A pandemia,
como parte de outra crise maior, pode aguçar nossa sensibilidade para uma
postura decidida e vigorosa com vistas a mudanças radicais na forma de
organização da vida humana.
Se tantos outros
totalitarismos da história já deixaram um vasto legado de destruição e de sofrimento
humano, o aprofundamento do totalitarismo de nossos dias vem oferecendo sobejas
razões para nos indicar a necessidade de um outro sistema econômico e administrativo
da humanidade.
Sob o
discurso da democracia falaciosa, que permite a expansão progressiva das
corporações, o Estado se tornou um aparato meramente ornamental, porque já não
é ele que governa o povo, e nem é ele quem age pelo povo e para o povo. Como
diz Jorge Majfud, quem manda, “é o
governo das corporações, pelas corporações e para as corporações”. [1]
A capacidade
de corporações sequestrarem o progresso da humanidade sempre foi peculiar das
poderosas companhias privadas que absorveram todo crédito do bem-estar alheio
para seu próprio bem moral.[2]
Outras pandemias que já ocorreram na
história levaram a mudanças de cosmovisão para derrubar velhas e caducas
verdades. A pandemia que atualmente nos envolve, certamente, constitui
substrato suficiente para nos fazer enxergar algo diferente do que o horizonte
do neoliberalismo, e nos induz a buscar, ainda que de forma incipiente, outras
políticas sociais, bem distantes da mão invisível do mercado que se move
somente por interesse próprio.
Como Edgar Morin muito bem alerta,
não estaria já passado o tempo para mudar de via? Ainda que o tempo do
retrocesso da democracia esteja levando ao triunfo da corrupção, da demagogia,
dos regimes neoautoritários e de fechamentos nacionalistas xenófobos e
racistas, é também a hora oportuna para perceber que os todo-poderosos nada
absorveram das outras pandemias e crises.[3]
Esta crise de nossos dias afeta até
mesmo a nossa relação com a morte, porque com o Covid-19, tornou-se inegável a
morte pessoal, porque altera fundamentalmente a vida cotidiana com o
isolamento. Na restrição de contatos, o bombardeio de informações sobre o
número de mortos de cada dia e o agravamento da epidemia, vai produzindo um
clima de angústia e desespero. E fica ainda mais desolador acompanhar como os
mortos são enterrados sem sequer poder contar com presença, amparo e a
solidariedade à dor de familiares e das pessoas amigas. Por outro lado, não
podem ser ignoradas as grandes mobilizações de solidariedade, diante da omissão
dos gestores da globalização, que se movem numa nítida regressão moral e
democrática. Mesmo assim, “É trágico que
o pensamento disjuntor e redutor reine soberano em nossa civilização e detenha
o comando tanto na política e na economia. Essa desastrosa insuficiência nos
conduziu a erros de diagnóstico, de prevenção, assim como a decisões
aberrantes”.[4]
Se a pandemia, por si mesma, já é uma
tragédia, fica ainda mais devastadora com a pandemia do ódio. Segundo Roberto
Romano, quando o Estado deveria promover pela sua essência precípua o respeito
e a amizade entre os cidadãos, acaba evidenciando o processo inverso, isto é,
rompe os laços da sociedade: “o aspecto
mais terrível da doença é a apatia das pessoas atingidas”.[5]
Quando dirigentes dividem as pessoas
e, através da tirania, causam a morte, estão invertendo o significado da
política, pois, “a governança é arte de
tecer elos entre cidadãos, promover a sua amizade, laço essencial do Estado...”[6]
Nesta tentação de valer-se da
democracia para destruí-la, ocorre até mesmo um processo de justificação do
próprio fracasso, através da arrogância e das ameaças vazias. O sociólogo
Boaventura de Souza Santos diz que a utilização da democracia para destruí-la
constitui objetivo da postura ultra-direitista, pois, assimila democracia como
mero meio para chegar ao poder e nada mais. Ele destaca oito características
deste procedimento:
a) Negar resultados eleitorais
desfavoráveis;
b) Valorizar minorias em vez das
maiorias;
c) Valer-se de critérios ambíguos para
desacreditar as causas de interesses;
d) Não governar para o País, mas, apenas
para uma base social, o que subverte a legitimidade da democracia; ao mesmo
tempo, importa manter bem cultivada esta base de aproximadamente 30% da
população, com atividade direta e permanente a fim de que se mantenha em
elevado humor de auto-estima;
e) Não admitir a realidade para dar a
entender que está havendo controle dos fatos e, ainda desdramatizar os
acontecimentos, como o da pandemia;
f) Explicitar descontentamento constante
a fim de que as vítimas do sistema, na verdade, são outras vítimas, tal como a
apelação de que os imigrantes constituem a causa do desemprego;
g) Valer-se de posturas políticas
tradicionais para reforçar o neoliberalismo sem proteção social;
h) Estabelecer contínuas polarizações. [7]
Essa dominação incontestável resulta de uma sede desenfreada
por lucros e causa verdadeiros desastres humanos e ecológicos.
