I
Na Praça
Depois de longo período de
provocações xistosas nas horas do serviço, Pedro dos Santos e José da Silva
resolveram programar uma hora de conversa num dos bancos da Praça Tamandaré,
uma das belíssimas praças da encantadora cidade de Lucas do Rio Verde, no Mato
Grosso, situada entre as Avenidas Paraná e Rio Grande do Sul. Por isso mesmo,
até poderia chamar-se de Praça Santa Catarina, mas, como a cidade se constitui
no mais belo portal de entrada da região amazônica, ao lado do majestoso Rio
Verde, ficaria ainda melhor se fosse chamada de Praça Amazonas. O motivo deste
encontro marcado seria tão somente para uma ponderação informal sobre um tema
que os intrigava.
Por trás das gozações irônicas, manifestavam-se
distintos modos de lidar com a vida. Eles se deram conta de que estas gozações não
estavam sendo despertadas em função de conversas ou de casos com mulheres, nem
de futebol e, tampouco, em razão de cerveja e de boa carne para ser assada nos
finais de semana. Também não se referia à política e aos convencionais assuntos
da economia e dos negócios, mas, os dois simplesmente se implicavam em torno da
religião.
A constância de um se sentir interpelado com a vida do
outro, levou-os ao consenso de ir para a Praça e, ali, dirimir suas estranhezas
em torno de suas crenças. Por isso, na sexta-feira, depois de concluído o
horário do serviço, Pedro e Zé, em vez de freqüentar um bar, ou simplesmente
cada um tomar o rumo da sua casa, eles se deslocariam até a bela Praça e,
sentados num banco, iriam fazer um momento de elucidação do que estava
subjacente aos modos irônicos como um tratava o outro.
Pedro dos Santos, por ironia do nome, considerava-se
ateu confesso e declarado, e sentia-se incomodado com a vida do seu colega de
trabalho, José da Silva, um homem explicitamente religioso. Apesar de certo
contorno debochado na forma como um se referia ao outro, eram, todavia,
próximos e se afinavam em muitas lidas do serviço.
O ambiente da Praça, ao lado dos enormes palmeiras
imperiais e dos coqueiros da variedade “Rabo de Peixe”, dos arbustos floridos,
sobretudo, os das multicoloridas tonalidades de Ibiscos, além do contraste das
flores de Lamanda, da grama bem aparada e verde-escura, mais a limpeza, – outra
expressão da auto-estima dos que habitam esta cidade – tornavam este espaço
particularmente favorável para iniciar uma conversa sobre um tema instigante,
ainda desprovido de honestas partilhas a respeito do que significava na vida de
cada um.
Sem maiores cerimônias introdutórias, Pedro Santos, já
foi soltando, qual cachoeira de um rio caudaloso, as suas volumosas argumentações
anti-religiosas, porque não conseguia entender que José da Silva continuasse
acreditando em religião.
- Zé, como você ainda pode estar vinculado a uma
religião? Não entendo como você consegue acreditar em conversas de padres e
pastores! A religião, especialmente a cristã, é a causa principal do
desequilíbrio dos ecossistemas do planeta, porque não dá valor à vida real,
porque pensa felicidade somente para depois da morte. Não agüento ver vocês
rezar aquela velha oração do tempo colonial, saudando a rainha do céu a partir
dos choros e gemidos deste “Vale de Lágrimas”. É uma irresponsabilidade
conceber esta vida como mero Vale de Lágrimas! Vocês vivem uma metafísica em
função do outro mundo, considerado o bom, o verdadeiro, o justo e o feliz,
igualzinho ao jeito como Platão o pensou, e, por isso, transformam tudo em
provisório, a começar pelo corpo. Vocês acreditam em algo autêntico somente se
for manifestar-se depois da morte. Isto é conversa só mesmo para convencer
pessoas comuns do povão! Como engolir estes dogmas que vocês socam goela
abaixo! Vocês pervertem tudo quanto poderia ser bom neste mundo e, o que
considero pior, é que vocês orientam consciências fracas para ser tornarem
submissas, passivas, fatalistas; e, o que é mais cruel ainda, vocês as deixam
resignadas, porque já não são capazes de agir neste mundo, uma vez que só vivem
em função da expectativa do que a outra vida possa apresentar. Vocês realmente
pervertem as pessoas ao jogar para o além a compensação da miséria, enquanto os
altos escalões da vossa hierarquia se locupletam em luxo, em vaidades e em disputas
por precedência. Nas chatíssimas conversas sobre as regalias do além, vocês
apenas conseguem justificar a miséria que tanta gente vive, e, em vez de vocês
trabalharem valores humanos para mudar as coisas para melhor, consolam os
níveis inferiores para que nunca venham a participar do estilo de vida dos
vossos mandantes prepotentes, estes que conseguem despertar sentimentos de
culpa a respeito de tudo quanto possa ser satisfatório neste mundo.
Sem mesmo dar espaço para que seu Zé interrompesse a
fala, Pedro foi sacando da memória mais umas noções de Feuerbach, Marx e
Nietzsche, já exaustivamente veiculados na sociedade moderna, para justificar
que os seres humanos podem determinar seu rumo à felicidade, sem precisar de
nenhuma intercessão do além. Ademais, o propalado Deus se constitui de mera
criação humana. Não é o homem que é
produto de Deus, mas o inverso, Deus é que constitui produto do homem. O
processo religioso não passa de hipostatização dos medos e dos desejos que,
jogados para o âmbito divino, acabam se constituindo forças superiores de
controle da conduta humana, isto é, é como cuspir no ar e se convencer que a
queda desta saliva possui poderes salvadores. Isso é pura alienação!
Em vez dos
seres humanos juntarem forças para resolver os problemas de produção e consumo,
eles ficam esperando passivamente que tal solução venha das instâncias divinas.
É por isso que Marx falou que a religião é uma droga! Faz as pessoas esperar do
mundo divino o que deveriam solucionar com as próprias mãos. Por isso, também
concordo com Sygmund Freud de que a religião é simplesmente uma projeção de
medos inconscientes.
Enquanto as
pessoas ficam atreladas a Deus, não conseguem conquistar sua plena liberdade
porque a fé as torna dependentes de algo imaginário. A política e a economia
dos seres humanos é que podem oferecer tudo o que as explicações religiosas
esperam alcançar. As pessoas quando se conhecem a fundo, vão descobrir que elas
são deuses capazes de fazer tudo o que se imagina nesta natureza.
O real é apenas aquilo que os sentidos captam. Por
isso, não adianta ficar seguindo pensamentos abstratos. Eles apenas levam a
fantasias. Na verdade, tudo quanto se fala de atributos de Deus, não passam de
projeções humanas. O tal de céu, do qual tanto falam, não é nada mais do que
aquilo que se espera para a vida como bondade e veracidade.
Em lugar de
Teologia, o que se faz necessário é Antropologia, que os homens se conheçam e
explorem da melhor forma as suas virtualidades humanas. O ser humano é a
existência suprema. Por isso, em vez de nos tornar dependentes de Deus, temos
que partir de nós mesmos, porque aos seres humanos interessa o que vem dos
seres humanos e não o que vem de outro mundo. Um bom humanismo requer
necessariamente o desaparecimento das interferências de um Deus do outro mundo.
A religião nada mais faz do que impedir que as classes
oprimidas lutem pela sua libertação e fiquem se conformando aos esquemas da
exploração capitalista. Os dogmas do Cristianismo, então, constituem a negação
de qualquer bom senso. Em vez das pessoas cultivarem bom relacionamento entre
si acabam negando-se a si mesmas e ficam esperando intervenções divinas. Como
podem os seres humanos emancipar-se neste pobre atrelamento?
- Uai, respondeu Zé, parece que você andou lendo
algumas coisas rançosas de Feuerbach, Freud, Marx e Nietzsche? De qualquer
forma, eu te agradeço porque você teve a confiança de me falar isso. Não quero
refutar a argumentação que você apresenta, mas desejo simplesmente partilhar
com você o que creio independente de você aceitar ou não aceitar os argumentos,
e, salientar que parto de outro pressuposto, que não é o meramente racional. Religião
é um modo de vida que envolve elementos que fogem do campo racional e
científico. A religião é irracional se comparada ao seu pensamento ateu e
positivista. Ela envolve outro modo de ver o mundo e as pessoas. As experiências
que pessoas religiosas fazem de Deus tem outra mediação do que a linguagem
científica, pois expressa sua maior riqueza através de mitos e de linguagem
simbólica. Claro que vocês podem estudar os mitos e os símbolos, mas é possível
que não captem seu pleno alcance.
- Está bem, Zé! – retorquiu Pedro. Quero ter o mesmo
respeito ao que você vier a falar. Como não estou querendo chegar com muito
atraso em casa, quem sabe, voltamos na sexta-feira que vem a fim de dar
continuidade à conversa, e, então, você fala algo mais da religião.
- Confirmado! – disse Zé, e, avançando na idéia,
disse: quem sabe, poderemos fazer isso em mais uma porção de outras
sextas-feiras!
- Positivo! Fica combinado, respondeu Pedro.
Despediram-se rapidamente e cada um tomou o rumo da sua casa.
II
Retorno na sexta-feira, dia 12 de março
Assim que chegaram novamente ao lugar
definido na Praça, Pedro logo falou: ainda bem que é sexta-feira dia 12! Já
pensou se fosse dia 13?
- Zé logo exclamou: pelas barbas de Morfeu, Pedro,
você se declara ateu, combate a religião e se envolve com modos supersticiosos
tão banais? O que é esse ateísmo que você proclama? Não acredita na religião,
mas parece que acredita em coisas bem mais descabidas e primárias? Desconfio
que você alimente em sua cabeça um monte de outros comandos muito próximos ou
iguais aos que praticam alguma religião, de forma não declarada, e ainda participa
de certa osmose dos ambientes religiosos.
- Está bem, esquece Zé! Falou Pedro, mas vamos ao seu
assunto. Fale a respeito do que te prende a crer num Deus.
- Pedro! Para começar, não vou refutar as muitas
afirmações que você apresentou na sexta-feira passada e que, no meu
entendimento, correspondem ao pensamento de diversos escritores modernos. Eles
foram coerentes a um tipo de leitura sobre uma séria de formas de vivência
religiosa. Nenhum deles ofereceu provas seguras da não existência de Deus e
muitas de suas críticas corresponderam aos ambientes religiosos que já estavam
distantes da vivência dos fundamentos das suas entidades ou agregações
religiosas.
A leitura mais
antropocêntrica sobre a religião e pensando em melhor qualidade para a vida
humana, é uma leitura crítica possível, mas também existem outras leituras
sobre a religião. As duras críticas de elevada porção de pensadores modernos à
religião, ajudaram a religião a se indagar sobre a sua razão de ser. De fato,
muitas formas religiosas, e, também as cristãs, tanto quanto outras entidades
podem alienar, assim como a ciência, a filosofia, a antropologia, a economia e a
política se constituem em alto potencial alienador!
Antes de entrar neste assunto mais relacionado aos
fundamentos da religião, lembro que você começou mencionando a aceitação da
conversa dos padres e pastores. Bem! De pastores eu não sei falar praticamente
nada. Vejo apenas o programa de alguns deles na televisão e lhe falo
honestamente: no procedimento deles, vejo uma grande manipulação das pessoas
para interesses pessoais. Não vou ocupar-me falando da vida dos demais pastores
porque simplesmente não a conheço. Todavia, conheço muitos padres. Vejo em boa
parte deles, as mesmas características dos pastores da mídia televisiva.
Se minha fé
dependesse do modo como estes padres se apresentam, e, das baboseiras que
falam, eu também já não estaria mais na Igreja Católica. Com uma série de
programas, que de vez em quando assisto para ver se mudaram algum milímetro em
algo, e interpretando a religião que eles veiculam, também eu me sinto
profundamente desencantado. Em compensação, conheço outros padres que são
retos, honestos, simples, comunicativos, dedicados e se constituem realmente em
bons e ricos instrumentos de Deus na condição humana. Assim como Feuerbach e
outros, estes padres se movem para libertar sofrimentos humanos e não para
aumentá-los através de induções que alienam.
Quanto aos padres que me decepcionam, vejo em boa
parte deles um desvio de função. Escondem-se atrás de vestes vistosas e, por
sinal, de muito mau gosto. Guiam-se eminentemente pelo poder e pelo jogo
imagético. Por isso, também os considero repugnantes. Vou detalhar um pouco
melhor como vejo alguns deles e os classifico segundo certos traços:
Muitos, sobretudo os formados em Seminários
tradicionais como os do Rio de Janeiro e Brasília, carecem, de fato, da função
religiosa porque foram preparados somente para exercer poder sobre comunidades
paroquiais. Vou falar-lhe rapidamente de alguns protótipos facilmente
identificáveis que conheci:
A busca de ascensão e de
carreirismo leva alguns a se tornar tão ignóbeis, que um eventual raio “X” do
bispo, certamente iria registrar as mãos deles em torno do espaço pouco
recomendado. Conheci uma porção. Um, o padre Filisberto, constitui uma
ilustração típica: sempre apresenta o dedo indicador em riste, anelado por mil
escrúpulos, para censurar os erros e pecados das pessoas. É carreirista,
ambicioso por poder, doidamente afoito para ser bispo e age com extraordinária
prepotência. É um literal xereta e metido a galo que arrasta a asa.
