quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O peso enfadonho das leis



            Bem sabemos do peso do “sim” e o do “sim, Senhor!”. No entanto, temos que lidar todos os dias, com o desconforto dos inúmeros “nãos”. Uns, pela palavra; e outros pelos gestos ou pela linguagem não verbal. O pior é que tende a aumentar a incidência de muito “sim”, que, na prática, significa um escancarado “não!”, ou mera protelação do que é prometido.
            Basta observar uma criança: o quanto requer de insistentes repetições de “nãos” para que venha a apresentar elementares indicativos de que aprendeu a respeitar limites e assegurar mais integridade à sua vida. São milhares de “nãos”, exaustivamente repetidos, que se fazem necessários para que ela aprenda a repartir, a respeitar, a conviver e a colocar-se no lugar de outras crianças, a fim de se tornar suportável nas primárias condições de tolerância em torno dos brinquedos e dos atos de beber, comer e constituir-se referencia de afetos e admirações menos egocêntricas.
            Igualmente sabemos que as leis são sempre ambíguas. São criadas e implantadas para resolver problemas de convivência e, geralmente, a partir de práticas ou intuições que foram exitosas em ocasiões e momentos que já passaram. Todavia, como a sociedade muda constantemente, e, a cada dia se torna diferente dos momentos que ensejaram a implantação das leis, estas tendem a ficar obsoletas e a facilitar vantagens aos legisladores ou a grupos de maior poder de barganha, que se impõem sobre os demais, e fazem prevalecer leis que favoreçam suas próprias ambições, muitas vezes, meramente ideológicas. Por isto, sempre se evidencia a pergunta paradoxal: leis de quem; para quem; e, por quê?
            Os fracos e perdedores precisam inevitavelmente resignar-se com os “nãos”, mas, nem todos se conformam à submissão das leis dos mais fortes, e partem para vinganças e agressões verbais e até físicas. Neste vai-e-vem, a inadequação das leis estabelecidas força grupos a fazer vigorar outras leis, não explicitadas oficialmente, mas, que lhes favoreçam maior alcance de seus interesses. Nisto, porém, já despertam reação contrária por ferir, inevitavelmente, interesses de outros grupos ou pessoas. Trata-se de briga a enrodilhar-se numa espiral que não tem fim.
Se a alegria e satisfação de alguns, na apelação às leis jurídicas estabelecidas representa vitória, êxito e conquistas, o fracasso e a derrota dos outros, vai despertar-lhes imediatos mecanismos e procedimentos de revide, que, em casos mais extremos, implicam na eliminação da vida dos adversários vitoriosos.
Como o jogo de emulação na exploração das leis ou, na melhor e mais astuta artimanha valer-se das lacunas ou detalhes ambíguos e de omissão contidas nestas leis, estas tendem a favorecer vitórias, não pelo certo, verídico, reto e bom procedimento, mas pela astúcia dos argumentadores, que, por sua vez, já não agem segundo o idôneo juramento da sua profissão, mas, pelo que rende mais dinheiro.
 Neste deslocamento, vemos referendar-se a constatação de que toda violência gera outra violência. Não convém, tampouco, induzir os perdedores a apelar aos poderes divinos e superiores, sob o pressuposto de incumbir o próprio Deus para que efetive uma vingança honrosa e capaz de humilhar quem triunfara.
 E quantos pregadores invocam vistosas e revanchistas vinganças da parte de Deus, com olhos fitos em inimigos personificados, que estariam agindo sob os impulsos do Maligno. O diabo passa, assim, a constituir-se na vítima expiatória dos desencontros da fragilidade humana e da exploração dos magoados perdedores.
Ainda em nossos dias, repete-se antigo dilema que Jesus Cristo enfrentou diante do esvaziamento das ainda mais antigas regras ético-religiosas dos “Dez Mandamentos”. Ao perceber que o legalismo de longos séculos lhes acrescentara mais de seiscentas outras regras, a fim de não se perder nada da precípua riqueza religiosa e humana destas dez regras, acabaram todos estes acréscimos, - com as dez leis, - se prestando muito mais para frear, coibir e imobilizar, do que para promover elementares gestos humanitários.
Jesus Cristo tocou, sem rodeios, no âmago da questão: se as regras não partirem do coração, não solucionam em nada as fraquezas humanas.
 Em nossos dias o místico alemão Anselm Grün costuma salientar que os cristãos não carecem de espiritualidades do “alto”, a dos poderes, dos desejos, das ambições, das conquistas, mesmo precipuamente religiosas, e que leva a insistentes apelos de rezas, de novenas, de promessas, de discursos inflamados, e, muita conversa fiada, - mais persuasiva do que as antigas apelações sofísticas, - com o intuito de dobrar Deus sobre suas vontades, e, com aquele ar de finalmente tê-lo superado, enfim, receber o atendimento do que insistentemente lhe fora solicitado. Contudo, não rezam nada para serem melhores em seus procedimentos, nem para sanar os múltiplos problemas subjetivos.
O referido místico indica o caminho da espiritualidade de “baixo”, - o caminho mais coerente ao de Jesus Cristo, - que remete a lidar com a fraqueza interior, experimentada lá nos porões da intimidade, na miséria humana que ali se manifesta, pois, somente ali, neste âmago de incontáveis limitações e incoerências, é que se encontra aberta a porta do Senhor e que permite pedir uma ajuda a fim de ajustar aquela bagunça toda e que impede que o coração fale mais alto do que os problemas, as decepções, os desencontros, os deslocamentos, as projeções e as neuroses.

