quarta-feira, 31 de outubro de 2018

RECORDAÇÕES DE ALEGRIA




Na memória de entes queridos,
Bons sentimentos enternecidos,
Reativam suas fartas bondades,
E alegram as meigas saudades.

Ensejam tão preciosa avaliação,
Sobre seu humanitário coração,
E motivam a virtual capacidade,
De elevar a singeleza e bondade.

O ciclo vital tão curto e frágil,
Nem ofusca sua lealdade ágil,
Para muitos sinais grandiosos,
E gestos dos mais prodigiosos.

Sua memória não deixa triste,
Nem fere a culpa que persiste;
Pois lembra fito de qualidade,
Com larga elevação na idade.

No seu desejo de vida intensa,
Floriu a solidariedade imensa,
Que produziu gestos perenes,
E atos para memórias solenes.

Coisas boas que se eternizaram,
Em gestos que tanto irmanaram,
Só podem merecer a vida repleta,
Que a felicidade divina completa.

Na expectativa dum reencontro,
Em definitivo lugar de encontro,
Poderá a felicidade eternizar-se,
Num gracioso confraternizar-se.

Sem prever momento derradeiro,
Sobre o rumo do nosso paradeiro,
Poder recordar seu mundo vivido,
Aciona um sentimento agradecido.








sexta-feira, 26 de outubro de 2018

HERMENÊUTICAS AMBÍGUAS




Elevação do senso comum de povo sabido,
Produz um satisfatório e confiante alarido,
Que interpreta os vastos desatinos sociais,
E aponta para novas conquistas triunfais.

Pena que a hermenêutica não apresenta,
Uma lídima solução racional que sustenta,
Ação sensata diante de atritos e contendas,
E inteligente para evitar brigas tremendas.

A interpretação tão certeira das maldades,
Eleva a hipocrisia das prováveis bondades,
Contra as tragédias atribuídas a perversos,
Sem que mudem procedimentos adversos.

Enquanto a inteligência refinada repousa,
O necessário processo racional não ousa,
Acionar lidas benéficas para a sociedade,
E delega poder a ousados em deslealdade.

Se a inteligência supõe soluções eficazes,
Não ajudam as reverberações mordazes,
Que ampliam mal-estar entre os humanos,
Tampouco os livram de tantos desenganos.

Capim novo no meio das pastagens velhas,
Pode atrair como encantadoras groselhas,
E restringir-se a enfeite de bolo atraente,
Pois persiste interpretação inconveniente.








quinta-feira, 25 de outubro de 2018

INFLEXIBILIDADE COMPORTAMENTAL




O crescente radicalismo,
Impregnado de cinismo,
E nociva inflexibilidade,
Acua pela barbaridade.

No fluir da linguagem,
Espada da mensagem,
A bênção e a maldição,
Ecoam em contradição.

Na contingência negada,
A regra sai confirmada,
E gesta insensibilidade,
Na agrura da sociedade.

Regras e contingências,
Sem as benemerências,
Afirmam estereopatias,
De obcecadas simpatias.

Na sólida inflexibilidade,
Uma palavra de maldade,
Amplia dor e sofrimento,
Sem trazer algum alento.

Inferioridade dominante,
Compensa fito mandante,
Para uma ação inflexível,
Dum sofrimento irascível.

Afinal, na inflexibilidade,
Não conta tempo e idade,
Nem morte do ambiente,
Dissociado com a mente.




quarta-feira, 24 de outubro de 2018

LAMÚRIAS PEGAJOSAS




Já lanhado pelos golpes lamuriosos,
E espezinhado com os ares furiosos,
Queria tanto ouvir trelas edificantes,
Sem estas querelas choramingantes.

Igual a ganidos de cães incomodados,
Ouço o fragor de sujeitos esganiçados,
Que se ajuntam no alvoroço queixoso,
E difundem nos ares um clima raivoso.

Inflexíveis em argumentos categóricos,
Aumentam seus rompantes retóricos,
Para justificar o absoluto da sua ideia,
E convencer ignóbil e suposta plateia.

Todos devem corresponder ao desejo,
Que mobiliza o seu idolatrado ensejo,
E sua querela queixosa e lamurienta,
Fica bramindo igual à onda violenta.

Nos caudais da raiva bem projetada,
A lenga-lenga da impotência ejetada,
Cria os bodes expiatórios da maldade,
Para ocultar desejada arbitrariedade.

A culpa deslocada sobre adversários,
Justifica os argumentos necessários,
Para explicar as desgraças reinantes,
E importunas pretensões mandantes.

Queria tanto ouvir o abrandamento,
Que lenificasse o descontentamento,
E aplacasse o ódio semeado ao vento,
Que devora toda esperança e alento.

LOLAMANIA EM ALTA




Na exaustiva loquacidade mórbida,
Prenhe de muita apelação sórdida,
Alarga-se uma oratória do possível,
Para ocultar o evidente impossível.

Mais do que o desejo de persuasão,
Importa a bem obliterada obsessão,
De que o novo engendra felicidade,
Bem-estar com larga prosperidade.

Sem a memória dos ódios ativados,
Emergem e agem por todos os lados,
Desalentos com os anelos preteridos,
E, inoperância de discurso proferido.

Da loquacidade indutora de euforia,
Não advém nenhuma efetiva alegria,
Pois, volátil como nuvem passageira,
Deixa a maior massa popular na eira.

Fluem então mobilizações primárias,
Insensíveis às prescrições ordinárias,
A reproduzir velhas táticas de antanho,
Que agridem todo conhecido e estranho.

Na patologia das manhas de muita fala,
Insensatez que sem medida se propala,
Propugna um alto e requerido respeito,
E dispara tiro certeiro e mortal no peito.

A dignidade humana desejada a poucos,
Alimenta multidões de muitos amoucos,
Que ofendem, brigam, muito humilham,
Apenas por ideário alheio que partilham.

Na falada evolução do gênero humano,
Fica complicado aglutinar o agir insano,
Que semeia tanto ódio por mera paixão,
E, é inócuo para disseminar compaixão.






SENTIMENTOS FANATIZADOS




Na contingência da finitude,
Fala mais alto que a virtude,
Toda articulação fanatizada,
Duma ambição mimetizada.

O bom-senso e ponderação,
Atrelados à procrastinação,
Cedem lugar ao desrespeito,
Com ódio aflorado do peito.

Os bons valores da religião,
Viram discurso de ocasião,
E o efeito de boa educação,
Vira língua felina em ação.

Valiosas regras de respeito,
Perdem todo o bom efeito,
Pois a crueldade simbólica,
Ronda larga ação diabólica.

Insinuação contra o inimigo,
Engole todo histórico amigo,
E produz fantasias delirantes,
Com obsessões degradantes.

Num intenso ódio cultivado,
Cego da paz de novo legado,
Focam-se bodes expiatórios,
E fluem atos discriminatórios.

O ranger de dentes com ódio,
Apenas visa a honra do pódio,
Para mandar e ordenar a gosto,
O que a outros causa desgosto.

