notável falta de atenção, de cuidado e de conservação dos bens públicos no âmbito da rua. Na verdade, uma clara ambigüidade entre o cotidiano e o pensamento. Enquanto se procura deixar a casa limpa e bem ajeitada, não é comum perceber-se a mesma preocupação no espaço da rua, talvez um resquício de um hábito rural, que permitia jogar janela ou porta a fora qualquer tipo de lixo porque os animais domésticos se encarregavam de fazer o processamento destes produtos.
                O antagonismo, remetido para o campo ético, nos leva a uma pergunta que implica numa contraposição mais radical: seria melhor vivermos de formas menos modernizadas, tendo picadas de atalho no meio do cerrado e das matas fechadas em vez de pistas de asfalto, e ter a cordialidade, o valor da pertença a uma comunidade, o significado do parentesco, das amizades, do amparo na alegria e na morte, do que ter todo este progresso de auto-pistas, asfaltos, shoppings, arranha-céus, lojas enfeitadas, status, etiquetas, tecnologia, carrões, unidades de tratamento intensivo e, ao mesmo tempo, encontrar tanta frieza, solidão, tanta droga, tanto assalto, tanta doença, tanto vazio existencial, tanta tensão, tantas crises de desânimo e tantas mortes estúpidas.

Cordialidade e Etiqueta

            Com certeza, já antes dos nossos tempos modernos, fatores variados levaram pessoas a entrar em estados de ansiedade e depressão, apesar de todas as formas de pertença e de praxes sociais.
 O fenômeno da urbanização moderna traz, todavia, além da fantástica rapidez e multiplicação dos signos de comunicação, uma cordialidade artificial, equivalente a etiquetas sociais e que predispõem fatores depressivos relacionados à perda do sentido da vida. Na Antropologia tal fenômeno passa a ser interpretado como tédio, uma nova doença urbana.
            Segundo o Logoterapeuta alemão Victor Frankl, a grande doença do nosso tempo, já não decorre tanto dos desajustes de estágios do nosso passado, mas muito mais da falta de um horizonte de fé e de sentido para o futuro distante. A doença da maioria das pessoas está na sua incapacidade de se projetar para além do momento presente de crise, depressão, qualquer outra dificuldade, ou da inércia para sair de uma situação estabelecida.
Diante da rapidez e da fugacidade dos pequenos momentos de felicidade em nossa vida, podemos perceber que o tédio pode estar diluído em todos eles.
O tédio não resulta, apenas, da frustração diante das idealizações de felicidade, mas emerge, atualmente, da grande multiplicação dos signos de linguagem e de imagens, através da eletrônica e da informática, ou da tele-informática.
O tédio parece, por conseguinte, resultar de um sentimento de saturação. Quando se tem a sensação de saber tudo sobre tudo, surge um sentimento de mal-estar, porque já não há mais expectativa ou empolgação por novidade, surpresa, ou algo inusitado e novo.
Sobra, então, o sentimento enfadonho de desconforto e de não suportar o que está por acontecer. Tal situação, estreitamente ligada a um tipo de entendimento cultural, repassado pela educação ambiental, dissolve o ator social e, por conseguinte, engrandece o mundo fechado do indivíduo em sim mesmo (“narcizismo solipsista”) que faz os indivíduos se subsumirem na vivência do agora, de forma autônoma, mesmo que seja criativa, mas, num horizonte de dependência a um quadro consumista que a vida urbana desperta. Por isso já se usa na Sociologia um novo conceito para explicar a vida dos sujeitos urbanos. Eles vivem uma “anomia” subjetiva. Quando Emile Durkheim interpretou a sociedade da revolução industrial como anômica, ou doente, apontava como causa a falta de regras sociais e regras mais rígidas... Hoje contamos com inúmeros códigos de regras sociais a ponto que qualquer atitude pode ser justificada ou condenada. Em contrapartida, vivemos a anomia subjetiva, isto é, estamos rodeados de pessoas que querem todos os direitos imagináveis, todas as regalias, todas as vantagens, mas que não admitem nenhuma regra e nenhuma cobrança sobre o seu modo de agir e pensar. Afinal, os outros precisam ser instrumentos para propiciar este desmesurado desejo. Tanto no que tem quanto no que são capazes de produzir, precisam favorecer tal aspiração subjetiva, a fim de que não sofra percalços.
O que poderia, por conseguinte, uma aglomeração urbana, como a da nossa simpática cidade, significar ante a histórica predominância do mundo tradicional das fazendas e sítios de interior, a ponto de gerar o tédio?
            A cidade, tida por muitos como a grande revolução do mundo ocidental, vem processando uma série de transformações de cunho antropológico. Aparecem, ali, características muito diferentes do que aquelas típicas do mundo rural.
