Com
certeza, já antes dos nossos tempos modernos, fatores variados levaram pessoas
a entrar em estados de ansiedade e depressão, apesar de todas as formas de
pertença e de praxes sociais.
O fenômeno da urbanização moderna traz,
todavia, além da fantástica rapidez e multiplicação dos signos de comunicação,
uma cordialidade artificial, equivalente a etiquetas sociais e que predispõem
fatores depressivos relacionados à perda do sentido da vida. Na Antropologia
tal fenômeno passa a ser interpretado como tédio, uma nova doença urbana.
Segundo
o Logoterapeuta alemão Victor Frankl, a grande doença do nosso tempo, já não
decorre tanto dos desajustes de estágios do nosso passado, mas muito mais da falta
de um horizonte de fé e de sentido para o futuro distante. A doença da maioria
das pessoas está na sua incapacidade de se projetar para além do momento
presente de crise, depressão, qualquer outra dificuldade, ou da inércia para
sair de uma situação estabelecida.
Diante da rapidez e da fugacidade dos pequenos
momentos de felicidade em nossa vida, podemos perceber que o tédio pode estar
diluído em todos eles.
O tédio não resulta, apenas, da frustração diante
das idealizações de felicidade, mas emerge, atualmente, da grande multiplicação
dos signos de linguagem e de imagens, através da eletrônica e da informática,
ou da tele-informática.
O tédio parece, por conseguinte, resultar de um
sentimento de saturação. Quando se tem a sensação de saber tudo sobre tudo,
surge um sentimento de mal-estar, porque já não há mais expectativa ou empolgação
por novidade, surpresa, ou algo inusitado e novo.
Sobra, então, o sentimento enfadonho de desconforto
e de não suportar o que está por acontecer. Tal situação, estreitamente ligada
a um tipo de entendimento cultural, repassado pela educação ambiental, dissolve
o ator social e, por conseguinte, engrandece o mundo fechado do indivíduo em
sim mesmo (“narcizismo solipsista”) que faz os indivíduos se subsumirem na
vivência do agora, de forma autônoma, mesmo que seja criativa, mas, num
horizonte de dependência a um quadro consumista que a vida urbana desperta. Por
isso já se usa na Sociologia um novo conceito para explicar a vida dos sujeitos
urbanos. Eles vivem uma “anomia” subjetiva. Quando Emile Durkheim interpretou a
sociedade da revolução industrial como anômica, ou doente, apontava como causa
a falta de regras sociais e regras mais rígidas... Hoje contamos com inúmeros
códigos de regras sociais a ponto que qualquer atitude pode ser justificada ou
condenada. Em contrapartida, vivemos a anomia subjetiva, isto é, estamos
rodeados de pessoas que querem todos os direitos imagináveis, todas as
regalias, todas as vantagens, mas que não admitem nenhuma regra e nenhuma
cobrança sobre o seu modo de agir e pensar. Afinal, os outros precisam ser
instrumentos para propiciar este desmesurado desejo. Tanto no que tem quanto no
que são capazes de produzir, precisam favorecer tal aspiração subjetiva, a fim
de que não sofra percalços.
O que poderia, por
conseguinte, uma aglomeração urbana, como a da nossa simpática cidade,
significar ante a histórica predominância do mundo tradicional das fazendas e
sítios de interior, a ponto de gerar o tédio?
A
cidade, tida por muitos como a grande revolução do mundo ocidental, vem
processando uma série de transformações de cunho antropológico. Aparecem, ali,
características muito diferentes do que aquelas típicas do mundo rural.
Lá, o reconhecimento do
parentesco, da vizinhança e da comunidade, era (e ainda é) marcado pela
cordialidade. Há muitos rituais de saudação e de expressão da cordialidade,
como os gestos de pedir a bênção aos adultos e mais velhos, dar-lhes um abraço
ou beijo de saudação, etc.
No meio urbano, este traço
vem sendo substituído, paulatinamente, pela etiqueta. Esta característica de
agregação social separa por níveis de status, de veste, de cargos, de tipos de
profissões e de reflexos do poder aquisitivo (“É o seu Fulano e a senhora
Beltrana!”). Convidam-se apenas certas pessoas para ocupar espaços nos
palanques públicos, mas também os tomadores de pinga dos bares não aceitariam
partilhar o trago com certas pessoas engravatadas e vestidas no rigor social do
destaque das modas.