Lembro-me de outro padre conhecido, o Ocalino, este que, ao
saudar as pessoas, as surpreende, na hora do aperto de mãos, com o estalo do
dedo polegar friccionado com o indicador. Deve ter treinado durante anos para
esta gracinha. Com o cacoete certamente pressupõe impressionar as pessoas ao
produzir um estampido com os dedos. Simultaneamente, engrossa as veias do
pescoço para apresentar um vozeirão de radialista de rodeio. Tem uma
necessidade de chamar atenção através destas exterioridades, pois, do oco do seu
interior não pode sair qualquer coisa interessante, ainda mais, de experiência de
vida cristã. Trata-se de um padre superficial e seu olhar vago e dispersivo,
que emerge da escuridão das olheiras, mostra que não é nem honesto e nem
decente para o ministério que exerce.
No perfil deste Ocalino,
lembro-me de outros três: uns “sangue-sugas” incrustados na parte sensível do
bispo. Trata-se do padre Bento, do padre Rusberto e do padre Clemente.
Os três são de uma incompetência espantosa.
Realmente morreriam de fome se não tivessem sido auferidos com o poder de serem
padres. Assim, exploram a função sagrada e, para não serem cobrados pelo bispo,
tentam bajulá-lo de toda forma possível. São desleais, falsos e se escondem
atrás das vestes litúrgicas para aparentar poder.
São, na verdade, uma
desgraça para a Igreja, porque de Jesus Cristo e de testemunho de seu projeto,
você não encontrará nada nestes indivíduos. Sem eles, a vida das comunidades, -
nas quais mandam e desmandam, - seria muito melhor para o cultivo da fé. Ao
lembrar-me destes tipos pouco condizentes, lembro de outro, ainda mais
anacrônico: trata-se do padre Cielo, um belo anjinho barroco. Embora, como
sempre, vestido rigorosamente dentro dos parâmetros integristas e reacionários
na Igreja, caracteriza-se por pouca coisa que não seja preto. O seu preto é o
preto da nobreza superior do imagético religioso. O sapato é preto; as meias
são pretas; a calça é preta; tudo indica que a cueca também seja preta; a
camisa é preta; o cabelo é preto. Só não é preto o colarinho da camisa e o
rosto carrancudo, de cor mais clara e rosada, devido ao seu obstinado
perfeccionismo de querer fazer tudo dentre da mais elevada instância da
ortodoxia eclesiástica.
O
padre Cielo até poderia ter sido formado para ser um bom padre, mas foi
depravado em sua formação no Seminário. Em decorrência deste processo, revela,
em tudo o que faz uma visão altamente essencialista, categórica, autoritária e
fundamentalista. Se ele não tivesse sido formado no Seminário diocesano de
Brasília, poderia até ser um sujeito concreto, mortal como os demais seres, e comprometido
com as difíceis buscas que possam fazer da fé uma força de salvação. Ele, no
entanto, foi programado não só para constituir-se num padre imagético, mas vive
da fantasia idealizada do seu patamar altamente superior ao comum dos mortais
porque é sacerdote. Obcecado por esta instância privilegiada, vive carrancudo,
porque vê contravenção em tudo, vê pecado até onde não existe e se sente
atacado, a todo instante, pelos grosseiros erros que os outros padres cometem
contra a doutrina e a ortodoxia da Santa Madre Igreja.
Bem, este figurino impecável é tão mesquinho e
dá de dez a zero na exagerada história de Jonas, contada na Bíblia. Se a baleia
não digeriu Jonas, devido à sua mesquinhez, ao longo de três dias no seu
estômago e o vomitou para fora do mar, o padre Cielo, pode deixá-lo no bucho de
qualquer tubarão faminto que depois de sete dias, o sujeito ainda continua tão
vivo e convencido como antes, e o tubarão vai ter que vomitá-lo para bem longe
do mar e procurar outra refeição mais digestiva no meio das águas salgadas.
Sabe
o que este sujeito deve ter no lugar da massa encefálica? Acho que um corte
vertical da sua cabeça iria surpreender pela ausência de cérebro, pois, no seu
lugar iria encontrar-se apenas uma mitra episcopal.
Pedro,
este tipo de padre realmente constitui desgraça para o grande e belo projeto
salvador de Jesus Cristo. Todos estes obcecados carreiristas causam prejuízos
inestimáveis à ação evangelizadora da Igreja. Qualquer pequena vacilada do
Espírito Santo e eis que este tipo de padre vira bispo ou, pelo menos, consegue
estudar em Roma e ocupar um cargo de influência na Igreja. A Igreja precisa de pessoas
de boa reputação e que tenham ascensão social pelo serviço, pelo testemunho
cristão, e não pela mágica ascensão do poder sacerdotal.
Você sabe onde está o celibato do padre Cielo?
Está no colarinho branco do pescoço! Ele se parece com uma estátua de cera,
cheio de moral, de conselho pronto para tudo quanto é problema, esconde seus
problemas atrás do colarinho branco e da roupa preta. Já constatei o choro, a
revolta e a indignação de mulheres que foram ao encontro do padre Cielo, a fim
de receber uma orientação religiosa e acabaram sendo sexualmente abusadas. E
ele, com aquela cara disfarçada de solução para tudo, não modifica em nada a
sua postura de nariz empinado e não é sequer capaz de manifestar arrependimento
ou expressar um pedido de desculpas pela agressão, que, mais do que sexual,
afeta e fere profundamente a honra e a auto-estima destas mulheres.
Outro
tipo de padre que eu também acho deplorável é constituído por um padre de nome
Lustoso. Gordo, flácido, barrigudo, com os pômulos faciais protuberantes e
avermelhados, apresenta a imagem perfeita do padre bonachão. Bom de garfo,
padre Lustoso não se mostra nada recatado para encomendar fartos jantares e
refeições. Seu modo de conversar é suave e desliza como o mel, pois não passa
da superficialidade das conversas ordinárias sobre o tempo, o futebol e, com
alguns eventuais elogios bajuladores.
Embora padre Lustoso seja
visto na comunidade como um papai bondoso, não esconde, ao olhar atento, uma
expressão devassa. Trata-se de um obcecado caçador de mulheres para a cama.
Mais do que papai bondoso é um padre amoroso em sentido bem restrito e, por
isto mesmo, não pode ser convincente no testemunho cristão e nem persuasivo em
seus sermões. Não produz mais do que fricotes e devaneios sobre aspectos religiosos
que não fedem e não cheiram.
Pedro,
eu penso que uma coisa é um deslize ou uma queda de comportamento em alguma
circunstância ou num ato isolado da vida e, bem outra, é o desvio de conduta.
Este tipo de padre jamais deveria ter chegado ao ministério que ocupa. Ali ele
se sente confortável, tem o que precisa e, curte o que gosta. Na verdade, é um
covarde. Um cachorro vira-lata faria bem maior à Igreja. Este padre resultou de
um tempo de formação em que não se olhava para a individualidade, o cultivo da
personalidade, mas, para a idealização de um projeto triunfalista de salvação e
que estava pressupondo que os sermões de padres mudariam a vida dos seres no
planeta Terra e todos passariam a constituir um só rebanho em torno de um só
pastor.
Este
padre Lustoso, mais rasteiro que um verme, é um pobre mendigo de afeto. Como
seu bispo também só se move no âmbito do poder e da precedência, não tem como
depurar este tipo de concepção sacerdotal que, além de escandalosa, é escandalizadora.
Outro caso que me lembro
é o do padre Petrônio. Ele deveria ter sido aconselhado, já no período de
formação a não seguir o itinerário de formação para ser padre. Musculoso,
bonitão, cheio de fricotes nos braços e com uma coleção de fitas, barbantes,
bricolagens e figas para todo lado. Seu cabelo loiro-escuro, liso e longo, e
amarrado na nuca, forma uma franja que parece um rabo de cavalo. É o bonitão
das meninas adolescentes e vive rodeado ou de meninos ou de meninas.
Lembro que numa ocasião o
ministério público estava rondando sua vida para prendê-lo em flagrante na
prática de atos de pedofilia.
Pedro! Achei que o lado contraditório de padres já estava
esgotado, mas, me recordo de mais dois figurões típicos, o padre Tonhão e o
padre Virgolino, os dois com feição jovem e vestidos a rigor da nova moda
sacerdotal do “Klerchyman” romano.
É
uma dupla da recente fornada de padrezinhos novos que saíram da formatação do
Seminário de Brasília! Eles são extraordinariamente rubricistas e,
escrupulosamente detalhistas na execução de ritos e orações. Se eles se movem
por fé, não creio não! Este tipo de formação não implica tanto numa vida
escandalosa, mas, altamente inadequada para nossos tempos, uma vez que eles se
norteiam pelo poder e pelo status da função clerical. Geralmente viram reféns
não só do consumismo de objetos eletrônicos, mas, também do imagético dos
padres que se apresentam em programas televisivos, quase todos paroladores
vulgares, pois se enfeitam e inventam mil bricolagens e mil fricotes para
chamar atenção sobre si. Por outro lado, vejo-os omissos no importante projeto
salvador, apresentado por Cristo.
De alguns poucos anos para cá,
emergiram nas Igrejas Locais, estas tendências de uma estranha volta a tempos
integristas, obstinados por auto-afirmação e conquista de espaço. Na verdade,
refletem o quadro mais amplo da vida católica brasileira que apresenta duas
tendências, que eu chamo de “paroquiadores” e de “paroladores imagéticos”.
Recordo-me bem do que faz
o padre Tonhão: é um pároco metido a imperador do espaço paroquial. Já o padre
Virgolino, é passivo, escrupuloso, detalhista das rubricas eclesiásticas, mas é
de uma extraordinária ingenuidade.
Mesmo que algumas beatas chamem padre
Virgolino de santo, eu teria mais vontade é de vomitar em cima dele. Ainda que
se encontre num patamar angelical das promoções carismáticas, é um pobre
debulhador de conversa fiada. Mesmo assim, consegue assegurar-se num nível de
saliência através do seu visual e da capacidade de persuasão emocional, de acordo
com os ditames da renovação carismática católica. Estes ditames dão suporte e
sustentação a este tipo de padres, para a desgraça da Igreja.
Vi
em algumas grandes celebrações uma rica ilustração Virgolinista. Pior do que
isso, esse perfil de sacerdote, que quase nem respira o ar das coisas terrenas
deste planeta, inferniza o trabalho de formação teológico-bíblica séria e
sistemática. Aliados a alguns Tonhões da vida, fazem gradual e progressiva
desqualificação de qualquer tipo de curso de Teologia ou de educação na fé que
queira preparar lideranças leigas. A oposição vem acompanhada de um sistemático
combate ao que ameaça o velho status medieval do padre. Ainda que não sigam
nenhuma orientação do Papa, só sabem falar dele. São altamente avessos a quaisquer
resquícios que possam indicar libertação ou alguma proximidade com Teologia da
Libertação, vista como diabólica ameaça à santa madre Igreja.
Ao quadro dos
“paroquiadores” alia-se o dos “paroladores” de conversinha inepta, porque os
dois tipos enaltecem o poder do padre. Também já escutei muito sermão de bispo
que não sabe falar de outra coisa do que do seu poder haurido através do
Espírito Santo para ocupar o poder de São Pedro. Olhe só, Pedro: o seu nome tem
a ver com isso, não acha? Muitos deles agem como legítimos donos da paróquia e
da diocese. Caso admitam a existência de conselho paroquial, é somente para o
êxito das festas.
Ocorre
que seu processo formativo os preparou para isto mesmo, pois, os seminaristas
estão sendo formados para o exercício do papel de literais imperadores da área
geográfica paroquial que vão assumir. Eles atingem este grau de poder não por
méritos de trabalho, de cultivo da fé, de serviço, de testemunho, de política,
ou de ação missionária, mas, pelo poder que lhes é auferido através da
ordenação presbiteral. Daí a grande afirmação do poder do padre na hora da
ordenação.
Nas ordenações sacerdotais faz-se uma
escancarada afirmação do poder religioso com ritos - na maior parte meramente
rubricistas, e, muitos deles, vazios de sentido, - mas, que exaltam ao auge das
emoções, durante três a quatro horas de celebração e - com verdadeiro desfile
de novidades da moda religiosa, - o poder infinito daquele padre, que, por sua
vez, de nariz erguido estende a mão santa para que seja beijada.
