segunda-feira, 30 de novembro de 2020

MUDANÇA DE VIDA

 

 

            A pandemia, como parte de outra crise maior, pode aguçar nossa sensibilidade para uma postura decidida e vigorosa com vistas a mudanças radicais na forma de organização da vida humana.

            Se tantos outros totalitarismos da história já deixaram um vasto legado de destruição e de sofrimento humano, o aprofundamento do totalitarismo de nossos dias vem oferecendo sobejas razões para nos indicar a necessidade de um outro sistema econômico e administrativo da humanidade.

            Sob o discurso da democracia falaciosa, que permite a expansão progressiva das corporações, o Estado se tornou um aparato meramente ornamental, porque já não é ele que governa o povo, e nem é ele quem age pelo povo e para o povo. Como diz Jorge Majfud, quem manda, “é o governo das corporações, pelas corporações e para as corporações”. [1]

            A capacidade de corporações sequestrarem o progresso da humanidade sempre foi peculiar das poderosas companhias privadas que absorveram todo crédito do bem-estar alheio para seu próprio bem moral.[2]

Outras pandemias que já ocorreram na história levaram a mudanças de cosmovisão para derrubar velhas e caducas verdades. A pandemia que atualmente nos envolve, certamente, constitui substrato suficiente para nos fazer enxergar algo diferente do que o horizonte do neoliberalismo, e nos induz a buscar, ainda que de forma incipiente, outras políticas sociais, bem distantes da mão invisível do mercado que se move somente por interesse próprio.

Como Edgar Morin muito bem alerta, não estaria já passado o tempo para mudar de via? Ainda que o tempo do retrocesso da democracia esteja levando ao triunfo da corrupção, da demagogia, dos regimes neoautoritários e de fechamentos nacionalistas xenófobos e racistas, é também a hora oportuna para perceber que os todo-poderosos nada absorveram das outras pandemias e crises.[3]

Esta crise de nossos dias afeta até mesmo a nossa relação com a morte, porque com o Covid-19, tornou-se inegável a morte pessoal, porque altera fundamentalmente a vida cotidiana com o isolamento. Na restrição de contatos, o bombardeio de informações sobre o número de mortos de cada dia e o agravamento da epidemia, vai produzindo um clima de angústia e desespero. E fica ainda mais desolador acompanhar como os mortos são enterrados sem sequer poder contar com presença, amparo e a solidariedade à dor de familiares e das pessoas amigas. Por outro lado, não podem ser ignoradas as grandes mobilizações de solidariedade, diante da omissão dos gestores da globalização, que se movem numa nítida regressão moral e democrática. Mesmo assim, “É trágico que o pensamento disjuntor e redutor reine soberano em nossa civilização e detenha o comando tanto na política e na economia. Essa desastrosa insuficiência nos conduziu a erros de diagnóstico, de prevenção, assim como a decisões aberrantes”.[4]

Se a pandemia, por si mesma, já é uma tragédia, fica ainda mais devastadora com a pandemia do ódio. Segundo Roberto Romano, quando o Estado deveria promover pela sua essência precípua o respeito e a amizade entre os cidadãos, acaba evidenciando o processo inverso, isto é, rompe os laços da sociedade: “o aspecto mais terrível da doença é a apatia das pessoas atingidas”.[5]

Quando dirigentes dividem as pessoas e, através da tirania, causam a morte, estão invertendo o significado da política, pois, “a governança é arte de tecer elos entre cidadãos, promover a sua amizade, laço essencial do Estado...”[6]

Nesta tentação de valer-se da democracia para destruí-la, ocorre até mesmo um processo de justificação do próprio fracasso, através da arrogância e das ameaças vazias. O sociólogo Boaventura de Souza Santos diz que a utilização da democracia para destruí-la constitui objetivo da postura ultra-direitista, pois, assimila democracia como mero meio para chegar ao poder e nada mais. Ele destaca oito características deste procedimento:

a)     Negar resultados eleitorais desfavoráveis;

b)     Valorizar minorias em vez das maiorias;

c)      Valer-se de critérios ambíguos para desacreditar as causas de interesses;

d)     Não governar para o País, mas, apenas para uma base social, o que subverte a legitimidade da democracia; ao mesmo tempo, importa manter bem cultivada esta base de aproximadamente 30% da população, com atividade direta e permanente a fim de que se mantenha em elevado humor de auto-estima;

e)     Não admitir a realidade para dar a entender que está havendo controle dos fatos e, ainda desdramatizar os acontecimentos, como o da pandemia;

f)      Explicitar descontentamento constante a fim de que as vítimas do sistema, na verdade, são outras vítimas, tal como a apelação de que os imigrantes constituem a causa do desemprego;

g)     Valer-se de posturas políticas tradicionais para reforçar o neoliberalismo sem proteção social;

h)     Estabelecer contínuas polarizações. [7]

 

Essa dominação incontestável resulta de uma sede desenfreada por lucros e causa verdadeiros desastres humanos e ecológicos.

