sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

No divinizado nada divino


Na estupefação de um grave desvio,
A antiga Corinto, no doente desvario,
Queria os dons de muita publicidade,
Para angariar o prestígio à saciedade.

Ao relegar a nova proposta redentora,
Prevaleceu a avidez nada confortadora,
Pelo carisma de intercessão milagreira,
Para curar males de saúde e de cegueira.

Na centralidade de alcance do prestígio,
Esqueceu-se o Evangelho e seu fastígio,
Para prevalecer luta de vil precedência,
Vulgar, sem amor, e sem complacência.

Paulo quis apontar a mediação superior,
Da caridade que com amor nada inferior,
Explicitava bem mais a irradiação divina,
Do que tanta autopromoção tão cretina.

Incrível como a crise social faz emergir,
Em tanta tentação mágica a se expargir,
Com os poderes supranormais e divinos,
Em rituais ambíguos e efetivos desatinos.

Colaborar na comunidade virou estranho,
Tanto quanto naqueles tempos de antanho,
Porque de pouco ou nada servem as sortes,
Se não apontam para humanitários aportes.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Encantamentos e resistências



            Em nossos dias, como no tempo de Jesus de Nazaré, cultiva-se um verdadeiro fascínio em torno da grandeza, do poder e da capacidade superior de ações milagrosas. Dá-se a impressão de que tudo quanto é fácil, rápido e favorável aos interesses imediatos gera um verdadeiro e exacerbado encantamento. Simultaneamente desenvolve-se ojeriza e resistência a tudo quanto implica em projetos e perspectivas de mudança.
            Até mesmo o discurso relativo a Jesus Cristo, quando foge da dimensão milagreira, curandeira e de satisfação intimista, enfrenta explícita resistência. Sobretudo quando o ponderar sobre algo que envolve justiça, desconcentração de riqueza e formas legitimadas de acumulação de poder político e econômico, parece despertar uma nítida incompatibilidade em torno do que Jesus Cristo aponta.
Nas andanças pelos caminhos, Jesus foi bem recebido em sua terra natal, um pequeno povoado. Rapidamente desencantou aquelas pessoas e as moveu à tentativa de linchamento, porque frustrara suas expectativas de vantagens fáceis de autoafirmação.  Ele, no entanto, não se intimidou com o fracasso.
            Pelo texto evangélico de Lucas (4,21-30), pode-se deduzir que tal narrativa tinha um significado especial para as comunidades daquela época, mergulhadas em múltiplas dificuldades que indicavam a iminência do fracasso, para que lembrassem a determinação explicitada por Jesus Cristo diante da contrariedade.
Apesar do fracasso diante dos seus conhecidos, que tentaram matá-lo, Ele prosseguiu andando pelo caminho. Não gastou tempo para vingança ou retaliação e, nem se entregou à inércia diante da falta de mínimo sucesso no seu anúncio profético!
            Continuar o caminho, também em nossa contingência, requer tanto de uma condição interior de humildade, quanto de sólida determinação para buscar algo novo e mais valioso. Não se pode ficar simplesmente em passiva espera para que um redentor paternalista venha fazê-lo por nós e em nosso lugar.
            Apesar das intensas buscas de ajuda divina, as vozes proféticas tendem a ser caladas enquanto se desnudam escancaradas, cada dia mais, a indiferença diante das graves situações sociais, e a acomodação para que nada seja mudado: nem a prática religiosa, nem a piedade exterior e formalista, e, menos ainda, o falso ideário de um “Jesus Cristinho” que resolve tudo! E, se por acaso, não resolve, basta apelar para sua mãe, assimilada como ainda mais dadivosa e portentosa para perpetrar a mesmice de uma vida sem graça. Certamente não é este o caminho que ela aponta para o itinerário de fé!

            

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

"Homo Caloris"



Com os prognósticos de mais calor,
Some a expectativa do nobre valor,
Da aragem agradável e refrescante,
Que recupera a sensação estafante.

Se o fim será mesmo a torrefação,
Dos alimentos e da vital condição,
Ainda resta esperar bons tempos,
Para equacionar os contratempos.

O tanto que se gasta em calefação,
E para cozimento da alimentação,
Ao ser poupado pelo calor do sol,
Permitirá à vida um inovado rol;

O ar cálido se incumbirá de assar,
Tudo quanto pela boca vai passar,
Desde pombas a produtos do mar,
E do que da terra possa promanar.