Indiretamente se diz para os leigos que o
sacramento da ordem é incomparavelmente superior aos demais sacramentos. É uma
ascensão mágica que transforma rapidamente um pobre jovem do interior em
sujeito aburguesado e com poderes que fazem sua cabeça ser o referencial do que
é bom, do que é certo e do que é justo. Ele se torna a instância suprema de
Deus e da religião católica na sua área paroquial. Sua palavra e seus desejos
constituem a referência do que pode e do que não pode ser feito naquele âmbito
territorial. Já não prevalece a
interpelação das palavras de Cristo e, em conseqüência, fica a evidente
conotação da imagem dos imperadores.
Quanto
à outra tendência, a dos “paroladores imagéticos”, constata-se que os programas
televisivos influenciam intensamente as celebrações religiosas, levando-as
praticamente a uma imitação do que é visualizado na TV. Este imaginário aponta como
caminho de prosperidade a meticulosidade dos mínimos detalhes de um ritualismo
vazio, altamente rubricista, e que os coloca num patamar mágico de quem não é
das coisas comuns deste mundo. Há décadas venho ouvindo as mesmas tristes,
lentas e sonolentas lamúrias em torno de Espírito Santo e, Jesus Cristo, - que
deveria ser o centro da Eucaristia, - simplesmente fica relegado a um segundo
plano dos rituais.
Este tipo de padres, se não convencem nem pela
razão e nem pelo conhecimento ou pela fé
vivenciada conseguem, todavia, granjear influência através da forma
categórica de infantilizar os fiéis através do enquadramento da assembléia e do
mapeamento do cotidiano destas pessoas, oferecendo-lhes, detalhadamente,
orientação sobre tudo o que podem e o que não podem fazer durante as vinte e
quatro horas do dia. Segundo a velha concepção essencialista, afirmam
categoricamente o que é e o que não é.
O pior é que grandes parte dos católicos ainda
acha bom regredir ao estágio infantil e deixar-se tutelar por estes presumidos
homens inspirados. Nossos dias já não deveriam mais oferecer estas
simplificações categóricas.
Apesar
deste lado moralizante, os ditos paroladores também conseguem adesão porque no
vazio de referências seguras, eles conduzem estas pessoas no cabresto da
submissão através de comandos diretivos, tais como soletrar frases e versos
para serem repetidos, e conduzindo as assembléias com ordens, normalmente
faladas em terceira pessoa, tais como: “faça isto, faça aquilo”, “diga isto
para Jesus”, coloque a “mão no coração”, etc. No fundo, trata-se de uma
exploração emocional que torna as pessoas dependentes das suas orientações. Não
propõem que sejam livres para se tornarem discípulos na construção do projeto
de Cristo, porque eles se colocam no centro das atenções. Está ali o cerne do
aspecto polêmico deste rubricismo e aparato imagético.
Assim como os padres na Televisão precisam
chamar a atenção dos telespectadores sobre si e mantê-los ligados ao programa,
nas missas, tende-se a reproduzir o mesmo esquema. Quando são simpáticos,
atraentes e agraciados com dotes artísticos, conseguem até granjear admiração e
aumentar a audiência. Como, então, trabalhar para um árduo processo de
construção do que chamamos Reino de Deus? O limite dos padres imagéticos
certamente reside na necessidade de prender telespectadores através da imagem
para assegurar a audiência.
A imagem não consegue
mostrar um horizonte de esperanças e de fé. Então, o que sobra ao parolador
imagético? Através das bricolagens, das vestes atraentes, enfim, da sua
imagética, prende atenção de pessoas. Como ídolo, e com o sucesso despertado
pelo seu visual, não centraliza a fé, mas a sua imagem: aparência, roupas
(batina, roupas com muito brilho e exibição dos últimos lançamentos das
novidades eletrônicas) e da sua forma de bajular os expectadores e ouvintes. Os
programas religiosos católicos de alguns canais televisivos escancaram, à saciedade,
este perfil de padres escrupulosamente detalhistas na venda do sagrado.
Vejo que a insatisfação dos que se silenciam ante o avanço
explícito destas lideranças representa quantia elevada na Igreja Católica, e,
talvez, a maioria. Como também estão em jogo pretensões carreiristas e de
ocupação de espaço, creio que eventual avanço destas duas tendências não obterá
êxito duradouro e nem prolongado na Igreja, porque eles se movem demais em
torno de si mesmos e, por isto, não percebem os anseios humanos profundos do
nosso tempo.
Com essa descrição que
acabei de fazer até aqui, estou até reforçando seu ponto de vista, não acha
Pedro? No entanto, conheço outros padres, dos jeitos os mais variados, uns com
cabelos brancos, outros magros e altos, outros baixinhos, que conduzem sua vida
num estilo diametralmente oposto. São pessoas estimadas em suas comunidades e
realmente sofrem e trabalham para melhorar a qualidade de vida em seu ambiente.
Os primeiros que
destaquei, de fato, representam um atentado à imagem dos que são retos,
honestos, dedicados e que, sinceramente, se empenham para fazer acontecer o
reino de Deus. Creio que os primeiros representam apenas um terço de todo o
quadro.
Este quadro da maioria constitui
um parâmetro largamente mais simpático e edificante. Uns revelam-se mais
artísticos, outros mais intelectuais, outros mais teológicos, outros mais dedicados
ao serviço de evangelização, uns mais organizados e outros mais desleixados,
uns são mais introvertidos e outros mais expansivos; uns são mais doentes e
outros mais saudáveis, uns são extraordinariamente simples e transparentes,
outros são mais embrulhados, quer nas idéias quanto nas lidas cotidianas, mas,
todos eles apresentam boa índole, são respeitados, estimados e se constituem em
grandes instrumentos de Deus pela sua forma lúcida e translúcida de viverem o
seu sacerdócio como serviço para o bem comum. Animam a fé de incontáveis
cristãos que cruzam no caminho da sua vida.
Sei
que muitos padres também sentem o desconforto da imagem denegrida, resultante
destes desvios, mas olhe se estes defeitos são exclusivos de padres
celibatários. Nas estatísticas gerais estes casos de desvio de conduta
representam, talvez um ou dois por cento de todos os casos doentios ou de
desvio da conduta normal. Não significam quase nada diante dos milhões de
outros casos pervertidos, sem falar dos que permanecem no anonimato. Muitos
homens casados, médicos, advogados e pessoas das muitas centenas de outras
profissões fazem coisas iguais ou piores. Só que estes deslocam seu problema e
ajudam a condenar os padres.
Como a fênix da
mitologia egípcia, que renascia das cinzas cada vez que era abatida e queimada,
a Igreja não precisa esconder nada e nem organizar contra-ataques. Precisará da
humildade de quem reconhece que ela também, como tantas outras estruturas
sociais, é pecadora e propensa a ocultar e deslocar os focos de erros e
deslizes.
Os fatos nada honrosos destes casos que lhe relatei indicam,
todavia, uma necessidade premente e forte para buscar e vislumbrar, à luz do
verdadeiro espírito de Deus, novo patamar para o exercício ministerial do clero
e que promova mais eficazmente avanços de sinais do Reino anunciado por Jesus
Cristo.
Por falar em Jesus Cristo
e o seu anunciado Reino, vejo que na Igreja Católica, de fato, ocorre uma
divisão profunda decorrente de formas distintas de interpretar o passado da
Igreja. É uma questão séria que merece, pelo menos, uma pequena ponderação.
Pedro, eu coloco esta
questão da seguinte forma: a Igreja hoje é uma cópia xerocada de boa qualidade
do que Jesus propugnou? Ou é este modo atual de ser da Igreja decorrência do
que foi se recriando no correr dos séculos? Creio que a maior parte da hierarquia
da Igreja se entende como fazedora do mais genuíno procedimento de Jesus
Cristo.
Pelo meu modo de ver, não é bem assim! Nem de
longe o que é atribuído aos evangelhos e à tradição oral dos apóstolos foi literalmente
assim e desta forma, desde as origens da Igreja. Grande parte dos ritos, das
normas e das regras dogmáticas foi introduzida posteriormente, especialmente
sob a ótica filosófica da Escolástica. Isto implica em conseqüências não muito
interessantes. Por exemplo, certos ritos e modos de rezar surgiram há poucos
séculos e muita gente sustenta que é do começo do cristianismo. Esta
auto-consciência deturpada leva muitos padres e bispos a um dogmatismo cruel,
porque dão a entender que tudo quanto fazem e todas as regras que exigem do
povo são da mais pura originalidade de Jesus Cristo.
Até mesmo no modo de ser
da Igreja, esta auto-consciência pode manifestar-se altamente nociva, porque na
bíblia não consta que Jesus quis esta Igreja e exatamente assim como ela
procede. Pelo que eu sei, Jesus convocou a todas as pessoas de boa vontade para
se envolverem na construção do reino de Deus. Convidou para o seguimento, é
claro, mas não chegou a solicitar explicitamente uma Igreja, com estas
características.
Jesus convocou as pessoas
para o seguimento para instaurar um mundo novo, e os seus sinais foram para
indicar, não o poder de quem quer afirmar-se como espetacular, mas como aquele
que age para diminuir a opressão, a injustiça e a dominação, traços tão
marcantes tanto no império romano quanto no governo de Israel, sobretudo dos
sumos sacerdotes.
Outra coisa que me invoca,
tanto quanto a você, é esta questão de adoração: em lugar nenhum Jesus afirmou
que queria ser adorado. Se você assiste a programas religiosos católicos na
televisão, é praticamente só isso que apresentam. Jesus sequer deixou regras
sobre como celebrar o culto, mas orientou para que Deus fosse adorado em
espírito e verdade, nos lugares os mais variados. Por ali se pode entender como
acréscimos posteriores a Jesus Cristo configuraram um modo de culto
completamente fora dos propósitos de Jesus. Sabe-se que, por muitas décadas,
ocorria a celebração do memorial de tudo quanto se manifestou de Deus no modo
de ser de Jesus Cristo, através de ceias feitas em casas e eram presididas pelo
anfitrião que recebia as demais famílias.
Com o passar do tempo esta rica celebração foi
transformada em culto e, com mais alguns artifícios teológicos, acabou transformada
em sacrifício, ato que somente podia ser celebrado por padres. Mais um pouco de
tempo, e cada comunidade mais ampla era presidida por um bispo e acompanhada
pelo seu clero e, o próprio Jesus humano passou a ser transposto para as
instâncias divinas. Uma vez transformado em religião oficial do império romano,
o catolicismo passou a ser considerada religião obrigatória e a que melhor
realizava o reino de Deus aqui na Terra. Isto tudo nos permite entender como se
deixou a centralidade da justiça e da fraternidade com a libertação dos
oprimidos, para uma religião de poder, de status, de dogmatismos categóricos e
de soluções pensadas na idade média, mas que já se mostram altamente
inadequadas para os nossos dias.
Entendo que Jesus tampouco pediu a forma atual
das Igrejas evangélicas, ainda mais com seus discursos proselitistas e de
prosperidade material, de bênçãos e curas que não correspondem nem mesmo ao
modo como Jesus lidava com as pessoas num momento histórico-cultural, muito
distante e muito distinto. A Igreja católica com certeza se pensa o melhor
sacramento da proposta de Reino proclamado por Jesus Cristo e até deveria sê-lo.
Isto, no entanto, ainda não significa que é o único caminho que salva e o único
que leva ao reino, sobretudo, quando se torna desambientada do nosso mundo
atual e, contra ele, sustenta uma volta ao pensamento medieval dedutivo, com
respostas e soluções categóricas para tudo.
Se atualmente tendemos,
com a cultura envolvente, a pensar e a estudar de formas mais indutivas, então
podemos realmente manifestar um olhar crítico sobre o que a Igreja faz. Mesmo
sob os apelos da fidelidade à tradição, ela parece não corresponder a muitos
traços da tradição original do que aconteceu nos primeiros anos do
cristianismo.
Pedro, subitamente, interrompeu
a conversa e disse:
- Zé, eu não esperava
ouvir isso de você! Por isso mesmo, fico ainda mais intrigado: como você
continua nesta Igreja?
- Ah! Pedro, por um
aspecto que eu acho muito importante: ao longo de toda a história da Igreja,
muitos homens e mulheres foram proféticos e extraordinariamente coerentes na
construção do Reino anunciado por Jesus de Nazaré. E como, hoje, conheço
pessoas que vivem esta mesma coerência, embora sejam muito poucas, elas me
apontam sentido no que busco e faço. É como ocorreu muitas vezes com o povo
bíblico do primeiro testamento, pois, somente um pequeno resto conseguia
fermentar algo novo para a história do povo.
Como o tempo combinado
estava exaurido, Pedro falou que teriam que deixar a continuação do assunto para
outra sexta-feira. Deram-se um aperto de mão e cada um bateu levemente a mão no
ombro do outro e se despediram.