Na larga fanatização induzida,
A violência não será reduzida,
Pois tantos ódios despertados,
Ampliam milicianos revoltados.







sexta-feira, 19 de outubro de 2018

CAMINHOS DE ESPIRITUALIDADE CRISTÃ


CAMINHOS DE ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

 João Inácio Kolling

Prólogo

            São múltiplos os caminhos e, maior ainda é o número dos atalhos para o alcance do que se espera da espiritualidade cristã.
            Além disso, ocorre um fenômeno de intensa mistura de espiritualidade cristã com elementos de outras formas religiosas não cristãs e até de pensamentos filosóficos que, ao invés de facilitar bom alcance de um nível satisfatório e eficaz de espiritualidade cristã, pode desviar para longe deste significado.
            Sob esta mistura de elementos da espiritualidade, pode-se observar que ocorrem situações bem contraditórias através de pessoas que se dizem ser de profunda espiritualidade, mas, que se mostram mesquinhas, rígidas, autoritárias, intransigentes e com ares de superioridade. Isso permite desconfiar que, de fato, não se trate de espiritualidade cristã.
             Por outro lado, escutamos com frequência pessoas afirmando que sua espiritualidade as leva a receber tudo quanto pedem de Deus. É assunto intrigante: será que Deus privilegia algumas pessoas, e lhes concede, de forma paternalista e dependente, tudo quanto algumas pessoas especiais lhe pedem?
             Ao mesmo tempo, não faltam pessoas queixosas que vivem se lamentando de que Deus não lhes ajuda em nada. Dizem que rezam fervorosamente, que fazem novenas, participam de eventos religiosos especiais de cura e libertação, mas, que Deus não lhes dá a mínima atenção para o atendimento do que pedem.
            Outro perfil de pessoas se apresenta como muito espiritualizada, mas se revela altamente fanática, a ponto de mostrar indícios doentios. Acham que entendem tudo do céu e da terra; tem conselho oco e sem graça para qualquer situação, mas, não percebem que sua vida se torna progressivamente mais mesquinha.
            Em razão destes evidentes e muitos outros mal-entendidos em torno da espiritualidade cristã, que muitas vezes apresenta de tudo, menos de qualificação cristã, resolvemos apresentar algumas noções gerais que eventualmente poderão despertar algumas balizas de facilitação para um discernimento em torno dos caminhos que podem alargar a vida com a espiritualidade cristã.
            Trata-se de uma abordagem de modestas noções introdutórias, com vistas a alargar o entendimento de possíveis escolhas de caminhos de espiritualidade que sejam capazes de produzir frutos abundantes para o bem pessoal e o de muitas outras pessoas.
            Intencionalmente não desenvolvemos este texto de acordo com o rigor acadêmico e cientifico, para que a fluência descritiva pudesse ser mais amena para leitores que costumeiramente não tem o hábito de fazer leituras extensas e cheias de digressões argumentativas e referenciais.
            Como a espiritualidade cristã envolve realidades muito diversas e, não necessariamente canalizadas para o mesmo fim, pode também a espiritualidade cristã mal orientada afastar-se do seu itinerário mais desejado.
            Quando desejamos cultivar uma espiritualidade cristã, sempre importa que ela não se confunda com meras piedades ou com práticas exteriores, embora estas possam constituir-se em ricos meios para alguma “experiência hierofânica”, isto é, podem levar a produzir condições capazes de fazer experimentação de algo divino, sobrenatural, indizível, através de fatos e coisas muito pequenas, simples e ordinárias da nossa vida.
            De uma espiritualidade cristã espera-se, em sentido muito geral, que ajude a lidar com problemas pessoais e com os que se manifestam no entorno da lida de amizade, de trabalho e de lazer.
            A busca de forças que ajudem a mudar os rumos da vida, ao lado do encantamento, tende a aumentar medos e mecanismos de fuga ou de abandono. Por isso, contata-se uma frágil persistência de muita gente de boa vontade, que tenta aprofundar-se na espiritualidade cristã, mas, que abandona sem demora a iniciação diante das dificuldades que aparecem.
             Para que os caminhos levem a experimentar segurança, convêm certa vigilância e percepção diante das muitas formas de atalho que, em vez de nos aproximar de imediato das grandezas apontadas por Jesus Cristo, acabam nos distanciando paulatinamente devido aos desencantos e decepções que tal empreendimento nos propicia.
            Este texto foi escrito com o desejo bem modesto de alargar algumas noções gerais em torno dos distintos modos de entender a espiritualidade e da sua estreita agregação a traços do esoterismo, da meditação e da Yoga e, até mesmo com religiosidade de práticas exteriores, que, sob o título da espiritualidade cristã, podem levar-nos aos caminhos opostos desta espiritualidade.
            Na primeira parte deste texto destacamos alguns caminhos atraentes que parecem encurtar o tempo e o espaço diante do que desejamos alcançar com o cultivo da espiritualidade cristã. Nestes atalhos, abordamos o esoterismo, a Yoga, a meditação, e a religiosidade.
            Na segunda parte ponderamos um pouco mais especificamente sobre a espiritualidade cristã e salientamos outros caminhos, bonitos e simpáticos, mas, que não necessariamente levam ao fim desejado, como a espiritualidade que cega; a espiritualidade conquistadora, a espiritualidade da ascensão idealizada, a espiritualidade midiatizada, e, para realçar a que consideramos valiosa, digna, e merecedora de consideração, a espiritualidade para a interioridade das fraquezas, tentações e paixões que atormentam nosso psiquismo e nosso mundo subjetivo. Por fim, enfatizamos algumas pistas para um aporte de inovação na espiritualidade cristã.


  

Iª PARTE

I - ATALHOS ATRAENTES, CONFUNDIDOS COM ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

            O termo “espiritualidade” é de uso recente e moderno. O cristianismo, ao longo da história usou outros termos equivalentes ao significado que hoje damos à palavra espiritualidade. Em épocas se falou de Teologia Espiritual, em ascese (elevação da vida); em mística (como cultivo da fé para perceber sinais da grandeza e da bondade de Deus). No entanto, o significado mais comum e fácil de ser entendido, foi o de que espiritualidade significava “vida cristã”. Sob este sentido, ressalta-se algo muito significativo: espiritualidade não é um privilégio raro de alguém, mas, todos os batizados ao seguimento de Jesus Cristo são convidados a se aprofundar nas características centrais e marcantes de Jesus Cristo.
            Espiritualidade com o significado de uma vida cristã coerente constitui uma noção muito valiosa e simpática para o entendimento da espiritualidade em nossos dias.
            Paulo apóstolo, na carta aos Coríntios (3,10) já destacava que muitas tentações emergem na vida humana, mas que o cultivo de fidelidade a Deus não permitiria que as tentações se tornassem maiores do que a capacidade de lidar com elas, de suportá-las e de sair delas. Paulo lembrava, assim, a dimensão dinâmica da espiritualidade cristã.
            Atualmente vivemos a tentação de deixar a noção de “vida cristã” e nos enveredar por significados mais vagos, evasivos e imprecisos. E um significado, que muito se difunde, equivale à identidade de grupos religiosos que querem ser portadores do espírito de Jesus Cristo com capacidade superior aos demais grupos religiosos. Tendem a centralizar a afirmação da identidade do grupo com a suposição de que seu caminho é o melhor para equilibrar a lida com os próprios limites.
            Da raiz judaico-cristã herdamos um sentido de espírito e de espiritualidade como capacidade de auscultar o que vem de Deus. Por isso, o desejo de captar o Espírito de Deus, que os cristãos denominaram de Espírito Santo, não pretendia negar a materialidade da condição da nossa vida, mas, impregná-la da presença do amor maior de Deus.
            Com o passar dos anos desencadearam-se outros modos de assimilar a espiritualidade. Primeiramente, o caminho mais valorizado era o do martírio para imitar Jesus Cristo em seus sofrimentos; com as grandes perseguições aos cristãos foi amadurecendo, aos poucos, o ideal da vida ascética e da virgindade. Talvez pela influência grega que cultivava uma ascética de afastamento do mundo material para captar, pela reminiscência (recordação antiga) as coisas puras do mundo de Deus, pois, os seres humanos estariam na Terra para expiar alguma maldade feita lá no céu quando estavam no âmbito de Deus.
            A virgindade, por sua vez constituía uma realidade mais ampla do que evitar relações genitais. Como em outras manifestações religiosas antigas, significava a abertura da totalidade da existência ao acolhimento de Deus para Nele tornar-se fecundo em grandezas para a vida humana.
            A partir de Orígenes, que foi um influente pensador cristão, mas, marcado pelo pensamento grego, introduziu-se a conotação contemplativa à espiritualidade e a contemplação significava elevar-se acima das paixões e fraquezas humanas para alegrar-se com coisas divinas. Tempos depois, o enfoque dado à espiritualidade cristã apontava para a profunda humanidade de Jesus e convidava as pessoas a fazer algo similar através da atenção esmerada aos sofrimentos, com serviços de caridade e desvelo à vida de pessoas que passavam por carências e necessidades variadas.
            A partir do século cinco, com o surgimento dos monastérios (grandes casas com monges ou monjas), foi se alargando uma nova síntese para o significado de espiritualidade. Consistia na fuga do mundo cheio de problemas e de dificuldades para a convivência, a fim de morar em lugares afastados, solitários e que permitissem cultivar uma intimidade profunda com Deus, através da clássica noção de trabalhar, rezar e ler muito. A espiritualidade ficou conhecida pela expressão latina de “Ora et Labora” (Reza e trabalha).
            Depois de mais uns séculos, já na Idade Média, assimilou-se a espiritualidade mais pelo horizonte psicológico, no qual se deu primazia aos laços afetivos, cordiais e de boa vizinhança. Deixou-se de lado a busca de elevados níveis espirituais de cunho mais intelectualizado e mental.
            Nesta perspectiva, São Francisco de Assis tornou-se referência deste novo modo de vivenciar a espiritualidade cristã, e, que foi sintetizada na expressão “paz e bem” e na bela oração da paz, atribuída a ele, que ressalta a harmonização do ser humano com as outras criaturas e com o cosmos.
            O jeito de São Francisco alastrou-se amplamente na Igreja e a renovou profundamente para melhor. Suplantou o modo clássico de austeridade, resignação, renúncia e abnegação. Por isso, sua perspectiva mais psicológica da espiritualidade ecoa com muita simpatia ainda em nossos dias na Igreja católica.

