segunda-feira, 30 de novembro de 2020

MUDANÇA DE VIDA

 

 

            A pandemia, como parte de outra crise maior, pode aguçar nossa sensibilidade para uma postura decidida e vigorosa com vistas a mudanças radicais na forma de organização da vida humana.

            Se tantos outros totalitarismos da história já deixaram um vasto legado de destruição e de sofrimento humano, o aprofundamento do totalitarismo de nossos dias vem oferecendo sobejas razões para nos indicar a necessidade de um outro sistema econômico e administrativo da humanidade.

            Sob o discurso da democracia falaciosa, que permite a expansão progressiva das corporações, o Estado se tornou um aparato meramente ornamental, porque já não é ele que governa o povo, e nem é ele quem age pelo povo e para o povo. Como diz Jorge Majfud, quem manda, “é o governo das corporações, pelas corporações e para as corporações”. [1]

            A capacidade de corporações sequestrarem o progresso da humanidade sempre foi peculiar das poderosas companhias privadas que absorveram todo crédito do bem-estar alheio para seu próprio bem moral.[2]

Outras pandemias que já ocorreram na história levaram a mudanças de cosmovisão para derrubar velhas e caducas verdades. A pandemia que atualmente nos envolve, certamente, constitui substrato suficiente para nos fazer enxergar algo diferente do que o horizonte do neoliberalismo, e nos induz a buscar, ainda que de forma incipiente, outras políticas sociais, bem distantes da mão invisível do mercado que se move somente por interesse próprio.

Como Edgar Morin muito bem alerta, não estaria já passado o tempo para mudar de via? Ainda que o tempo do retrocesso da democracia esteja levando ao triunfo da corrupção, da demagogia, dos regimes neoautoritários e de fechamentos nacionalistas xenófobos e racistas, é também a hora oportuna para perceber que os todo-poderosos nada absorveram das outras pandemias e crises.[3]

Esta crise de nossos dias afeta até mesmo a nossa relação com a morte, porque com o Covid-19, tornou-se inegável a morte pessoal, porque altera fundamentalmente a vida cotidiana com o isolamento. Na restrição de contatos, o bombardeio de informações sobre o número de mortos de cada dia e o agravamento da epidemia, vai produzindo um clima de angústia e desespero. E fica ainda mais desolador acompanhar como os mortos são enterrados sem sequer poder contar com presença, amparo e a solidariedade à dor de familiares e das pessoas amigas. Por outro lado, não podem ser ignoradas as grandes mobilizações de solidariedade, diante da omissão dos gestores da globalização, que se movem numa nítida regressão moral e democrática. Mesmo assim, “É trágico que o pensamento disjuntor e redutor reine soberano em nossa civilização e detenha o comando tanto na política e na economia. Essa desastrosa insuficiência nos conduziu a erros de diagnóstico, de prevenção, assim como a decisões aberrantes”.[4]

Se a pandemia, por si mesma, já é uma tragédia, fica ainda mais devastadora com a pandemia do ódio. Segundo Roberto Romano, quando o Estado deveria promover pela sua essência precípua o respeito e a amizade entre os cidadãos, acaba evidenciando o processo inverso, isto é, rompe os laços da sociedade: “o aspecto mais terrível da doença é a apatia das pessoas atingidas”.[5]

Quando dirigentes dividem as pessoas e, através da tirania, causam a morte, estão invertendo o significado da política, pois, “a governança é arte de tecer elos entre cidadãos, promover a sua amizade, laço essencial do Estado...”[6]

Nesta tentação de valer-se da democracia para destruí-la, ocorre até mesmo um processo de justificação do próprio fracasso, através da arrogância e das ameaças vazias. O sociólogo Boaventura de Souza Santos diz que a utilização da democracia para destruí-la constitui objetivo da postura ultra-direitista, pois, assimila democracia como mero meio para chegar ao poder e nada mais. Ele destaca oito características deste procedimento:

a)     Negar resultados eleitorais desfavoráveis;

b)     Valorizar minorias em vez das maiorias;

c)      Valer-se de critérios ambíguos para desacreditar as causas de interesses;

d)     Não governar para o País, mas, apenas para uma base social, o que subverte a legitimidade da democracia; ao mesmo tempo, importa manter bem cultivada esta base de aproximadamente 30% da população, com atividade direta e permanente a fim de que se mantenha em elevado humor de auto-estima;

e)     Não admitir a realidade para dar a entender que está havendo controle dos fatos e, ainda desdramatizar os acontecimentos, como o da pandemia;

f)      Explicitar descontentamento constante a fim de que as vítimas do sistema, na verdade, são outras vítimas, tal como a apelação de que os imigrantes constituem a causa do desemprego;

g)     Valer-se de posturas políticas tradicionais para reforçar o neoliberalismo sem proteção social;

h)     Estabelecer contínuas polarizações. [7]

 

Essa dominação incontestável resulta de uma sede desenfreada por lucros e causa verdadeiros desastres humanos e ecológicos.

            A isso se acrescenta a obsessão pela justificativa da livre concorrência e do crescimento econômico pregada e apregoada diariamente. Assim, a crise acaba suscitando dois processos contraditórios: de um lado se foca o retorno a uma estabilidade passada, como caminho redentor para o momento da crise; e, de outro lado, com denúncia e imolação de alguém considerado culpado. Este, pode ser tanto aquele que tenha cometido erros e que ajudaram a gerar a crise, quanto um culpado imaginário, que é transformado em bode-expiatório e que, necessariamente, deve ser eliminado.