Lá, o reconhecimento do parentesco, da vizinhança e da comunidade, era (e ainda é) marcado pela cordialidade. Há muitos rituais de saudação e de expressão da cordialidade, como os gestos de pedir a bênção aos adultos e mais velhos, dar-lhes um abraço ou beijo de saudação, etc.
No meio urbano, este traço vem sendo substituído, paulatinamente, pela etiqueta. Esta característica de agregação social separa por níveis de status, de veste, de cargos, de tipos de profissões e de reflexos do poder aquisitivo (“É o seu Fulano e a senhora Beltrana!”). Convidam-se apenas certas pessoas para ocupar espaços nos palanques públicos, mas também os tomadores de pinga dos bares não aceitariam partilhar o trago com certas pessoas engravatadas e vestidas no rigor social do destaque das modas.
            Enquanto que, no meio rural, as instituições do trabalho, da família, da religião, da política, etc., são tidas como fatores de realização e bem-estar, na cidade, estas fontes de realização, ou de felicidade, são propugnadas, endeusadas e apontadas nas variadas formas de conquista e de lazer.
Os valores tão específicos de realização das comunidades rurais, como formas de vivência da religião, modos de envolvimento político e o estilo de vida familiar, na vida urbana, perdem seu significado e, em seu lugar, aparece muito evidenciado o lugar do lazer.
 Ao tempo livre atribui-se a correspondência, pelo menos nas argumentações discursivas, do paradisíaco sonho de liberdade, a possibilidade de expressão do corpo e as práticas que induzem a prazer.
Nos ambientes rurais, a tradição exercia papel fundamental na organização da vida. Ali eram valorizadas, primordialmente, certos práticas culturais, como o do respeito aos mais velhos, respeito às autoridades, o privilégio do social sobre o individual, etc.
Naquele quadro, a religião era vista como fator de coesão e de pertença social; a família tinha uma importância fundamental na vida, no trabalho e na comunidade.
O lazer não era visto pela sua dimensão pessoal, mas pela dimensão coletiva.[2]
            No quadro do mundo rural, todas as pessoas tinham que trabalhar a partir da intimidade do lar e sob o controle dos mais velhos.
Na cidade, processa-se uma mudança significativa em relação ao trabalho, porque ele passa a ser visto não como inerente à realização humana, mas, como mera mediação para o alcance de condições de lazer.
 Muitos suportam o trabalho porque idealizam o que vem depois: festa, bebidas, passeios, encontros, comilanças e outros passatempos.
            O lazer vem sendo insinuado como sendo a mais bem elaborada produção da civilização humana e como o maior propiciador de felicidade. É o grande símbolo do pensamento. Basta lembrar o incremento que se dá ao turismo, às viagens, às praias.
 As férias de fim-de-ano, os pacotes de excursões, as viagens ao exterior, aos campos, aos balneários, tudo parece pintar um grandioso quadro de felicidade. O endeusamento destas fontes de lazer parece evidenciar que nele se idealiza uma velha concepção maniqueísta e que estabelece dois pólos opostos: um, que orienta para escolher o do bem, que é o lazer, e o outro, que deve ser rejeitado, que é o cansaço do trabalho.
O lazer começa a povoar todo o imaginário coletivo em torno das possibilidades de viajar, conhecer, conquistar, desfrutar... Em função disto, organiza-se muito espaço de tempo para “malhação”, exercícios e “curtição”, numa nova forma de instauração do velho mito da eterna juventude.
A atribuição, que uma vez era dada ao campo religioso para o alcance da felicidade e realização dos seres humanos, agora, é, supostamente, fornecida pelos incontáveis atributos que o lazer pode propiciar nas cidades.
Tal deslocamento abre uma ambigüidade: uns procuram esta realização num certo tipo de programa musical, outros em caminhadas, outros ainda em esportes, teatro, cinema, etc., e o que os atrai via de regra, nem chega a ser uma opção pessoal, mas a mera aproximação de gostos similares, despertados pelos meios de comunicação de massa.[3]
            A idealização do lazer, produzida por classes dominantes e privilegiadas para o sonho dos pobres e dos que não tem acesso ao lazer, parece repetir a velha estratégia do tempo mitológico grego, no qual a aristocracia dispunha de “rapsodos” (poetas cantadores), para cantar ao povo os versos que enalteciam a aristocracia, visando fazer com que todos viessem a sonhar com a dita “aristocracia” e suportar o pesado fardo do trabalho escravo...
Como muitos não aceitam a resignação, tentam um acesso imediato às condições privilegiadas do lazer através de roubos, jogatinas, apostas em loterias, negócios obscuros, assaltos, contravenções e golpes econômicos.