Enquanto
que, no meio rural, as instituições do trabalho, da família, da religião, da
política, etc., são tidas como fatores de realização e bem-estar, na cidade,
estas fontes de realização, ou de felicidade, são propugnadas, endeusadas e
apontadas nas variadas formas de conquista e de lazer.
Os valores tão específicos
de realização das comunidades rurais, como formas de vivência da religião,
modos de envolvimento político e o estilo de vida familiar, na vida urbana,
perdem seu significado e, em seu lugar, aparece muito evidenciado o lugar do
lazer.
Ao tempo livre atribui-se a correspondência,
pelo menos nas argumentações discursivas, do paradisíaco sonho de liberdade, a
possibilidade de expressão do corpo e as práticas que induzem a prazer.
Nos ambientes rurais, a
tradição exercia papel fundamental na organização da vida. Ali eram
valorizadas, primordialmente, certos práticas culturais, como o do respeito aos
mais velhos, respeito às autoridades, o privilégio do social sobre o
individual, etc.
Naquele quadro, a religião
era vista como fator de coesão e de pertença social; a família tinha uma
importância fundamental na vida, no trabalho e na comunidade.
O lazer não era visto pela
sua dimensão pessoal, mas pela dimensão coletiva.
No
quadro do mundo rural, todas as pessoas tinham que trabalhar a partir da intimidade
do lar e sob o controle dos mais velhos.
Na cidade, processa-se uma
mudança significativa em relação ao trabalho, porque ele passa a ser visto não
como inerente à realização humana, mas, como mera mediação para o alcance de
condições de lazer.
Muitos suportam o trabalho porque idealizam o
que vem depois: festa, bebidas, passeios, encontros, comilanças e outros
passatempos.
O
lazer vem sendo insinuado como sendo a mais bem elaborada produção da
civilização humana e como o maior propiciador de felicidade. É o grande símbolo
do pensamento. Basta lembrar o incremento que se dá ao turismo, às viagens, às
praias.
As férias de fim-de-ano, os pacotes de
excursões, as viagens ao exterior, aos campos, aos balneários, tudo parece
pintar um grandioso quadro de felicidade. O endeusamento destas fontes de lazer
parece evidenciar que nele se idealiza uma velha concepção maniqueísta e que
estabelece dois pólos opostos: um, que orienta para escolher o do bem, que é o
lazer, e o outro, que deve ser rejeitado, que é o cansaço do trabalho.
O lazer começa a povoar todo
o imaginário coletivo em torno das possibilidades de viajar, conhecer,
conquistar, desfrutar... Em função disto, organiza-se muito espaço de tempo
para “malhação”, exercícios e “curtição”, numa nova forma de instauração do
velho mito da eterna juventude.
A atribuição, que uma vez
era dada ao campo religioso para o alcance da felicidade e realização dos seres
humanos, agora, é, supostamente, fornecida pelos incontáveis atributos que o
lazer pode propiciar nas cidades.
Tal deslocamento abre uma
ambigüidade: uns procuram esta realização num certo tipo de programa musical,
outros em caminhadas, outros ainda em esportes, teatro, cinema, etc., e o que
os atrai via de regra, nem chega a ser uma opção pessoal, mas a mera
aproximação de gostos similares, despertados pelos meios de comunicação de
massa.
A
idealização do lazer, produzida por classes dominantes e privilegiadas para o
sonho dos pobres e dos que não tem acesso ao lazer, parece repetir a velha estratégia
do tempo mitológico grego, no qual a aristocracia dispunha de “rapsodos”
(poetas cantadores), para cantar ao povo os versos que enalteciam a
aristocracia, visando fazer com que todos viessem a sonhar com a dita
“aristocracia” e suportar o pesado fardo do trabalho escravo...
Como muitos não aceitam a
resignação, tentam um acesso imediato às condições privilegiadas do lazer
através de roubos, jogatinas, apostas em loterias, negócios obscuros, assaltos,
contravenções e golpes econômicos.