Lei do coração é um belo itinerário para um caminho místico, pois pode levar-nos a agir muito mais em torno da vida e suas anelantes manifestações do que em torno de questiúnculas relativas ao que pode, e, que não pode ser feito. Há acentuada tentação de explorar pessoas e a infantilizá-las pelo atrelamento de leis meramente cerceadoras de pretensos salvadores em torno do que os súditos devem ou não devem fazer. Amor, fraternidade, sinceridade e solidariedade, implicam em passos para além das leis, sejam explícitas ou implícitas, públicas ou não codificadas em textos legislativos.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Bens e Valores



Pelo modo como as culturas humanas se engendraram,
Encontram-se as inumeráveis e culturais manifestações,
Intensamente recriadas pelo muito que perpetraram,
Para alastrar nos advenientes as melhores orientações.

Por longos séculos os bens visavam à vida,
Estreitamente ligada às condições da natureza;
E os valores excelsos que davam sentido à lida,
Eram os provindos do Deus da onipotente realeza.

Os bens e os valores propiciaram, nos humanos mortais,
Memórias, obras, regras, ações e ricos mundos simbólicos,
Mas, nosso tempo escorropichou os mundos ancestrais,
E nos envolveu em processos culturais pouco sistólicos.

Sob nova referência dos apelos últimos da linguagem,
Transparece que o humano agir no alcance de valores,
Encontra na técnica um sentido de inusitada miragem:
Que no entorno dos bens, ocorre o apogeu dos pendores.

Universalizados nas redes mundiais da “tecnociência”,
Minguaram as totalizantes explicações religiosas locais,
E da fé impregnada somente pela técnica da eficiência,
Resultam parcos e minguados efeitos dos religiosos rituais.

Assim a ética da técnica afeta até mesmo os neurônios cerebrais,
E os leva a produzir comandos do saber de controle e dominação,
Para agir sobre a natureza, doenças e incontáveis bens materiais,
Mas deixa as religiosas instituições inertes e sem poder de agregação.

Forçadas a buscar na diversidade das mil ofertas de sentido,
Num mundo simbólico que tudo privatiza conforme o atrativo,
Migram os crentes pelos propalados pregões de algo perdido,
Onde tampouco encontram o almejado efeito do rápido lenitivo.

No profundamente humano, os atuais cristãos buscam o mediador,
E longe da sacralidade dos categóricos rituais do fundamentalismo,
Podem manifestar o divino que impregna o humano, mesmo na dor,
E se transformar em sacramento de Cristo para um agir de altruísmo.








Fulgores



Eventuais sonhos para além do consumismo inveterado,
Requerem importantes medidas nos cegos aficionados:
Novo aporte de vida, mais frugal e muito mais moderado,
Para não extenuar o planeta com poucos empanturrados.

Ainda convém tanto imperialismo colonial e virtual,
A subjugar multidões na desumana e vil dependência,
Motivada por propaganda enganosa e atrevida, sem igual,
E na eructação dos mais fortes sem nenhuma decência?

Quão apreciáveis seriam estalos de um bom-senso perspicaz,
A abrir os olhos obcecados dos compulsivos consumistas,
Capazes de mobilizar um modo de vida mais modesto e eficaz,
Para que os pendores apontem melhores contextos futuristas!

O quase impossível e impensável de se aguardar:
A conversão do enfoque dos detentores do poder,
Poderia, mais do que multidões humanas bajular,
Elevá-las à digna participação em seu proceder.