III
Terceiro Encontro
Como nos encontros anteriores, Pedro e Zé chegaram
conforme o combinado. Depois de rápida distração em torno das araras, dos
papagaios e das pequenas e barulhentas caturritas a fazer uma imensa algazarra
no arvoredo, baixaram sua atenção para o tema da religião. O tema começou a ser
iluminado por uma constatação muito interessante, pois, como o dia iniciava seu
ciclo de escurecer, os poucos raios de luz que ainda cruzavam pelas pequenas
frinchas deixadas pelo verde escuro das folhas das árvores permitiam que o horizonte
da visualização dos dois conversadores se apresentasse não com a imagem de um
céu não azul, mas, verde estrelado. O movimento das folhas levemente agitadas
pela brisa repetia a bela imagem do céu estrelado no qual, muitas estrelas
parecem piscar continuamente.
- Pois é, seu Pedro, você levantou tantas questões que
vou levar um ano para poder falar um pouco de cada aspecto, mas como não vou
convencê-lo com certeza, não importam muitos detalhes e análises, e não
precisamos, por isso, perder a amizade e as motivações para fazer alguma coisa
boa no meio de nossa contingência humana, enquanto temos condições para isso.
- Olha Pedro, penso que até mesmo no ato de alguém se declarar
“a-teu”, ele está apenas fazendo um ato de rebeldia, porque ao afirmar que nega
a Deus, está evidentemente afirmando sua existência. Outra coisa: você procede
de uma família de tradição católica, você freqüentou a Igreja Católica, nós
freqüentamos juntos os encontros catequéticos nos sábados de tarde, então,
começo a ver no seu ateísmo um status de auto-afirmação, porque você age de
forma quase igual aos que freqüentam Igrejas, e isto me faz pensar que você
apenas vive encantado com algumas idéias aprendidas no ambiente acadêmico da
Faculdade e com alguns professores que normalmente tem pouco conhecimento da
religião.
Eles criam um fã-clube de simpatizantes para falar com
autoridade contra a religião, mas não a conhecem em profundidade e pouco ou
nada participam do que as religiões fazem. Por isso mesmo, formam um ateísmo de
academia e constituem uma intelectualidade orgânica, parecida com papagaios de
enfeite, pois conseguem fazer alguma graçinha, mas, se mostram totalmente ineptos
para fazer acontecer algo diferente neste mundo.
Situados num
mundo injusto, ajudam a manter a mesma e milenar diferenciação de classes e,
geralmente, ainda desfrutam do que vem das classes inferiores e não se distinguem
em praticamente nada que mostre ateísmo, agnosticismo, antropocentrismo e luta
de classes para emancipar as inferiores.
Mostram-se tão omissos como as religiões na atenção
aos mais empobrecidos e seu discurso contra a religião é também um pouco de
ópio para fornecer uma sensação agradável ao Ego. Pelo menos Freud, Feuerbach,
Marx, Engels, Hegel, Nietzsche estudaram a fundo e se debruçaram honestamente
sobre a miséria humana que tanto inquieta a humanidade.
Atualmente uma corrente neonitzscheana apresenta uma
postura que acaba anulando qualquer possibilidade de entendimento de que a vida
humana possa apresentar-se como dom, que poderia favorecer o entendimento e
construção de algo melhor para a humanidade, porque se aferra numa
despreocupada acomodação consumista. Na atenção ao corpo forte, malhado e de
boa aparência, exaure-se tudo quanto este corpo poderia fazer para o bem de
outros corpos anelantes por mais espaço de vida na sociedade.
Um dos riscos das modernas leituras antropológicas do
ser humano consiste em colocar sagrado, religião, Deus e transcendência como
sendo a mesma expressão de uma força puramente humana. Ao fazerem este
nivelamento deixam de perceber que há manifestações do sagrado que não se
constituem em forças subjugadoras, mas se situam do lado dos seres humanos
religiosos para que possam assumir uma postura crítica diante das formas
sociológicas e sacralizantes do poder dominador, afirmado exatamente como
negação dos possíveis poderes divinos.
Será que nossa condição humana se restringe apenas à
animalidade de que o mais esperto, astuto e forte se impõe sobre os demais?
Prefiro olhar para a concretude de Jesus de Nazaré que foi extraordinário ao
revelar a dimensão da sacralidade presente nas pessoas humanas. Não apontou
para coisas impossíveis de outros mundos.
Jesus tampouco apontou para uma vida de resignação e
de sacrifícios para expiar a maldade das outras pessoas perversas nas relações.
Ele mostrou aos negados o lado prazeroso da vida, expressa, sobretudo nas
ceias, e mostrou que a sua existência se constituía num dom para dissolver o
vitimalismo de quem deveria expiar pelos erros dos outros.
Penso que Jesus não se sacrificou para ficar obediente
a uma exigência superior, mas morreu pela coerência do que anunciou porque
apresentou um projeto para a vida humana: no lugar dos prepotentes humanos a
espoliar segundo seus desejos e ambições, sugeriu que fosse estabelecido o
espaço para Deus. A sua proposta do Reino de Deus visava justamente uma
sublevação da prepotência humana.
Os prepotentes da época viram em Jesus um sujeito
demonizado, impuro, anti-religioso, pecador e subversivo, mas, o que ele mesmo
fez? Não foi mostrar a grande parcela do povo espoliada por impostos e
encampação das terras para lutarem contra estes exploradores? Como naquele
tempo, ainda hoje se repete o poder tirano de que para o interesse do capital
precisa a maioria humana ficar pobre, e fadada a morrer. Se pregadores atuais
insinuam a resignação, certamente não correspondem ao que Jesus de Nazaré
propôs para as pessoas humildes da sua terra.
Pedro, escusas, pois eu não queria falar em tom de
contra-ataque em relação aos críticos da religião e, assim, deixei de falar
positivamente do que prezo na sustentação da fé cristã. No entanto, não sei
dar-lhe explicações detalhadas de todos os aspectos que você questiona na
religião.
Uma primeira
questão que me intriga é que a grande maioria da humanidade está vinculada a
entidades religiosas. Se a religião está presente em tão grande quantidade de
seres humanos, estariam todos eles simplesmente alienados, e dependentes de
meras fantasias jogadas para o sobrenatural?
Desconfio que muitos pensadores racionalistas modernos
tenham se equivocado com suas análises racionais e que não chegaram ao cerne da
religião. A religião certamente remete aos fundamentos últimos da razão da
existência humana: sua origem e seu fim. Dali emerge um sentido para a vida das
pessoas e, em decorrência, para o mundo e a história humana. Uma relação com os
fundamentos da existência aponta para tudo quanto é diferente dela. Eis, pois,
o que transcende o ser humano. Envolver-se neste campo, implica num modo de
existência. Dali emerge a questão que considero muito importante na religião:
não se trata de convencer a você com explicações segundo o esquema da
metodologia científica e, tampouco, de defender certas idéias sobre Deus.
O que mais
importa é como experimento a Deus e como acontece uma experiência religiosa, portanto,
não pelo caminho da especulação racional que poderia convencer você a favor da
crença em Deus. Afirmar que acredito num “Deus vivo” não é a mesma coisa do que
falar dum transcendente como Platão, Feuerbach, Marx e outros, falaram.
Significa que me situo num campo irracional onde o sagrado se manifesta. Em
torno dele vivo medos e pavores, mas também o encantamento pelo quanto pode
alargar-me ou engrandecer-me como criatura humana.
Admito que
exista Deus como alguém totalmente distinto das imagens que eu e outros dele
fazemos, mas implica numa conseqüência: o sagrado pode revelar-se e ele se
manifesta em hierofanias (modo como o divino se revela na condição humana).
Jesus Cristo, por exemplo, constitui uma destas hierofanias. Ali se encontra a
diferença de quem é religioso e quem não é religioso: quem é religioso quer
participar da realidade do sagrado e envolver-se com sua manifestação. Isto vai
levar a um forte desejo de estar ou de ficar no âmbito do sagrado.
O não religioso
como não vê que o mundo é um cosmos onde o sagrado se manifesta, pois somente
vê um mundo neutro dessacralizado que pode ser manipulado e transformado do
jeito que se acha bom, tem certamente uma culpa maior na conta do desequilíbrio
do planeta Terra do que as eventuais alienações religiosas, tal como você
falava no início. Pode a concepção antiga e medieval do cristianismo apresentar
culpa pela visão excessivamente teocêntrica, sem o adequado valor ao corpo
humano e ao meio envolvente, mas, sinceramente não vejo o maior peso do
desequilíbrio do Planeta tanto na religião quanto na visão dessacralizada e
racionalista do mundo moderno, este que se baseou na falsa noção mecanicista e
viu o planeta como ilimitado nas condições de suprir substituição de objetos
desgastados pelo uso e uma possibilidade infinita de manipulação dos recursos
naturais para transformá-los em mediações de superação e alcance da felicidade
humana.
Será que a religião é a causa de todo o consumismo,
gerador de lixo e de desequilíbrio dos recursos não renováveis além dos venenos
e efeitos do aquecimento global? Parece-me que é a concepção dessacralizada do
mundo, que levou seres humanos a colocar-se na onipotência de substituição a
Deus e que gera não somente os maiores desequilíbrios ambientais, mas também fenomenais
desajustes nas já extraordinariamente injustas relações entre nações, raças,
classes e grupos humanos.
Pedro, nossas diferenças indicam a existência de dois
modos distintos de ser no mundo: ser religioso e ser a-religioso, ou seja,
viver na condição de que o sagrado se manifesta no mundo sensível das nossas
lidas, ou viver como profano e numa dimensão profana. Em outras palavras,
pode-se viver num cosmos sacralizado e sacralizador, ou num cosmos
dessacralizado e que dessacraliza.
Uma característica da pessoa religiosa está em assumir
um modo específico de vida facilmente perceptível e que a situa de uma forma peculiar
no mundo. Ao sentir-se envolvido pela existência de uma realidade absoluta,
constituída pelo sagrado, ela o sente não apenas numa fantasiosa expectativa
para a outra vida, mas, sente-a neste mundo e faz experiência de haurir do
sagrado uma força transformadora e que a instrumentaliza para ajudá-la a
santificar o mundo. Imagino que na ponta da sua língua já esteja fervilhando
uma indagação a ser feita: e porque o mundo está tão pouco santificado? Aí
entram mil contingências, a historicidade, os fatores culturais, étnicos e
políticos que não permitem uma apresentação pura e genuína da experiência religiosa,
capaz de alta eficácia para a santificação do mundo. A experiência religiosa é
afetada por fatores culturais e, por sua vez, também interage sobre a cultura.
Uma pessoa a-religiosa, ou não religiosa, já não vai
ter a mesma perspectiva diante do mundo: ao negar a transcendência como fonte
reguladora deste mundo, afirma implicitamente que aqui tudo é relativo e se
sente como pertencente ao único grupo capaz de transformar a vida e o mundo. Ao
colocar na condição humana o horizonte máximo do que é possível e sem nenhuma
apelação ao transcendente e, por isso, sem limites doutrinais, sem limites religiosos,
e nem mesmo com limites ético-morais, sente-se livre e autorizado para
dessacralizar o mundo a seu bel prazer. Desta forma, como na imagem simbólica da
antiga história da torre de Babel, transforma profundamente o meio-ambiente e
pelo que me parece, ainda mais ávido por inquirir, conquistar e transformar do
que as pessoas religiosas. Evidente que neste processo poderíamos contar muitos
milhões de cristãos, só no Brasil, que agem de forma ainda mais devastadora,
mas, o que o que ainda é expressivo na religião deles? Mera exterioridade com
eventual participação social de alguns ritos religiosos. Na prática, não se
declaram ateus, mas vivem a indiferença ou uma agnosticidade religiosa, que
constitui um quadro bem inferior daquele que se declara ateu, mas se preocupa
com a qualidade de vida e com melhor futuro para todos os seres humanos. Nisto
ele realmente está mais alinhado com o projeto de Jesus Cristo do que todos
estes pseudo-cristãos. Para estes, Deus não representa nenhum empecilho para um
livre agir humano. Sobra, porém, a responsabilidade que decorre deste agir.
Vejo o ateísmo, como forte indício de decepção com
certos ambientes religiosos. Feuerbach quis ser pastor. Marx estudou teologia.
Nietzsche foi filho de pastor e tudo indicava que também seria pastor, mas o
ambiente acadêmico o levou a uma postura altamente crítica da religião. No
fundo, todo ataque que eles desferiram contra o cristianismo foi justificável
se consideramos a distância da vida religiosa e o que a Bíblia apresenta como
sendo proposta de Jesus Cristo para um agir humano. Neste caso, o ateísmo não
deixou de ser altamente profético e ajudou a depurar muitas contradições até
escandalosas no âmbito da Igreja Católica. Portanto, o ateísmo surgiu como
conseqüência de uma ancestralidade religiosa não vivida de forma muito
satisfatória, e neste sentido, o próprio passado religioso foi dessacralizador
do mundo e da vida em razoável medida e esvaziou muitas noções da experiência
religiosa através de ritualismos vazios e desprovidos de capacidade
transformadora da vida rumo a uma santificação.
