Bem sabemos
do peso do “sim” e o do “sim, Senhor!”. No entanto, temos que lidar todos os
dias, com o desconforto dos inúmeros “nãos”. Uns, pela palavra; e outros pelos
gestos ou pela linguagem não verbal. O pior é que tende a aumentar a incidência
de muito “sim”, que, na prática, significa um escancarado “não!”, ou mera
protelação do que é prometido.
Basta
observar uma criança: o quanto requer de insistentes repetições de “nãos” para
que venha a apresentar elementares indicativos de que aprendeu a respeitar
limites e assegurar mais integridade à sua vida. São milhares de “nãos”,
exaustivamente repetidos, que se fazem necessários para que ela aprenda a
repartir, a respeitar, a conviver e a colocar-se no lugar de outras crianças, a
fim de se tornar suportável nas primárias condições de tolerância em torno dos
brinquedos e dos atos de beber, comer e constituir-se referencia de afetos e
admirações menos egocêntricas.
Igualmente
sabemos que as leis são sempre ambíguas. São criadas e implantadas para
resolver problemas de convivência e, geralmente, a partir de práticas ou
intuições que foram exitosas em ocasiões e momentos que já passaram. Todavia,
como a sociedade muda constantemente, e, a cada dia se torna diferente dos
momentos que ensejaram a implantação das leis, estas tendem a ficar obsoletas e
a facilitar vantagens aos legisladores ou a grupos de maior poder de barganha,
que se impõem sobre os demais, e fazem prevalecer leis que favoreçam suas
próprias ambições, muitas vezes, meramente ideológicas. Por isto, sempre se
evidencia a pergunta paradoxal: leis de quem; para quem; e, por quê?
Os fracos e
perdedores precisam inevitavelmente resignar-se com os “nãos”, mas, nem todos
se conformam à submissão das leis dos mais fortes, e partem para vinganças e
agressões verbais e até físicas. Neste vai-e-vem, a inadequação das leis
estabelecidas força grupos a fazer vigorar outras leis, não explicitadas
oficialmente, mas, que lhes favoreçam maior alcance de seus interesses. Nisto,
porém, já despertam reação contrária por ferir, inevitavelmente, interesses de
outros grupos ou pessoas. Trata-se de briga a enrodilhar-se numa espiral que
não tem fim.
Se a alegria e satisfação de alguns,
na apelação às leis jurídicas estabelecidas representa vitória, êxito e
conquistas, o fracasso e a derrota dos outros, vai despertar-lhes imediatos
mecanismos e procedimentos de revide, que, em casos mais extremos, implicam na
eliminação da vida dos adversários vitoriosos.
Como o jogo de emulação na exploração
das leis ou, na melhor e mais astuta artimanha valer-se das lacunas ou detalhes
ambíguos e de omissão contidas nestas leis, estas tendem a favorecer vitórias,
não pelo certo, verídico, reto e bom procedimento, mas pela astúcia dos
argumentadores, que, por sua vez, já não agem segundo o idôneo juramento da sua
profissão, mas, pelo que rende mais dinheiro.
Neste deslocamento, vemos referendar-se a
constatação de que toda violência gera outra violência. Não convém, tampouco, induzir
os perdedores a apelar aos poderes divinos e superiores, sob o pressuposto de incumbir
o próprio Deus para que efetive uma vingança honrosa e capaz de humilhar quem
triunfara.
E quantos pregadores invocam vistosas e revanchistas
vinganças da parte de Deus, com olhos fitos em inimigos personificados, que estariam
agindo sob os impulsos do Maligno. O diabo passa, assim, a constituir-se na
vítima expiatória dos desencontros da fragilidade humana e da exploração dos magoados
perdedores.
Ainda em nossos dias, repete-se
antigo dilema que Jesus Cristo enfrentou diante do esvaziamento das ainda mais antigas
regras ético-religiosas dos “Dez Mandamentos”. Ao perceber que o legalismo de
longos séculos lhes acrescentara mais de seiscentas outras regras, a fim de não
se perder nada da precípua riqueza religiosa e humana destas dez regras,
acabaram todos estes acréscimos, - com as dez leis, - se prestando muito mais
para frear, coibir e imobilizar, do que para promover elementares gestos
humanitários.
Jesus Cristo tocou, sem rodeios, no
âmago da questão: se as regras não partirem do coração, não solucionam em nada
as fraquezas humanas.
Em nossos dias o místico alemão Anselm Grün
costuma salientar que os cristãos não carecem de espiritualidades do “alto”, a dos
poderes, dos desejos, das ambições, das conquistas, mesmo precipuamente
religiosas, e que leva a insistentes apelos de rezas, de novenas, de promessas,
de discursos inflamados, e, muita conversa fiada, - mais persuasiva do que as
antigas apelações sofísticas, - com o intuito de dobrar Deus sobre suas
vontades, e, com aquele ar de finalmente tê-lo superado, enfim, receber o
atendimento do que insistentemente lhe fora solicitado. Contudo, não rezam nada
para serem melhores em seus procedimentos, nem para sanar os múltiplos
problemas subjetivos.
O referido místico indica o caminho
da espiritualidade de “baixo”, - o caminho mais coerente ao de Jesus Cristo, - que
remete a lidar com a fraqueza interior, experimentada lá nos porões da
intimidade, na miséria humana que ali se manifesta, pois, somente ali, neste
âmago de incontáveis limitações e incoerências, é que se encontra aberta a
porta do Senhor e que permite pedir uma ajuda a fim de ajustar aquela bagunça
toda e que impede que o coração fale mais alto do que os problemas, as decepções,
os desencontros, os deslocamentos, as projeções e as neuroses.
Lei do coração é um belo itinerário para
um caminho místico, pois pode levar-nos a agir muito mais em torno da vida e suas
anelantes manifestações do que em torno de questiúnculas relativas ao que pode,
e, que não pode ser feito. Há acentuada tentação de explorar pessoas e a
infantilizá-las pelo atrelamento de leis meramente cerceadoras de pretensos
salvadores em torno do que os súditos devem ou não devem fazer. Amor,
fraternidade, sinceridade e solidariedade, implicam em passos para além das
leis, sejam explícitas ou implícitas, públicas ou não codificadas em textos
legislativos.