Na dispensa do arsenal de higiene,
Nada será tido como mais perene,
Que a ação multifacetária de calor,
A poupar serviços livres de torpor.

Será o tempo isento das bactérias,
Que hoje ocupam tantas matérias,
Porque já esterilizadas nos efeitos,

Não propiciarão eventuais enjeitos.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Valor do passado para clarear o futuro



            O iluminismo dos tempos modernos insistiu muito na desqualificação do passado: ele já não existe mais, é o novo e o vindouro que importam! Nesta aposta obcecada pelo futuro a relativização do passado pode também tirar qualidade de vida.
            Mesmo sendo seres culturais que mudam a cultura, e, se transformam com a cultura, o passado certamente é mais importante do que se costuma pensar, especialmente quando se lida com crises, porque é da memória que advém os melhores indicativos do que fazer.
Tanto nas experiências de fé, quanto afetivas e de organização da vida, podemos chegar a momentos de impasse e de incapacidade de bom discernimento para tomar uma nova decisão. Neste caso, uma volta ao passado, sobretudo, quando recordamos situações parecidas e similares, - e vemos que em outras ocasiões já tivemos capacidade de tomar decisões que deram saltos de qualidade à vida, - elas poderão nos ajudar a ponderar melhor e a proceder com mais segurança.
O regresso ao passado não significa, contudo, uma volta fundamentalista e de refúgio ao tempo que já passou. Ele pode ser dinâmico quando se consegue perceber a forma como as dificuldades foram superadas.
O saudoso teólogo brasileiro João Batista Libânio usou uma imagem para ilustrar a importância do passado na boa orientação da vida. Disse que a vida é como o voo de um pássaro. O equilíbrio e a direção dependem da habilidade de pequenos e grandes detalhes das duas asas. Não é possível imaginar o voo de um pássaro com o batimento de apenas uma das asas. Assim, em nossa vida, teríamos que bater, necessariamente, duas asas: a da memória e a do desejo.
Se batermos somente a asa da memória, tornamo-nos desambientados e insuportáveis nas conversas. Muitas pessoas vivem esta situação: falam apenas do tempo passado. “No meu tempo era assim; naquele tempo tinha isso e mais aquilo...”.
São igualmente abundantes os casos em que lidamos com pessoas sem memória, sem referência e sem consistência, porque vivem obcecados pelos desejos. Vivem dos sonhos, geralmente não reais, mas, produzidos para torna-los consumidores inveterados. Uma pessoa que apenas se move por desejos também se torna insuportável porque é constantemente insatisfeita com o que alcançou e com o que possui.
Por conseguinte, tal como um pássaro consegue harmonizar o voo e adequá-lo para velocidade ou capacidade de não sucumbir a ventos adversos e outros riscos, os seres humanos também precisam descobrir esta difícil harmonização entre o que o passado deixou registrado na memória, com os abundantes desejos, alargados e explorados ao infinito. Assim, o bem-estar da convivência carece tanto da memória quanto do desejo. Imaginar um voo com o batimento de apenas uma das duas asas permite fácil dedução do que vai acontecer: ou cai logo ou se espatifa contra algum obstáculo! Assim, boa consciência e integração do passado são indispensáveis para a capacidade de orientar-se na vida com bom nível de satisfação.


sábado, 23 de janeiro de 2016

O formalismo inibidor da fé



Para além dos mágicos da ilusão ótica,
Vejo, num reverendo, a ação despótica,
De esvaziar a simbologia sacramental,
Para realçar formalismo monumental.

Seus gestos executados nas minúcias,
Já desprovidos de quaisquer argúcias,
São automatizados e sem mensagem,
E reforçam o mau gosto da roupagem.

O sermão de um moralismo enfadonho,
Locupleta um floreio mental medonho,
E repete chavões de uma visão viciada,
A deixar toda assembléia consternada.

Sem referir-se ao contexto das leituras,
Fala enfático das sorrateiras diabruras,
Que pervadem a vida dos bons crentes,
E os deixam vulneráveis e indiferentes.