            A isso se acrescenta a obsessão pela justificativa da livre concorrência e do crescimento econômico pregada e apregoada diariamente. Assim, a crise acaba suscitando dois processos contraditórios: de um lado se foca o retorno a uma estabilidade passada, como caminho redentor para o momento da crise; e, de outro lado, com denúncia e imolação de alguém considerado culpado. Este, pode ser tanto aquele que tenha cometido erros e que ajudaram a gerar a crise, quanto um culpado imaginário, que é transformado em bode-expiatório e que, necessariamente, deve ser eliminado.

            Paralelamente é produzida uma loucura eufórica em torno do mito da necessidade histórica de muito progresso e controle humano, quer pelas condições da natureza ou pensando na direção do futuro humano, a ser controlado pela inteligência artificial. Assim o pequenino vírus, chamado covid-19, revela crise sanitária, existencial, política e econômica e também afeta indivíduos, grupos sociais e Estados. Por seu lado, o invasivo vírus deixa uma evidência alarmante sobre o equilíbrio bio-ecológico do planeta e sobre a real humanidade dos seres humanos.

            O minúsculo Covid-19 escancara a crise para muitas direções: mostra que nações possuem muito capital, mas, não buscam fornecer trabalho para os seus membros. O desejo de renda e competitividade implica em sacrifício da maioria das pessoas. No que diz respeito à economia, os seus dogmas infalíveis da regência, apontam um prognóstico de caos e de penúria para o futuro da humanidade.

            Na dimensão da sociedade, o alarmante crescimento das desigualdades mostra o acintoso contraste entre residências pobres e populares e as suntuosas edificações dos poucos ricos. Por outro lado, as políticas em torno da produção de vacinas contra a Covid-19, escancaram a extraordinária falta de solidariedade e uma oferta intoxicante e desenfreada para mais consumo em vista de maiores lucros.

Por fim, a crise também afeta a dimensão existencial das pessoas: interpela seu modo de vida, questiona sobre as necessidades precípuas e, o que é desejado sob a nuvem da alienação da vida cotidiana, aponta para um mero mundo de “vermes” vorazes e consumistas.

O biólogo espanhol, Pedro Jordano salienta que “ a crise deveria, sobretudo, abrir nossas mentes, há bastante tempo reduzidas ao imediato, ao secundário, e ao frívolo, para o essencial: a importância do amor e da amizade para nosso florescimento pessoal, para a comunidade e para a solidariedade de nossos ‘eus’ nos ‘nossos’, para o destino da humanidade, dentro da qual cada um de nós é uma mera partícula. Em suma, o confinamento físico deveria favorecer o desconfinamento mental”[8]

Jordano ainda destaca que o acesso a fontes animais silvestres para alimentação abre as portas para que nosso organismo fique exposto a novos patógenos. A ação humana está por trás de muitas doenças emergentes, porque decorrem de processos ambientais e afetam os ecossistemas através das interações entre as espécies. “Se alteramos essas dinâmicas, teremos consequências, como as que vivemos agora. A maior parte das epidemias recentes (HIV, Ebola, SARS, West Nile, a doença de Lime, Hendra, Nipah, etc.,) tem uma clara base ambiental e de alteração de processos naturais. É o que conhecemos por ’ecologia da doença’ “.[9]

Jorge Majfud endossa esta perspectiva ao salientar que: “a atual onda neofascista precede o próprio surgimento da Covid-19. Mas ambos são a consequência de uma realidade destrutiva baseada na acumulação infinita dos poderes financeiros e das seitas corporativas, de sua insaciável sede de lucros, de poder e de uma cultura consumista que, assim como em indivíduo doente, foi mudando de forma progressiva o prazer de um vício pela depressão e o suicídio”.[10]

Já o meio da maior parte do povo que constitui a classe excluída, reage emocionalmente de forma fragmentada e errática na busca de preencher o esvaziamento do sentido, tanto existencial quanto social, com a persuasão de uma bandeira ou de uma seita: desprezam todas as outras coisas que não se encaixam no seu pequeníssimo mundo de outros excluídos que também presumem estar conectados na distração perfeita e mágica que as exclui do real acesso a melhores condições.