A democracia deixaria, então, de ser falácia enganosa,
E levaria a circular nos recônditos vasos da circulação,
Não somente a virtualidade da alimentação venosa,
Mas, o brio solidário para elevar a humanização.

O mau agouro dos que nada querem partilhar,
Ainda que haurido com alheio sangue vertido,
Persiste na aleivosa pertinácia de amealhar,

Tudo o que, a duras penas, por outros foi construído.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Flores



Simplesmente flores,
De inumeráveis formatos,
E nas mui atrativas cores:
Alvo para incontáveis retratos!

Enlevam os sentimentos de prazer,
E, na correspondência ao discreto pendor,
Permitem que delas muito se possa dizer:
De espetacular encanto e de agradável odor.

Oxalá! Pudessem os humanos pendores,
Encantar mais do que a beleza dos jardins,
E produzir fartos e convincentes valores
Para amolecer os empedernidos confins.

Dos atentos olhos fitos,
Nas exotéricas seduções,
Das flores, sem ditos,
Nascem contemplações.

Porque não despertam
Os jardins dos belos prédios,
Bons sentimentos que alertam,
Contra os entrópicos tédios?

Quisera que o efeito das belas flores,
Pudesse o âmago do bom-senso ferir,
E não deixar os prepotentes alvores,
Em sofridos e explorados seres interferir.

Que a força persuasiva das flores,
Convença os prepotentes ambiciosos,
A não encampar os humanos valores,
Nem, tampouco, os sonhos auspiciosos.

Quisera também ver do reino das flores,
Toda exuberante variedade sob o céu anil,
Encher-me de todos os agradáveis odores,

Deste vasto e esplendido “berço varonil”!

domingo, 9 de fevereiro de 2014

A histriônica enrustida III



            Como poderia dona Brunilda estar constituída em histriônica enrustida? A aparente contradição deve-se ao fato de que toda a grandeza exteriorizada parece indicar uma realidade diametralmente oposta, porque está sempre voltada para o âmago da sua interioridade, e, nesta introspecção, futrica todos os dias na mesma labilidade de carências que não consegue preencher.
            A partir de algumas deduções hermenêuticas clássicas, dona Brunilda poderia ter sido criada com excessiva repressão sexual. No entanto, ao contrário da indicação psicoterápica freudiana, a compensação desta repressão parece não ter surtido o necessário efeito de diminuição da insaciável necessidade de se fazer importante.
Dona Brunilda casou, gerou filhos, chifrou o marido por longo tempo e, como troféu desta conquista, muitos velhos barbados se jactam de ter desfrutado das suas intimidades.
            A alegação médica de sofrer de fibromialgia concede à dona Brunilda uma carapuça muito confortável para justificar as dores inigualáveis que suporta em seu corpo. Seriam também as causas das paralisias bloqueadoras que a prendem por logos dias e semanas ao leito, como num último e sôfrego pedido de afeto e atenção?
            Talvez nem mesmo as explicações de Freud se mostrariam suficientes para elucidar o motivo dos estranhos sintomas de dores e paralisias, mas, dona Brunilda vive procurando orientações psicológicas e sabe, tanto quanto os psiquiatras, explicar com detalhados comentários, todas as pequenas nuances das extraordinárias dores que a afetam por todos os lugares do corpo, mas, também não deixa passar ao léu as possibilidades de falar dos desencantos diante de quem não lhe propiciaram o almejado prazer. E se as lamúrias desandam em torno dos que a ferram por trás, tampouco a levam a exigir outro lado e outros procedimentos. Dona Brunilda torna-se, todavia, insistente para receber um parecer ou sugestão a respeito do assunto abordado. O não fornecimento de explicações causa-lhe imediata alteração fisionômica para demonstrar insatisfação e passa a apelar sobre o porquê não constituir-se merecedora de mais atenção.
            Confessar a incapacidade de ajudá-la e sugerir-lhe consulta de profissional da área psiquiátrica ou psicoterápica, como muitos psiquiatras e psicólogos já fizeram com ela, leva-a sempre à mesma artimanha de insistir com as mais enfáticas e convincentes apelações, de que está ali, precisamente porque eles a teriam remetido e que somente ali encontraria alívio e cura. Semelhante ao carrapato que não solta o couro por qualquer ameaça, Brunilda sabe bajular com farta redundância para assegurar que é ali o melhor lugar para tratar-se com o melhor profissional, e, o único capaz de resolver seu transtorno.
            Como a aranha tenta encontrar vítimas desatentas para prendê-las na teia, dona Brunilda, tenta constantemente fazer circunlóquios para contar e recontar a gênese das suas dores. Em meio às lágrimas, consegue cruzar os limites das lamúrias e mescla fartas narrativas de auto-engrandecimento e rompantes sobre tudo quanto produz no trabalho e em favor das pessoas. Parece que a salvação do mundo depende precipuamente dela.