A pessoa a-religiosa ainda conserva muitos arquétipos
culturais desta ancestralidade religiosa. Mesmo que já não esteja vivendo certas
formas de expressão religiosa, não pode negar seu passado do qual resulta e, ainda
que se recuse a aceitar determinadas formas religiosas e queira viver o
contrário da sua ancestralidade, não pode negar que este passado ainda continua
a atualizar-se no seu intelecto. Por isso – Pedro - vejo no seu ateísmo a mesma
inquietação que me afeta como pessoa religiosa. Parece que na prática, queremos
a mesma coisa.
Só desta forma consigo entender que você ainda se
apresente supersticioso e manifeste tabus de uma antiga ancestralidade
religiosa. Você ainda se move camufladamente num grande mundo de heranças quer
de ritos, de concepções mágicas e de mitos, tal como as pessoas religiosas.
Grande parte do que você lê, do que você assiste e do que você ouve está
permeado de concepções religiosas as mais variadas. Do contrário, você sequer
deveria estar morando aqui nesta cidade.
As idéias que
movem sua vida não estão totalmente isentas de comportamentos e de concepções
religiosas. Afinal quanto mito e quanta escatologia estiveram presentes no
projeto comunista materialista? Também Marx ao sonhar com sociedade sem classes
alimentou o mito de que com isso desapareceriam os problemas sociais humanos.
Ele apontava uma finalidade para a história. Ele não viu uma perspectiva
messiânica cristã no que poderia acontecer com o proletariado? Não se valeu ele
da velha concepção maniqueísta da existência de dois princípios regedores da
vida: o bem – que seria o materialismo comunista – e o mal, personificado no
sistema capitalista? Por outro lado, assim como a escatologia bíblico-cristã
criou expectativas para o outro mundo, a escatologia de Marx colocou o absoluto
na História.
Pedro! Estou convencido que no baú da sua estrutura
inconsciente ainda se encontram muitos panos contaminados com valores
religiosos. Quando você vai avivar algo do passado, muitos destes referenciais
se misturam e atuam na determinação do seu comportamento. Por esta razão,
continuo a me mover no quadro religioso porque me abre luzes para o caminho do
espírito, assim como você deve esperar que sonhos, lutas e fantasias diante das
angústias e dos contratempos, mesmo não enquadradas na cosmovisão religiosa, se
orientem por caminhos muito próximos e parecidos.
Apesar de ter pensado em falar apenas algumas coisas,
acabei soltando uma enxurrada de opiniões, sem oferecer espaço a você, Pedro.
Quem sabe, possamos na próxima semana retomar algumas coisas de forma mais
serena, “mais light e mais soft”!
Combinado, respondeu Pedro e se despediram
respeitosamente.
IV
Quarto encontro
O desvio da atenção inicial, desta vez, mais do que por
cantaria dos pássaros, foi propiciado por uma intensa gritaria de crianças que,
em grande quantidade, se movimentavam nas balanças, gangorras e outros
equipamentos de brinquedo. Mostravam uma vitalidade exuberante e encantadora.
Os sons agudos e estridentes de seus gritos, embora causassem uma vibração mais
intensa nos tímpanos, eram, contudo muito agradáveis.
Conforme o combinado, Pedro introduziu o assunto das
conversas sobre religião, fazendo rápido comentário do que Zé lhe falara há uma
semana. Admitiu que, de fato, existem muitas conversas e argumentações
impróprias para explicar Deus. Por isso, grande quantidade de pessoas não vê na
religião apenas como manifestação de ignorância, projeção das incapacidades
humanas para lidar com os contratempos que a vida apresenta; também a vêem como
mera alienação porque esvazia as pessoas do valor de si mesmas para esperar
passivamente que a divindade faça as coisas que deveriam ser feitas pelas
pessoas. Torna-se, pois, fácil entender a conclusão de Marx de que religião é
ópio do povo. Como você também já comentou, há quem vê na religião apenas a
projeção das frustrações humanas.
Zé, você me lembrou outro aspecto que eu ignorava: o
de que Deus não é assunto para ser racionalmente explicado, mas, que é
experimentado através de hierofanias e outras mediações. É possível que o saber
científico e filosófico moderno realmente não tenha alcançado a realidade mais
profunda, subjacente ao fenômeno religioso, porque, apesar de todas as
críticas, a religião continua tão declarada como antes e, em vez de desaparecer
como Marx e outros preconizavam, parece que nunca a humanidade se mostrou tão
amplamente religiosa. Seguidamente fico intrigado com este fenômeno.
Também pensei outra coisa a partir do que você falou:
uma religião pode exercer tirania sobre pessoas, pode espoliá-las em nome do
além e mapear seu comportamento para um controle perverso e explorador, mas, a
política e o capitalismo selvagem, por exemplo, podem fazer o mesmo. Também o
sistema comunista, onde foi implantado, acabou não mostrando nenhuma coerência
com as propostas teorizadas e os discursos de sociedade comunista atéia ou socialista.
Acabou solidificando uma classe privilegiada incrustada no Estado, e, outra, de
pobres dependentes e cerceados em suas reais capacidades.
O que mais me impressionou, foi uma noção de que a
religião subentende que o cosmos, ou a natureza toda pode manifestar sinais do
sagrado e que isto propicia uma visão de mundo muito distinta de forma como
cientificismo moderno pensa o mundo e as coisas. Claro, nem de longe todas as
pessoas religiosas vivem esta dimensão em grau razoável. Pensei durante a
semana que, de fato, a maioria dos que se declaram religiosos, vivem muito
parcialmente a visão religiosa, porque na lida e no modo perverso de desbravar a
natureza, também não se mostram menos agressivos que os ateus, agnósticos e sem
religião.
Assim como a religião pode manifestar-se como forma
que atrapalha literalmente o progresso humano, pode como fez em tantos momentos
da história, pelo menos em alguns ambientes humanos, constituir-se na melhor
força libertadora de quadros injustos e humanos. Na hora do grande despertar do
mundo moderno, pelo menos no ambiente humano ocidental, o cristianismo, não
meteu apenas um pé no freio, mas foi vergonhosamente reacionário, integrista e
fundamentalista. Parecia que estava querendo ser a super mãe do planeta e, na
verdade estava implodindo de tantas contradições e disputas internas por poder.
Diante deste quadro religioso, a chamada revolução copernicana do avanço das
ciências no mundo levou Kant a concluir que a estagnação e a mesmice da
religião estavam precisando dar um salto similar a fim de ajudar a humanidade a
sair desta minoridade mantida pelo cristianismo.
Mais do que jogar pedras sobre aquele momento
histórico deve-se lembrar que todo movimento de negação de Deus surgiu como
decorrência de um quadro deplorável do cristianismo. Enquanto aquela forma
religiosa era uma estrutura rígida, estratificada e legalista que emperrava
qualquer avanço ou novidade no processo de ascensão da qualidade humana, o
iluminismo passou a ser visto como algo realmente alvissareiro e edificante
muito mais do que a religião. Assim, o iluminismo representou emancipação
diante do sistema repressor da Igreja católica.
- Zé interveio na conversa e disse: Pedro, quando eu
penso sobre contradições que ocorreram na história da Igreja católica, não me
cabe refutação cabal, mas, ainda continuo convencido de que, comparativamente, os
procedimentos de queima das bruxas, das organizações e irmandades religiosas
que combatiam Árabes e Mouros, dos conluios e contradições de lideranças, todas
estes procedimentos não condizentes a finalidade da Igreja Católica, constituem
limitações suaves e leves contra as barbaridades das revoluções marxistas, da
revolução francesa, dos fascismos e, especialmente, do nazismo alemão.
Os horrores destas tristes memórias foram
incomparavelmente mais funestos do que os piores procedimentos da Igreja
católica. Eu ando sensibilizado com o que vi no museu de Israel em torno dos
milhões de judeus mortos pelo nazismo e estou estupefato com a descrição dos
sofrimentos nos campos de extermínio do nazismo lendo um dos livros de Viktor
Frankl no qual ele descreve o quanto ele, mesmo sendo médico psiquiatra,
sofreu, algo quase inimaginável de ser suportado por seres humanos nos campos
de Auschwitz e ainda, se penso nos milhões de seres humanos que atualmente vem
sendo torturados de múltiplas formas nas cadeias, presídios, como Guantánamo e
tantos outros, então, os sofrimentos decorrentes da Igreja ainda se constituem
em jugo bem mais leve e suave. Isto, todavia, não significa que pretendo
sustentar os erros da Igreja, mas não podemos ficar somente na crítica do
passado. Cabe-nos a tarefa de pelo menos empenhar-nos por um mundo melhor.
Nisto admiro o seu modo de ver as coisas, Pedro.
Vejo em você uma bela perspectiva de perfectibilidade,
muito próxima ou até melhor do que a minha. Esta sensibilidade por melhores
dias para maior número de pessoas, eu a vejo como expressão do que Jesus Cristo
evidenciou de forma magistral e profundamente humana.
- Zé, falou Pedro, o tempo já vai adiantado! Paramos
com o encontro de hoje?
- Sim, pode ser agora mesmo – respondeu José.
Sem maiores rituais de despedida, deram-se um aperto
de mão e cada um seguiu seu rumo.
V
Quinto momento de conversa
Na Praça, como o sol já dava sinais de retirada, e, já
deixando que parte razoável dos seus raios ficarem escondidos atrás das nuvens,
deixava um visual que misturava a cor cinzenta, com lilás, dourada e
avermelhada de rara beleza. Este colorido do céu espargia, contudo, claridade suficiente
para dar um toque especial ao ambiente.
Pedro e Zé, através dos encontros anteriores já haviam
deixado aparadas algumas arestas de argumentações mais fortes, iniciaram mais
um momento de ponderação, agora já mais comedida, e que enveredou para uma
constatação que a ambos inquietava, pois, cada um via sua existência envolvida
numa trama, qual minúsculo inseto preso nas teias de uma aranha, sem grandes
perspectivas de conseguir viver distante dos sofrimentos e das inquietudes.
Como pode, disse Pedro, mesmo que ninguém quer sofrer,
nem a experiência religiosa e nem a condução da vida numa orientação atéia,
conseguem desobstruir esta trama dos emaranhados da vida, que sempre acabam
implicando em imensas dificuldades a serem superadas.
Seria possível, com ou sem religião, sofrer menos?
Quando as inquietações de tirar o sono não são econômicas, são políticas, ou ideológicas.
Quando não procedem da vida familiar, procedem do relacionamento com vizinhos.
Quando não emergem do trabalho, aparecem sorrateiramente em dores que tiram
qualquer bom humor. Quando nada dói, surgem as dores decorrentes dos desejos
não alcançados e das sutis suspeitas de que pessoas amigas possam estar dando
prioridade a outras pessoas e relegar todo o legado de boa convivência. Quando
o desconforto não é objetivo, começam a latejar incontáveis dores emocionais
decorrentes de mágoas, de ressentimentos e de recordações tristes. Ao mesmo
tempo, na frenética busca de liberdade, de autonomia e de refúgio na
subjetividade, emergem os medos da escravidão da dependência psíquica e
afetiva, capazes de humilhar mais do que qualquer outro fracasso. Como não
despencar para a desesperança?
Concordo contigo Pedro, disse Zé: reclamar da dor
implica em ser gozado ou deixado de lado como “franguinho pesteado”, sobre o
qual todos descarregam seus mecanismos sádicos e de deslocamento de outros
sintomas. Dizer que se está abandonado, implica em ser debochado porque se é
mendigo de afeto. Afirmar que se está doente, significa ter que ouvir mil
receitas milagrosas que nada ajudam ou que se quer comprar comiseração.
Declarar-se miserável corresponde a ser relegado do ambiente porque para os
miseráveis há lugares pré-estabelecidos na sociedade. Abrir a boca e soltar,
com todo ar do pulmão os gritos da raiva e de desconforto, provoca outros
sofrimentos ainda piores porque logo aparecem moralistas para imprimir silêncio,
outros querem sufocar o grito e outros ainda vêm apresentar conselhos para
induzir à conformação, com explicações insuportáveis, velhas, descabidas, e de
enquadramento em grupos religiosos.
A implicação
maior é que sempre se mete Deus no meio de cada detalhe que, certamente, tem
muito menos ou nada a ver com ele, mas é aludido apenas pela vontade dos dominadores
que desejam submeter a si, o que disfarçam na apelação a Deus. Nestas horas,
não aparecem experiências de Deus, porque, os que se movem por falsas imagens
de Deus, enchem a cabeça com seus próprios preceitos categóricos e moralizantes
para uma determinada conduta. É uma verdadeira violência como tentam colonizara
a vida das pessoas.