            Paralelamente é produzida uma loucura eufórica em torno do mito da necessidade histórica de muito progresso e controle humano, quer pelas condições da natureza ou pensando na direção do futuro humano, a ser controlado pela inteligência artificial. Assim o pequenino vírus, chamado covid-19, revela crise sanitária, existencial, política e econômica e também afeta indivíduos, grupos sociais e Estados. Por seu lado, o invasivo vírus deixa uma evidência alarmante sobre o equilíbrio bio-ecológico do planeta e sobre a real humanidade dos seres humanos.

            O minúsculo Covid-19 escancara a crise para muitas direções: mostra que nações possuem muito capital, mas, não buscam fornecer trabalho para os seus membros. O desejo de renda e competitividade implica em sacrifício da maioria das pessoas. No que diz respeito à economia, os seus dogmas infalíveis da regência, apontam um prognóstico de caos e de penúria para o futuro da humanidade.

            Na dimensão da sociedade, o alarmante crescimento das desigualdades mostra o acintoso contraste entre residências pobres e populares e as suntuosas edificações dos poucos ricos. Por outro lado, as políticas em torno da produção de vacinas contra a Covid-19, escancaram a extraordinária falta de solidariedade e uma oferta intoxicante e desenfreada para mais consumo em vista de maiores lucros.

Por fim, a crise também afeta a dimensão existencial das pessoas: interpela seu modo de vida, questiona sobre as necessidades precípuas e, o que é desejado sob a nuvem da alienação da vida cotidiana, aponta para um mero mundo de “vermes” vorazes e consumistas.

O biólogo espanhol, Pedro Jordano salienta que “ a crise deveria, sobretudo, abrir nossas mentes, há bastante tempo reduzidas ao imediato, ao secundário, e ao frívolo, para o essencial: a importância do amor e da amizade para nosso florescimento pessoal, para a comunidade e para a solidariedade de nossos ‘eus’ nos ‘nossos’, para o destino da humanidade, dentro da qual cada um de nós é uma mera partícula. Em suma, o confinamento físico deveria favorecer o desconfinamento mental”[8]

Jordano ainda destaca que o acesso a fontes animais silvestres para alimentação abre as portas para que nosso organismo fique exposto a novos patógenos. A ação humana está por trás de muitas doenças emergentes, porque decorrem de processos ambientais e afetam os ecossistemas através das interações entre as espécies. “Se alteramos essas dinâmicas, teremos consequências, como as que vivemos agora. A maior parte das epidemias recentes (HIV, Ebola, SARS, West Nile, a doença de Lime, Hendra, Nipah, etc.,) tem uma clara base ambiental e de alteração de processos naturais. É o que conhecemos por ’ecologia da doença’ “.[9]

Jorge Majfud endossa esta perspectiva ao salientar que: “a atual onda neofascista precede o próprio surgimento da Covid-19. Mas ambos são a consequência de uma realidade destrutiva baseada na acumulação infinita dos poderes financeiros e das seitas corporativas, de sua insaciável sede de lucros, de poder e de uma cultura consumista que, assim como em indivíduo doente, foi mudando de forma progressiva o prazer de um vício pela depressão e o suicídio”.[10]

Já o meio da maior parte do povo que constitui a classe excluída, reage emocionalmente de forma fragmentada e errática na busca de preencher o esvaziamento do sentido, tanto existencial quanto social, com a persuasão de uma bandeira ou de uma seita: desprezam todas as outras coisas que não se encaixam no seu pequeníssimo mundo de outros excluídos que também presumem estar conectados na distração perfeita e mágica que as exclui do real acesso a melhores condições.

“O domínio é de tal grau que os povos debaixo, presos no consumo passivo e, sem nenhum poder de decisão sobre os algoritmos, as políticas sociais e a ideologia que regem seus desejos, são os primeiros a defender com fanatismo a ideia de ‘liberdade individual’ e dos benefícios que procedem destes deuses onipresentes”.[11]

Este apego ferrenho ao capitalismo tão perverso decorre em parte devido às origens do capitalismo diante da velha e rígida sociedade feudalista: significou um avanço democrático. Mas, sem demora este avanço se tornou neofeudal através das suas seitas financeiras e empresariais, constituído de pouca gente, e que concentrou e monopolizou as riquezas do planeta. Assim, uns países são dominados por outros, através de seus supostos sistemas democráticos. Desta perversa crueldade, decorre um medo real e legítimo de que o Estado alargue seus tradicionais mecanismos de abuso de poder.

Ademais, como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk, “Somos fisiologicamente quase incapazes de entender os resultados do nosso próprio comportamento – e as consequências disso são enormes. Estamos profundamente convencidos de que tudo o que fazemos pode e deve ser perdoado. Do ponto de vista ambiental, estamos vivendo um período de inocência perdida. E haverá muitos pecados a serem perdoados. E quanto mais compreendermos isso, maior será a probabilidade de um dia desenvolvermos padrões de comportamento para lidar com a nova situação”.[12]

O referido filósofo também observa que estamos sendo contaminados por uma estufa de notícias contagiosas e a infecção provinda da informação é tão forte e até maior quanto aquela que provém de vírus. Por isso, vivemos simultaneamente duas pandemias, a do medo e a do contágio real.[13]

Isso se torna mais grave quando o estímulo do prazer egocêntrico chega ao auge da insinuação, e, tal processo ainda se agrega a interesses corporativistas. O mundo real e o universo virtual boicotam quaisquer iniciativas sócio-transformadoras. Enfim, nada mais valioso e acalentador do que começar a pensar em outro modo de vida.

 

 



[1] MAJFUD, Jorge. Caminhamos para o totalitarismo? Já não estamos nele? In: ihu.unisinos.br/605057-caminhamos-para-o-totalitarismo-já-não-estamos-nele > Acesso no dia 29/11/2020.

