Dr. Pe. João Inácio
Kolling
.
ABSTRACT
Esta
abordagem sobre reconciliação destaca alguns elementos do contexto da
reconciliação: misericórdia e justiça. As regras da justiça nem sempre são as
mais eficazes para reatância das rupturas, dos desencontros ou das dissensões. Uma
primeira dificuldade provém do apego exagerado a regras caducadas pelo tempo e pelos
novos contextos da vida, além da instauração arbitrária, autoritária e prepotente;
outra dificuldade decorre da pressa superficial que força a reconciliação; é
também tentadora a busca de reconciliação que não considera as raízes do
desencontro; e, por fim, é sedutora a busca de reconciliação que não liberta
para novos e melhores níveis de convivência das pessoas desencontradas.
Por outro lado, do ponto de vista do
pensamento cristão, pressupõe-se que a justiça carece de misericórdia para poder
tornar-se eficaz. Os dois caminhos da reconciliação, por outro lado, constituem
uma dialética que, nem sempre, chega a sínteses razoáveis, devido a uma
contradição entre o que as pessoas vitimadas exigem dos agressores, pois,
esperam extremo rigor das regras estabelecidas, enquanto almejam, em
contrapartida, uma larga misericórdia diante das infrações de regras infringidas.
Palavras-chave:
Reconciliação; justiça; misericórdia,
corrupção; libertação.
1 – Os Significados de
reconciliação e algumas ramificações de entendimento
1.1 - Preâmbulo
Tanto quanto
a violência, objetiva ou mimetizada, tende a gerar mais violência, a
reconciliação nem sempre é fácil e eficaz porque os objetivos e desejos humanos
facilmente causam desentendimentos entre as pessoas. É notável como a vida
social está impregnada de conflitos, disputas e atos violentos. Muitos fatores,
desde emocionais a culturais, alargam as dificuldades para um discernimento
capaz de equacionar as dissonâncias e chegar a uma reconciliação.
Quando
estabelecida a violência, seja estrutural, seja de transgressão de uma ordem
estabelecida ou de subversão a um status implantado, sempre implica em ação de
força contra alguém: ou grupo, ou classe, ou povo, ou categoria, ou indivíduo,
ou etnia. Duas mediações revelam-se mais usuais e eficazes para o alcance do
entendimento ou da reatância do desencontro: são a justiça e a misericórdia.
Na
organização civil predomina o apelo à justiça, mas, nem sempre as regras
estabelecidas para dirimir os desencontros são adequadas ao momento e ao fato.
Podem até constituir fonte de mais violência. Já na perspectiva religiosa, o
pensamento cristão se pauta pela centralidade da misericórdia. No entanto, a
aproximação do discurso com a prática misericordiosa, por sua vez, também não
encontra caminho fácil e nem linear. Parece que uma misteriosa inclinação leva
a falsear a adversidade e a atribuir-lhe características ampliadas pela mágoa
ou perda, enquanto atenua as contravenções infringidas.
Em tempos de saturante bombardeio de
informações sobre atos e fatos de corrupção e de desrespeito frontal diante das
normas de justiça estabelecidas, começam a emergir também, e simultaneamente,
múltiplas inquirições sobre o significado e os efeitos da reconciliação: sobre
a validade e a eficácia das regras de justiça; sobre a eficiência de regras
éticas, morais e religiosas; e, sobre o efeito da misericórdia para um efetivo
entendimento entre pessoas que se veem num emaranhado de conflitos e tensões.
Vamos ponderar brevemente sobre a
conceituação dos termos para ressaltar que na reconciliação, a misericórdia, do
ponto de vista cristão, é pressuposto para o exercício da justiça. Todavia, não
se trata de abordagem teológica, mas, tão somente de um enfoque hermenêutico,
em que valorizamos o discurso do Papa Francisco sobre a misericórdia como
expressão relevante do pensamento cristão.
1.2 – Os conceitos
Uma
definição bem ampla e aberta da palavra “reconciliação” diz que é o “ato de restabelecer boas relações”.¹ A
palavra “reconciliação” é também definida
como “reentrada num relacionamento
transformado. Significa a união de duas partes, que deveriam estar juntas o
tempo todo.”
Em diversos dicionários aparece ainda uma outra
peculiaridade do significado de reconciliação: “É o restabelecimento de relações entre duas ou mais pessoas que andavam
desavindas.”
Por outro lado, o que acontece
com o ato de reconciliação? Ou, o que se pode fazer para estabelecer um ato de
reconciliação? Geralmente o processo de reconciliação envolve uma série de
procedimentos de ocultação, com o intuito de evitar conflitos mais graves ou,
para evitar que novos conflitos voltem a manifestar-se na mesma intensidade. Pode
também ocorrer tentativa de poupar quem agiu de forma errada, desleal, ilegal
ou violenta. Estes aspectos já abrem algumas perspectivas que facilmente complicam
a eficácia da reconciliação.