Aponta tão somente o ato de obedecer,
Como meta para algo valioso merecer,
                                                   Mas, não aponta o itinerário de Jesus,
Como caminho que transcende a cruz.
  




sábado, 16 de janeiro de 2016

Imagens de um casamento bem sucedido



            O profeta Isaías, quando tentou animar o povo que regressava do exílio, valeu-se de uma imagem forte de um casamento efetivamente bom: ela (o povo) já não seria mais chamada de abandonada, mas de predileta, a donzela que propiciaria a alegria do noivo (Deus).
            Os frutos desejados pelo profeta, contudo, não se realizaram da forma esperada, porque a relação do povo com Deus, nos séculos que antecederam a chagada de Cristo, revelaram muito formalismo e pouco amor concreto por parte da donzela. O profeta Oséias escreveu muito sobre esta situação do noivo desejar ardentemente o convívio, mas a lamentável condição de ela preferir a prostituição. No entanto, nem mesmo assim, o noivo teria deixado de apostar na possibilidade de ela mudar de vida e reiniciar um processo estável de complementariedade.
            O evangelho de São João abordou um casamento com traços muito diversos daqueles mencionados pelos profetas para destacar o aparecimento de Jesus Cristo. Do casamento de Caná surgem destaques ao vinho abundante e gostoso, para indicar que um novo casamento, o de Jesus com os discípulos, estava sendo o de talhas cheias. Em outras palavras, Jesus deu uma razão e uma perspectiva para que o antigo anseio dos profetas, finalmente pudesse viabilizar-se na comunidade de fé.
            Enquanto que as talhas vazias representavam o esvaziamento do cultivo da fé, porque o formalismo legalista havia anulado o sentido da alegria, da festa e do bem-estar, para festejar a presença do noivo (presença de Deus). Com o gesto de Jesus, reinicia-se este novo tempo de festa da presença de Deus conosco (vinho novo e mais gostoso).
            Infelizmente, em torno do que despertou a alegria do casamento de Caná, conseguimos, com o passar do tempo, novamente esvaziar estas novas talhas com sacramentos e discursos teológicos, devocionalismos sincréticos e intimistas. Nossa argumentação religiosa pouco entusiasma e oferece poucas razões de alegria e esperança para ratificar a celebração da presença do noivo: afinal, parece constituir um enlace de poucas perspectivas e de pouca eficácia da memorável presença de Jesus Cristo!
            Quer-se um “Jesuscristinho” para emoções, divino e meigo, para suprir desejos e necessidades subjetivas, mas, em contrapartida, não se quer um Jesus Cristo que convida a agir positivamente na vida a fim de que a alegria da festa não constitua um embriagar-se momentâneo de vagos sensacionalismos e milagres vulgares.
No casamento de Caná iniciou-se um difícil caminho de restauração, que nos move na esperança de que o aparecimento de Jesus pode sim, nos apontar um caminho de aliança nupcial com ele e que indica a plena glória de um tempo messiânico porque no rosto de Jesus revela-se um rosto de um bom Pai do “noivo”.



quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

No estágio do "homo corruptus"



Sob “Homo Sapiens”, o elogio do nosso tempo,
Oculta, nas mentiras vulgares do contratempo,
O disfarce das soluções para sofridas mazelas,
Tão escancaradas, visíveis e em nada singelas.

A obcecada defesa do sistema de organização,
Aponta o céu como posse de vasta acumulação,
E induz a uma ganância ferrenha e desenfreada,
Para ostentar as aparências de atividade ilibada.

Nem as regras vigentes, nem a dor dos vencidos,
Saciam o adorado ideal ambicioso dos enrustidos,
Que se auferem todo direito de saciar à exaustão,
Tudo quanto a fantasia aponta para consumação.

Quando mentiras repetidas passam por verídicas,
E as boas aparências se tornam cruéis e fatídicas,
Onde achar prisões para juntar tantos corruptos,
E acabar com seus vícios crassos e ininterruptos?

Muito trabalho e suor, ao lado de conscientização,
Far-se-ão necessário para mudar a procrastinação,
E reativar a valiosa honra da palavra proclamada,
Para auferir ao nosso país o ideário de terra amada.

A desconfortável imagem do “homem corrupto”,
Não se evadirá com ato mágico, e nem abrupto,
Porque mais expandida do que a sika e a dengue,
É virose que não se cura com adoçado merengue.