A isso se acrescenta a obsessão pela
justificativa da livre concorrência e do crescimento econômico pregada e
apregoada diariamente. Assim, a crise acaba suscitando dois processos
contraditórios: de um lado se foca o retorno a uma estabilidade passada, como
caminho redentor para o momento da crise; e, de outro lado, com denúncia e
imolação de alguém considerado culpado. Este, pode ser tanto aquele que tenha
cometido erros e que ajudaram a gerar a crise, quanto um culpado imaginário,
que é transformado em bode-expiatório e que, necessariamente, deve ser
eliminado.
Paralelamente é produzida uma
loucura eufórica em torno do mito da necessidade histórica de muito progresso e
controle humano, quer pelas condições da natureza ou pensando na direção do
futuro humano, a ser controlado pela inteligência artificial. Assim o pequenino
vírus, chamado covid-19, revela crise sanitária, existencial, política e
econômica e também afeta indivíduos, grupos sociais e Estados. Por seu lado, o
invasivo vírus deixa uma evidência alarmante sobre o equilíbrio bio-ecológico
do planeta e sobre a real humanidade dos seres humanos.
O minúsculo Covid-19 escancara a
crise para muitas direções: mostra que nações possuem muito capital, mas, não buscam
fornecer trabalho para os seus membros. O desejo de renda e competitividade
implica em sacrifício da maioria das pessoas. No que diz respeito à economia,
os seus dogmas infalíveis da regência, apontam um prognóstico de caos e de
penúria para o futuro da humanidade.
Na dimensão da sociedade, o
alarmante crescimento das desigualdades mostra o acintoso contraste entre
residências pobres e populares e as suntuosas edificações dos poucos ricos. Por
outro lado, as políticas em torno da produção de vacinas contra a Covid-19,
escancaram a extraordinária falta de solidariedade e uma oferta intoxicante e
desenfreada para mais consumo em vista de maiores lucros.
Por fim, a crise também afeta a dimensão existencial das
pessoas: interpela seu modo de vida, questiona sobre as necessidades precípuas
e, o que é desejado sob a nuvem da alienação da vida cotidiana, aponta para um
mero mundo de “vermes” vorazes e consumistas.
O biólogo espanhol, Pedro Jordano salienta que “ a crise deveria, sobretudo, abrir nossas
mentes, há bastante tempo reduzidas ao imediato, ao secundário, e ao frívolo,
para o essencial: a importância do amor e da amizade para nosso florescimento
pessoal, para a comunidade e para a solidariedade de nossos ‘eus’ nos ‘nossos’,
para o destino da humanidade, dentro da qual cada um de nós é uma mera
partícula. Em suma, o confinamento físico deveria favorecer o desconfinamento
mental”[8]
Jordano ainda destaca que o acesso a fontes animais
silvestres para alimentação abre as portas para que nosso organismo fique
exposto a novos patógenos. A ação humana está por trás de muitas doenças
emergentes, porque decorrem de processos ambientais e afetam os ecossistemas
através das interações entre as espécies. “Se
alteramos essas dinâmicas, teremos consequências, como as que vivemos agora. A
maior parte das epidemias recentes (HIV, Ebola, SARS, West Nile, a doença de
Lime, Hendra, Nipah, etc.,) tem uma clara base ambiental e de alteração de
processos naturais. É o que conhecemos por ’ecologia da doença’ “.[9]
Jorge Majfud endossa esta perspectiva ao salientar que: “a atual onda neofascista precede o próprio
surgimento da Covid-19. Mas ambos são a consequência de uma realidade
destrutiva baseada na acumulação infinita dos poderes financeiros e das seitas
corporativas, de sua insaciável sede de lucros, de poder e de uma cultura
consumista que, assim como em indivíduo doente, foi mudando de forma
progressiva o prazer de um vício pela depressão e o suicídio”.[10]
Já o meio da maior parte do povo que constitui a classe
excluída, reage emocionalmente de forma fragmentada e errática na busca de
preencher o esvaziamento do sentido, tanto existencial quanto social, com a
persuasão de uma bandeira ou de uma seita: desprezam todas as outras coisas que
não se encaixam no seu pequeníssimo mundo de outros excluídos que também
presumem estar conectados na distração perfeita e mágica que as exclui do real
acesso a melhores condições.