2.1 – Modos de buscar uma espiritualidade cristã

            Já salientamos diversos caminhos possíveis, mas, o que mesmo nos move a agir em busca de espiritualidade?
            Temos uma capacidade de selecionar valores e projetos. Temos igualmente capacidade de escolher caminhos que possam preencher nossas expectativas espirituais. Mesmo que vivamos bombardeados por informações e veiculação de mundos religiosos, tendemos a escolher a partir de referenciais conhecidos por alguém que nos é simpático.
            Desta pessoa de confiança aceitamos argumentos e indicações sem muito senso crítico e sem muita desconfiança da seguridade dos dados que ele nos apresenta. Inicialmente não se percebem seus interesses ideológicos, sua visão mais aberta ou fundamentalista, e passamos a assimilar o que ele nos sugere.
            Deste modo, muitas orientações para a espiritualidade cristã nos insinuam algo muito propenso aos desejos: encontrar superação, êxito e prosperidade. Sob o encantamento da Teologia da prosperidade, somos induzidos a precisar, mais do que os outros, de graças, bênçãos e curas para que possamos sentir-nos mais abençoados e muito mais agraciados por Deus do que os outros. E assim se vai ao caminho da espiritualidade da mesma forma como a pessoa capitalista ambiciosa parte para novas conquistas. Tal foco tende a amenizar e até a abafar qualquer necessidade de corresponsabilidade pelo bem comunitário ou do bem comum. Importa que um “eu” conquistador dobre Deus para que me seja mais favorável do que vem se manifestando aos demais. Assim a barganha do poder pessoal, tende a comprar tudo, até o céu, e a valer-se de chantagens e de tentativas de corromper Deus para favores especiais e avantajados.
            Por outro lado, mesmo que a busca seja humilde, reta e honesta, o caminho não costuma ser similar ao de pistas bem sinalizadas e belamente ornamentadas. Trata-se muito mais de um tateio numa estrada que, a cada pouco, apresenta atalhos, entradas e saídas que tornam insegura a trajetória.
            Quando se anda num lugar desconhecido e aparece insegurança a respeito do caminho que conduz ao lugar onde desejamos chegar, sempre aparece simpática a indicação de um caminho de atalho. Parece que ele nos aproxima em menos tempo do alvo desejado. Além disso, os informantes dão tantas explicações que a gente imagina a maravilhosa rota e já na primeira estrada de desvio, não mencionada, voltamos ao velho impasse.
            Na busca da espiritualidade, que é este abrir-se para algo novo, que, de um lado atrai, mas que, de outro, traz insegurança e até incertezas sobre o real alcance do novo, os indicativos que encurtam a distância, geralmente apresentados com detalhes minuciosos, constituem um alívio simpático, porque nos levam a antecipar a proximidade de quem desejamos visitar. Assim também existem itinerários de cultivo, que, no entanto, confirmam aquele ditado popular de que o atalho normalmente faz o caminho tornar-se longo, difícil e imprevisível.
            A busca da sensibilização para sentir e captar o Espírito de Deus, em vez de nos aprofundar no caminho das Sagradas Escrituras, nos leva a atalhos de esoterismo, meditação e yoga, religiosidade, etc. Isso não significa que estes caminhos não levem ao fim desejado. Eles abrem perspectivas benéficas, mas podem não constituir o caminho mais seguro para aprofundar-nos na espiritualidade.
            Um primeiro aspecto que requer de nós uma atenção especial é o do esoterismo.

1.1 – Esoterismo

            O termo ‘esoterismo’ tende a ser entendido a partir da sua raiz grega ‘esotero’, com o significado do que está dentro, ou, do que está no interior. Existe também a palavra grega ‘exotero’ (com “x’ em vez de ‘s’) que significa o contrário, o que é exterior e acessível a todos.
            Feita esta distinção, ainda resta um pequeno alerta de que esoterismo não é a mesma coisa do que espiritualidade. Pode, no entanto, estar misturado e até confundir-se com a espiritualidade.
            O esoterismo geralmente está relacionado com tradições filosóficas e religiosas antigas, reveladas como novidades e segredos para a vida plena, mas, apenas repassados para algumas poucas pessoas que são escolhidas ou às que mostram muito interesse pela aquisição de conhecimentos falados ou escritos destes gurus ou líderes. São despertadas pela vontade de entrar neste encantado mundo de novidades e de mistérios ocultos. Por isso, facilmente se mesclam elementos do ocultismo.
            No caminho do esoterismo cria-se uma espécie de mistério em torno de realidades ocultas, que somente os iniciados teriam capacidade de captar ou acessar. Por isso, cria-se uma graduação, como a de escada ascendente para os iniciados e eles somente poderão aprofundar-se no conhecimento das realidades ocultas ou divinas, subindo progressivamente estas etapas em que segredos da vida lhes são revelados, aos poucos, e na medida em que avançam no discipulado.
            O que é peculiar do esoterismo é que os mais iniciados afirmam que conseguem contatos com o sobrenatural ou com leis e segredos do universo, que segundo eles, não seriam alcançáveis pelas outras pessoas comuns. Destes segredos, revelados, aos poucos, e somente para algumas pessoas que fazem a iniciação, estaria ao seu alcance um sentido mais profundo para a vida e as coisas que a rodeiam. As outras pessoas não seriam capazes de captar estas realidades superiores.
            Há, portanto, um pressuposto no esoterismo a respeito da possibilidade de captar segredos e mistérios raros, apenas para quem segue os passos de um mestre, guia ou guru.
            Além de aspectos importantes que podem melhorar a qualidade da vida com este seguimento, este caminho também pode envolver alguma malandragem e magia, a fim de permitir aos líderes esotéricos a possibilidade de elevar-se socialmente acima dos demais através da incorporação de elementos de curandeirismo e mistura de elementos de diferentes religiões e filosofias. Tal processo, chamado de sincrético, facilmente abre caminho para especulações um tanto fantasiosas, sem comprovação real, objetiva e empírica ou prática do que se aponta.
            A tentação de alguém elevar-se diante dos membros do seu grupo de relações através de acessos diretos e ocultos aos segredos divinos ou da natureza é muito grande em nossos dias. E os que se dizem iniciados insistem na sua superioridade, mediante treinamentos, exercícios, leituras e práticas de ritos, alcançados por meio de condições especiais, mas, que acabam misturando ritos mágicos para obtenção de forças ocultas.
            Mesmo em comunidades cristãs muito religiosas, certos membros atribuem a si mesmos ares especiais de superioridade, porque se acham portadores de poderes divinos como os de cura e libertação, de exorcismo, de línguas e de vidência do que vai acontecer. Neste assunto, facilmente apelam a segredos de práticas religiosas e espiritualistas, mas que, na verdade, nem são coisas tão ocultas, secretas e privilegiadas.
            Podemos constatar que numa religião também se fazem ritos e orações para um diálogo como o divino (Deus, o sobrenatural ou o além), mas, tem um fundamento, e uma doutrina, que é aberta e acessível a qualquer pessoa, e não somente a um pequeno e seleto grupo de pessoas iniciadas no seguimento de uma determinada pessoa privilegiada que se apresenta como guru.
            Está ali uma diferença básica, pois, religião e espiritualidade tendem a abrir-se ao mundo e às pessoas, enquanto que o esoterismo cultiva segredos e os revela apenas a pequena parcela de seguidores.
            Geralmente o esoterismo se constitui num caminho fácil e atraente para pessoas que se sentem excluídas ou pouco valorizadas num ambiente social e que, através do esoterismo, procuram afirmar-se socialmente com seus poderes especiais de previsibilidades, exorcismos e expulsões demoníacas. Todavia, a limitação mais visível do esoterismo está no exclusivismo de poucas pessoas, enquanto que a espiritualidade cristã é um caminho aberto a qualquer pessoa e a todas as pessoas.
            Num nível parecido ao do esoterismo encontra-se a Yoga e a meditação. Têm raízes e práticas milenares, mas, não necessariamente se afiguram como equivalentes à espiritualidade cristã.