Afinal, se o trabalho é tão
humilhante e mal remunerado, porque não buscar o lazer de forma mais fácil e a
qualquer preço, já que é apregoado como sinônimo de felicidade? Entretanto,
mesmo que alguém atinja condições de lazer por vias fáceis, persistirá ali uma
contradição: o que aparentemente deveria constituir-se em algo saudável, se
torna altamente controvertido porque se limita a uma ostentação banal de modas
e modismos consumistas e que leva muita gente à beira dos limites de uma
vertigem de fama, de beleza, de ousadia, muito próximos da loucura e do
suicídio.
As corridas noturnas dos
“filhinhos de papai”, o uso e abuso do álcool, o excesso de comilanças e o
consumo de outras drogas, tanto as legalmente permitidas quanto as proibidas,
significam um evidente mecanismo de morte e auto-destruição.
Tudo isso, em vez de
felicidade, aponta muito mais para a experiência do tédio, da desesperança, da
falta de gosto pela vida, da ausência de bom-senso, do que para sentimentos de
felicidade e se mostram mais propensos para o velho adágio romano do “comamos e bebamos, porque amanhã
morreremos”. Mas será que lazer é apenas comer, beber e curtir sensações
físicas agradáveis?
Revela-se um triste quadro de uma vida
manipulada para comer e beber. Afinal, o que se oferece num calçadão, e no sem
número de bares e lanchonetes?
Ainda
que a felicidade seja buscada, freneticamente nas mil oportunidades de lazer,
ele direciona eminentemente para o tédio, porque os tipos de praxes sociais são
causadores deste sentimento de saturação.
Se não levamos em
consideração este quadro amplo, veremos que muitos sonhos acalentados com
grandes expectativas de felicidade, na verdade, propiciam vazio, decepção,
desesperança e tédio.
O
estabelecimento de um patamar muito elevado e fictício para o lazer, como
viagens, programas e encontros, leva a não dar valor a importantes fontes e
fatores de prazer, geradores de momentos de felicidade, mas que não advêm
daquelas tão destacadas do campo do lazer.
Tais fontes, decorrentes de
um modo de conduzir-se na vida, poderiam preencher muito mais o tempo
cronológico e a concepção do lazer, não como o de algumas práticas, mas como o
rumo ou sentido, em função do qual se conduz a vida.
O
mito de que os produtos não terminam para a sociedade consumista, mais impede do
que propicia os fatores de realização pessoal: a simples submissão ao que é
distinto e inédito no momento, com vistas a encontrar maior gozo e maior número
de fatores de excitação da adrenalina no sangue, revela indivíduos à busca de
si mesmos, todavia manipulados pelos excitantes que a própria sociedade
condena, mas, lhe apresenta com persuasão todos os dias.
Tal insinuação contínua de
experimentação de tudo quanto provoca sensações consumistas desvia a chance de
haurir fonte de prazer em incontáveis outras formas que estão além do ato de
“curtir”.
Nesta
busca, gera-se uma crise de identidade porque a auto-imagem e a atuo-estima
dependem precisamente da percepção de que outros gostam de nós e nos estimam.
A clareza em torno de nós
mesmos depende da relação, ou seja, do modo como a hetero-imagem nos afeta.
Portanto, o presumido mundo de indivíduos fechados sobre si mesmos na busca de
felicidade, não pode efetivar-se por uma razão muito simples: o fator que
desencadeia sensações de felicidade está truncado porque depende do bom
relacionamento com outros.
Se
mulheres agricultoras uma vez conseguiam organizar-se na vida com 13 ou 15
filhos, uma mulher, na cidade, tendo um ou dois, já não suporta o cansaço por
estar levando seu pimpolho de um lugar para outro, para preencher-lhe o dia e
até os sonhos da noite: aulas, cursinho de dança, de música, de natação, de
ginástica, de inglês e de informática...
As crianças já revelam, pela
sua forma de olhar, a saturação de tudo isso. Neste processo de saturação, está,
igualmente, em jogo uma rivalidade fora do comum e uma verdadeira obsessão de
corrida à precocidade.
Parece que o único assunto
interessante para as conversas é o de poder contar vantagens relativas ao que o
“filhinho” e a “filhinha” já conseguem fazer com menos idade do que outras
crianças.
Mais do que educação para
uma normal e sadia relação, está em jogo uma acirrada rivalidade da ótica
iluminista de superação e que pressupõe o rebaixamento dos outros para a
auto-ascensão.