“O domínio é de tal grau que os povos
debaixo, presos no consumo passivo e, sem nenhum poder de decisão sobre os
algoritmos, as políticas sociais e a ideologia que regem seus desejos, são os
primeiros a defender com fanatismo a ideia de ‘liberdade individual’ e dos
benefícios que procedem destes deuses onipresentes”.[11]
Este apego ferrenho ao capitalismo tão perverso decorre em
parte devido às origens do capitalismo diante da velha e rígida sociedade
feudalista: significou um avanço democrático. Mas, sem demora este avanço se
tornou neofeudal através das suas seitas financeiras e empresariais,
constituído de pouca gente, e que concentrou e monopolizou as riquezas do
planeta. Assim, uns países são dominados por outros, através de seus supostos
sistemas democráticos. Desta perversa crueldade, decorre um medo real e
legítimo de que o Estado alargue seus tradicionais mecanismos de abuso de
poder.
Ademais, como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk, “Somos fisiologicamente quase incapazes de
entender os resultados do nosso próprio comportamento – e as consequências
disso são enormes. Estamos profundamente convencidos de que tudo o que fazemos
pode e deve ser perdoado. Do ponto de vista ambiental, estamos vivendo um
período de inocência perdida. E haverá muitos pecados a serem perdoados. E
quanto mais compreendermos isso, maior será a probabilidade de um dia
desenvolvermos padrões de comportamento para lidar com a nova situação”.[12]
O referido filósofo também observa que estamos sendo
contaminados por uma estufa de notícias contagiosas e a infecção provinda da
informação é tão forte e até maior quanto aquela que provém de vírus. Por isso,
vivemos simultaneamente duas pandemias, a do medo e a do contágio real.[13]
Isso se torna mais grave quando o estímulo do prazer
egocêntrico chega ao auge da insinuação, e, tal processo ainda se agrega a
interesses corporativistas. O mundo real e o universo virtual boicotam
quaisquer iniciativas sócio-transformadoras. Enfim, nada mais valioso e
acalentador do que começar a pensar em outro modo de vida.
[1] MAJFUD,
Jorge. Caminhamos para o totalitarismo?
Já não estamos nele? In:
ihu.unisinos.br/605057-caminhamos-para-o-totalitarismo-já-não-estamos-nele >
Acesso no dia 29/11/2020.
[2]
Idem, ibidem.
[3]
MORIN, Edgar. É hora de mudar de via. In:
ihu.unisinos.br/604761-e-hora-de-mudar-de-via-alerta-edgar-morin> Acesso no
dia 29/11/2020
[4]
MORIN, Edgar. Um festival de incerteza. In:
ihu-unisinos.br/-78-noticias/599773-um-festival-de-incerteza-artigo-de-edgar.morin
>Acesso dia 19/11/2020
[5]
ROMANO, Roberto. A pandemia do ódio,
Trump e o Brasil. In: ihu.unisinos.br/604778-a pandemia-do-odio-trump-e-o-brasil-artigo-de-roberto-romano
> Acesso no dia 18/11/2020.
[6]
Idem, ibidem.
[7]
SANTOS, Boaventura de Souza. Fascismo 2.0
em oito lições. In:
ihu.unisinos.br/604711-fasccismo-2-0-em-oito-lições-artigo-de-boaventura-de-souza-santos
> acesso no dia18/11/2020.
[8]
JORDANO, Pedro. A Covid-19 é um exemplo a
mais da nossa relação tóxica com a natureza. In:
inhu.inisinos.br/78-noticias/597413-a-covid-19-e-um-exemplo-a-mais-da-nossa-relação-toxica-com-a-natureza-entrevista-com-pedro-jordano
> Acesso no dia 19/11/2020.
[9]
Idem, ibidem.
[10]
MAJFUD, Jorge, op. cit.
[11]
Idem, ibidem.
[12]
SLOTERDIJK, Peter. Os humanos não estão
preparados para proteger a natureza. In:
ihu.unisinos.br/78-noticias/600415-os-humanos-não-estão-preparados-para-proteger-a-natureza-entrevista-com-peter-sloterdijk
> Acesso no dia 25/11/2020.
[13]
Idem, ibidem.