Reconciliação - na perspectiva do paradoxo entre justiça e misericórdia


Dr. Pe. João Inácio Kolling[1]
.
ABSTRACT
            Esta abordagem sobre reconciliação destaca alguns elementos do contexto da reconciliação: misericórdia e justiça. As regras da justiça nem sempre são as mais eficazes para reatância das rupturas, dos desencontros ou das dissensões. Uma primeira dificuldade provém do apego exagerado a regras caducadas pelo tempo e pelos novos contextos da vida, além da instauração arbitrária, autoritária e prepotente; outra dificuldade decorre da pressa superficial que força a reconciliação; é também tentadora a busca de reconciliação que não considera as raízes do desencontro; e, por fim, é sedutora a busca de reconciliação que não liberta para novos e melhores níveis de convivência das pessoas desencontradas.
Por outro lado, do ponto de vista do pensamento cristão, pressupõe-se que a justiça carece de misericórdia para poder tornar-se eficaz. Os dois caminhos da reconciliação, por outro lado, constituem uma dialética que, nem sempre, chega a sínteses razoáveis, devido a uma contradição entre o que as pessoas vitimadas exigem dos agressores, pois, esperam extremo rigor das regras estabelecidas, enquanto almejam, em contrapartida, uma larga misericórdia diante das infrações de regras infringidas.

Palavras-chave:
Reconciliação; justiça; misericórdia, corrupção; libertação.




1 – Os Significados de reconciliação e algumas ramificações de entendimento

1.1 - Preâmbulo
            Tanto quanto a violência, objetiva ou mimetizada, tende a gerar mais violência, a reconciliação nem sempre é fácil e eficaz porque os objetivos e desejos humanos facilmente causam desentendimentos entre as pessoas. É notável como a vida social está impregnada de conflitos, disputas e atos violentos. Muitos fatores, desde emocionais a culturais, alargam as dificuldades para um discernimento capaz de equacionar as dissonâncias e chegar a uma reconciliação.
            Quando estabelecida a violência, seja estrutural, seja de transgressão de uma ordem estabelecida ou de subversão a um status implantado, sempre implica em ação de força contra alguém: ou grupo, ou classe, ou povo, ou categoria, ou indivíduo, ou etnia. Duas mediações revelam-se mais usuais e eficazes para o alcance do entendimento ou da reatância do desencontro: são a justiça e a misericórdia.
            Na organização civil predomina o apelo à justiça, mas, nem sempre as regras estabelecidas para dirimir os desencontros são adequadas ao momento e ao fato. Podem até constituir fonte de mais violência. Já na perspectiva religiosa, o pensamento cristão se pauta pela centralidade da misericórdia. No entanto, a aproximação do discurso com a prática misericordiosa, por sua vez, também não encontra caminho fácil e nem linear. Parece que uma misteriosa inclinação leva a falsear a adversidade e a atribuir-lhe características ampliadas pela mágoa ou perda, enquanto atenua as contravenções infringidas.
Em tempos de saturante bombardeio de informações sobre atos e fatos de corrupção e de desrespeito frontal diante das normas de justiça estabelecidas, começam a emergir também, e simultaneamente, múltiplas inquirições sobre o significado e os efeitos da reconciliação: sobre a validade e a eficácia das regras de justiça; sobre a eficiência de regras éticas, morais e religiosas; e, sobre o efeito da misericórdia para um efetivo entendimento entre pessoas que se veem num emaranhado de conflitos e tensões.
Vamos ponderar brevemente sobre a conceituação dos termos para ressaltar que na reconciliação, a misericórdia, do ponto de vista cristão, é pressuposto para o exercício da justiça. Todavia, não se trata de abordagem teológica, mas, tão somente de um enfoque hermenêutico, em que valorizamos o discurso do Papa Francisco sobre a misericórdia como expressão relevante do pensamento cristão.