Robert J. Schreiter
salienta que a reconciliação pode envolver três contextos distintos que se
distanciam do significado genuíno de reconciliação, porque costumam ignorar a
violência que causou a ruptura:
a)
Reconciliação como paz apressada - Recurso de apelação corriqueira por
parte dos agressores que, mesmo reconhecendo que erraram, querem evitar as
consequências do que fizeram e, por isso, olham muito para frente e apelam para
um novo começo, para uma nova postura e evidente ocultamento do que aconteceu.
Na verdade, acabam exercendo uma espécie de coação para persuadir as vítimas, a
fim de que se estabeleça a reconciliação.
Este modo de proceder pode
até confundir-se com a reconciliação cristã, no sentido de apelação para
esquecer o que aconteceu, mas, com uma implicação de efeitos marcantes: passa
por cima da origem dos sofrimentos causados. Pode, pois, disfarçadamente,
constituir um processo de persistência nas formas opressoras e, assim,
perpetuar mais violência. “Trivializar e
ignorar a memória é trivializar e ignorar a identidade humana.”
Mesmo que se evitem as causas do
sofrimento, até para não aprofundá-lo, a abreviação do processo de
reconciliação pode mais inibir do que facilitar a reatância.
Assim muitos palpites
ingênuos e permeados de boa intenção, tendem a exercer outra violência sobre a
vítima ferida ao persuadi-la com vistas a uma rápida reconciliação. Líderes
religiosos incidem facilmente nesta pressão. Mesmo dando destaque correto ao
perdão, na perspectiva cristã, tendem a ignorar que o processo de reconciliação
não se efetua mediante pressão, e, sem confrontar as causas.
A não abordagem das causas do sofrimento gera
outros sofrimentos. Por isso, tal procedimento, quando o agressor deseja
acelerar o ritmo da reconciliação, acaba, na verdade, propondo uma falsa
reconciliação. A ação para um processo apressado desrespeita a dignidade da
vítima e a capacidade da restauração da dignidade ferida.
A reconciliação, por
implicar em mais do que o cessar dos atos de violência, não pode ignorar o
processo de restauração, geralmente demorado e impregnado de muitas
inseguranças. Assim, reconciliação não deve ser confundida com arrependimento
de quem perpetrou a violência ou causou ruptura, porque o perdão e a
reconciliação só podem provir de quem sofreu a violência ou a ruptura, ou seja,
da vítima.
b) Reconciliação sem libertação - constitui outra tentação específica de setores de tendência
conservadora, que estabelecem a reconciliação na centralidade da práxis cristã,
mas, que ignoram o processo de libertação que se faz necessário. É outra forma
de ocultar, às vezes até através da falácia, para acionar mediações que possam
propiciar a reconciliação.
“A libertação não é uma alternativa à
reconciliação, mas um pré-requisito para ela. Assim, não propomos reconciliação
no lugar de libertação; pedimos libertação a fim de produzir reconciliação.”
Não se pode pressupor reconciliação
sem o reconhecimento da natureza da violência, pois, é fundamental agir
positivamente em vista de evitar o reaparecimento da ruptura. Requer-se uma
libertação não só em relação ao ato violento, mas, das estruturas e dos
processos que permitiram sua manifestação.
Na tentação de desejar efetuar
reconciliação sem libertação, pode ficar escondida a realidade conflituosa que,
tampouco, viabiliza uma reconciliação. Nesta ocultação pode ocorrer disfarce da
violência. Por exemplo, em casos de racismo, como lidar com a raiva dos
discriminados? Podem estruturas implantadas não permitir avanço na capacidade para
um grupo, ou pessoa discriminada, efetuarem um processo e reconciliação.
Uma argumentação enganosa permite
também pressupor que a conflitividade entre seres humanos seja característica
peculiar da condição humana e, por isso mesmo, compatível com o cristianismo.
No entanto cabe a pergunta: a conflitividade é realmente essencial à nossa
condição? Caso seja, a reconciliação nem seria necessária e, nem mesmo eficaz.
Além disso, o referido pressuposto justificaria as práticas violentas.
Na perspectiva cristã entende-se que
Deus proporcionou a reconciliação por meio de Jesus Cristo, e, por isso, no
convite da superação da conflitividade, não se considera o conflito como sendo
a forma última da realidade.
c)
Reconciliação como processo
administrado - em
muitas situações um mediador habilidoso consegue ajudar partes em conflito a
rapidamente reatarem as condições que geraram desencontro ou dissonância. Pode
a capacidade de um mediador constituir barganha que leva as duas partes
dissidentes a abdicar de partes do seu desencontro, com vistas a encerrar o
conflito.