[2] Idem, ibidem.

[3] MORIN, Edgar. É hora de mudar de via. In: ihu.unisinos.br/604761-e-hora-de-mudar-de-via-alerta-edgar-morin> Acesso no dia 29/11/2020

[4] MORIN, Edgar. Um festival de incerteza. In: ihu-unisinos.br/-78-noticias/599773-um-festival-de-incerteza-artigo-de-edgar.morin >Acesso dia 19/11/2020

[5] ROMANO, Roberto. A pandemia do ódio, Trump e o Brasil. In: ihu.unisinos.br/604778-a pandemia-do-odio-trump-e-o-brasil-artigo-de-roberto-romano > Acesso no dia 18/11/2020.

[6] Idem, ibidem.

[7] SANTOS, Boaventura de Souza. Fascismo 2.0 em oito lições. In: ihu.unisinos.br/604711-fasccismo-2-0-em-oito-lições-artigo-de-boaventura-de-souza-santos > acesso no dia18/11/2020.

[8] JORDANO, Pedro. A Covid-19 é um exemplo a mais da nossa relação tóxica com a natureza. In: inhu.inisinos.br/78-noticias/597413-a-covid-19-e-um-exemplo-a-mais-da-nossa-relação-toxica-com-a-natureza-entrevista-com-pedro-jordano > Acesso no dia 19/11/2020.

[9] Idem, ibidem.

[10] MAJFUD, Jorge, op. cit.

[11] Idem, ibidem.

[12] SLOTERDIJK, Peter. Os humanos não estão preparados para proteger a natureza. In: ihu.unisinos.br/78-noticias/600415-os-humanos-não-estão-preparados-para-proteger-a-natureza-entrevista-com-peter-sloterdijk > Acesso no dia 25/11/2020.

[13] Idem, ibidem.

domingo, 22 de novembro de 2020

NOSTALGIA DE HÁBITOS

 

 

            Existem hábitos e hábitos: uns envolvem praxes nos procedimentos; outros, envolvem vestuário de cunho religioso, talar e litúrgico.

1 - Hábitos psicopáticos

No campo dos procedimentos humanos existem hábitos doentios e psicopáticos, através dos quais pessoas se valem de manipulações para obter confiança de outras pessoas. É o tipo de procedimento em que pessoas exploram favores para prender outras pessoas à sua dependência, através de sentimentos de dívida.

Como possuem um “ego” muito irreal e elevado de si mesmas, as pessoas marcadas por traços psicopáticos gostam de falar de si e de inflar-se com elogios aos procedimentos efetuados. Veem perfeição nas táticas que usaram para vencer outras pessoas e mostram-se arrogantes na capacidade de elevar ainda mais seu “ego”.

Como não são empáticas, as pessoas psicopáticas pouco ligam para os outros, e mesmo que sofram adversidades, sustentam seus procedimentos com firmeza e agressividade, porque se consideram referências íntegras e corretas. E, para sustentar sua imagem acima do limiar da normalidade, mentem descaradamente em função do que desejam. Em decorrência, não vivenciam quaisquer sentimentos de vergonha, de arrependimento ou de culpa pelo que prejudicaram outras pessoas.

Estes hábitos mórbidos revelam indiferença diante dos outros. Tampouco se emocionam com suas dores ou alegrias, porque são egoístas e confiam excessivamente em si mesmas. Por isso também tendem a ser agressivas e violentas com as demais, uma vez que se orientam precipuamente pelas suas práticas, rotinas e manias.

2 – Hábitos edificantes

Os hábitos, quer de horário, de procedimentos de higiene, de equilíbrio da saúde; de boa relacionalidade; de auto-controle; de vida saudável; de auto-avaliação; de busca e cultivo de valores religiosos e de aprimoramento de auto-transcendência e de boa qualidade de vida, etc., podem produzir não apenas identidade de elevada auto-estima, mas, também de elevadas motivações para o bem viver.

Por outro lado, os mesmos bons hábitos podem enrijecer a flexibilidade diante de novidades, imprevistos e interpelações variadas que a toda hora aparecem. Assim, os hábitos podem agir de forma similar à ação dos carrunchos na madeira e podem prejudicar tanto a dimensão religiosa quanto de sensibilidade ante apelos fortes que advém de todos os lados.

Os hábitos, se de um lado dão firmeza e segurança ao que se faz, podem produzir resistência a quaisquer mudanças e inovações, porque levam as pessoas a agarrar-se excessivamente a esquemas e ideias inadequadas. Basta lembrar que a grande batalha de Jesus Cristo contra os ancestrais judaicos do seu momento histórico visou tradições religiosas que produziram um narcisismo dos que presumiam ser os bons praticantes das regras e dos bons costumes herdados. Produziam uma vida estanque, injusta, estamental e uma espiritualidade que os levava a um deleite da sua própria mediocridade. Na imagem da pesca milagrosa, eles se conformavam com os minguados peixinhos da beira do mar...  A resistência produzida pelos hábitos, levava estes grupos de judeus a resistirem à força do Evangelho, porque preferiam suas práticas monótonas, repetitivas e alienantes.

Percebe-se, pois, que o “caruncho” dos hábitos vai roendo paulatinamente toda a solidez dos ritmos de vida capaz de motivar o empreendimento de mudanças na vida. O caminho da comodidade fácil dos hábitos, sempre indica o sofá macio das seguranças, mas, também leva consigo as inquietações, entusiasmos e paixões por algo novo e inusitado.