            Em suma, dona Brunilda anda todos os dias à procura de ajuda que possa solucionar seu caso, - que ela mesma considera dificílimo, - mas, evidencia claramente e por razões talvez inconscientes, que não deseja nenhuma ajuda. Quer somente sentir-se uma ninfa a ocupar a atenção de alguém que lhe facilite devaneios em torno das grandezas da dor ou das megalomanias do que fez e faz. Uma histriônica que sabe dramatizar grandes fantasias.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A histriônica enrustida II



            Na fenomenal capacidade de dramatizar, dona Brunilda mostra-se muito além e acima do que acontece com as outras pessoas. Sob a aparente e introvertida moderação, as descrição das façanhas, levam-na, contudo a se assemelhar a um controle remoto de duas teclas: acionar uma delas, desperta sua falácia sobre doenças, bem como as correspondentes curas milagrosas; e, se for acionada a outra tecla, só fala de grandezas e megalomanias do que fez. Nelas, todavia, deixa transluzir o que se torna muito escancarado e evidente: sua histeria histriônica de dramatizar tudo além das medidas.
            Sob a eventual alusão de fato que venha a acionar a tecla da doença, dona Brunilda manifesta uma peculiaridade precípua: diante de qualquer informação ou comentário de alguém, relativo à doença ou enfermidade de outra pessoa, - seja internada no Hospital, envolvida num acidente, ou acamada em casa, - encampa imediatamente o assunto e envereda para a narrativa, com todas as minudências e intermináveis floreios, como lidou com esta inusitada enfermidade, de sintomas similares, mas, de efeitos ainda mais graves e de riscos muito mais amplos do que aquela informação mencionada.
Dona Brunilda entra rápida no auge da exuberância patética e desanda a descrever enfaticamente como seu caso foi do limiar entre vida e morte, e, o que é mais bombástico, como sobreviveu, graças a um pequeno detalhe, aparentemente secundário, e que até o presumido médico, o melhor que se conhece na área, interpretou como o mais lídimo e espetacular milagre do qual tem conhecimento.
            A voz de dona Brunilda chega a ficar embargada quando passa a narrar cenas e ocorrências fantasiosas, abundantes lágrimas vertem dos olhos e seu semblante vai se ruborizando gradualmente até acabar em momentos de choro, porém, misturados com a efusiva conversa, solta, fluente e impregnada daquele ar de comoção de quem, na verdade, está apenas querendo embasbacar através da mendicância de afeto e atenção.
            O desencadeamento das descrições mirabolantes em torno dos imprevistos, dos detalhes e dos contratempos ocorridos na tragédia de dona Brunilda, costuma não apresentar espaços para uma eventual interlocução. O assunto somente pode vir a ser interrompido com o a introdução supina de outra conversa: como a de perguntar algo de outro tema, ou para desculpar-se com a menção de outro assunto antes de esquecê-lo, ou ainda, para alegar a necessidade de ir rapidamente embora a fim de atender outro compromisso urgente. Enquanto isso, a histriônica prossegue a narrativa de pelo menos mais um detalhe dramático do extraordinário episódio ocorrido com ela.
            O impressionante das ladainhas descritivas dos casos de enfermidade, é que as poças de sangue são sempre maiores do que a quantia total que poderia circular pelas veias da pessoa envolvida. Assim, dona Brunilda mente de forma altamente escancarada e realmente consegue confundir e persuadir as pessoas a ponto de levá-las a acreditar que suas descrições sejam pelo menos parcialmente verídicas. Nestas enrustidas manobras chama atenção de qualquer forma: ou pela compaixão e complacência que procura atrair sobre si com a dramaticidade dos sofrimentos, ou ainda pela forma como foi prestimosa e humanitária na prestação de serviço que salvou e que curou as pessoas das quais fala. É o chá que ela fez; é o comprimido extraviado que achou por um acaso, ou a técnica que utilizou no procedimento.
            Certo dia, acometida por um panarício no dedo indicador, fez este dedo tornar-se ao longo de muitas semanas o único e central assunto de suas conversas e gerar certa consternação e empatia coletiva da comunidade. Com o dedo envolto em fartas ataduras, sabia dona Brunilda, como somente ela, explorar o universo escondido e misterioso sob aquele curativo e recontar os incontáveis imprevistos decorrentes desta pequena faceta do dedo: desmaios decorrentes das dores insuportáveis, entradas em coma; inúmeras cirurgias, remoções a Unidades de Tratamento Intensivo e a transferência para, finalmente, com os melhores médicos da capital, ser milagrosamente desviada da morte iminente.