“O domínio é de tal grau que os povos debaixo, presos no consumo passivo e, sem nenhum poder de decisão sobre os algoritmos, as políticas sociais e a ideologia que regem seus desejos, são os primeiros a defender com fanatismo a ideia de ‘liberdade individual’ e dos benefícios que procedem destes deuses onipresentes”.[11]

Este apego ferrenho ao capitalismo tão perverso decorre em parte devido às origens do capitalismo diante da velha e rígida sociedade feudalista: significou um avanço democrático. Mas, sem demora este avanço se tornou neofeudal através das suas seitas financeiras e empresariais, constituído de pouca gente, e que concentrou e monopolizou as riquezas do planeta. Assim, uns países são dominados por outros, através de seus supostos sistemas democráticos. Desta perversa crueldade, decorre um medo real e legítimo de que o Estado alargue seus tradicionais mecanismos de abuso de poder.

Ademais, como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk, “Somos fisiologicamente quase incapazes de entender os resultados do nosso próprio comportamento – e as consequências disso são enormes. Estamos profundamente convencidos de que tudo o que fazemos pode e deve ser perdoado. Do ponto de vista ambiental, estamos vivendo um período de inocência perdida. E haverá muitos pecados a serem perdoados. E quanto mais compreendermos isso, maior será a probabilidade de um dia desenvolvermos padrões de comportamento para lidar com a nova situação”.[12]

O referido filósofo também observa que estamos sendo contaminados por uma estufa de notícias contagiosas e a infecção provinda da informação é tão forte e até maior quanto aquela que provém de vírus. Por isso, vivemos simultaneamente duas pandemias, a do medo e a do contágio real.[13]

Isso se torna mais grave quando o estímulo do prazer egocêntrico chega ao auge da insinuação, e, tal processo ainda se agrega a interesses corporativistas. O mundo real e o universo virtual boicotam quaisquer iniciativas sócio-transformadoras. Enfim, nada mais valioso e acalentador do que começar a pensar em outro modo de vida.

 

 



[1] MAJFUD, Jorge. Caminhamos para o totalitarismo? Já não estamos nele? In: ihu.unisinos.br/605057-caminhamos-para-o-totalitarismo-já-não-estamos-nele > Acesso no dia 29/11/2020.

[2] Idem, ibidem.

[3] MORIN, Edgar. É hora de mudar de via. In: ihu.unisinos.br/604761-e-hora-de-mudar-de-via-alerta-edgar-morin> Acesso no dia 29/11/2020

[4] MORIN, Edgar. Um festival de incerteza. In: ihu-unisinos.br/-78-noticias/599773-um-festival-de-incerteza-artigo-de-edgar.morin >Acesso dia 19/11/2020

[5] ROMANO, Roberto. A pandemia do ódio, Trump e o Brasil. In: ihu.unisinos.br/604778-a pandemia-do-odio-trump-e-o-brasil-artigo-de-roberto-romano > Acesso no dia 18/11/2020.

[6] Idem, ibidem.

[7] SANTOS, Boaventura de Souza. Fascismo 2.0 em oito lições. In: ihu.unisinos.br/604711-fasccismo-2-0-em-oito-lições-artigo-de-boaventura-de-souza-santos > acesso no dia18/11/2020.

[8] JORDANO, Pedro. A Covid-19 é um exemplo a mais da nossa relação tóxica com a natureza. In: inhu.inisinos.br/78-noticias/597413-a-covid-19-e-um-exemplo-a-mais-da-nossa-relação-toxica-com-a-natureza-entrevista-com-pedro-jordano > Acesso no dia 19/11/2020.

[9] Idem, ibidem.

[10] MAJFUD, Jorge, op. cit.

[11] Idem, ibidem.

[12] SLOTERDIJK, Peter. Os humanos não estão preparados para proteger a natureza. In: ihu.unisinos.br/78-noticias/600415-os-humanos-não-estão-preparados-para-proteger-a-natureza-entrevista-com-peter-sloterdijk > Acesso no dia 25/11/2020.

[13] Idem, ibidem.

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