1.2 – Os conceitos

            Uma definição bem ampla e aberta da palavra “reconciliação” diz que é o “ato de restabelecer boas relações”.¹ A palavra “reconciliação” é também definida como “reentrada num relacionamento transformado. Significa a união de duas partes, que deveriam estar juntas o tempo todo.”[2] Em  diversos dicionários aparece ainda uma outra peculiaridade do significado de reconciliação: “É o restabelecimento de relações entre duas ou mais pessoas que andavam desavindas.”[3]
            Por outro lado, o que acontece com o ato de reconciliação? Ou, o que se pode fazer para estabelecer um ato de reconciliação? Geralmente o processo de reconciliação envolve uma série de procedimentos de ocultação, com o intuito de evitar conflitos mais graves ou, para evitar que novos conflitos voltem a manifestar-se na mesma intensidade. Pode também ocorrer tentativa de poupar quem agiu de forma errada, desleal, ilegal ou violenta. Estes aspectos já abrem algumas perspectivas que facilmente complicam a eficácia da reconciliação.
Robert J. Schreiter[4] salienta que a reconciliação pode envolver três contextos distintos que se distanciam do significado genuíno de reconciliação, porque costumam ignorar a violência que causou a ruptura:
a)      Reconciliação como paz apressada - Recurso de apelação corriqueira por parte dos agressores que, mesmo reconhecendo que erraram, querem evitar as consequências do que fizeram e, por isso, olham muito para frente e apelam para um novo começo, para uma nova postura e evidente ocultamento do que aconteceu. Na verdade, acabam exercendo uma espécie de coação para persuadir as vítimas, a fim de que se estabeleça a reconciliação.
Este modo de proceder pode até confundir-se com a reconciliação cristã, no sentido de apelação para esquecer o que aconteceu, mas, com uma implicação de efeitos marcantes: passa por cima da origem dos sofrimentos causados. Pode, pois, disfarçadamente, constituir um processo de persistência nas formas opressoras e, assim, perpetuar mais violência. “Trivializar e ignorar a memória é trivializar e ignorar a identidade humana.”[5]  Mesmo que se evitem as causas do sofrimento, até para não aprofundá-lo, a abreviação do processo de reconciliação pode mais inibir do que  facilitar a reatância.
Assim muitos palpites ingênuos e permeados de boa intenção, tendem a exercer outra violência sobre a vítima ferida ao persuadi-la com vistas a uma rápida reconciliação. Líderes religiosos incidem facilmente nesta pressão. Mesmo dando destaque correto ao perdão, na perspectiva cristã, tendem a ignorar que o processo de reconciliação não se efetua mediante pressão, e, sem confrontar as causas.
 A não abordagem das causas do sofrimento gera outros sofrimentos. Por isso, tal procedimento, quando o agressor deseja acelerar o ritmo da reconciliação, acaba, na verdade, propondo uma falsa reconciliação. A ação para um processo apressado desrespeita a dignidade da vítima e a capacidade da restauração da dignidade ferida.
A reconciliação, por implicar em mais do que o cessar dos atos de violência, não pode ignorar o processo de restauração, geralmente demorado e impregnado de muitas inseguranças. Assim, reconciliação não deve ser confundida com arrependimento de quem perpetrou a violência ou causou ruptura, porque o perdão e a reconciliação só podem provir de quem sofreu a violência ou a ruptura, ou seja, da vítima.
b)      Reconciliação sem libertação - constitui outra tentação específica de setores de tendência conservadora, que estabelecem a reconciliação na centralidade da práxis cristã, mas, que ignoram o processo de libertação que se faz necessário. É outra forma de ocultar, às vezes até através da falácia, para acionar mediações que possam propiciar a reconciliação.
“A libertação não é uma alternativa à reconciliação, mas um pré-requisito para ela. Assim, não propomos reconciliação no lugar de libertação; pedimos libertação a fim de produzir reconciliação.”[6]
Não se pode pressupor reconciliação sem o reconhecimento da natureza da violência, pois, é fundamental agir positivamente em vista de evitar o reaparecimento da ruptura. Requer-se uma libertação não só em relação ao ato violento, mas, das estruturas e dos processos que permitiram sua manifestação.
Na tentação de desejar efetuar reconciliação sem libertação, pode ficar escondida a realidade conflituosa que, tampouco, viabiliza uma reconciliação. Nesta ocultação pode ocorrer disfarce da violência. Por exemplo, em casos de racismo, como lidar com a raiva dos discriminados? Podem estruturas implantadas não permitir avanço na capacidade para um grupo, ou pessoa discriminada, efetuarem um processo e reconciliação.
Uma argumentação enganosa permite também pressupor que a conflitividade entre seres humanos seja característica peculiar da condição humana e, por isso mesmo, compatível com o cristianismo. No entanto cabe a pergunta: a conflitividade é realmente essencial à nossa condição? Caso seja, a reconciliação nem seria necessária e, nem mesmo eficaz. Além disso, o referido pressuposto justificaria as práticas violentas.
Na perspectiva cristã entende-se que Deus proporcionou a reconciliação por meio de Jesus Cristo, e, por isso, no convite da superação da conflitividade, não se considera o conflito como sendo a forma última da realidade.[7]

