Seguem algumas noções
valiosas do livro “Diocesaneidade –
esponsalidade e incardinação” (de Humberto R. de Carvalho; Edson Pereira e
Eduardo da Costa, lançado pela Paulus, em 2020).
O assunto remete à
vocação apostólica de Jesus, na beira do mar da Galiléia: chamou, recebeu,
formou e enviou os apóstolos em missão. Eles deixaram barco, família e outros
bens, mas, não a sua humanidade, nem sua história de vida e, nem mesmo a sua
personalidade (identidade). Revelaram-se frágeis, com medos e limites; mesmo
assim, mergulharam no mistério de Cristo.
Este caminho constitui
referência para o significado da vocação presbiteral. A iniciativa é de Jesus
que chama, que elege e forma. Os chamados são convidados para uma relação
existencial que envolve seu ser, numa relação intensa com Jesus.
Diocesaneidade implica
em amor e comprometimento pastoral pela Diocese. Deve constituir um vínculo
amoroso, esponsal, espiritual e jurídico com a comunidade diocesana e se
configura na incardinação, através da interação de quatro elementos: diocese,
bispo, comunhão presbiteral e povo de Deus. Significa amor incondicional do
padre na entrega solícita à Igreja, aos projetos pastorais, envolvendo respeito
e afeto filial com o bispo, amizade sincera e desinteressada e fraterna com os
demais presbíteros e paroquianos.
Diocesaneidade
constitui uma experiência de pertença. Presbítero não é um líbero como num jogo
de futebol, pois, está vinculada à diocese por uma espiritualidade. O carisma
peculiar da diocesaneidade implica em amor pela diocese, em vivência
presbiteral fraterna e no serviço ministerial dedicado ao povo de Deus.
Na diocesaneidade
integra-se a pessoa do presbítero, o território da comunhão eclesial, o povo a
quem o presbítero serve, o bispo e os demais irmãos, para: viver o seguimento
de Cristo, efetuar o serviço do Reino, além de vivenciar Igreja e fraternidade.
Da relação do
presbítero-Cristo com a Igreja decorre a esponsalidade: um mergulho no mistério
do amor de Cristo e da Igreja, sem perder a identidade e nem abandonar a sua
humanidade. A incardinação decorre desta intimidade com Cristo e a Igreja e
significa serviço.
O termo “presbítero” a
partir do concílio de Trento significava padre que não vivia em monastério, mas,
no meio da sociedade secular. “Secular” tornou-se pejorativo: padre mundano,
sem compromisso e sem espiritualidade específica. Com o Vaticano II a nova
autocompreensão da Igreja delineou outro perfil de imagem: estado de
consagração em que os presbíteros são chamados a encarnar na vida os conselhos
evangélicos com amor incondicional à comunidade paroquial ou seminário ou outra
função que exercem (Pastore Dabo Vobis, 1992).
Quanto à
territorialidade, o concílio Vaticano II e o Direito Canônico estabeleceram:
reunião e agrupamento de uma parte do povo de Deus estabelecido, primariamente
em determinado espaço territorial, sob o pastoreio do bispo diocesano e apoiado
pelos seus apoiadores (os presbíteros). Implica em amor e ardor pela diocese, o
solo sagrado, o lugar de louvor e de serviço a Deus, ao Reino e à humanidade.
Ao presbítero cabe amar, defender e cuidar da sua
diocese: lugar de comunhão, participação e dialogo. Assim, cabe-lhe amor
esponsal, jurídico e espiritual para com a diocese, pois, prometeu fidelidade,
respeito e obediência. O presbítero deve ser solícito, zeloso e responsável
para apascentar o povo de Deus como profeta da unidade a fim de que todos os
seus membros se salvem. Ele não é aquele que sabe tudo e que tudo pode, mas,
deve ser aquele que acolhe, respeita, dialoga, como disponível, acessível e
misericordioso. Não constrói o reino de modo isolado e individual e
autorreferencial na perspectiva midiática para ocupar o lugar de Cristo, mas
deve ser sinal visível e fermento de Deus na humanidade.
Quanto à esponsalidade,
o AT revela muitas alusões envolvendo a aliança de Deus com o povo (Sl 44,
Cântico dos Cânticos, Ozéias, Jeremias, Ezequiel...). O Novo Testamento
centraliza este tema: Jesus é o esposo da Igreja, por três razões: é uma imagem
advinda das sagradas escrituras; a Igreja não decorre de mera soma de membros;
e ela remete ao fim último e central do mistério criador e redentor.