Afinal, se o trabalho é tão humilhante e mal remunerado, porque não buscar o lazer de forma mais fácil e a qualquer preço, já que é apregoado como sinônimo de felicidade? Entretanto, mesmo que alguém atinja condições de lazer por vias fáceis, persistirá ali uma contradição: o que aparentemente deveria constituir-se em algo saudável, se torna altamente controvertido porque se limita a uma ostentação banal de modas e modismos consumistas e que leva muita gente à beira dos limites de uma vertigem de fama, de beleza, de ousadia, muito próximos da loucura e do suicídio.
As corridas noturnas dos “filhinhos de papai”, o uso e abuso do álcool, o excesso de comilanças e o consumo de outras drogas, tanto as legalmente permitidas quanto as proibidas, significam um evidente mecanismo de morte e auto-destruição.
Tudo isso, em vez de felicidade, aponta muito mais para a experiência do tédio, da desesperança, da falta de gosto pela vida, da ausência de bom-senso, do que para sentimentos de felicidade e se mostram mais propensos para o velho adágio romano do “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Mas será que lazer é apenas comer, beber e curtir sensações físicas agradáveis?
 Revela-se um triste quadro de uma vida manipulada para comer e beber. Afinal, o que se oferece num calçadão, e no sem número de bares e lanchonetes?
            Ainda que a felicidade seja buscada, freneticamente nas mil oportunidades de lazer, ele direciona eminentemente para o tédio, porque os tipos de praxes sociais são causadores deste sentimento de saturação.
Se não levamos em consideração este quadro amplo, veremos que muitos sonhos acalentados com grandes expectativas de felicidade, na verdade, propiciam vazio, decepção, desesperança e tédio.
            O estabelecimento de um patamar muito elevado e fictício para o lazer, como viagens, programas e encontros, leva a não dar valor a importantes fontes e fatores de prazer, geradores de momentos de felicidade, mas que não advêm daquelas tão destacadas do campo do lazer.
Tais fontes, decorrentes de um modo de conduzir-se na vida, poderiam preencher muito mais o tempo cronológico e a concepção do lazer, não como o de algumas práticas, mas como o rumo ou sentido, em função do qual se conduz a vida.
            O mito de que os produtos não terminam para a sociedade consumista, mais impede do que propicia os fatores de realização pessoal: a simples submissão ao que é distinto e inédito no momento, com vistas a encontrar maior gozo e maior número de fatores de excitação da adrenalina no sangue, revela indivíduos à busca de si mesmos, todavia manipulados pelos excitantes que a própria sociedade condena, mas, lhe apresenta com persuasão todos os dias.
Tal insinuação contínua de experimentação de tudo quanto provoca sensações consumistas desvia a chance de haurir fonte de prazer em incontáveis outras formas que estão além do ato de “curtir”.
            Nesta busca, gera-se uma crise de identidade porque a auto-imagem e a atuo-estima dependem precisamente da percepção de que outros gostam de nós e nos estimam.
A clareza em torno de nós mesmos depende da relação, ou seja, do modo como a hetero-imagem nos afeta. Portanto, o presumido mundo de indivíduos fechados sobre si mesmos na busca de felicidade, não pode efetivar-se por uma razão muito simples: o fator que desencadeia sensações de felicidade está truncado porque depende do bom relacionamento com outros.
            Se mulheres agricultoras uma vez conseguiam organizar-se na vida com 13 ou 15 filhos, uma mulher, na cidade, tendo um ou dois, já não suporta o cansaço por estar levando seu pimpolho de um lugar para outro, para preencher-lhe o dia e até os sonhos da noite: aulas, cursinho de dança, de música, de natação, de ginástica, de inglês e de informática...
As crianças já revelam, pela sua forma de olhar, a saturação de tudo isso. Neste processo de saturação, está, igualmente, em jogo uma rivalidade fora do comum e uma verdadeira obsessão de corrida à precocidade.
Parece que o único assunto interessante para as conversas é o de poder contar vantagens relativas ao que o “filhinho” e a “filhinha” já conseguem fazer com menos idade do que outras crianças.[4]
Mais do que educação para uma normal e sadia relação, está em jogo uma acirrada rivalidade da ótica iluminista de superação e que pressupõe o rebaixamento dos outros para a auto-ascensão.
 
 



[2]   CAMARGO, Luis Octávio de Lima. Quando o lazer se transforma em tédio. In: CULTURA VOZES, ano 87, vol. 87, no. 6, nov./dez. de 1993, p. 5-6.
[3]   Idem, p. 7-8.
[4]  Diante desta rivalidade, torna-se oportuno o lembrete de um ditado popular: “Deus perdoa sempre; as mulheres e os homens, de vez em quando, mas a natureza, não perdoa nunca”. A Biologia também sustenta que toda precocidade sempre implica em antecipação do fim, até mesmo na questão sexual, da genialidade ou de habilidades psico-motoras...

<center>INDIFERENÇA SISUDA</center>

    O entorno da vida cotidiana, Virou o veneno que dimana, A endurecer os sentimentos, Perante humanos proventos.   Cumplicidad...