- Zé prosseguindo falou: parece que Deus já nem pode
mais ser Deus de tanto atributo impróprio que lhe é auferido em nome do poder
humano. Diante de tudo, com ou sem religião, emerge uma dúvida existencial:
vale à pena ser reto, honesto e justo? É possível acreditar na bondade humana,
ou continua, de fato, a falar mais alto o lado agressivo, mimetizado,
sorrateiro e disfarçado, que, especialmente em muitos quadros religiosos,
submete e tiraniza da forma mais ignóbil que se possa pensar, mas que os leva a
presumir que estão constituídos num edificante serviço em favor das ordens
dadas por Deus. Os proclamados “superiores” costumam justificar-se de que estão
neste patamar por espontânea e gratuita iniciativa do Espírito Santo, que por
ele foram agraciados, apesar da sua pequenez, para esta elevação humana com os
correspondentes poderes divinos. Escondem, todavia, o carreirismo e todas as
mediações de politicagem utilizadas para tal alcance.
- Pedro então emendou: em nome do divino afirmam-se
muitos dogmatismos e impingem-se muitos moralismos e explicações formalistas de
grupos religiosos. O que eu não consigo aceitar são estas explicações fáceis e
banais de Deus. Nisto o pensamento marxista se constituiu num elevado anúncio
profético, porque não queria que as pessoas se tornassem conformistas,
imobilistas, silenciadas e maquininhas de repetir fórmulas prontas.
- José entrou na conversa e disse: Pedro, você acha
que eu penso esta finalidade para a vivência da religião? Concordo plenamente
contigo nesta análise. A religião mal orientada realmente induz a este processo
de desumanização que acaba em submissão e dependência fatalista. Nem eu me
conformo com explicações tão superficiais de Deus. Diante deste triste procedimento,
Deus certamente pede muito mais clamores e gritos do que silêncio piedoso e
fatalista.
- Pedro! Falou José: o que me aborrece são as falas
que procedem apenas de doutrinas e não de experiências vivenciadas. É tão fácil
dar conselho e palpite a respeito do que não se vive. O formalismo religioso é
um cupim que corrói toda a grandeza da experiência religiosa. Por isso minha
indignação não vai contra Deus, mas contra quem deturpa a imagem de Deus. Assim
também suspeito que sua rebeldia, Pedro, é muito mais um encontro com Deus do
que uma negação de Deus! Da mesma forma, como eu vivo um conflito entre
consciência e uma tradição deturpada, você parece revelar-se desencantado muito
mais com pessoas incoerentes do que com alguém superior que chamamos de Deus.
- Sabe Zé, que isto tem muito de verdade, porque
geralmente quando me apresento como ateu, as pessoas logo querem silenciar-me e
me esmagar, porque não sou religioso como elas. Elas de fato tendem a se
revelar muito mais traidoras do que afirmadoras do Deus que anunciam. E o pior
de tudo é que se tornam tão duras de cabeça que ninguém consegue remover uma
vírgula do que justificam no seu formalismo. Aprenderam uma vez alguma resposta
definitiva e ninguém consegue removê-las para a capacidade de pensar algo mais
sensato.
- Olha Pedro, prosseguiu José: no meu entendimento o
problema que mais afeta grande parte das pessoas fanaticamente religiosas é a
da falsa imagem de Deus, como aquele que controla tudo, aquele que sempre tem
um troco para dar, aquele que somente pensa em submeter, enfim, ele não passa
de uma máscara dos que querem afirmar seu poder religioso com sendo superior.
Mesmo não convencendo, insistem em vencer mediante a persuasão e a força de uma
argumentação obsoleta.
- Pedro então lembrou a José que o tempo combinado já
estava indo ao fim e que ele teria que sair rapidamente para não se atrasar num
outro compromisso e, assim, logo se despediu de José.
VI
Encontro da sexta “sexta-feira”
Pontualmente como combinaram, Pedro e Zé voltaram ao
costumeiro lugar da Praça Tamandaré a fim de continuarem sua conversa em torno
de religião. O lugar estava encantador como sempre, mas sem que algo chamasse
atenção especial. Desta vez José, depois de rápidas tergiversações de cunho
geral sobre os efeitos do terremoto no Japão e dos bombardeios sobre a Líbia,
deu início à conversa programada.
- Pedro, do que conversamos na sexta-feira passada, eu
lembrei que a religião é muito mais do que o desvio que algumas pessoas dela
fazem, e achei importante partilhar que entendo a religião pela sua rica
dimensão de apresentar funções altamente positivas. Uma primeira questão que me
é valiosa é a de que o verdadeiro e real vínculo com o transcendente sempre
interpela para melhores relações, seja com pessoas ou com situações envolventes,
donde sempre emergem novos encantamentos e fantasias que renovam a vida.
Outro elemento que considero positivo é o de que
entidades religiosas estabelecem regras éticas e morais para que sejam
vivenciadas pelos seus membros. Ainda que ali possa ocorrer controle, e
orientação que mapeia excessivamente o cotidiano das pessoas, contudo, não
induz a comportamentos perversos e tende a pautar-se pela boa índole na
convivência. É claro, na demonização de grupos ou pessoas, elas também podem
constituir-se em força destruidora, mas, de forma geral, tendem para bons
princípios de entendimento humano.
Mais um elemento valioso que vejo na religião é a sua
forma de repassar legados da ancestralidade de sua história. A religião ao
reavivar suas origens e fatos importantes do passado, sempre desperta a
capacidade de recriar novas expectativas. Permite que a fantasia se reporte
para outras formas possíveis. Por exemplo, nossas conversas aqui na Praça, me
permitem sonhar que a vida pode ser melhor do que está sendo nos tempos atuais.
Quando a religião faz memória da sua razão de existir ela sempre recria os
desejos. Ela se reporta para outros mundos humanos possíveis.
O que também vejo como edificante na religião é que
ela sempre está vinculada ao fornecimento de um sentido para a existência. A
natureza da religião não é a do fatalismo e nem o da desesperança. Com certeza,
sem as entidades religiosas a vida humana seria bem mais conflitante e muito
mais difícil o alcance de um razoável entendimento.
Admiro também na religião sua função terapêutica e sua
capacidade de oferecer um respaldo psicológico para os seus membros. Aliado a
este aspecto, a religião possui a potencialidade de oferecer variadas luzes
existenciais para ajudar as pessoas a lidar com seus limites, seus traumas e
suas crises.
- Pedro entrou na conversa e falou: Zé eu não tinha me
dado conta deste lado da religião, pois o que mais se evidencia na sua
expressão são os traços decepcionantes e inadequados e até incoerentes diante
do que anunciam como caminho que salva. Constato que alimento até admiração
pela coerência de algumas lideranças religiosas. Falam bem, convencem,
encantam, porque no que comunicam, transparece grandeza de alma e um sentimento
profundamente humanitário. Realmente lutam por causas nobres. No geral,
infelizmente, vejo mais o aparato do poder.
- Também eu, disse José, constato este esvaziamento da
real função de muitos graus hierárquicos, que ao contrário do discurso de serviço,
norteiam-se pelas baixezas das disputas de poder e são tão cruéis e
autoritários que tampouco eu consigo associá-los à expressão do projeto de
Jesus Cristo como um caminho que leva a Deus. Pedro, se me lembro de Cristo,
avivo também a sua inquietação, e, por isto, tanto se espera da religião: que
ela se mostre mais sensível e dê sinais mais concretos e palpáveis diante dos
problemas reais que nos atordoam a vida. Porventura não foi Jesus Cristo
profunda e extraordinariamente humano? Lembro uma frase que uma vez ouvi do
teólogo Leonardo Boff que dizia mais ou menos assim: “Jesus foi tão
profundamente humano, que só pode ser divino”. Pedro, eu vejo sua preocupação
muito mais afinada e próxima de Jesus Cristo do que muitíssimo aparato
religioso que por aí se apresenta. Portanto, no que esperamos para a vida
humana, estamos, na verdade, no mesmo barco!
Sem comentário de Pedro, Zé propôs o encerramento da
conversa e os dois se despediram para voltar na próxima semana.
VII
Sétima Conversa
As memórias partilhadas ao longo dos seis encontros na
Praça fizeram Pedro e Zé se encontrar, na sétima vez, com motivações muito
diversas daquelas que os moveram a procurar aquele espaço há poucas semanas
atrás. Além do respeito de para com outro, eles também constataram que a
conversa lhes fez bem. Puderam verificar que, nas expectativas de sentido da
existência, andam mais próximos do que nas lidas de trabalho, e que, nas
motivações religiosas, mesmo com diferenças, partilham perspectivas comuns para
si e para as demais pessoas.
O ambiente
facilitou esta partilha, no início, mais carregada de emoções, mas que,
paulatinamente, foi se amenizando e, na mesma proporção, foi aumentando o
respeito de um pelo outro.
Pedro partiu de uma constatação: Já notou Zé, que aqui
dispomos de um espaço gratuito. É verdade que, com a contribuição de impostos,
estamos ajudando a custear este espaço, mas mesmo assim, pudemos fruir deste
belo e aprazível local para jogar conversa fora. Não precisamos pagar aluguel,
nem comissão, nem luz e nem reserva de banco para sentar. Que tal, se cada um
de nós fosse convidar mais uma pessoa e nós pudéssemos alargar para mais
pessoas este momento, que foi tão bom e significativo para nós?
- José respondeu imediatamente: boa idéia! Eu até
tenho na ponta da língua o nome de alguém para indicar e já apresento o seu
nome, a Talissa! Ela é especial, estudiosa, entende das coisas e ela, com
certeza, vai enriquecer muito nossas conversas.
- Imediatamente Pedro também mencionou quem gostaria
de convidar: seu primo Eduardo, um sujeito muito entendido em conhecimentos
históricos e antropológicos.
Como nenhum questionou a indicação feita pelo outro, ficou
definido por consenso evidente que, a partir deste sétimo encontro, iriam
aumentar o leque de participação nestes momentos posteriores ao horário de trabalho
das sextas-feiras, caso os convidados aceitarem o convite.
O Zé até complementou:
- Pedro, nós poderíamos até mesmo voltar aos antigos
tempos clássicos da Grécia e reinventar algo parecido com o feito dos Estóicos:
eles transformaram a Praça no espaço nobre para estudo e reflexão sobre a vida.
Nós até podíamos ousar um pouco mais e fazer estes momentos com alguns petiscos
e alguma latinha de cerveja! Afinal um pouco de álcool no sangue, poderá até
facilitar o despertar de algumas intuições importantes e oferecer mais um bom
passatempo a alguém que queira fruir mais do que a beleza da Praça.
- A idéia é muito boa Zé! Só que, provavelmente
devamos estabelecer alguns limites pra que o momento não se transforme em mero
encontro de “tomar umas e outras” e assim, correr o risco de beber muito e
esvaziar completamente o sentido da hora de conversa. Ademais, vamos também
correr o risco de ficar num mero floreio de opiniões sem rumo, o que também
mataria rapidamente a razão dos encontros. Imagino até que daqui a alguns meses
possamos convidar ainda outras pessoas!
- Zé replicou: Nisto você tem toda razão! Talvez para
evitar o risco de cairmos em meros encontros festivos, também poderíamos pensar
em queijo ou um prato de salgadinhos e vinho, só um pequeno consumo para criar
um clima agradável em torno da conversa!
- Esta idéia me parece ser melhor do que a outra,
falou Pedro. Podemos fazer uma escala: cada vez um prepara alguns petiscos e
outro se prepara mais para saber aprofundar o tema que vamos tratar.
Poderíamos, por exemplo, abordar um tema em cada momento de encontro, ou
iniciá-lo num e prossegui-lo até que fique razoavelmente dirimido.
Resolvida esta questão programática, Zé voltou a
versar sobre o assunto religioso e falou:
- Pedro, eu creio que você no período da Faculdade
também estudou algumas coisa relativa ao sociólogo Émile Durkheim.
- Sim, respondeu Pedro. Lembro que o professor
explicou que ele considerou a religião apenas pelo seu papel coletivo. O
conjunto de ritos de uma entidade religiosa gera fatores de agregação e, pela
prática dos ritos, sentem as pessoas uma pertença ao grupo e se envolvem em
serviços e ocupações que geram solidariedade. Por isso, a religião é mera
realidade humana. Tem, todavia, uma utilidade, pois ajuda a manter o controle
social. Sob este aspecto a presença da religião é benéfica na sociedade. Sei
que também se falava de uma coisa de “Mana” que seria a causa da religião.