No livro “A Peste” Albert Camus já explicitava que a pior epidemia não é a biológica, mas a moral, porque esta, em situações de crise, induz à falta de solidariedade para fazer algo contra prepotências, arrogâncias, genocídios. A crise, por sua vez, permite alastrar também o melhor da vida que é pensar mais no bem-estar de outros do que no próprio bem-estar.

Diante dos hábitos pode-se dizer que o “estilo faz a doutrina”, ainda mais quando implica em muita renda e entremeio.

3 – Hábitos Talares

Talar (do Latim “Talus” significa calcanhar) constitui veste ampla que desce até os calcanhares e que passou a constituir a veste comum dos clérigos.

Durante as perseguições dos primeiros séculos do cristianismo ainda não se pensava em veste peculiar dos clérigos, até mesmo porque não poderiam chamar atenção sobre si mesmos a fim de evitar perseguição e morte. Deste modo, os clérigos, assim como os leigos, se vestiam conforme o costume da época.

Para quem exercia funções religiosas e litúrgicas havia a recomendação que usassem vestes limpas, sobretudo para os ministros do altar. Geralmente não era a mesma roupa usada durante a semana.

No início do século IV, mudança no costume da veste romana, levou ao abandono das vestes talares, ou túnicas habituais, pois os romanos passaram a imitar os bárbaros que se vestiam com roupas curtas e mais confortáveis.

A partir de concílios eclesiásticos da Igreja Católica, a novidade adotada pelos romanos não foi recomendada aos clérigos. Foi sugerido que permanecessem no uso da veste longa, fechada e escura, sem qualquer ornamento, como forma de expressar humildade e modéstia. Ademais a recomendação apontava para monges que viviam isolados e pobres. O vestuário simples, apenas uma túnica e um cinto, facilitava seu modo de vida. Tal costume tornou-se refratário para outras inovações ao longo dos séculos da história da Igreja. Já na Idade Média, os monges e clérigos, muito distantes da moda do vestuário quotidiano das pessoas, acabaram nitidamente distintos dos demais, pois, permaneceram com a batina simples de tempos mais antigos. Eles também recebiam um reforço, através de orientações de Concílios para que se mantivessem no costume mais antigo sem vestes espalhafatosas e luxuosas.

 Os clérigos mais antigos, os eremitas, vestiam-se de hábito de cor preta para simbolizar sua morte para o mundo. Com o tempo, o hábito (batina) passou a tornar-se a veste comum para todos os clérigos católicos, com outras expressões simbólicas: os trinta e três botões pretendiam expressar alusão a vida de Jesus Cristo e os cinco botões em cada manga pretendiam lembrar as chagas pelas quais o Senhor Jesus passou.

Mais tarde, pela influência da tradição protestante, o hábito talar inteiramente preto passou a incorporar um colarinho de cor branca, que, posteriormente também foi adaptado às camisas clericais e conhecidas como “clergyman”. Acrescentou-se ainda o uso de uma faixa na cintura, e, pendente para o lado esquerdo, tanto para ajustar o hábito talar, ou batina, quanto para simbolizar o domínio sobre o fogo das paixões, lembrando a parábola de Jesus Cristo acerca dos rins cingidos.

Sob este sinal de entrega a Cristo, ocorreram muitas manifestações a fim de que os clérigos se vestissem de forma similar aos demais, para evitar que eles se constituíssem num grupo à parte na sociedade, uma vez que eles deveriam ser notáveis não pela veste fora de costume, mas, pelo seu modo de ser e de vivenciar os valores evangélicos.

Mesmo assim, o uso da veste talar, ou batina, foi obrigatório até o Concílio Vaticano II na década de 1960. A partir deste Concílio o uso de batina ficou restrito a número insignificante de clérigos mais idosos ou tradicionalistas.

Desaparecida do horizonte da vida clerical, a batina vem ressurgindo sob outras motivações nos dias atuais, não diretamente ligadas aos fatores de pertença produzidos pela moda das últimas décadas. O que levaria a um movimento reacionário ao da moda atual?

Na década de 1980 surgiu nos Estados Unidos um movimento neoconservador, no âmbito das Igrejas católicas, com grande publicidade das orientações do padre Richard Gohn Neuhaus. Já no ano de 2005, com a eleição de Bento XVI este movimento neoconservador e, já tecno-conservador, criou uma tradição integrista com marcante retorno ao neotradicionalismo, que cultivou como um dos pontos centrais a rejeição radical do concílio Vaticano II, e, com este, a modernidade e a abertura da Igrejas a este mundo moderno. Aos poucos este catolicismo conservador se revelou também antiliberal, que foi além de João Paulo II e de Bento XVI, porque se aferrou à perspectiva de Víctor Orbán, primeiro ministro húngaro no sentido de uma guerra à democracia liberal.

Com o Papa Bento XVI esta saudosa característica da veste talar readquiriu novo fôlego, sobretudo, entre seminaristas e padres novos, porque o Papa, com seu exemplo, voltou a reintroduzir costumes já soterrados pelo passado, como chapéus e rendas usadas no século XVI, além de algumas outras extravagâncias como o uso de sapatos vermelhos e camisolas negras. Ainda que esta volta ao passado tenha sido justificada como desejo de continuidade a celebrações marcantes de um outro tempo, hoje já existe uma próspera indústria de moda religiosa impregnada pelo saudosismo de tempos distantes.

Em torno destas bricolagens religiosas, com muita franja e colorido, já surgem lojas internacionais oferecendo peças de vestuário para clérigos que ultrapassam quatro mil euros, ou seja, mais de vinte e quatro mil reais e afetam um intenso repertório de consumismo, tanto no clero religioso quanto diocesano.