c)      Reconciliação como processo administrado - em muitas situações um mediador habilidoso consegue ajudar partes em conflito a rapidamente reatarem as condições que geraram desencontro ou dissonância. Pode a capacidade de um mediador constituir barganha que leva as duas partes dissidentes a abdicar de partes do seu desencontro, com vistas a encerrar o conflito.
Esta barganha constitui uma praxe comum para harmonizar questões partidárias, de coalizões, de contratos e de organizações comunitárias. No entanto, o pressuposto de que o surgimento de conflitos é próprio da condição decorrente de interesses ou dos desejos que movem pessoas e grupos. Por isso, o processo administrado de reconciliação pressupõe dignidade mínima das duas partes desencontradas, a fim de levá-las a estabelecer compromissos possíveis de serem assumidos.
Ainda que o processo de administração da reconciliação possa ser assimilado como atinente ao processo de reconciliação cristã, é bem distinto porque pressupõe que as partes em conflito produzem a administração da reconciliação e a transformam em mero procedimento de racionalidade técnica, ou seja, o simples cultivo de uma habilidade para lidar com problemas e administrá-los. Tal noção foge do pensamento bíblico que não assimila a reconciliação como habilidade de controle, mas, “é algo a ser descoberto – o poder da graça de Deus, desabrochando na vida da pessoa.”[8]
A reconciliação, ao invés de habilidade equivale, no sentido bíblico, a uma atitude, pois não é mera ferramenta para fazer consertos e depende muito mais de uma espiritualidade do que de habilidade técnica ou estratégica.

1.3. Reconciliação na perspectiva da justiça e da misericórdia

Marcos E, Fink define a justiça como a aplicação do que é merecido (devido)[9]. É comum que se associe justiça a retribuição, mediante obra praticada, tanto boa ou ruim. Trata-se de antiga herança do direito romano de dar a cada um, o que lhe é devido. A questão, no entanto, nos remete à pergunta: o que é devido a cada um?
Tal pergunta nos coloca diante de dois significados bem diversos:
 a) O da conformidade da conduta de alguém a uma norma estabelecida e, sob este ângulo, julga-se o comportamento em relação a uma norma;
 b) O da justiça como eficácia das normas com vistas a viabilizar relações entre indivíduos humanos. Sob este enfoque, centraliza-se o julgamento das normas e não o comportamento das pessoas. A referência à norma e, não ao comportamento, enfatiza a condição de uma norma: se ela permite ou se dificulta as relações humanas.
À ponderação filosófica cabe analisar a natureza da norma: se procede de um ato autoritário e prepotente; se nasce de um consenso, ou, como se sustenta no campo religioso, se provém de uma instância divina. Aristóteles, por exemplo, achava que justiça era a conformidade com a lei estabelecida. Injustiça seria, portanto, um inconformismo com a lei. Hobbes, mais recentemente, sustentou que justiça consiste na simples manutenção de pactos e o papel do Estado seria o de manter a viabilização dos pactos segundo regras estabelecidas:
“que os homens cumpram os pactos que celebrarem. Sem esta lei os pactos seriam vãos e não passariam de palavras vazias; como o direito de todos os homens a todas as coisas continuaria em vigor, permaneceríamos na condição de guerra.”[10]
Para o filósofo Platão, o foco estava estabelecido sobre a própria norma, pois, a justiça seria um instrumento. A justiça, tanto como instrumento, ou, como objeto a ser alcançado, tenderia a envolver ou uma função de reinvindicação, ou uma perspectiva de libertação das normas inadequadas ou injustas. Na idade média, Tomás de Aquino sustentou que justiça é dar a cada qual seu direito: o justo não é determinado por lei, mas, pela identidade profunda do ser humano:
 “justiça é o hábito segundo o qual alguém, com constante e perpétua vontade, dá a cada qual seu direito... A justiça é então, a virtude que incentiva a pessoa a estar atenta às necessidades do outro e a respeitar também a alteridade de cada um porque cada pessoa é um outro.”[11]