1.2 – Yoga e Meditação

            Tanto a yoga quanto a meditação constituem atividades que podem ser altamente benéficas para a qualidade de vida das pessoas. Todavia, existem muitas formas e muitas orientações canalizadas para diferentes práticas religiosas e facilitam uma mistura de crenças que pode mais atrapalhar do que ajudar na organização da vida cristã.
            Yoga e meditação têm como objetivo geral uma harmonização de todos os campos da vida, seja na lida diária, na consciência, na estabilidade emocional e no modo de solidificar a personalidade.
            A busca de harmonia e de estabilidade normalmente implica em ajustar-se bem ao entorno das pessoas e do lugar onde se vive. Esta capacidade de dar-se bem com as pessoas próximas, como os membros de parentesco, de vizinhança ou dos ambientes de trabalho, sempre é muito valorizada porque gera bem-estar e bom humor na convivência.
            Uma das suposições básicas da Yoga é a de que existe uma harmonia na organização do universo e que, através da meditação e dos exercícios de concentração, uma pessoa consegue captar esta harmonia e inserir-se nesta bela organização do cosmos.
            Hoje existem dúvidas a respeito desta suposição porque o universo pode ser visto pelo contrário da harmonia e da estabilidade, uma vez que há uma constante mudança e muita movimentação cruel como as forças que desfazem um planeta e criam outro; e, mesmo se olharmos para a Terra: quanta violência e quanta morte decorrente de vulcões, terremotos, guerras, entre humanos, entre animais e entre forças da natureza.
            A própria e encantadora beleza de ambientes naturais revela que estão cheios de agressividades, como a da água disputando espaços com a terra, as plantas valendo-se de tudo para sobreviver e afastar outras que ameacem sua expansão; animais que matam para sobreviver e perseguem a todos os outros que ameaçam seu ambiente de reserva. Até os múltiplos tipos de passarinhos, que tanto nos encantam pela beleza e pelos seus maravilhosos gorjeios, demonstram agressividade cruel por conquistas de domínio e de espaço.
            Certamente é importante uma boa sintonia com o ambiente natural que nos envolve, porque estamos mergulhados neste mundo de lutas pela sobrevivência em meio a grandes mobilizações, sejam as do ar ou dos muitos eco-sistemas de vida, que podem complementar-se de uma forma razoavelmente equilibrada. Isto nos ajuda a perceber que, real e objetivamente, nem tudo é tão romântico e poético como facilmente se pressupõe.
            Nossa proximidade com pessoas e com os ambientes cósmicos certamente não é igual ao de um monte de pedras. Estas podem estar próximas e até amontoadas, sem estarem conectadas entre si, por algum vínculo vital, afetivo ou de sobrevivência. Entre os seres humanos, manifesta-se carência de proximidade com outras pessoas.
            Se uma pedra tirada de um monte de pedras não afeta as demais, uma pessoa que morre, ou se afasta por algum motivo, pode perturbar e causar impactos significativos na organização da vida pessoal das pessoas próximas.
            Os seres humanos também carecem de relações de outra natureza e de um sentido para o que fazem. Mesmo com as enormes diferenças de grupos humanos raciais, sociais e culturais, ecoa um grito forte que revela necessidade de vínculos de proximidade e de interação com outras pessoas, com animais e com plantas.
            Enquanto que uma pedra tirada de um monte de pedras não afeta as demais que estão amontoadas, em nós, por exemplo, se um órgão não funciona bem, ele acaba afetando diretamente os demais órgãos. Da mesma forma, na convivência, algum desequilíbrio, seja por doença, por tensão, conflito ou desencontro, afeta o psiquismo e a afetividade. Pode ferir a auto-estima, pode causar decepção profunda e desencantamento com as coisas; e pode mudar os projetos e as mediações para o alcance dos objetivos, em vista de um sentido que dê razão à vida. O físico Fridjof Capra, afirma que o nosso corpo é uma miniatura do universo: é um grande sistema que organiza sub-sistemas.
             Assim, podemos perceber que, o mesmo alimento ingerido e o mesmo ar que respiramos, alimenta e oxigena os diferentes sistemas como o respiratório, o ósseo, o muscular, o digestivo, o circulatório, o neurológico, o urinário, etc. Cada um destes sistemas é autônomo, mas, ao mesmo tempo está estreitamente interligado com os outros. O sistema central, que para Capra é o emocional, permite um equilíbrio razoável para que nenhum sistema seja prejudicado. No entanto, quando o estado emocional não está bem, pode algum órgão não receber bem as necessárias enzimas ou desequilibrar o mundo dos micro-organismos que o mantêm. Com isso, os anticorpos de defesa não conseguem evitar que um tipo tome o lugar de outros e provoque o que chamamos de doença, infecção ou enfermidade.
            Como a nossa consciência é capaz de estender-se para além do corpo, o que uma pedra certamente não consegue fazer, meditação e yoga teriam esta função de nos vincular melhor aos cosmos. Diferentes estágios de meditação e de exercícios de concentração ajudariam a ampliar esta consciência para uma sintonia com a harmonia do todo, que alguns vão denominar de Deus, ou simplesmente o divino que integra e anima estes cosmos.
            Entrar em harmonia ou em ajuste amplo com o cosmos, independente das variedades de perspectivas religiosas, com certeza, é um caminho que pode fazer bem para as motivações da vida. É benéfico todo o recurso que ajude a estar de bem com a própria personalidade, com a auto-estima, com o humor alegre e edificante. Sem dúvida, ajuda para que os subsistemas do organismo possam ajustar-se melhor do que mediante um psiquismo agitado, frustrado, pessimista e cheio de ressentimentos e mágoas.
            A captação da grandeza de harmonia, tanto no sistema orgânico quanto no psíquico, torna-se, evidentemente, uma tarefa valiosa para viver bem. Por isso, a capacidade de controlar os sentidos e a mente sempre ajuda a desligar fatores que perturbam o bem-estar e o sentimento de melhor integração na amplitude da vida do cosmos.
            Assim, como os exercícios de relax são eficazes perante fatores que causam tensões e mau funcionamento de órgãos, os momentos de meditação predispõem para melhor organizar o rendimento da capacidade física, com boa oxigenação e adequação orgânica. A meditação também ajuda a manter a mente mais calma e a produzir maior capacidade de percepção de grandezas interiores, com a recriação de energias e de boas motivações para intuir algo novo que melhore a qualidade da vida.
            A mera capacidade de amenizar os transtornos de ansiedade já constitui fator de reconhecimento à yoga e à meditação pela função muito importante na vida: ajudam a plenificar a vida para mais sentido e alegria de viver.
             Por outro lado, melhoram a concentração para tarefas mentais, aumentam vigor o físico e psíquico, aumentam a liberdade e deixam as pessoas mais criativas diante da pluridimensionalidade de situações imprevistas que seguidamente aparecem na vida. Enfim, propiciam também um agradável sentimento de viver a vida com maior inteireza.
            No entanto, parece que deixam uma lacuna no que se refere à construção dinâmica e positiva do Reino que Jesus anunciou. Este requer algo para além de uma harmonia estanque, pois, interpela a agir no meio da organização humana, conturbada, e conflitiva, que não apenas carece de indignação, mas também do embalo para elevar-se na qualidade.