Esta barganha constitui
uma praxe comum para harmonizar questões partidárias, de coalizões, de
contratos e de organizações comunitárias. No entanto, o pressuposto de que o
surgimento de conflitos é próprio da condição decorrente de interesses ou dos
desejos que movem pessoas e grupos. Por isso, o processo administrado de
reconciliação pressupõe dignidade mínima das duas partes desencontradas, a fim
de levá-las a estabelecer compromissos possíveis de serem assumidos.
Ainda que o processo de
administração da reconciliação possa ser assimilado como atinente ao processo
de reconciliação cristã, é bem distinto porque pressupõe que as partes em
conflito produzem a administração da reconciliação e a transformam em mero
procedimento de racionalidade técnica, ou seja, o simples cultivo de uma
habilidade para lidar com problemas e administrá-los. Tal noção foge do
pensamento bíblico que não assimila a reconciliação como habilidade de
controle, mas, “é algo a ser descoberto –
o poder da graça de Deus, desabrochando na vida da pessoa.”
A reconciliação, ao
invés de habilidade equivale, no sentido bíblico, a uma atitude, pois não é
mera ferramenta para fazer consertos e depende muito mais de uma
espiritualidade do que de habilidade técnica ou estratégica.
1.3. Reconciliação na perspectiva da justiça e da
misericórdia
Marcos E, Fink define a
justiça como a aplicação do que é merecido (devido).
É comum que se associe justiça a retribuição, mediante obra praticada, tanto boa
ou ruim. Trata-se de antiga herança do direito romano de dar a cada um, o que
lhe é devido. A questão, no entanto, nos remete à pergunta: o que é devido a
cada um?
Tal pergunta nos coloca
diante de dois significados bem diversos:
a) O da conformidade da conduta de alguém a
uma norma estabelecida e, sob este ângulo, julga-se o comportamento em relação
a uma norma;
b) O da justiça como eficácia das normas com
vistas a viabilizar relações entre indivíduos humanos. Sob este enfoque,
centraliza-se o julgamento das normas e não o comportamento das pessoas. A
referência à norma e, não ao comportamento, enfatiza a condição de uma norma:
se ela permite ou se dificulta as relações humanas.
À ponderação filosófica
cabe analisar a natureza da norma: se procede de um ato autoritário e
prepotente; se nasce de um consenso, ou, como se sustenta no campo religioso, se
provém de uma instância divina. Aristóteles, por exemplo, achava que justiça
era a conformidade com a lei estabelecida. Injustiça seria, portanto, um
inconformismo com a lei. Hobbes, mais recentemente, sustentou que justiça
consiste na simples manutenção de pactos e o papel do Estado seria o de manter
a viabilização dos pactos segundo regras estabelecidas:
“que os homens cumpram os pactos que celebrarem. Sem esta lei os pactos
seriam vãos e não passariam de palavras vazias; como o direito de todos os homens a todas as coisas continuaria em vigor, permaneceríamos na condição de guerra.”
Para o filósofo Platão, o foco estava
estabelecido sobre a própria norma, pois, a justiça seria um instrumento. A
justiça, tanto como instrumento, ou, como objeto a ser alcançado, tenderia a
envolver ou uma função de reinvindicação, ou uma perspectiva de libertação das normas
inadequadas ou injustas. Na idade média, Tomás de Aquino sustentou que justiça
é dar a cada qual seu direito: o justo não é determinado por lei, mas, pela
identidade profunda do ser humano:
“justiça
é o hábito segundo o qual alguém, com constante e perpétua vontade, dá a cada
qual seu direito... A justiça é então, a virtude que incentiva a pessoa a estar
atenta às necessidades do outro e a respeitar também a alteridade de cada um
porque cada pessoa é um outro.”
À parte destas questões
de definição, permanecem sempre interpeladoras as perguntas: como conciliar
justiça e misericórdia? Para cristãos, qual deveria, afinal, estar em primeiro
lugar?
A Bíblia, por exemplo,
é perpassada pela ênfase relacionada à misericórdia.
O termo hebraico hesêd refere-se aos
laços de amor, benevolência, bondade e favor que unem os membros de uma
comunidade.
Assim, a hesed personifica boas relações entre as pessoas: equivale a querer
bem, fazer o bem, ter afeto, desenvolver fidelidade e exercer solidariedade.
No entanto, permanece uma relação nem sempre fácil entre o “nosso” erro e o erro
dos “outros”. Existe uma tendência quase natural ao “encobrimento” das faltas
através de mentiras com vistas a esquivar as regras da justiça.