A roupa pomposa, em séculos passados, já foi expressão de poder, pois, membros de Ordens religiosas tinham tantos bens que estavam muito acima do nível econômico comum das pessoas e expressavam, nas vestes requintadas, o seu prestígio político e seu poder.

 A partir do Concílio Vaticano II, não vigora mais esta identidade de Igreja, mas a do serviço, da simplicidade e os clérigos são convidados a identificar-se no ambiente cultural das demais pessoas do entorno.

Esta ampla volta ao uso de batina apresenta uma visível conotação fundamentalista. Há regiões como África e Ásia em que o clero tende à absorção dos costumes da moda vigente, e se veste com roupas de todas as cores e se enfeita com aparatos extravagantes como capulanas, turbantes, hábitos de cores variadas e se considera muito afinado com os rumos da Igreja. No entanto, o hábito não é uma condição precípua para ser clérigo.

 O que se requer do clérigo é que seja testemunho de vida e que os aparatos de vestes não o induzam ao status do poder e de superioridade presumida pelo seu modo de ser, mas, que ele, como pessoa humanitária, facilite a sociabilidade, a interação e a conformidade com o ambiente de vida, sem a diferenciação de um suposto poder espiritual superior caos demais.

Atualmente não se pode esquecer o contexto no qual Jesus chamou seus primeiros seguidores na beira do mar da Galiléia: ele os chamou, os acolheu e os elegeu para um serviço, que fugia diametralmente das vestes e dos rituais dos sacerdotes do Templo, que, mancomunados com o poder político estabelecido, oprimiam o povo de Israel.

Os chamados por Cristo foram convidados a aprofundar uma relação existencial com Ele e, este pano de fundo, ainda hoje configura o ministério dos clérigos: são chamados para serviço e não para serem papagaios ornamentais; e, menos ainda, para constituírem uma presumida casta superior que vive da nostálgica fantasia de um momento histórico distante, e que já não se coaduna com as interpelações do nosso tempo. Servem apenas para comprar alguns elogios e bajulações de outras pessoas nostálgicas por vetustos encantamentos.

 

 

sábado, 21 de novembro de 2020

TÓPICOS CONTEXTUAIS DA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI

 


1 – Pano de Fundo

            - A alta instabilidade do nosso tempo: tudo caindo aos pedaços ( nº 23);

            - Horizonte de medo (do outro, da lida com o abismo do mal; de sobrar sozinho, da violência, das barbáries e da destruição da casa comum;

            - Presunção arrogante dos que tem poder e dinheiro, insensíveis às desigualdades;

            - Aumento da gigantesca disparidade econômica e a indiferença diante dos vulneráveis, com exaltações doentias de nacionalismos; negacionismo científico; submissão humana à economia; manipulações e ocultamento na esfera privada e pública.

            - Iníqua forma de culpar as vítimas diante das injustiças praticadas contra elas;

            Degradação do trabalho e do ser humano (feito escravo).

2- A quem se dirige?

             - Ao mundo ferido (Cf. Roberto Romano: alerta contra a prisão das vidas solitárias);

            - Aos católicos, aos cristãos, não cristãos e agnósticos, em favor dos que foram calados;

            - Aos milhões de calados, vítimas da política em favor do poder e dinheiro que coisifica os seres humanos e anula sua consciência histórica;

3 – O que propõe?

a)     Rejeitar: - O paradigma dominante;

- Ir além dos quatro pilares da ordem mundial (Mercado – que faz da economia neoliberal o dogma de fé; Neoliberalismo -  que faz da política uma força manipuladora; Individualismo -  afirmado como expressão cultural; Devastação da natureza- que ameaça a vida no planeta);

- Controlar a força manipuladora dos meios de comunicação virtual, diabólica máquina de controle das pessoas;

- O atual sistema que impera: usa o poder como dominação (de pessoas, de classes, povos, culturas e da natureza);

- A homogeneização de hábitos que matam as diferenças culturais.

            b) Adotar uma alternativa: Que vise o bem da coletividade, para que os interesses imperiais não se sobreponham ao bem do gênero humano;

                        - Valer-se da parábola do Bom Samaritano contra a ideologia privatista do sistema econômico neoliberal que deixou milhões de seres sobrantes;

                        -  Impregnar-se de ternura e de amor ao próximo: algo do coração para chegar aos olhos, aos ouvidos e às mãos;

                        - Cultivar amabilidade e gentileza no trato com as pessoas;

                        - Fazer uma transição do paradigma do punho cerrado (do senhor que submete) para a mão aberta a gestos e sinais que nos tornam “irmãos e irmãs”;

                        - Gestos em defesa da dignidade humana;

                        - Ampliar fraternidade e amizade social diante dos ódios, das xenofobias, racismos e negação de outras pessoas;

4 – Acusações levianas contra a Encíclica

            Oriundas especialmente do interior da Igreja por setores que defendem a fidelidade à tradição e se mostram arrogantes e perversos para espalhar a divisão, como se eles fossem donos do Espírito Santo.

- Que o papa é mais comunista que Marx, Lênin e Mao;

- Que ele renunciou à identidade cristã e católica;

- Que ele abandonou o terreno seguro da Doutrina Social;

- Que ele quer acabar com Deus, com a Igreja e com a cristandade.

5 – Apostas do Papa

- Que da fraternidade religiosa pode nascer uma fraternidade universal;

- Que é viável uma revolução cultural para uma nova cultura: a cultura do encontro;

- Que todas as religiões são importantes para um processo de transição;

- Que a humanidade dos seres humanos não pode ser marginalizada pelo desamor e indiferença da neoiniquidade social;

-  Que é possível recuperar o valor universal da irmandade, da amizade e da solidariedade, começando “de baixo para cima” a gestação do bem da coletividade (diante da exploração de pessoas e de consciências feita pelo sistema vigente e pela religião do dinheiro e do varejo da “teologia da prosperidade”).