À parte destas questões de definição, permanecem sempre interpeladoras as perguntas: como conciliar justiça e misericórdia? Para cristãos, qual deveria, afinal, estar em primeiro lugar?
A Bíblia, por exemplo, é perpassada pela ênfase relacionada à misericórdia.[12] O termo hebraico hesêd refere-se aos laços de amor, benevolência, bondade e favor que unem os membros de uma comunidade.[13] Assim, a hesed personifica boas relações entre as pessoas: equivale a querer bem, fazer o bem, ter afeto, desenvolver fidelidade e exercer solidariedade.[14] No entanto, permanece uma relação nem sempre fácil entre o “nosso” erro e o erro dos “outros”. Existe uma tendência quase natural ao “encobrimento” das faltas através de mentiras com vistas a esquivar as regras da justiça.
Quando os “outros” erram, tende-se a exigir deles um rigoroso cumprimento das regras e das normas de justiça estabelecidas. E, no espírito de vingança, espera-se rigorosa cobrança de sentenças. Todavia, quando de trata dos “nossos” erros, cria-se uma expectativa de esperar um procedimento de muita misericórdia. Tal ambiguidade constitui, certamente, uma das grandes contradições presentes na vida dos cristãos: creem no valor da misericórdia de Deus, mas, não praticam amplamente a misericórdia em relação a todas as outras pessoas. Enquanto se aguarda rigoroso cumprimento das regras de justiça diante das obras praticadas pelos outros, espera-se toda a misericórdia da parte deles.
Segundo G. Montenegro[15]
“A tradição ocidental é de fazer a justiça de Deus um tipo de vigilância constante e irrestrita por defeitos no pecador. Afirma-se que há uma lei de justiça eterna que exige a punição do pecador de modo absoluto, de modo que Deus sendo justo, não perdoaria livremente os pecados. Entretanto, essa não é a justiça de Deus apresentada nas escrituras. A justiça de Deus é sempre seu misericordioso resgate dos necessitados”.
Para apontar possível mudança deste estranho procedimento, o Papa Francisco concluiu que uma das mais belas e comoventes palavras do Evangelho e, cheias de misericórdia, foi enunciada por Jesus Cristo: “Ninguém de condenou?” Diante do “não” explicitado, declarou: “Nem eu te condeno”![16] Ao alargar este aspecto, o pontífice se referiu ao conhecido tema das três mulheres e dos três juízes, um paralelo dos procedimentos mais comuns de falta de misericórdia na ação da Igreja:
a)      O dos juízes corruptos, movidos pela corrupção da rigidez, observadores legalistas que se pensam puros: a corrupção os levava a uma vida dupla que, depois de condenação, iam procurar as vítimas para se “divertir um pouco”;
b)      O dos juízes idosos, que chantagearam Suzana, movidos pela corrupção da luxúria, e que, por isso mesmo, se transformaram em sujeitos ferozes e ruins;
c)      O do juiz interpelado por uma viúva pobre, apenas movido pela efetuação de bons negócios, “um corrupto de dinheiro e de prestígio” que não sabia o que é misericórdia.[17]
Os três juízes não foram misericordiosos e, tampouco, compreenderam a misericórdia, porque eram corruptos. Hoje, segundo o papa Francisco, também tantos juízes julgam, no âmbito civil e no eclesiástico: não são justos, porque não são misericordiosos. Há os viciados que tentam abusar dos que erraram (“um pecado dos mais graves”); os mercadores que não apontam nenhuma esperança; e os rígidos, que cobram, dos outros, o que escondem de si mesmos.
No entendimento do Papa Francisco,
 “a misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar.”[18]
            Por outro lado, o papa também reconhece que:
 “a justiça, por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para que ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isto não significa desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes, pelo contrário! Quem erra deve descontar a pena; só que isto não é o fim, mas o início da conversão porque se experimenta a ternura do perdão.[19]
           