Quando os “outros”
erram, tende-se a exigir deles um rigoroso cumprimento das regras e das normas
de justiça estabelecidas. E, no espírito de vingança, espera-se rigorosa
cobrança de sentenças. Todavia, quando de trata dos “nossos” erros, cria-se uma
expectativa de esperar um procedimento de muita misericórdia. Tal ambiguidade
constitui, certamente, uma das grandes contradições presentes na vida dos
cristãos: creem no valor da misericórdia de Deus, mas, não praticam amplamente
a misericórdia em relação a todas as outras pessoas. Enquanto se aguarda
rigoroso cumprimento das regras de justiça diante das obras praticadas pelos
outros, espera-se toda a misericórdia da parte deles.
“A tradição ocidental é de fazer a justiça de Deus um tipo de vigilância
constante e irrestrita por defeitos no pecador. Afirma-se que há uma lei de
justiça eterna que exige a punição do pecador de modo absoluto, de modo que
Deus sendo justo, não perdoaria livremente os pecados. Entretanto, essa não é a
justiça de Deus apresentada nas escrituras. A justiça de Deus é sempre seu
misericordioso resgate dos necessitados”.
Para apontar possível mudança
deste estranho procedimento, o Papa Francisco concluiu que uma das mais belas e
comoventes palavras do Evangelho e, cheias de misericórdia, foi enunciada por
Jesus Cristo: “Ninguém de condenou?” Diante do “não” explicitado, declarou: “Nem
eu te condeno”!
Ao alargar este aspecto, o pontífice se referiu ao conhecido tema das três
mulheres e dos três juízes, um paralelo dos procedimentos mais comuns de falta
de misericórdia na ação da Igreja:
a) O dos juízes corruptos, movidos pela
corrupção da rigidez, observadores legalistas que se pensam puros: a corrupção
os levava a uma vida dupla que, depois de condenação, iam procurar as vítimas
para se “divertir um pouco”;
b) O dos juízes idosos, que chantagearam
Suzana, movidos pela corrupção da luxúria, e que, por isso mesmo, se transformaram
em sujeitos ferozes e ruins;
c) O do juiz interpelado por uma viúva
pobre, apenas movido pela efetuação de bons negócios, “um corrupto de dinheiro
e de prestígio” que não sabia o que é misericórdia.
Os três juízes não foram
misericordiosos e, tampouco, compreenderam a misericórdia, porque eram
corruptos. Hoje, segundo o papa Francisco, também tantos juízes julgam, no
âmbito civil e no eclesiástico: não são justos, porque não são misericordiosos.
Há os viciados que tentam abusar dos que erraram (“um pecado dos mais graves”);
os mercadores que não apontam nenhuma esperança; e os rígidos, que cobram, dos
outros, o que escondem de si mesmos.
No entendimento do Papa Francisco,
“a
misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para
com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender,
converter e acreditar.”
Por outro
lado, o papa também reconhece que:
“a justiça,
por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar
para que ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a misericórdia
e o perdão, passa além da justiça. Isto não significa desvalorizar a justiça ou
torná-la supérflua. Antes, pelo contrário! Quem erra deve descontar a pena; só
que isto não é o fim, mas o início da conversão porque se experimenta a ternura
do perdão.
Assim,
prevalece na perspectiva do pensamento cristão a misericórdia como caminho mais
eficaz de ação entre as pessoas e brilha a experiência religiosa da
misericórdia de Deus como horizonte capaz de persuadir os seres humanos a
estabelecerem reatâncias diante das dissonâncias ocorridas, e, ainda, abrir
perspectivas libertadoras para maior qualidade humana.
O Papa
Francisco centraliza em muitas de suas homilias e escritos a dimensão fundamental
da misericórdia, estreitamente vinculada às raízes do cristianismo, como condição
e instrumento dos melhores frutos para que as pessoas possam reconciliar-se não
somente entre si, mas, também com a natureza e com Deus;
Na busca de
reconciliação, a misericórdia constitui um pressuposto ou uma condição básica capaz
de levar à efetuação de um processo justo de integração e, o que é mais
importante, é capaz de abrir perspectivas novas de transcendência. Se de um
lado as tão amplas e variadas feridas causadas pelos desencontros humanos ferem
a dignidade humana, por outro lado, a misericórdia, certamente, se torna uma
salutar e efetiva mediação para uma reconciliação e, com resultados mais
eficazes do que os da severidade das exigências de reparação.
B I B L I O G R A F I A
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário
de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1962, p.565-568.
VIDAL, Marciano. Para
conhecer a ética cristã. São Paulo: Paulinas, 1937.