                       

 

 

                       

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

DIOCESANEIDADE

 

 

Seguem algumas noções valiosas do livro “Diocesaneidade – esponsalidade e incardinação” (de Humberto R. de Carvalho; Edson Pereira e Eduardo da Costa, lançado pela Paulus, em 2020).

O assunto remete à vocação apostólica de Jesus, na beira do mar da Galiléia: chamou, recebeu, formou e enviou os apóstolos em missão. Eles deixaram barco, família e outros bens, mas, não a sua humanidade, nem sua história de vida e, nem mesmo a sua personalidade (identidade). Revelaram-se frágeis, com medos e limites; mesmo assim, mergulharam no mistério de Cristo.

Este caminho constitui referência para o significado da vocação presbiteral. A iniciativa é de Jesus que chama, que elege e forma. Os chamados são convidados para uma relação existencial que envolve seu ser, numa relação intensa com Jesus.

Diocesaneidade implica em amor e comprometimento pastoral pela Diocese. Deve constituir um vínculo amoroso, esponsal, espiritual e jurídico com a comunidade diocesana e se configura na incardinação, através da interação de quatro elementos: diocese, bispo, comunhão presbiteral e povo de Deus. Significa amor incondicional do padre na entrega solícita à Igreja, aos projetos pastorais, envolvendo respeito e afeto filial com o bispo, amizade sincera e desinteressada e fraterna com os demais presbíteros e paroquianos.

Diocesaneidade constitui uma experiência de pertença. Presbítero não é um líbero como num jogo de futebol, pois, está vinculada à diocese por uma espiritualidade. O carisma peculiar da diocesaneidade implica em amor pela diocese, em vivência presbiteral fraterna e no serviço ministerial dedicado ao povo de Deus.

Na diocesaneidade integra-se a pessoa do presbítero, o território da comunhão eclesial, o povo a quem o presbítero serve, o bispo e os demais irmãos, para: viver o seguimento de Cristo, efetuar o serviço do Reino, além de vivenciar Igreja e fraternidade.

Da relação do presbítero-Cristo com a Igreja decorre a esponsalidade: um mergulho no mistério do amor de Cristo e da Igreja, sem perder a identidade e nem abandonar a sua humanidade. A incardinação decorre desta intimidade com Cristo e a Igreja e significa serviço.

O termo “presbítero” a partir do concílio de Trento significava padre que não vivia em monastério, mas, no meio da sociedade secular. “Secular” tornou-se pejorativo: padre mundano, sem compromisso e sem espiritualidade específica. Com o Vaticano II a nova autocompreensão da Igreja delineou outro perfil de imagem: estado de consagração em que os presbíteros são chamados a encarnar na vida os conselhos evangélicos com amor incondicional à comunidade paroquial ou seminário ou outra função que exercem (Pastore Dabo Vobis, 1992).

Quanto à territorialidade, o concílio Vaticano II e o Direito Canônico estabeleceram: reunião e agrupamento de uma parte do povo de Deus estabelecido, primariamente em determinado espaço territorial, sob o pastoreio do bispo diocesano e apoiado pelos seus apoiadores (os presbíteros). Implica em amor e ardor pela diocese, o solo sagrado, o lugar de louvor e de serviço a Deus, ao Reino e à humanidade.

            Ao presbítero cabe amar, defender e cuidar da sua diocese: lugar de comunhão, participação e dialogo. Assim, cabe-lhe amor esponsal, jurídico e espiritual para com a diocese, pois, prometeu fidelidade, respeito e obediência. O presbítero deve ser solícito, zeloso e responsável para apascentar o povo de Deus como profeta da unidade a fim de que todos os seus membros se salvem. Ele não é aquele que sabe tudo e que tudo pode, mas, deve ser aquele que acolhe, respeita, dialoga, como disponível, acessível e misericordioso. Não constrói o reino de modo isolado e individual e autorreferencial na perspectiva midiática para ocupar o lugar de Cristo, mas deve ser sinal visível e fermento de Deus na humanidade.

Quanto à esponsalidade, o AT revela muitas alusões envolvendo a aliança de Deus com o povo (Sl 44, Cântico dos Cânticos, Ozéias, Jeremias, Ezequiel...). O Novo Testamento centraliza este tema: Jesus é o esposo da Igreja, por três razões: é uma imagem advinda das sagradas escrituras; a Igreja não decorre de mera soma de membros; e ela remete ao fim último e central do mistério criador e redentor.

O tema nupcial implica em duas direções: relação esponsal de Cristo com a Igreja; e a identificação do presbítero que decorre desta relação. O Novo Testamento elaborou a compreensão da nova aliança com a característica da esponsalidade: Cristo-esposo e Igreja-esposa.

Na Patrística aprofundou-se o sentido desta compreensão. Inácio de Antioquia viu a Igreja como fruto da encarnação e paixão de Cristo; Tertuliano viu nos sacramentos a explicitação do amor de Cristo com a Igreja; Orígenes viu entre Cristo e a Igreja o enlace sem mancha, sem ruga, santa e irrepreensível; Agostinho de Hipona assimilou a Igreja como esposa de Cristo.

O Magistério da Igreja retomou a relação Cristo-esposo e Igreja-esposa tanto na mística quanto na liturgia sacramental. O Vaticano II endossou a mesma relação quando se referiu ao Espírito Santo: Cristo, pela força do Evangelho rejuvenesce a Igreja. Esta relação esponsal é vista sob três aspectos: a) união de Cristo e a Igreja; b) Distinção entre Cristo e a Igreja; c) obediência da Igreja a Cristo.