            

Sabor



A ação poderosa das substâncias sápidas,
Ao atingir a língua, o paladar ou o talante,
Recebe em velocidades muito mais rápidas,
Respostas diligentes do satisfeito alarmante.

Acostumado a desapontar-se com o insosso,
Quer empanturrar-se do gosto saboroso;
E no desprezo do insípido de mau endosso,
Reflete no olhar o semblante desgostoso.

Como aurora que irrompe na escuridão,
Deseja encher-se da sensação gostosa,
Para, enfim, saturar-se à exaustão,
Desta excelsa dádiva, tão meiga generosa.

Presente em tantos e tão variados produtos,
Está o sabor, além das almejadas degustações,
A apresentar, nos mais estranhos redutos,
O sinal inconfundível das boas reputações.

Se tantos sabores saciam carentes e sedentos pendores,
Por que não ser tempero para tantos olhares nada sápidos,
Que já perderam da vida a degustação dos melhores penhores,
E carecem de socorros humanos imediatos e muito rápidos?

Se milhões de viventes anelam pelos bons sabores,
Que permitam suplantar as insossas convivências,
Por que não pensar mais em propiciar-lhes alvores,
E deslocar a cega preocupação pelas próprias carências?

Como o sal constituía para povos ancestrais,
Conceituado e excelso produto para conservar;
Possa, nossa vida, sem honrarias magistrais,
Prestar-se para boas relações preservar.





quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A histriônica enrustida



            Há quase quatro décadas atrás o saudoso sociólogo Dr. Pe. Ernesto Goeth, admirado professor da PUC de Porto Alegre, costumava alertar aos que viessem atuar em ambientes sociais para que tivessem muitas e especiais precauções na lida com mulheres histéricas, muito mais comuns do que se imaginava. Seriam pessoas altamente tinhosas para infernizar a vida.
            Na época, dona Fidência, vivendo a crise psico-social da proximidade dos cinqüenta anos, mesmo com marido e filhos adultos e casados, constituía um exemplo de quem sabia tumultuar exaustivamente a vida do então pároco no bairro Passo das Pedras, padre Roberto. Mesmo que todos a definissem como histérica, não deixava de provocar verdadeiros sururus por todo lado.
            Por mais que padre Roberto a mandasse seguidamente para o quinto dos infernos, voltava todo dia e, diversas vezes ao dia, para falar com ele. O pouco que se podia saber destes encontros eram os gritos do padre ameaçando chamar a polícia ou de mandá-la a coices para fora da sala. Nada dava efeitos eficazes, e, toda vez que a campainha tocava a imaginação já indicava quem era.
 Dona Fidência não dava sossego de forma alguma ao corpulento careca padre Roberto. Como católica praticante, dona Fidência foi paulatinamente descobrindo táticas mais sutis para provocar o padre e deixar sua careca ruborizada de incontida raiva.
Certo dia, em plena celebração, dona Fidência foi sentar-se na parte central do primeiro banco, e ali ria e se mexia para todo lado a fim de chamar a atenção do olhar do padre sobre si. Ao perceber que ele a olhava com mil censuras, puxava a saia para cima das pernas e as abria escancaradamente para os lados e, com um detalhe, sem roupa íntima.
            Com a testa ainda mais ruborizada, padre Roberto, depois dos repetidos procedimentos similares de dona Fidência, pediu para que alguns homens a retirassem daquele ambiente. Chegando à porta, desvencilhou-se dos acompanhantes e saiu correndo rua afora e gritando por socorro, com toda a potência dos seus gritos, sob a alegação de que o padre quis estuprá-la... Na celebração seguinte, voltou ao mesmo lugar e, depois de iniciada a celebração, puxou da bolsa uma lâmina de barbear e se cortou os pulsos para chamar atenção tanto do padre quanto dos outros e merecer o necessário aporte para ser levada rapidamente a um pronto-socorro. Repetiu a cena muitas outras vezes, mas sempre quando estava segura do atendimento imediato. Assim, a toda hora, ocorria alguma novidade envolvendo a dona Fidência.
            O andar da vida levou à efetiva constatação de que pessoas com dissociações mentais de fato conseguem tirar o sono, tanto pela astúcia de suas artimanhas, quanto pela maldade do que inventam. Esta labilidade emocional já recebeu diversas explicações desde as que partem do termo grego histeria, que significa útero.            
Num momento se pensava que disfunções no estágio uterino seriam as causas desencadeadoras dos sintomas clássicos de mudanças rápidas, afetando principalmente mulheres e envolvendo-as em posturas variadas como sonambulismo, paralisia, cegueira, dores intensas e excessiva sensibilidade às dores.
 Em outro momento observou-se que os fatores de predisposição à histeria teriam causas muito mais psíquicas do que físicas. Dependeria essencialmente de um tipo de ambiente de convivência de intensa repressão sexual. Sob este aspecto, estados emocionais conseguiriam levar o sistema nervoso a alterar suas costumeiras enervações neurotransmissoras e gerar sinapses com alterações de informação ao cérebro. Seria como pessoa alcoolizada ou drogada, que visualiza imagens não existentes, mas as visualiza como reais e objetivas.
            Outra peculiaridade da histeria, no entanto, é a manifestação histriônica, que foge dos tradicionais sintomas e leva pessoas a viver como se estivessem num palco, diante de uma grande platéia, e ali tivessem que vivenciar intensamente o papel encenado a ponto de exagerar exaustivamente, e, ao máximo, tanto na argumentação quanto na dramatização do que encenam.
            Na vida real a convivência com a proximidade de pessoas desta natureza dramatúrgica leva ao limiar da paciência: parece que todos os neurônios das histriônicas trabalham em sentido contrário ao das outras pessoas e levam estas pessoas a falar o oposto do que ouvem, a dizer o contrário do que pensam e a justificar essencialmente o inverso do que manifestam. Chamá-las de mentirosas, fofoqueiras, linguarudas, queixosas, falsas, traiçoeiras, lamuriosas e outra dúzia de termos qualificativos não abarca suficientemente os poderes perversos que exercem nos ambientes de convívio.
            Na cidade de Morocó, uma afamada histriônica, chamada Brunilda, vive intensamente os traços da dramatização e sabe como ninguém, colocar-se de vítima e, ao mesmo tempo, de atacante voraz e sorrateira para condenar tudo quanto não concorre à sua presumida megalomania, ou seja, como só pensa grandeza, nada é pequeno, nada é simples, nada é fácil e nem discreto. Em tudo há dramatização sangrenta; em todos os gestos há ameaças ao seu status, à sua função e ao seu bom nome.
Brunilda não é nenhuma artista de palco, mas, domina melhor do que todos eles o malabarismo encenador dos mínimos detalhes para transformá-los em fatos altamente trágicos e comoventes. Qualquer espinho tirado do dedo vira cirurgia de alto risco e de incontáveis imprevistos para além dos choques anafiláticos e das paradas cardíacas. As dores que alega suportar são de causar comoção efusiva e consternação contagiante. Ela, no entanto, não deixa de ser a heroína dos êxitos e da salvação do que estava na iminência de perder-se para sempre. Sabe elogiar seus atos e suas idéias, bem como seus atos heróicos, com incontáveis detalhes. Já que os outros não destacam seus méritos e suas conquistas, ela mesma os enaltece aos píncaros das mais altas benemerências e honras.
            Uma eventual remessa de dona Brunilda ao “quinto dos infernos”, com certeza, reverteria em procedimento decepcionante, pois, ao retornar, voltaria exaltando ainda mais seus megalomaníacos pendores e suas incontidas grandezas, e, o que seria pior, numa dramática encenação mostraria em detalhes como derrotou o capeta, e conquistou um lugar um pouco acima de Deus. Como não condoer-se com as dramaticidades megalomaníacas da dona Brunilda? Ai, que dó!

Nem a terapia do analista de Bagé, a de aplicar alguns “joelhaços”, daria resultado relaxante, porque, também neste caso, encontraria um novo enredo magistral para mais uma encenação de superação e de vitória brilhante.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A fé poderosa de dona Benta