            Assim, prevalece na perspectiva do pensamento cristão a misericórdia como caminho mais eficaz de ação entre as pessoas e brilha a experiência religiosa da misericórdia de Deus como horizonte capaz de persuadir os seres humanos a estabelecerem reatâncias diante das dissonâncias ocorridas, e, ainda, abrir perspectivas libertadoras para maior qualidade humana.
            O Papa Francisco centraliza em muitas de suas homilias e escritos a dimensão fundamental da misericórdia, estreitamente vinculada às raízes do cristianismo, como condição e instrumento dos melhores frutos para que as pessoas possam reconciliar-se não somente entre si, mas, também com a natureza e com Deus;
            Na busca de reconciliação, a misericórdia constitui um pressuposto ou uma condição básica capaz de levar à efetuação de um processo justo de integração e, o que é mais importante, é capaz de abrir perspectivas novas de transcendência. Se de um lado as tão amplas e variadas feridas causadas pelos desencontros humanos ferem a dignidade humana, por outro lado, a misericórdia, certamente, se torna uma salutar e efetiva mediação para uma reconciliação e, com resultados mais eficazes do que os da severidade das exigências de reparação.

B I B L I O G R A F I A

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1962, p.565-568.
CORIAR, Ruth. Em: jesusverdadeiropaodavida.blogspot.com.br/2011/02/palavra-misericordia-eleos-no-grego-e-html, postado em 24/02/2011; acessado  no dia 04/12/2015


FINK, Marcos E. Justiça, misericórdia e graça. (www.ganância.com.b/mateus938/index.php?id=4 acessado no dia 04/12/2015.



HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

MEIER, Celito. Filosofia, por uma inteligência da complexidade. Belo Horizonte: Pax Editora, 2010, p.253.


PAPA FRANCISCO. Misericordiae Vultus – o rosto da misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2015.

SCHREITER, J. Robert. Reconciliação – missão e ministério numa ordem social em transformação. (Trad. Cecília Camargo Bartaloti). SP: Ed. Loyola, 2002.

VIDAL, Marciano. Para conhecer a ética cristã. São Paulo: Paulinas, 1937.



[1]  Doutor em Filosofia e Ciências da Educação pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha; Mestre em Antropologia Filosófica pela PUC-RS e Especialista em Psicopedagogia e Computação Aplicada ao Ensino, atua na Diocese de Diamantino – MT. É reitor do Seminário Maior Rainha dos Apóstolos de Várzea Grande e Diretor da Faculdade de Filosofia do SEDAC (Faculdades Católicas do Mato Grosso); e, professor na mesma instituição. BLOG: http://padrejoaoinacio.blogspot.com.br ; E-mail: pe.joaoinacio@Gmail.com .
[2]  Iqc/index.php?option=com_content&=article&id=4957:reconciliação-significado&catid=41&Itemid=65
[3]  www.dicionárioinformal.com.br
[4]  SCHREITER, J. Robert. Reconciliação – missão e ministério numa ordem social em transformação. (Trad. Cecília Camargo Bartaloti). SP: Ed. Loyola, 2002.
[5]  Idem, p. 29.
[6]  Idem, p. 32
[7]  Idem, op. cit. p.34.
[8]  Op. cit. p. 37.
[9]  FINK, Marcos E. Justiça, misericórdia e graça (www.ganancia.com.b/mateus938/index.php?id=4 acessado no dia 04/12/2015.
[10]  HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 123. Ele ainda argumenta: “Tal como a justiça depende de um pacto antecedente, assim também a gratidão depende de uma graça antecedente, quer dizer, de uma dádiva antecedente.” (p.127).
[11]  Cf. SELLA, Adriano. “Ética da justiça. São Paulo: Paulus, 2003, p.177-183, IN: MEIER, Celito. Filosofia, por uma inteligência da complexidade. Belo Horizonte: Pax Editora, 2010, p.253.
[12]  Como diz no Sl 103:17: “mas a misericórdia do Senhor é desde a eternidade e até a eternidade sobre aqueles que o temem, e a sua justiça sobre os filhos dos filhos”. (: http://cristianismopuro.blogspot.com.br/2012/05/ti-tambemsenhor-pertence-misericórdia.html ).
[13] CORIAR, Ruth. Em: jesusverdadeiropaodavida.blogspot.com.br/2011/02/palavra-misericordia-eleos-no-grego-e.html, postado em 24/02/2011; acessado  no dia 04/12/2015
[14]  Idem, ibidem.
[16]  Na sua homilia de 23 de março de 2015, na Casa Santa Marta: http://www.zenit.org/pt/articles/homilia/-do-papa-nao-ha-justica-sem-misericórdia acessado no dia 04/12/2015.
[17]  Por isso o papa tem insistido muito sobre o risco das tentações de cultivar uma fé árida, e que, em vez de criar um oásis na vida desértica de muitos, cria mais deserto. A linguagem condenatória facilmente revela um coração fechado que se esconde sob uma doutrina rígida e impede que aconteça um discernimento espiritual. Daí a tentação de enrijecimento hostil que leva ao fechamento sobre a letra dos escritos e impede que Deus possa surpreender. Existe também a tentação de um bonismo destrutivo de aparência e de misericórdia enganadora ou de língua alisadora, polida para falar de muitas coisas sem dizer nada. Marca visível também é a da negligência do depósito da fé que, em vez de custódios, leva-os a se sentirem proprietários e donos. Na facilidade da linguagem condenatória, também transparece a tentação de aplicar fardos insuportáveis aos outros, ou, de contentá-los distantes da vontade do Pai. (No exame de consciência proposto para representantes da Igreja, feito no dia 22/12/2014).
[18] PAPA FRANCISCO. Misericordiae Vultus – o rosto da misericórdia, p.33.
[19]  Idem, p. 34.

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

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