O presbítero passou a ser identificado com Cristo. Entre o concílio de Trento e o do Vaticano II, os papas insistiram muito na associação de que o presbítero é “alter Christus”, enviado por ele para atuar em seu nome. Por isso, o presbítero deve revestir-se de Cristo em toda a ação sacramental e litúrgica, para atualizar no tempo a sua ação salvífica e sua Palavra, o Evangelho.

A CNBB também, enfatiza que o presbítero age “in Persona Christi”, na amizade pessoal e íntima com ele.

Da esponsalidade decorre também a incardinação. Nos primeiros tempos da Igreja a incardinação foi se firmando com a estabilidade das comunidades cristãs. No sentido estrito a incardinação equivale à incorporação estável e plena de um clérigo numa comunidade de fiéis, presidida pelo bispo. Este vínculo envolve três elementos: serviço ministerial, disciplina eclesiástica e sustento.

O Vaticano II efetuou um “aggiornamento” (atualização e renovação) teológico-pastoral para o bom e sadio desempenho do ministério presbiteral. Assim, incardinação, mais do que mero vínculo jurídico, significa vínculo espiritual em torno de três aspectos: exercício em comunhão hierárquica com os legítimos pastores; desvelo pela disciplina e boa reputação; e, digno sustento.

Nos primeiros séculos da Igreja a incardinação foi complicada devido às perseguições que exigiam muitos deslocamentos de apóstolos e sucessores. No século IV, de perseguida a Igreja passou a ser religião oficial do império romano. Com esta mudança surgiram diversos abusos, privilégios e indisciplina; alguns bispos usurpavam presbíteros de outros bispos e alguns também conferiam a Ordem sem nenhuma necessidade...

Trento (1545 a 1563) revigorou a incardinação e restabeleceu a disciplina. Mesmo assim, as mudanças econômicas trouxeram novos desafios à incardinação devido às atividades missionárias em outros continentes.

O código de Direito Canônico regularizou a situação jurídica dos presbíteros ao vinculá-los à Diocese, pois, antes eram apenas vinculados ao templo. A reforma do Vaticano II destacou o serviço do presbítero como título para o sustento numa estrutura eclesiástica concreta e ressaltou a unidade e comunhão no exercício da missão do ministério entre presbítero e bispo: comunhão hierárquica.

O elemento objetivo da incardinação é o do serviço ministerial numa estrutura pastoral concreta. Desta forma, a incardinação constitui um ato formal e jurídico pelo qual um presbítero vive uma aliança com a Igreja local, nutrindo com ela uma relação esponsal e um vínculo de pertença entre ambos. Como Cristo-esposo se entregou à Igreja-esposa, o presbítero diocesano é convidado a manter relação esponsal com a diocese. O padre diocesano deve ser portador do amor misericordioso e esponsal de Deus com todas as pessoas da comunidade.

 

domingo, 8 de novembro de 2020

SINODALIDADE

 


1 – A palavra SINODALIDADE

          Surgiu no contexto de 1950 como movimento teológico de atualização e renovação (“aggiornamento”) no interior da Igreja, contra o autoritarismo e o totalitarismo, tão marcantes nas duas guerras mundiais. Foi um belo processo que culminou no Concílio Vaticano II.

             Sínodo - Sýn (com) + Hodós (caminho) – significa “caminhar juntos”. Os primeiros cristãos eram chamados de “discípulos do caminho” (de Jesus), porque percorriam juntos o caminho de Jesus.

            Sinodalidade, para nós, hoje, equivale ao convite à participação e comunhão em vista da missão (algo que é da raiz e da natureza da Igreja).

2 -  Sinodalidade – desafio e novidade 

            O desafio do Papa para nós cristãos está num quadro um pouco diferente da época do concílio Vaticano II: governar e fazer acontecer a missionariedade da Igreja numa cultura democrática que está em profunda crise (globalização). Nesta crise volta a tentação de um perigoso tradicionalismo católico e de um jeito de governança autoritária.

            Pouca gente vê soluções na democracia e no autoritarismo. Sob este quadro, o apelo do Papa Francisco é o de ampliar a experiência de sinodalidade e colegialidade (tanto para governar, quanto para fazer acontecer a proposta do Reino apresentada por Jesus Cristo), porque o grande perigo está na governança de homens ditadores e fortes.

            Sinodalidade é, por conseguinte, um caminho alternativo ao da governança autoritária, tecnocrática e clerical e, até mesmo para evitar o “positivismo papal” (de que é infalível e que manda sozinho).

3 – Sinodalidade – um processo em andamento 

            Está previsto para outubro de 2022 um Sínodo sobre a SINODALIDADE. Já está acontecendo uma valiosa preparação, especialmente na Alemanha, Austrália e Estados Unidos. Também estão aparecendo algumas dificuldades, como a do isolamento devido a pandemia e a resistência de partes da Igreja (até mesmo no Vaticano). Por exemplo, enquanto o Papa insiste na sinodalidade, a Congregação emitiu, no mês de julho passado, a “Instrução sobre a Pastoral da Comunidade Paroquial, e reafirmou o modelo tradicional do padre monocêntrico.

            O alargamento da sinodalidade está aumentando a partir de algumas etapas: a) De 2013 a 2015: aconteceu o sínodo da Família e do casamento; b) Em 2016 ocorreu forte reação de tradicionalistas à Exortação AMORIS LAETITIA; c) Logo em seguida, em 2018, o Papa publicou a Constituição Apostólica Episcopalis Communio; d) Atualmente, aparecem alguns receios de que a sinodalidade seja encampada pelo clericalismo e passe a ser mera espécie de funcionalismo parlamentar.