1.3 – Religiosidade

            Religiosidade constitui mais um campo da vida que facilmente se mistura ou se confunde com a espiritualidade. Geralmente a religiosidade não alcança os objetivos da espiritualidade, porque prende pessoas a piedades e a ritos exteriores que a acomodam e levam a fazer sempre mais as mesmas coisas.
            Uma característica muito presente e visível da religiosidade é a do dogmatismo, isto é, uma forte insistência em normas, regras, regimentos e apelos à repetição de exercícios que até esvaziam a fé porque as pessoas são levadas a observar preceitos e detalhes de rituais religiosos que não causam mudanças na vida, mas apenas aprofundam os hábitos e costumes.
            Outro traço marcante da religiosidade é o do sectarismo, que também está presente em outros modos de pertença a grupos, sejam eles de cunho religioso, político, ou meramente social. Na verdade, o sectarismo é um fenômeno humano que se manifesta em qualquer organização. Sectarismo vem da palavra latina “sectare”, que significa separar uma parte do todo. Num exemplo prático, seria como pegar um abacaxi, cortar uma pequena parte da casca e começar a sustentar que esta pequena parte é muito melhor do que o resto do abacaxi. É uma tendência de formar guetos no interior de um grupo maior de pertença. Envolve certa intuição de começar algo novo e mais valioso para as pessoas do que aquilo que vem sendo feito e oferecido no grupo maior.
            Outra ilustração do sectarismo no campo religioso é o da grande ramificação de novas Igrejas evangélicas, e o de tantas congregações religiosas, ordens e movimentos para a criação de grupos novos na Igreja católica, sejam de jovens, de casais ou de interessados numa forma mais exclusivista de fazer algo parecido, mas, muito melhor do que aquilo que vem sendo feito pelo grupo predominante.
            A intenção de querer oferecer algo melhor do que os outros oferecem, tende facilmente para um rigorismo em torno de algumas práticas, o que leva muitos se afastar, sem demora, da pertença ao grupo ou à comunidade, e iniciam a formação de outros grupos, ou saem para procurar algum com o qual mais se identificam. Isto gera uma grande migração religiosa e também uma rivalidade acompanhada de intensa propaganda e de marketing para atrair maior número de membros ao novo grupo.
            Ao lado do rigorismo para agregar mais membros, o sectarismo na religiosidade leva a muitas afirmações categóricas. É ‘assim porque é assim’ e ninguém pode questionar nada. Nas expressões categóricas também são muito comuns conhecidas formas de tratamento diretivo, como: faça isto, feche os olhos, ponha a mão no coração, diga isso a Deus... No fundo, é uma forma que infantiliza as pessoas, mesmo adultas para condições de submissão. Constituem táticas sutis de dominação e de imposição a partir dos que estão no comando do grupo. Há um ditado popular que ilustra este mecanismo: quanto mais fraco for o argumento a ser apresentado, tanto mais se apela aos gritos, aos rompantes, aos gestos patéticos e enfáticos, que, com os floreios da oratória, visam dominar os membros ouvintes.
            A religiosidade também pode ser constatada pela busca um tanto obsessiva de grandes feitos e obras. Nesta propensão materialista em torno de algo impactante, como obras, eventos e grandes concentrações, facilmente os que muito apelam a uma espiritualidade superior, acabam mesmo esfriando o fervor da fé, porque insinuam demais na execução de orações, de tarefas e atividades programadas.
            Ao lado desta exteriorização, a religiosidade também tende para a centralização do barulho e da agitação. Muito grito e muito exagero no volume do som refletem que a aspiração maior é a conseguir alargar o número de adeptos. É por isso que podemos assistir a tanta extravagância em celebrações religiosas, onde o mais importante é a ascensão de quem anima o grupo. Dali também decorre a promoção de muitos eventos ostensivos que, na argumentação, são para Deus, mas que, efetivamente, visam o engrandecimento dos promotores.
            Ainda outra perspectiva marcante da religiosidade é a da concepção meramente antropocêntrica, isto é, o fim são conquistas humanas de um grupo ou de uma organização e não o que se almeja como mundo mais integrado no amor de Deus. Assim, criam-se normas para os outros e alargam-se orientações para piedades, que precisam ser executadas nos mínimos detalhes exteriores.
            Como se pode observar, a religiosidade apresenta um alto potencial de alienação. Ao invés de alargar direitos e condições dignas, desloca o foco das atividades para muitas obras e eventos que não aproximam da experiência de Deus.



IIª PARTE

 ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
           
            Se a comparação da busca de espiritualidade cristã, feita ao caminho e seus atalhos pode nos ofuscar a clareza em torno de um rápido e seguro caminho para aproxima-nos mais de Deus, o mesmo se pode efetuar diante dos muitos caminhos conhecidos e que não necessariamente levam a melhores níveis de espiritualidade.
            Além dos caminhos variados e das paisagens muito diversificadas que podem distrair e desviar o foco, muitos podem surpreender-nos, encantar-nos, mas, também trazer muitas dúvidas e incertezas que atrasam e protelam as expectativas alimentadas.
            Como espiritualidade implica em busca pessoal e dinâmica, podem alguns caminhos frustrar-nos e sequer levar ao destino almejado. Mesmo a motivação profunda de querer orientar-se para Deus, pode desviar-se da efetiva aproximação porque nos distraímos com rótulos ideológicos e com indicadores do melhor percurso, nos amarram com outros pedidos secundários de quem, em troca, quer carona para outro endereço, ou nos pede outro favor mediante a informação fornecida. Assim, a necessidade de pedir informações a muitas outras pessoas, desvia do programa estabelecido com as melhores esperanças.
            No caminho do discipulado de Jesus Cristo, também não estamos livres de dissabores e de muitas decepções. Por isso, o cultivo da vontade de ser melhor e de ser mais humanitário, a exemplo de Jesus Cristo, requer uma disciplina. Momentos de silencio, de meditação e de escuta do que se passa nos sentimentos mais profundos, são certamente fundamentais para o avanço no caminho da espiritualidade.
            Do mesmo jeito que um deslocamento através de um caminho já conhecido pode nos trazer imprevistos e surpresas, tanto agradáveis e prazerosas quanto desconfortáveis e decepcionantes, pode um caminho de espiritualidade, defrontar-nos com imprevistos e vacilações que dificultam a segurança no caminho indicado por Jesus Cristo.
            Ainda que o caminho escolhido se apresente seguro, implica em lidar com o humor para que a viagem não se torne um pesadelo. A não integração dos sentimentos perturbadores pode distrair e atrapalhar a viagem. Assim, a espiritualidade do “eu pecador” que quer elevar-se à grandeza de “Cristo salvador” requer empenho regular.
            Nas buscas de aprofundamento da espiritualidade cristã          torna-se valiosa a sensibilidade em torno das expressões empáticas dos que nossa indicam caminhos, quando eles realmente manifestam sentimento de valor à nossa pessoa. Esta capacidade de amor empático, de quem realmente quer nos ajudar, seja a de sentir nossa inquietação, dúvida, incerteza, quanto de sentir nossos grandes anseios, é muito valiosa para o êxito do caminho.