Com o código genético recheado de primariedade espanhola, dona Benta, volumosa e ciosa do seu patamar espiritual, é, no entanto, bem mais ágil do que a cobra “Bico de Jaca” para erguer a cabeça e, do alto dos seus exotéricos poderes espirituais, saltar para desferir um bote certeiro de condenação de tudo quanto considera inferior às divinas leis espirituais.
A língua da dona Benta, muito mais versátil que a da perigosa peçonhenta, consegue prender, na rapidez dos movimentos, o olhar das vítimas e hipnotizá-las para uma imobilidade de apenas acatar as ditas “verdades verdadeiras”.
Distante da memória do homônimo São Bento, que ficara conhecido e muito lembrado pela expressão “Ora et Labora” (Reza e trabalha), dona Benta preenche seus dias com devoções. O nome que lhe fora auferido no batismo, certamente representou a melhor adequação do que seus pais desejaram a seu respeito. Na vida real e efetiva, entretanto, dona Benta pendeu para outro caminho de piedade diverso da tradição. Trata-se de uma piedade sem espiritualidade, e, ineficaz para movê-la na vida como discípula de Jesus Cristo, porque enveredou para uma espiritualidade balofa, exterior, mágica e arrogante, donde dispensa as mediações apontadas por Cristo.
O nome da dona, por outro lado, combina perfeitamente com seus rituais cotidianos de muitos gestos, de genuflexões, de inclinações, benzeduras e de outros múltiplos malabarismos rituais diante do televisor, a fim de captar toda a riqueza da bênção que o padre Robson emite em suas verborragias televisivas e, com aquele ar de resignado e parcimonioso servidor, humildemente solícito e pronto para fazer o que o divino pai eterno lhe pede: abençoar a água que os devotos colocaram sobre os televisores, a fim de que eles possam sorver aos ínfimos e pausados goles aquele precioso néctar divino, e assim, captar toda a plenitude das forças dos mais escondidos segredos dos altos céus, contidos nesta generosa dádiva da oferenda divina.
 Junto com os rituais de ambíguas apelações religiosas, sempre vêm discretamente explicitado o que o divino pai eterno espera em troca do seu gratuito e espontâneo procedimento milagroso: que os fiéis agraciados com a água abençoada façam generosas doações, tanto quanto lhes é possível, em favor da construção da sua nova e futura residência, logo ali, no santuário de Trindade. Porventura, não estaria ele, o divino pai eterno, sendo merecedor da melhor residência deste paradisíaco “berço esplêndido” que é o Brasil?
Em troca da benfazeja oferta em favor da merecida e suntuosa residência, ele, o divino, já adianta algum sinal de cortesia, - o que já deve ter aprendido com políticos brasileiros – e deixa escorrer meloso como o mel sobre as barbas do novo profeta, a prateada água que faz borbulhar milagres de dar inveja aos outros que não sorvem estes preciosos goles impregnados de virtualidades espirituais, mas, fortes como torrentes de águas caudalosas. Tudo isto, contido num copo de água, deixado sobre o televisor.
Afinal, não mereceria tal benemerência divina também uma proporcional fartura de rituais, de piedosas inclinações, de genuflexões e malabarismos de gestos, a fim de solenizar a degustação prazerosa desta essência exotérica de milagres e graças?
A torrente de irradiação dos estupendos poderes divinos e milagrosos, que atalham os outros penosos caminhos da fé daqueles que, no discipulado de Jesus Cristo desejam encontrar alento, motivações e as mínimas forças para ainda apostar num mundo melhor, promove dona Benta a tão fácil e fictício poder superior.
Por presumir-se privilegiada neste caminho emotivo, fácil e intimista, dona Benta se constituiu a si mesma no patamar hegemônico da espiritualidade da comunidade católica. É, no entanto, uma espiritualidade que a torna vaidosa, cheia de si mesma e gulosa, a ponto de propiciar um estranho visual, uma vez que seus óculos se parecem a uma pequenina fresta na parede e salientam sobre os avermelhados pômulos faciais, a aparente fissura, por onde dona Benta visualiza tudo o que se passa no derredor. Este olhar escondido indica, todavia, uma analogia dos antolhos que limitam sua visão, porquanto enxerga tudo pela frincha fixa que propicia, apenas e inevitavelmente, a mesma visão parcial: tudo o que é novo e diferente do que pensa, está errado!

Sob a aparente, santa e piedosa enlevação divina, dona Benta desperta nas pessoas mais sentimentos de consternação do que de encantamento pela leveza do seu coração. Afinal, poderia viver mais feliz, dar-se bem com os filhos e com a vizinhança. Nas suspeitas sobre dona Benta persiste uma dúvida: será que ainda chegará um dia a persuadir-se de que pode trilhar um modo de vida bem mais simples e bem mais humana, capaz de transluzir a premonição de “um novo céu e de uma nova terra” e não apenas o cego obstinado poder?