4 – Ameaças a uma boa sinodalidade 

          Um primeiro risco é o do achatamento da Igreja, isto é, alguns ensinam e, todo o resto, apenas escuta passivamente.

            Outro risco é o da má interpretação da sensibilidade e das intuições da fé cristã (SENSUS FIDEI) a partir da noção do que uma pessoa pensa e faz; ou, do que um grupo fanático e fechado vive, como sendo a Revelação, mas, sem a Sagrada Escritura e sem a Tradição (apenas tradições mais recentes pouco vinculadas às origens).

            Um terceiro risco é o de ajustar o modo de ser da Igreja com a atual cultura democrática em crise; e, nesta surge o encantamento pelo tradicionalismo que já foi muito negativo na Igreja antimoderna e antiliberal.

5 – Apostas do Papa Francisco 

            - Promover liderança sinodal e colegial ante o avanço de ditadores e homens fortes;

       - Fazer acontecer política de governança na Igreja que não tenha as marcas da tecnocracia, autoritarismo e clericalismo;

            - Ampliar a capacidade de conciliação contra a tentação da comunhão fechada;

            - Que a sinodalidade, tão bem iniciada com o Concílio, dê, agora, um salto de qualidade, com muitas energias e formas que ampliem o depósito da fé;

            - Que a sinodalidade, esta riqueza da eclesiologia do Vaticano II, aconteça não apenas entre Bispos, mas, nos variados organismos de comunhão, nas Províncias Eclesiásticas (Ex. aqui, em toda a Igreja do Estado do Paraná) e em todas as conferências episcopais.

            Resulta disso a convocação para que a Igreja seja toda ela ministerial, através da recuperação do sentido do batismo cristão; e, para que as atividades sejam de serviço e não de poder. Mais do que ensinar doutrina, todos os membros da Igreja precisam discernir e colocar-se na escuta da vontade de Deus para perceber a sua vontade e as interpelações em favor de mais vida e mais qualidade de vida.

6 – Implicações da Sinodalidade 

            Que todos os membros do Povo de Deus se sintam convidados à prática sinodal. Isso requer “conversão do coração e do olhar” a fim de que a Igreja possa crescer num estilo de lidas que, progressivamente, se aproxime mais do Evangelho e da tarefa evangelizadora da Igreja.

            Deste modo, sinodalidade significa compromisso de tornar presente e operante o fermento, o sal e a luz do Evangelho, na organização da vida do nosso tempo. Afinal, como falar em “Povo de Deus” se ele é apenas passivo e segue à ordem de poucos ministros, e, quando alguns destes resistem radicalmente ao grande apelo do Papa?

            A maior dificuldade para uma atividade sinodal na Igreja vem do fato de que muitos dos seus dirigentes, tanto leigos quanto clérigos, nunca aprenderam a conduzir seu serviço de evangelização na dimensão da colegialidade e da sinodalidade. Vivem a tentação de se aferrar no tradicionalismo (sob alegação de que sempre foi assim para reafirmar seu poder).

            Não dá para separar Sinodalidade e Colegialidade. Está em jogo uma visão de Igreja: ela deve abrir-se para a inclusão e todos os batizados são chamados a serem “discípulos missionários”.

7 – Ser Igreja na crise da democracia

            Como a sinodalidade atualiza as raízes do evento Jesus Cristo, não pode ficar inerte ou inativa na crise da democracia. Neste momento histórico, a Igreja pode ser altamente profética, começando com um novo modelo de governança, não de um partido, mas de sinodalidade que rompe com o modelo político institucional de cristandade da própria Igreja.

            A crise da democracia afeta muito o agir da Igreja católica sob diversos aspectos:

a)     Diminui a participação política e os quadros políticos são ocupados por grupos interesseiros e, com interferências estrangeiras (Ex.: Fake-News);

b)     Leva à não participação na comunidade cristã;

c)      Também as estruturas da Igreja vão se enfraquecendo e até muitos cristãos tomam rumos contrários às finalidades das ordens religiosas, das associações e dos movimentos. Assim surgem grupos independentes de todo tipo de gosto que não somam com a Igreja;

d)     A crise da confiança nas instituições afeta também as paróquias e dioceses: nem sempre as decisões respeitam a dignidade batismal de todos os batizados. Assim, a “água da governança na Igreja, anda bastante poluída” (leigos, padres, bispos e até cardeais desrespeitam o Papa para justificar sua opinião ou seu interesse pessoal).

e)     Tendências fundamentalistas consideram como bom povo católico somente quem é fiel à tradição, mas sem referência às fontes do Evangelho e das suas interpelações.

 

Sinodalidade deve ser um modo católico de lidar com a crise atual de democracia (com muito partidarismo e mínima capacidade de debate político a respeito do que é mais importante para o povo).

Sinodalidade também implica em discernimento para não controlar outros através de ordens categóricas. (Imaginem se o Papa agisse como Trump ou tantos outros tiranos!).

Já tivemos um belíssimo exemplo de sinodalidade: o Sínodo da Amazônia: mostrou uma Igreja missionária, participativa, acolhedora e de harmonização das diferenças. Ali foi reconhecido o lugar dos fiéis nas decisões e na governança.

Enfim, não se trata de pensar Igreja democrática tipo parlamento, nem de Igreja monárquica, mas, de Igreja de Comunhão.

 

 

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

    Criativa e super-rápida na inovação, A era digital facilita a vida e a ação, Mas enfraquece relacionamentos, E produz humanos em...