2.1 – Uma Espiritualidade que cega

            Na Bíblia católica, consta dentre os livros do primeiro testamento, o livro de Tobias que menciona a cegueira de Tobit. Este texto não faz parte das Bíblias de Igrejas Evangélicas. Este livro, aparentemente sem maior importância, apresenta uma  história em torno das dificuldades vividas numa família, exilada da região do norte de Israel para a cidade de Nínive, na Assíria.
            Tobit foi homem de profunda piedade, muito reto na observância das prescrições bíblicas, muito caridoso, humanitário, que enterrava os corpos dos judeus que morriam ali no exílio, jogados na rua; também se notabilizava pelo zelo e pela piedade e fiel observância dos costumes judaicos. Casou-se com Ana, com quem teve um filho, chamado Tobias, mas, toda esta prática religiosa e ambiente familiar não impediu que se tornasse uma pessoa altamente insatisfeita e lamuriosa. A culminância foi a da cegueira. Sem dinheiro e sem condições de trabalho, virou feito um feixe de lamúrias e passou a levar uma vida pessimista e cheia de lamentações.
            Na verdade, o velho Tobit começou a olhar demais para o céu, e muito pouco para as coisas da Terra. A narrativa deixa a impressão de que se tratava de uma pessoa piedosa, mas, pessimista a tal ponto que não via nada de bom ao seu redor. Mesmo sendo uma pessoa altamente religiosa, nutria uma espiritualidade alienante. Segundo o texto, ao olhar demasiadamente para o céu, caiu cocô de andorinha sobre seus olhos e ele ficou cego.
            Sem capacidade de lidar com os problemas do dia-a-dia, e, sem satisfação com as muitas piedades e práticas religiosas, ele, na verdade, ficou cego de sentido para a vida, mais do que de vista, porque não acumulou ‘luz’ em sua vivência religiosa para iluminar e contornar as dificuldades da sua vida.

2.1.2 - A cura da cegueira do velho Tobit

            Na vivência do vazio interior, o velho Tobit foi se afundando na depressão e na perda de gosto pela vida. Um dia apareceu-lhe uma visita especial de um amigo, que se tornou um anjo, porque foi um intercessor em favor de novas razões para a vida de Tobit. O amigo foi Rafael (Rafael significa que Deus cura). 
            O fechamento de Tobit sobre si mesmo, cedeu lugar, pela mediação de Rafael, a uma alegria contagiante em vista de algo novo, capaz de perceber para além do pessimismo, que o havia esvaziado do gosto pela vida (Tob 5,10: “que alegria ainda posso ter? Estou cego e não posso ver a luz do céu; estou mergulhado nas trevas, como os mortos que não contemplam a luz; vivo como um morto; ouço a voz das pessoas mas não as vejo. Disse-lhe o amigo (que o atendeu como um mensageiro de Deus naquele infortúnio): tem confiança, que Deus em breve te curará. Ele te curará!...).
            Hoje falaríamos que Tobit entrou em estado de depressão. Igualmente deduzimos que a exterioridade da sua vivência religiosa não lhe deu um suporte seguro e estável para lidar com os momentos difíceis da vida. No entanto, graças ao humor alegre de uma pessoa amiga, recuperou o que já havia sumido na sua vida: a confiança.
            Este amigo Rafael desencadeou o processo de saída da depressão: ofereceu-se para acompanhar o filho Tobias a fim de ir ao país vizinho tentar reaver um empréstimo que Tobit havia feito antes de ser levado ao exílio.
            Na viagem, algo inusitado aconteceu com Tobias, filho de Tobit. À noite, acampados na beira do rio Tigre, ele quis lavar os pés e um grande peixe quis morder o pé. Peixe grande da profundeza do rio significa o inconsciente da pessoa. Quando uma pessoa está mal integrada e sem controle sobre seu inconsciente, este pode leva-lo a fazer coisas muito piores do que morder o pé. Ele pode mover a pessoa para a violência, para a tristeza profunda, para a insatisfação e para a incapacidade de integrar-se na convivência com os outros. O inconsciente desajustado pode induzir a muitos comportamentos doentios de obsessões, rejeições, violências e, até de mecanismos de auto-destruição. Naquele ambiente sem graça do velho Tobit, Tobias foi perdendo o gosto pela vida, mas, também o sentido para conquistar algo novo e diferente.
             O amigo pediu que Tobias agarrasse o peixe a fim de extrair-lhe o fel, o coração e o fígado, porque se constituiriam em remédio muito útil. Rafael disse que o coração e o fel teriam a capacidade de expulsar espíritos maus. O fel curaria manchas brancas dos olhos.
            À noite, Rafael sugeriu pernoitar na casa de Ragüel, um parente de Tobias e que tinha uma filha chamada Sara, com quem Tobias poderia vir a casar-se. Havia, no entanto, um problema: Sara teria se casado sete vezes e terminado com a vida dos maridos na primeira noite, e, assim continuava sem filhos. Quis suicidar-se pelo distúrbio, mas, não teve coragem. Na verdade, o mesmo interesse pelo suicídio também já havia passado pela cabeça de Tobias e só não interrompeu o fluxo da sua vida por falta de coragem.
            Diante das perguntas de Ragüel, Tobias lhe revelou que era filho de Tobit.  Ragüel lamentou profundamente a informação dada sobre a cegueira de Tobit. Na janta, festiva e animada, Tobias criou coragem inusitada e pediu Sara em casamento. Mesmo com a informação do que já se sucedera nos sete casamentos anteriores de Sara, Ragüel almejou felicidade aos dois a partir daquela noite, o que transformou a o estado de tristeza profunda de Sara em alegria exuberante.
            Ainda naquela noite Sara colocou o fígado e o coração, que Tobias trouxera, sobre brasas. O cheiro teria expulsado o demônio que teria tomado conta da vida de Sara. Afinal de contas, que demônio teria perturbado a vida de Sara?
            Para os povos antigos o fígado era considerado como o órgão responsável pelo humor. Tristeza e melancolia, na cultura grega, equivaliam à bílis negra ou intoxicada; e que levava a vômitos, alergias, icterícias, etc. Já na cultura do povo da Bíblia, o fígado era considerado a sede das emoções, tais como as de medo, ciúme e cólera, emoções que eram capazes de impedir e de abafar o brilho da luz vital de uma pessoa.
            Ainda outro significado de fígado, é aquele que procede da língua latina, pois “Ficatum” significava figueira. É neste contexto que podemos entender a estranha expressão de Jesus Cristo, feita a Natanael: ‘ eu te vi sob a figueira!’. Era como dizer: ’eu te vi ocupado em atividades boas, em torno de algo edificante e valioso’.
            Muitas vezes, como ocorreu com Sara, esta luz motivadora da vida desaparece e então aparecem mecanismos entrópicos de cegueira e de desgosto com a vida. O trabalho do anjo Rafael, ao indicar um sentido novo para Sara com Tobias, mostrou como um gesto simples de fígado no seu bom desempenho, permite a agradável experiência de que ‘Deus Cura’, que é o significado da palavra Rafael. Sara mexeu no segredo da bile e conseguiu livrar-se da sua profunda tristeza e, simultaneamente propiciar uma nova perspectiva para Tobias e seu velho pai Tobit, que, com a aplicação do remédio, preparado por Sara, voltou a enxergar e a viver na alegria...
            O episódio que envolveu tristes momentos na vida de Tobit, e que o levaram à cegueira, teve uma guinada que transformou radicalmente o humor deste velho frustrado: alegria exuberante no lugar da cegueira e do fígado azedo, ou, como diríamos hoje, cegueira do mau humor.
            A pessoa amiga, - que foi Rafael, - ajudou a mudar a cegueira de Tobit, mas, articulou, antes disso, o entorno da vida de Tobit, pois, agiu com perspicácia e bom senso para a mudança radical na vida de Sara e de Tobias. Este belo resultado, decorrente da atenção humanitária de Rafael, foi fundamental para que Tobit pudesse novamente encantar-se com a alegria, no lugar da cegueira pessimista.
            Assim, uma espiritualidade cristã, deve sensibilizar-se para o que Deus revela na contingência desta vida através de tantas coisas que podem afigurar-se como ação bondosa de algum anjo Rafael. Espiritualidade requer atenção aos sinais sensíveis do entorno humano que nos envolve. Do contrário, pode-se cair na tentação de assimilar a espiritualidade como um mero processo ambicioso de grandes conquistas.