Mediante a pausa oferecida por Pedro, Zé entrou no
assunto:
- Pois bem, ali está uma questão complicada, porque
muitos pensadores modernos, começando por Syr Tylor, ao estudarem povos antigos
tiraram uma conclusão categórica de que eles se moviam em torno da “Mana e do
Totem”, isto é, de uma força circunscrita a um grupo humano a quem atribuíam
todos os fenômenos que se manifestavam no grupo. Disto teria resultado a
importância do papel do xamã ou do pajé, capaz de dispersar estas forças. O
totem era visto como expressão da capacidade de lidar com esta força
circundante, capaz de mostrar-se positiva e edificante, ou negativa e
destruidora. Na trilha desta leitura limitada, seguiu Malinoski, Freud e o
pensamento de esquerda. Durkheim ainda foi refém do pensamento positivista,
pois seguiu Augusto Comte, este que interpretou os passos evolutivos da
história numa perspectiva linear e deduziu a existência de três estágios: o do
mito, o da religião e o do estado científico do positivismo moderno.
Aliado ao pensamento filosófico moderno da necessidade
de uma emancipação do estado infantil, imposto à condição humana a partir do
cristianismo, acabou despertando a evidente conotação de que religião não
passaria do estágio da adolescência humana. A vida adulta do pensamento
racional moderno seria capaz de oferecer muito mais do que tudo quanto
entidades religiosas vinham oferecendo às pessoas. Hoje é difícil avaliar quem
era mais teimoso e obcecado no ataque ao adversário: se foi a religião cristã
ou se foi o pensamento positivista moderno. É um capítulo da nossa história
passada, relativamente recente, que ainda deixa no ar alguns ranços nas duas
partes.
Pelo lado da religião, toda esta forma de análise
recebeu uma elucidação muito interessante a partir dos estudos de Georges
Dumézil e de Mircea Eliade. Eles constataram que os ritos religiosos não se
referem a forças que envolvem um grupo humano, mas que constituem formas que
remetem a uma origem de experiência hierofânica, isto é, o transcendente é
experimentado pelas pessoas religiosas como o “totalmente outro”, e esta
experiência, mais do que alucinação ou efeito mórbido, é indizível. Significa
que não é pela linguagem racional que ela consegue ser exteriorizada. As
palavras e a linguagem são totalmente insuficientes para exprimir uma
experiência indizível que, geralmente, causa encantamento e pavor. Gera uma
dupla dimensão: de um lado, o ato de experimentar o sagrado leva a pessoa
religiosa a querer avançar no conhecimento do sobrenatural e, de outro lado,
fica com medo e se apavora. Esta experiência que Rudolf Otto chamou de
“tremendum fascinans”, dá totalmente outra conotação aos ritos religiosos: estes
remetem ao absoluto e por isso mesmo, mais do que fatores de coesão social, constituem
mediação de sentido.
Eu sei que para você, Pedro, isso talvez não
signifique nada de convincente, mas uma coisa é certa, Comte, Tylor, Durkheim,
Malinoski, Hoebel Frost, Maus e tantos outros, não captaram suficientemente o
entendimento da religião e emitiram opiniões que não corresponderam ao real da
experiência religiosa. Mesmo quem esperava o fim iminente da religião, precisou
admitir que seu prognóstico sobre o fim da religião permaneceu distante do que
se propalou para todos os lados. Deste modo, prefiro admitir, que, mesmo não
entendendo muito de religião, ela tem dimensões mais profundas do que “Mana e
Totem”, que é mais do que manipulação das pessoas e muito mais do que mero fator
de alienação.
Assim como pessoas religiosas poder frear qualquer
mudança social, elas também podem ser a causa de inovações e mudanças
profundas. Com todos os erros que a história da Igreja deixou para uma
recordação de um passado menos lisonjeiro, ela também registra a grandeza de
líderes, de santos e de santas com capacidade profética e intuições lúcidas
para mudanças sociais.
Quanto a estes
erros, tão explorados nos mínimos detalhes das críticas, eu prefiro a humildade
de aceitar este passado assim como foi, do que fazer como tantas lideranças
humanas não religiosas que ocultaram, esconderam e dissuadiram suas reais
monstruosidades sobre as pessoas, sobre grupos étnicos, sobre raças e nações.
Vejo pelo menos
algo edificante nesta humildade da Igreja quando reconhece erros históricos,
mas, também me preocupo com seus poucos sinais para não repetir este passado.
Nisto, aliás, vejo um conservadorismo cruel, sobretudo na hierarquia, porque ali
parcelas razoáveis confundem serviço e autoridade com poder e precedência.
Pedro interrogou a José:
- Zé, eu não duvido de muitas coisas boas que a Igreja
católica faz na sociedade, mas o que me intriga é seu outro lado, o da
alienação: assim como a sociedade com todos os seus valores é uma construção
humana, a religião é também produto da construção humana. Você mesmo entende
que a Igreja católica fez isso no correr dos séculos e na transformação
profunda das experiências originais do cristianismo, acabou neste processo de
alienação da atualidade. Entendo que no desejo de colocar cosmos no caos, que
se apresenta à condição humana, nem todos os procedimentos levam ao que almejam
e, nisto a religião entra com um papel muito importante para legitimar as
mazelas e justificar em nome do sagrado tudo o que contradiz a ordem desejada.
Em muitos momentos de ameaça de desagregação social, a religião foi importante
serviço humano a fim de se restabelecer a ordem perdida. No entanto, nem por
isso posso me convencer de que sua Igreja não exerça um extraordinário papel
alienador!
Invertendo o posicionamento, ainda que a religião não queira
levar a sério toda esta leitura de Marx, Durkheim, Peter Berger e tantos
outros, ela, no entanto, parece reproduzir o mesmíssimo esquema do
expansionismo do sistema de mercado capitalista. Você já comentou que, se fosse
pelo que vê nos programas religiosos televisionados no Brasil, já não estaria
mais na Igreja Católica. Eu lhe digo mais, porque de vez em quando, também
assisto a programas como o daquele tal de padre Robson: só sabe pedir, insistir
e agradecer pelo dinheiro enviado para a construção de um novo e mais moderno
santuário. O que ele faz é capitalismo crasso! Aquele ar de pieguice e o
simbólico da sua veste constituem mera astúcia para o expansionismo religioso
que deseja nos moldes capitalistas e, que me causam náuseas. Se ligar no canal
da Rede Vida, Século XXI e Canção Nova, o que mais se veicula é apelação para
viagens milagrosas, apelação à bondade dos telespectadores para que mandem
dinheiro a fim de custear programa e para a edificação de outras obras
mirabolantes. O que eles fazem não é nem mesmo um mercado de bens simbólicos e
religiosos, mas, um raso mercado de bens materiais. Para isso, do que mais
precisam, é de dízimo. Mostram mais medo diante do comunismo do que do demônio,
porque se acham na condição de dominá-lo, mas, sob o título de religião,
exercem um perverso sistema de expansionismo capitalista porque este, mais do
que a religião, lhes é vantajoso e interessante.
- Pedro, respondeu José, concordo com esta observação,
mas, apesar do que você bem observa, eu vejo que a religião também “des-aliena”,
porque a Igreja católica é bem mais do que se visualiza na TV! Muitas pessoas
anônimas e altamente proféticas agem de modos muito diferentes do que aquilo
que se manifesta na mídia eletrônica. Eu acredito é neste fermento
transformador capaz de renovar a própria religião, também, de dentro para fora.
Nossas óticas, Pedro, estabelecem um claro impasse,
pois, afinal, qual o caminho mais seguro: o de apostar somente no que a condição
humana consegue fazer, ou apostar na ação de um ser superior, divino, eterno e
sobrenatural, capaz de dar e de deixar sinais para orientar os seres humanos no
caminho da perfectibilidade e lhes apontar perspectivas de uma vida social
realmente mais igualitária e fraterna, melhor do que esta que hoje se apresenta?
VIII
Encontro ampliado
A peculiaridade do oitavo encontro ficou por conta da
presença de Talissa e Eduardo. Os dois aceitaram o convite e vieram cientes do
que se trataria ali na praça. Vieram discretos e logo se ambientaram com Pedro
e Zé, já conhecidos de longos tempos, e se inseriram no ambiente da conversa
como se já fossem veteranos na discussão do tema.
Zé introduziu o assunto e comentou rapidamente a
respeito do que os levou a encontrar-se naquele espaço. Narrou sinópticos
traços do que se evidenciou nas conversas. Pedro emendou a conversa e salientou
que na partilha das diferenças tinha aumentado o respeito de um pelo outro e
que esperava um alargamento ainda maior com a participação dos dois convidados.
Insistiu para que se sentissem bem acolhidos e destacou que as regras para os
encontros não estavam explicitadas, mas prevalecia o princípio evidente do
mínimo de formalismo, a fim de que as conversas pudessem fluir mais à vontade,
mas, sempre em torno do tema escolhido: religião.
Tanto a Talissa quanto o Eduardo demonstraram imediato
interesse pelo assunto e logo os dois começaram a participar das conversas
introdutórias.
Pedro, que já
havia remoído uma série de idéias em torno da religião, ainda continuava
intrigado em torno de mais uma questão: a do medo relacionado com religião. Destacou
que mudara uma porção de opiniões relativas à religião, mas ainda não conseguia
aceitar que a religião fosse fonte e mantenedora de tantos medos. Intrigado por
entender que a Religião somente se mantinha viva devido aos medos que incutia
nas pessoas, achava que se tratava de um recurso excessivamente banal para ser
algo de instâncias superiores.
Talissa mostrou imediatamente que não viera apenas
para ouvir conversas alheias e, imediatamente, entrou no assunto. Como era de
vivência religiosa e atuante numa comunidade cristã, tinha suficiente senso
crítico para não aceitar que religião fosse mera decorrência de medos, tal como
Freud propugnou em seu tempo.
A idéia freudiana permitia concluir que uma pessoa
religiosa é pessoa conduzida pelo medo, e que apelava para instâncias
superiores porque se considerava frágil, passiva e dependente. Afinal, teria Deus
alguma coisa a intervir na resolução de problemas humanos mal encaminhados?
Talissa não era destas pessoas fanáticas de se
atribuir instâncias superiores e nem possuidora de poderes espirituais ou manifestos
dons de cura como muitos fanáticos dos movimentos neo-pentecostais e, tampouco
se atribuía poderes messiânicos de salvação fácil, imediatista e mágica. Tinha
consciência dos problemas da contingência humana e não acreditava em soluções
fantásticas da insinuada teologia da retribuição – própria da relação castigo x
recompensa, - pois sua noção de fé em Jesus Cristo a fazia apostar no penoso
processo de construção de um novo modo de relações humanas e sabia que este
processo era incomparavelmente mais amplo do que sua capacidade de ação. Sabia,
também, que sua participação responsável e ativa era preciosa para colaborar na
construção de relações humanas mais solidárias e menos capitalistas, mais
cordiais e menos etiquetadas e, com mais expressão dos sentimentos reais do que
o dos disfarces e das aparências.
Eduardo mostrou-se mais contido, pois sabia muito mais
de futebol do que de religião. Mesmo assim, considerava-se moderado. Não se
pensava nem fanático religioso e, tampouco, avesso à religião. Tinha
consciência de muitos disparates dos quadros religiosos, mas também considerava
valiosas as muitas iniciativas de comunidades religiosas em favor de um senso
mais solidário entre as pessoas. Ele admitia que, muitos grupos religiosos se
notabilizaram pela atenção, pelo empenho, e pela prosperidade que mostravam no
desenvolvimento de serviços “pé-no-chão” para a perfectibilidade humana.