O tema nupcial implica
em duas direções: relação esponsal de Cristo com a Igreja; e a identificação do
presbítero que decorre desta relação. O Novo Testamento elaborou a compreensão
da nova aliança com a característica da esponsalidade: Cristo-esposo e
Igreja-esposa.
Na Patrística
aprofundou-se o sentido desta compreensão. Inácio de Antioquia viu a Igreja
como fruto da encarnação e paixão de Cristo; Tertuliano viu nos sacramentos a
explicitação do amor de Cristo com a Igreja; Orígenes viu entre Cristo e a
Igreja o enlace sem mancha, sem ruga, santa e irrepreensível; Agostinho de
Hipona assimilou a Igreja como esposa de Cristo.
O Magistério da Igreja
retomou a relação Cristo-esposo e Igreja-esposa tanto na mística quanto na
liturgia sacramental. O Vaticano II endossou a mesma relação quando se referiu
ao Espírito Santo: Cristo, pela força do Evangelho rejuvenesce a Igreja. Esta
relação esponsal é vista sob três aspectos: a) união de Cristo e a Igreja; b)
Distinção entre Cristo e a Igreja; c) obediência da Igreja a Cristo.
O presbítero passou a
ser identificado com Cristo. Entre o concílio de Trento e o do Vaticano II, os
papas insistiram muito na associação de que o presbítero é “alter Christus”,
enviado por ele para atuar em seu nome. Por isso, o presbítero deve revestir-se
de Cristo em toda a ação sacramental e litúrgica, para atualizar no tempo a sua
ação salvífica e sua Palavra, o Evangelho.
A CNBB também, enfatiza
que o presbítero age “in Persona Christi”, na amizade pessoal e íntima com ele.
Da esponsalidade
decorre também a incardinação. Nos primeiros tempos da Igreja a incardinação
foi se firmando com a estabilidade das comunidades cristãs. No sentido estrito
a incardinação equivale à incorporação estável e plena de um clérigo numa
comunidade de fiéis, presidida pelo bispo. Este vínculo envolve três elementos:
serviço ministerial, disciplina eclesiástica e sustento.
O Vaticano II efetuou um
“aggiornamento” (atualização e renovação) teológico-pastoral para o bom e sadio
desempenho do ministério presbiteral. Assim, incardinação, mais do que mero
vínculo jurídico, significa vínculo espiritual em torno de três aspectos:
exercício em comunhão hierárquica com os legítimos pastores; desvelo pela
disciplina e boa reputação; e, digno sustento.
Nos primeiros séculos
da Igreja a incardinação foi complicada devido às perseguições que exigiam
muitos deslocamentos de apóstolos e sucessores. No século IV, de perseguida a
Igreja passou a ser religião oficial do império romano. Com esta mudança
surgiram diversos abusos, privilégios e indisciplina; alguns bispos usurpavam
presbíteros de outros bispos e alguns também conferiam a Ordem sem nenhuma
necessidade...
Trento (1545 a 1563)
revigorou a incardinação e restabeleceu a disciplina. Mesmo assim, as mudanças
econômicas trouxeram novos desafios à incardinação devido às atividades
missionárias em outros continentes.
O código de Direito
Canônico regularizou a situação jurídica dos presbíteros ao vinculá-los à
Diocese, pois, antes eram apenas vinculados ao templo. A reforma do Vaticano II
destacou o serviço do presbítero como título para o sustento numa estrutura
eclesiástica concreta e ressaltou a unidade e comunhão no exercício da missão
do ministério entre presbítero e bispo: comunhão hierárquica.
O elemento objetivo da
incardinação é o do serviço ministerial numa estrutura pastoral concreta. Desta
forma, a incardinação constitui um ato formal e jurídico pelo qual um
presbítero vive uma aliança com a Igreja local, nutrindo com ela uma relação
esponsal e um vínculo de pertença entre ambos. Como Cristo-esposo se entregou à
Igreja-esposa, o presbítero diocesano é convidado a manter relação esponsal com
a diocese. O padre diocesano deve ser portador do amor misericordioso e
esponsal de Deus com todas as pessoas da comunidade.
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