2.2 – ESPIRITUALIDADE DO “EU CONQUISTADOR”

            Assim como o sistema capitalista induz a conquistar a felicidade pela superação e pelo acúmulo de bens, somos seduzidos a conquistar, num processo similar, níveis, estágios e parâmetros mais elevados de espiritualidade. Com isso, ao invés de nos tornar melhores em gestos e modos de ser, nos preocupamos eminentemente pelo alcance de graças, de milagres, de curas, a fim de alargar o poder pessoal e conquistador. Deste modo, o forte e poderoso já não é mais Deus, mas, quem o convence e o dobra para atender pedidos e súplicas.
            Na verdade, esta perspectiva de espiritualidade, transforma a lida da perfectibilidade em grande ocasião de negócios e de conquistas para aumentar o poder espiritual.
            Trata-se de uma espiritualidade ascendente, que deseja elevação, reconhecimento e status diante de Deus.
            Como vem ocorrendo convencimento intenso em favor de uma sociedade de consumo, corremos o risco de entender algo parecido com a espiritualidade cristã. Quando o fascínio indica a espiritualidade consumista, não interessa muito o empenho para superar certos efeitos negativos dos transtornos psíquicos’, nem mesmo preocupação com as dificuldades das pessoas do entorno, porque o estímulo consumista leva a pensar obstinadamente nas metas, nas estratégias e nos prazos estabelecidos para o alcance da realização dos desejos.
            Com esta atenção cegamente focada para o consumo de níveis ou quadros de maior felicidade, acaba não sobrando muito espaço para as questões sociais e nem tampouco para as interpelações do Evangelho de Jesus Cristo. Importa mais o alcance do desejo pessoal e o seu devido reconhecimento.
            A espiritualidade conquistadora centraliza o desejo de felicidade, mas leva a buscar a instância divina para ampliar o poder de auto-afirmação e, para tal fim, importa quem facilita os interesses de forma simpática. Assim, muitas pessoas santas são veneradas com maior intensidade, de acordo com seus supostos créditos de fornecimento das presumidas graças que estão sendo esperadas. Como nas lidas políticas, quer-se do campo da espiritualidade um meio de obtenção de vantagens.
            Sob este perfil de espiritualidade, temos diante de nós uma imensa oferta de propostas de êxito e alcance dos segredos espirituais. Na facilitação dos atalhos, esperam-se acessos impregnados de magia e de intimismo a fim de favorecer larga prosperidade material. Nesta ótica, não atrai a proposta de um eventual caminho de solidariedade, a ser penosamente construído, e nem tampouco uma cordialidade capaz de gestar experiências humanas gratificantes.
            Nesta perspectiva conquistadora também não interessa eventual caminho de espiritualidade que ajude a lidar com as próprias fraquezas. Esta dimensão da vida tende a ser abafada e ocultada pelas couraças de auto-defesa em função do privilégio das metas a serem conquistadas.
            Com tal quadro, impõe-se a espiritualidade egocêntrica do sujeito isolado que quer ser feliz, mas que, em nada se compromete pela elevação da justiça e de condições mais dignas para tantos seres vítimas de espoliação.
            O resultado desta espiritualidade conquistadora equivale ao que se costuma observar no macaco que mete a mão na cumbuca de nozes e enche tanto a mão que não consegue mais tirá-la e sequer desconfia que se pegasse uma ou duas nozes, poderia tranquilamente comer muitas e saciar sua fome.
            A espiritualidade na perspectiva bíblica cristã nos interpela para uma capacidade que melhore o nível de solidariedade com as pessoas do entorno. Por isso, é bom lembrar um lembrete do escritor francês Marc Auger relativo à importância do empenho pela boa interação com outras pessoas: alguém somente consegue aumentar sua auto-estima e o bem-estar consigo mesmo, quando se dá conta de que se amplia o número de pessoas que lhe manifestam sentimentos de estima e de bem-querer.


2.3 – ESPIRITUALIDADE DE ASCENSÃO

            Muitas pessoas que desejam crescer na espiritualidade cristã partem de uma questão desviada do foco: inquietam-se em torno do que querem saber e conhecer, mas, não se perguntam como poderiam ser melhores na convivência com os outros e com o mundo frágil das próprias limitações.
            O risco desta espiritualidade é o do cultivo excessivo de ideais. Muitas pessoas vivem de idealizações em torno do que querem atingir e dos níveis de santidade que querem viver. Até se envolvem com belos sonhos de heroísmo e de virtudes de grandiosa santidade com vistas a sentir elevação através de admiração e encantamento por parte de outras pessoas.
            Esta perspectiva de espiritualidade traz o risco de produzir ‘espiritualidade amouca’, isto é, leva as pessoas a não viverem seus próprios sentimentos, mas, movem-se por intensa paixão pelo que lhes foi repassado por certos gurus. Por isso, são capazes de brigar, perseguir e odiar por ideias alheias e ofender muitas outras pessoas, simplesmente, pela defesa de uma orientação nem sempre muito merecedora de consideração.
             Brigam por ideias produzidas por outras pessoas, e em torno delas agridem, humilham, destratam e partem para as múltiplas formas de agressão e violência, especialmente a simbólica, através da qual atacam os símbolos de valor das outras pessoas.
            A repressão da própria identidade para brigar e até matar por causa da defesa de ideias alheias, geralmente reflete uma divisão interior doentia.