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Uma Constituição intrigante



            Da antiga herança bíblica, lembra-se, ainda hoje, uma grande Constituição, a promulgada por Moisés no alto da Montanha (10 Mandamentos), que desejava unir distintas tribos em torno de uma mesma meta: que elas se respeitassem e que fossem cordiais entre si, na difícil possibilidade de conquistar um chão para viver. O apresentador da Constituição desejava ardentemente o amparo de Deus para o êxito do grande sonho despertado naquelas tribos envolvidas.
            Junto com o acréscimo posterior de muitas outras leis, visando ratificar e alargar ainda mais e melhor aquela Constituição, vieram também deduções teológicas. Uma delas, e que ainda continua a impor-se diante das incontáveis outras Constituições promulgadas em nossos tempos, é a de que Deus abençoa pessoas com prosperidade material e com riquezas. Sem demora, evidenciou-se que pessoas pobres e estéreis constituíam um grupo de pessoas “malditas” por Deus e, por isso, elas ficavam relegadas à própria sorte, porque também a sociedade que se auto-interpretava abençoada, as excluía de sua convivência.
            Profetas, como Joel, tentaram despertar alguma pequena esperança naqueles considerados “malditos de Deus”. Apontavam que esta frágil esperança de amparo por parte de Deus, ainda poderia fomentar e fazer evoluir uma condição humana, na qual, eles também poderiam ser abençoados. Os profetas procuravam, igualmente, mostrar que até mesmo de pequenos e insignificantes grupos poderia gestar-se uma opinião capaz de subverter a teologia oficial da retribuição e da prosperidade material, como os mais evidentes sinais da bênção de Deus.
            Muitos séculos se passaram até que, novamente no alto de um monte, alguém apresentasse outra Constituição, não mais para os já presumidos abençoados, mas para as multidões dos “malditos” que não tinham voz e vez com ninguém. Tratava-se da promulgação da conhecida Constituição de Jesus Cristo (Bem-Aventuranças), altamente subversiva para os abençoados. Surpreendentemente, o promulgador desta Constituição inverteu o referencial dos abençoados, e chamou de felizes os grandes grupos humanos, classificados como “malditos”, porque neles constatou algo inusitado. Mesmo na exclusão social e, na pior pobreza, ainda manifestavam algo muito valioso em seu interior: contra tudo e contra todos, admitiam a esperança de que Deus, na verdade, poderia fazer algo para ajudá-los a terem vida mais digna.
            Como poderiam reagir os abençoados? Sabemos muitas coisas a respeito de como procederam diante daquela Constituição. O mais impactante foi que Jesus Cristo convidava estes “malditos” a serem protagonistas da implantação de uma mudança teológica e efetiva na organização da vida social. Poucos séculos de acirrada perseguição e difamação dos defensores da nova Constituição ficaram para trás e veio, gradualmente, a ratificação desta Constituição, porém, adaptada aos conceitos imperialistas indo-europeus e romanos de bênção. Dali para frente, a história registrada em livros, deixou fartos elementos de como este processo se desencadeou.
            Hoje, passados mais de dois mil anos da promulgação das regras subversivas de Jesus Cristo, não somente os principais artigos componentes da sua Constituição, mas, também a pessoa Dele prossegue sendo adaptada ao velho discurso teológico-religioso: mera fonte intimista de bênção e de acessos exotéricos para curas, milagres e muita conversa enganosa de prosperidade material! Tudo no mais lídimo processo de separação e de culpabilidade de quem não se submete aos ditames da bênção.
 Afinal, até mesmo as disputas acirradas e fanáticas em torno do aumento do rebanho – e como as “ovelhas” são disputadas! – revelam que na motivação do aumento das ovelhas salvas e abençoadas, subjazem interesses ambíguos de prosperidade material. Por outro lado, persiste e se alarga a antiga e crassa teologia que arrebanha mais para a prosperidade dos interesseiros do que por alguma motivação de discipulado segundo a constituição de Jesus Cristo a fim de envolvê-los na lida com a escancarada condição humana, tão injustamente contraditória sob a égide da bênção.
Sobra, pois, a esperança de que a milenar constatação de um “pequeno resto” com virtualidades de ainda demonstrar abertura de motivações para algo novo e diferente: lidar com um cotidiano extremamente difícil e se mover por sinceros desejos de ajudar na edificação de uma sociedade não mais dividida entre “abençoados” e “malditos”. A sensação, no entanto, é a de que os muitos “abençoados de Deus”, na verdade, - como pensam precipuamente e muito em si mesmos, - já não indicam esperanças, por tênues que possam evidenciar-se, para os malditos de nossos dias!
           



<center>INDIFERENÇA SISUDA</center>

    O entorno da vida cotidiana, Virou o veneno que dimana, A endurecer os sentimentos, Perante humanos proventos.   Cumplicidad...