Talissa tomou a iniciativa de levar adiante a questão
levantada por Pedro e arrematou com outra pergunta: Existe por acaso alguém que
insinua medos e os explora ao máximo da exaustão, mais do que os Estados sobre os
habitantes de seus países? As religiões não estão isentas da exploração de
medos com a finalidade de controlar as pessoas. Algumas entidades são
especialistas em demonizar todo o meio-ambiente com vistas a submeter pessoas
religiosas aos seus interesses. Até por osmose cultural fazem isso. Sem sombra
de dúvidas, falou ela, ninguém neste mundo gera tantos medos e pânicos nas
pessoas quanto o Estado, porque, se não fizesse assim, quem lhe daria um mínimo
de confiança, de crédito e de atenção? Não quero eximir a religião deste
pecado, pois vejo que umas entidades religiosas, mais do que outras, incidem
nesta imitação do Estado. Vejo, no entanto, que muito “porra louca”, só por ter
lido algumas frases isoladas de Freud, Marx ou de Nietzsche, já se acha acima do
bem e do mal para julgar a religião pelo avesso. Não estou querendo ofender a
você Pedro, porque notei que você levantou uma dúvida existencial e que
realmente tem razão de ser feita. Sinceramente, vejo que a religião fica bem
longe atrás do Estado no processo de fabricar medos e incuti-los nas pessoas a
fim de assegurar seu patamar de controle sobre estas pessoas. Se os Estados não
criam medos específicos, conseguem, com muita argúcia, explorar os medos
existenciais das pessoas e coagi-las para um determinado modo de submissão. Ao
se despertar medo de tudo e de todos, tanto o Estado quanto a Religião, podem
tornar-se prejudiciais à própria sociedade, pois, diante do medo despertado
todos toleram qualquer ação do Estado ou da religião, por mais covarde, traiçoeira
e nefasta que possa ser. Nada mais ilustrativo do que as guerras
norte-americanas desencadeadas contra diversos países e com resultados
deploráveis. Primeiro injeta-se medo. Depois, age-se com despotismo para
justificar que todos vão receber em conseqüência disto, vida mais serena, mais
tranqüila, próspera e segura. A religião católica, por exemplo, fez coisa
parecida em torno das promessas do além; agora, quantos falam contra a
manipulação do Estado? Muitos pregadores cristãos, por exemplo, ao centralizarem
em seus discursos o medo, ficam, na verdade, muito distantes do projeto
anunciado por Jesus Cristo. Vejo, pois que apenas muda a referência: se uns
amedrontam e ameaçam em nome de Deus, outros fazem a mesma coisa em nome do
Estado ou até de uma ideologia política. Parece-me, pois, que este assunto está
meio metido a ‘quero-quero’ que disfarça o lugar real do ninho com os filhotes.
Acho, no entanto, deplorável como certas pessoas se arrogam cargos, privilégios
e poderes espirituais por mero interesse de controlar outras pessoas, mas
também lamento que em nome do Estado, muitíssimos seres humanos fazem a
mesmíssima coisa. Para mim, nem uma e nem outra destas prepotências realmente
ajudam à condição humana diante dos variados e múltiplos medos.
Zé entrou na conversa e comentou que também ele achava
que, no fundo, este assunto girava em torno do poder: uns o exploram em nome do
Estado e outros, em nome de Deus. Assim, ambos ficam longe de uma religião de
espírito e de verdade, como Jesus Cristo apontou. Religião, de fato, não pode
ser uma acirrada disputa de clientes e nem ao Estado compete esta baixaria.
Eduardo também se manifestou em relação ao que estava
ouvindo e disse: Vejo que continuamos presos a um antigo problema maniqueísta,
pois, continuamos com a tentação de separar a vida, o mundo e a sociedade em
dois pólos antagônicos, isto é, sempre desejamos situar-nos no lado do bem e
atrair os demais para este pólo privilegiado, e, por isso, alarga-se a natural
tentação de condenar, de demonizar e de ameaçar com castigos a quem não pensa
do mesmo jeito ou, não se submete ao julgamento. Parece que se cruzam
incumbências: os candidatos a cargos do Estado, em períodos de campanha
política, realmente se colocam como messiânicos salvadores de tudo quanto está
perdido e perverso. E como sabem ver erro, omissão, roubo e defeito em tudo!
Muitos até exaurem a exploração de apelações religiosas. Com isso, os
candidatos pretendentes de cargos políticos, ou empregos para ganhar mais, se
apresentam literalmente como os melhores dispensadores dos traços atribuídos à
Religião e, o que vejo na prática, quem faz grande parte dos atributos do
Estado, são entidades religiosas, especialmente no campo assistencial, de saúde
e até de filantropia. No lugar das muitas Entidades Filantrópicas, estão hoje
as ONGs a fazer desvios, falcatruas e tudo o mais, menos o que está em seus
estatutos. Será que tem alguma ONG realmente desvinculada do Estado? Acho que
este assunto está se invertendo, pois, os homens do Estado se colocam como
salvadores, basta ver como são ovacionados e bajulados quando de deslocam a
algum lugar. Sabem como ninguém deste mundo, elogiar-se e engrandecer-se a si
mesmos para transmitir um ar de onipotência e de quem realmente dispõe de tudo
quanto os pobres dependentes possam estar sonhando ou desejando adquirir. São os
todo-poderosos. Neste assunto, não penso que o erro grave esteja somente na
Religião, embora, ela deva mostrar sinais para se identificar como algo melhor
e a mais do que vendedora de medos.
Pedro, depois de ouvir atentamente os colegas,
agradeceu as opiniões e disse que concordava com a análise relacionando a
presumida ilusão da Religião com a ilusão causada pelo Estado. Lembrou que
muitos sinais evidentes de religião politizada representavam uma extraordinária
ameaça ao mundo. Todos os recentes conflitos, guerras e agitações sociais
profundas, decorrem de procedimentos políticos movidas por fanatismo religioso.
Por outro lado, a santificação da política, aspecto que não tinha se dado
conta, representa o mesmo perigo e a mesma baixaria de controlar pela produção
de medos, possíveis, fictícios e imaginários, mas sempre para legitimar o
direito do Estado agir da forma que bem entender sobre tudo quanto lhe
interessar. Concluiu que, finalmente não ficaria muito fora de jeito dizer que
o Estado também pode ser “ópio do povo”, e, na verdade, produtor, vendedor e
estimulante do consumo deste “ópio”, a fim de que o povo continue iludido e
esperando afoitamente que o Estado, o salvador, faça muitos milagres.
Como a conversa já ia avançada, combinaram retornar na
próxima semana e se ocuparam em conversas mais informais sobre as lidas de cada
um.
IX
Segundo encontro ampliado
Diante da forma espontânea e fácil da inserção de
Talissa e Eduardo no clima da conversa, nada pareceu fora do normal para o
início do segundo encontro. O ambiente, todavia, estava diferente. Como a praça
recebera nova iluminação, o que já era bonito, ficou ainda mais agradável.
Agora com iluminação que vinha de postes bem acima da altura dos arbustos e das
árvores de sombra, a praça dava outra sensação de segurança. O colorido das
plantas também ficou mais vivo porque a luz deixou de ser amarelada, para
tornar-se prateada como a da lua, e propiciar um clima especial para as
elucubrações em torno da Religião.
Alguns minutos se passaram em torno de conversas
variadas. De repente, Zé apresentou uma questão que a ele, como homem
religioso, causava estranheza: tratava-se da questão do fundamentalismo
religioso. Todos concordaram e confirmaram que este assunto era deveras
desconfortável para uma imagem positiva da Religião.
Zé iniciou a colocação do problema com uma pergunta:
porque as religiões, de uma forma geral, se revelam tão avessas ao mundo
contemporâneo? Estou intrigado, disse
ele, com a relação do mundo ocidental diante do mundo muçulmano, pois vejo que
um lado demoniza o outro, mas também me inquieta ver como o pensamento oficial
da Igreja Católica manifesta uma clara volta ao passado, e anula os avanços das
últimas décadas para voltar ao seu pior estágio integrista e fundamentalista. Aparentemente
quer atacar o individualismo moderno, porque perdeu o controle sobre as pessoas
que conseguia arregimentar sob o discurso da homogeneidade medieval. Tudo bem
que o nosso tempo se constitui, sob a égide da globalização, num rolo
compressor que tende a fazer todos os seres do planeta consumidores de tudo
quanto é produzido e bem sabemos que o planeta não comporta longo período do
atual momento consumista. Mas será que tudo está ruim? Ou seria um sutil desejo
por parte da Igreja Católica de não aceitar que outra organização exerça mais
poder sobre as pessoas. Neste caso, estaria a Igreja lamentando a perda de um
terreno perdido com os moldes de cristandade e sociedade perfeita, através dos
quais conseguia impor-se sobre as culturas e sociedades, porque se presumia
movida pelo poder espiritual, excelso acima do poder mundano. A Igreja, de
fato, mapeou por longos séculos o comportamento dos indivíduos da grande
maioria da população ocidental. Agora, esta sociedade, regida por outra força
de controle, estaria levando a Igreja à busca da recuperação do terreno perdido
e, por isso, apelando para um tempo saudoso do passado no qual possuía esta
hegemonia, para implantá-la novamente. Se este assunto realmente é disputa de
poder, então, o problema da Igreja é banal e parece ser mais de poder, do que
de religião e de salvação. Não teria ela necessidade de pensar em como melhor
apontar luzes, a partir da memória das origens, para iluminar o difícil caminho
dos seres humanos deste tempo histórico?
Eduardo retrucou: Olha, Zé, eu penso que o problema
envolve uma questão de discursos. A Igreja, por longos séculos, veiculou
discursos universalizantes com uma centralidade na qual ela constituía a única
e melhor mediação. Parecia que tudo estava integrado num agente maior que era
Deus. Como pensadores modernos mostraram que se pode viver e ser feliz sem
estes discursos universalizantes, e isto fascinou grande parte das pessoas,
querer voltar aos estes discursos é, para mim, falta de bom-senso. Eu entendo
que Jesus Cristo anunciou o Reino de Deus, mas não o pensamento da Igreja,
assim como ela o apresenta, em função de si mesma. Não me considero um
anárquico em relação à Igreja Católica, mas penso que ela deveria ter como
motivação tornar-se o melhor sacramento ou o sinal mais bem cultivado do que
Jesus propôs, mas, não o único. Uma coisa é preocupar-se para ser melhor, outra
é pensar-se como sendo o que existe de melhor. Neste caso, a Igreja deixa de
ser sacramento para tornar-se uma ideologia, ou seja, um jogo de interesses de
grupos que se encontram na sua hierarquia. Ao mesmo tempo, quando o planeta
demonstra múltiplos centros, fica pouco interessante que tudo tenha que
depender do que é dito em Roma. Pelo contrário, outros lugares e poderes também
podem indicar formas para a vivência da ética e da boa conduta social.
Talissa complementou a noção de Zé e disse que esta
visão se deteriora particularmente quando se apela às instâncias divinas e, numa
fundamentação de fé, se procura convencer racionalmente que tudo quanto procede
daquelas instâncias, deva ser literalmente seguido. Ocorre, porém, um perigo
muito sério, que Emannuel Kant já denunciou há alguns séculos: o de que o
atribuído a Deus possa não passar de um desejo de quem quer mandar e submeter.
Em outras palavras, o dito em nome de Deus pode constituir-se numa apelação que
provavelmente nem proceda de Deus, mas, simplesmente da vontade de quem se
pensa autoridade na Igreja. Tal apelação, transformada em dogmatismo, pode não
passar de forma opressora e cerceadora das liberdades humanas. Alguns textos
escritos sobre Moisés, com afirmações categorias do que Deus disse e do que exigiu
e ameaçou, podem levar muito a bem pensar que tudo quanto fora colocado na boca
de Deus, por redatores de séculos posteriores ao aludido fato, constituía muito
mais um desejo dos escritores do que uma real reprodução do que Deus
efetivamente poderia ter dito. Entendo que existia um interesse meramente
ideológico de controle na subjacência de muitas coisas que foram atribuídas a
Deus. Certas exigências atribuídas a Deus, muito provavelmente constituem
exigências de dirigentes.
Pedro arrematou a conversa e disse que, no seu modo de
entender esta questão, de fato, existe um limiar muito diluído e vago em torno
do que é categoricamente divino e do que é humano. Como o divino só pode ser
experimentado no humano, aumenta o risco de alguém falar do divino para
reforçar suas pretensões humanas de submeter pessoas ao seu comando. Imagino
que muitas religiões abusam da falta de clareza destas instâncias e impõem
pensamentos de seus dirigentes como se fossem os de Deus para a condição
humana.
Zé entrou na conversa e lembrou uma frase de Leonardo
Boff de que o divino somente é experimentado no profundamente humano e que, por
isto mesmo, a divindade de Jesus Cristo se manifestou na sua profunda pequenez
e humanidade. Foi tão humano que nisto mostrou ser divino.
Por outro lado, Jesus não se meteu na discussão dos
relatos universalizantes, nem judeus e nem romanos. Circulava em todos os
ambientes culturais e encantava as pessoas com seus pequenos relatos, ou seja, parábolas
e mini-narrativas próprias para cada ambiente, e simplesmente deixou de lado
todo o âmbito dos discursos universalizantes e de um único centro, tal como
Jerusalém ou Roma. Significa, pois, que considero mais importante conhecer e
entender Jesus no seu contexto histórico do que firmar minha segurança em
dogmas promulgados muito tempo depois dele e nem sempre relacionados a
ensinamentos importantes do seu legado.
Iche! Falou Eduardo – a relação da religião com a vida
de nossos dias de fato não é assunto para ser esgotado em poucas conversas.
Vejo que existe um emaranhado imenso de questões culturais, teológicas,
históricas e até de interpretação em torno deste tema da Religião. Ainda vamos
ter que conversar muito sobre este assunto, e, mais do que isto, ler e entender
bem mais do que já sabemos.
Com esta afirmação, respondeu Zé, podemos encerrar a
conversa de hoje e fica o desafio para nos inteirar mais sobre este
controvertido tema.