2.4 – ESPIRITUALIDADE MIDIATIZADA

            Constitui certamente outra forma de espiritualidade vistosa, atraente, que advém do novo jeito oferecido para o contato entre o fiel e o sagrado, através da mídia eletrônica. É um simpático atalho que encurta caminhos de cultivo pessoal e leva a experiências emocionais intensas e entusiasmadas.
             O clima emotivo, com muito contraste de cores, de cenários e de traços ornamentais dos gurus produz uma sensação festiva e alegre para uma agradável experiência de Deus e desencadeia rápidos estágios de êxtase e de alucinação eufórica.
            Os apresentadores, como as agências de turismo, apresentam roteiros atraentes, insinuantes e com promessa de muita alegria e felicidade. Esta nova ambiência religiosa, sem genuflexórios, sem inclinações humildes para expressar arrependimento, sem a dureza das longas horas de oração, motivação, meditação e escuta do que se passa no interior, tende para o clima festivo, exuberante e irradiador para o fervor de um transbordamento do agir divino. É como um baile bem animado que arrasta grande número de casais para a pista de dança.
            Esta nova modalidade de prática religiosa conta com o fantástico recurso “off-line” para que mensagens sejam veiculadas e os espertos gurus rezam em favor da pessoa fiel em dificuldades, como balconistas que tem atrás de si prateleiras entulhadas com todas as ofertas que pobres pedintes possam esperar de Deus.
            Ampliam-se ao infinito as ofertas de mensagens religiosas, devocionais e com garantias de efeitos imediatos para todos os gostos e necessidades. Assim, oração e cultivo de fé viram sinônimo de marketing de grupos religiosos, com exposição ao vivo da execução dos milagres e das curas (normalmente meros rituais de transe e de auto-sugestão).
             Da mesma novidade, mobilizam-se as capelas virtuais com as mais atraentes ofertas de sagrado, com variadas orações em “off-line”, de modos que uma pessoa em dificuldades já nem precisa rezar. Basta que envie um valor ao guru, e o esperto rezador já negocia com Deus, em favor desta pessoa, e lhe assegura, em meio à intensa bajulação, a realização do milagre, desde que esta pessoa continue a colaborar com uma causa maior do apresentador e igualmente se disponha a ajuda-lo e a promovê-lo diante de outras pessoas, como alguém extraordinário, superior e poderoso no ajeitamento das mediações espetaculares da parte de Deus.
            Assim, o meio comunicacional da mídia eletrônica produz nas pessoas fiéis uma vivência de fé muito distinta daquela que veio da tradição cristã, porque a midiatização constrói mundos sociais de pessoas e as induz a uma lógica de religião que não tem nada a ver com penosa construção de comunidade, de cordialidade e de superação de problemas sociais. Bastam buscas individuais que abasteçam o intimismo do “eu” através do “meu Jesus Cristinho”, ou as da cega obstinação com santos e santas protetoras, a fim de que através destas figuras galãs, Deus se dobre aos seus pedidos insistentes.
            O resultado desta suposta espiritualidade é um nítido distanciamento de Jesus Cristo, ou numa fixação em frases, procedimentos e aspectos isolados em torno de Jesus Cristo, sem aderir ao conjunto do que ele fez e ensinou. Cria-se, deste modo, uma nova religião, onde o sujeito se torna a referência e o centro da religião. Ele não tem caminho difícil a percorrer e nem a aprender para ser melhor, pois a sua religião é o que ele pensa e o que ele produz a partir deste pensamento.
            A lenta, vagarosa e difícil ascese, cultivada ao longo de tantos séculos, cede progressivamente o lugar à rapidez dos signos da informática com vistas a oferecer, com muita velocidade e, de imediato, o suprimento dos desejos subjetivos. Por isso, o quarto de uma pessoa passa a ser o lugar que equivalia ao espaço da Igreja comunitária. Ali, no quarto, através do celular ou do computador, escolhe-se, altera-se, combina-se a gosto e “deleta-se” o indesejado. Sobra somente uma espiritualidade que depende do humor da pessoa fiel.
            No meio deste mundo de interesses fragmentados, tanto na oferta quanto na procura, as antigas tradições litúrgicas e os programas de vida para uma elevação do nível da espiritualidade, passam a ser substituídas pelas escolhas, que são feitas de acordo com as simpatias, com os tipos de gurus que animam programas religiosos, e o perfil ideológico de quem orienta a vida. Aquilo que interessa é gravado, compartilhado, difundido e recomendado como o melhor para a obtenção de grandes bênçãos, graças, milagres, curas ou intervenções especiais da parte de Deus.
            Como é quase evidente de se concluir, o aporte, ou alcance desta espiritualidade parece distanciar-se cada dia mais do âmago da mensagem de Jesus Cristo e deixa uma dúvida crucial: todos estes rituais “off-line”, educam para maior qualidade de vida? Eles levam a constatar que o nível de satisfação com a espiritualidade buscada é dinâmico e crescente?
            Talvez se deva tirar pano novo do meio das coisas velhas do baú da vida que, com certeza poderá conduzir a um estágio mais elevado da qualidade de vida.

2.5 – ESPIRITUALIDADE DA PEQUENEZ INTERIOR

            É caminho difícil como descer uma ladeira íngreme, com muitas pedras, valetas e empecilhos que impedem deslocamento suave, fácil e agradável. Implica em descer ao mundo interior e lidar com as próprias paixões, com as fantasias e com as ideias obsessivas que seguidamente voltam a perturbar a mente.
            O difícil caminho da descida para dentro de si mesmo tende a assustar e a despertar mecanismos de desvio, como o da distração, o do pavor de ter que confrontar-se com as fragilidades, e com os tantos outros traumas e desencantos que se cruzam no fundo do poço do próprio psiquismo. Ali geralmente afloram em abundância as muitas experiências fracassadas, as decepções que feriram os sentimentos, os erros reais que foram cometidos, além das muitas opções feitas na vida que não levaram aos resultados almejados.
            Lidar com as feridas da própria existência facilmente leva a uma constatação: mesmo com todas as próprias forças engajadas, ajeitar-se consigo mesmo, e com os próprios problemas é tarefa que excede as forças pessoais. Somos frágeis, carentes de algum amparo, de algum interlocutor, enfim, de algum “TU” que nos mostre que mesmo tendo um longo e penoso o caminho pela frente, podemos alcançar a meta que o próprio coração aponta: o de nos sentir bem, e o de sermos capazes de amar e de nos sentir amados.
            Segundo o renomado místico alemão Anselm Grün, quando se consegue entrar neste abismo de desconforto, que é o mundo interior, já se entra no pátio de Deus para bater na da porta de Deus. Basta bater, pois, Ele se encontra ali e pode ajudar para que consigamos conviver com o marasmo que nós mesmos conseguimos produzir em nós. Por isso, o caminho de cultivo da “espiritualidade para baixo” nos leva a rezar não as conquistas e as grandes façanhas, espertezas, astúcias, obras e ações exteriores, mas, exatamente, o desconforto com os fracassos e com as feridas que continuam a produzir mal-estar, bem como a incapacidade de nos sentir bem no próprio corpo.
            Esta espiritualidade que mexe no baixo mundo dos porões do nosso interior é, precisamente, a que nos leva a rezar, a fim de que a ajuda de Deus permita que integremos o passado ferido e, mesmo com um pouco de complacência, que aprendamos a nos ajeitar com ele e a torna-lo fonte de brincadeira e de bom humor. Em outras palavras, é aprender a reconciliar-se com as próprias paixões e aprender a escutar os ecos das raivas que ainda ecoam em nossos sentimentos feridos. Então, emerge o evidente: carecemos da misericórdia de Deus e necessitamos perdoar nosso  passado mal integrado em nós mesmos para liberar o fluxo do que nos eleva no gosto pela vida.
            Por vezes este caminho difícil implica em desvencilhar-se de outra pessoa que é trazida negativamente para dentro deste mundo das paixões. Esta pessoa, mesmo distante ou já falecida, pode ser reavivada na memória e manter-se incrustada no melhor espaço do “eu” para causar um grande mal. Então, vem a difícil tarefa de dar a mão a esta pessoa, declarada inimiga para que deixe de ser adversária ferrenha ou perseguidora sem tréguas. Mais do que bater o olho no olho desta pessoa, torna-se necessário estender a mão à ideia que produzimos a seu respeito e que, interiorizada, continua a ser repetida constantemente de modos a reavivar os irritantes sentimentos desagradáveis ou de mágoa de tempos longínquos e que já não deveriam mais causar qualquer mal-estar.
            Aprender a viver com os limites, com todos os defeitos de fábrica das nossas predisposições para certas doenças, permite encontrar verdadeiros tesouros nestes vasos de barro amontoados em nosso mundo interior, mas, que contêm joias preciosas do valor da nossa vida e que enfeitam os traços peculiares e genuínos da nossa personalidade. Esta consciência é altamente recriadora e permite perceber que diante das portas que se fecharam outras já podem estar escancaradas para acolher ou se encontram acessíveis para serem abertas e permitir novas descobertas da grandeza de Deus, independente da constatação desta frágil pequenez da nossa condição.

EPÍLOGO

            Com o rico aporte da espiritualidade cristã, podemos trilhar o caminho dos discípulos de Jesus Cristo. Como fez com o mendigo da piscina de Siloé, Jesus não efetuou nenhum ato mágico, nem hipnótico, nem induziu a um estado de transe; não fez cura nem libertação, nem concessão de vantagem e nem, tampouco, jogou o mendigo na piscina, segundo seu desejo, alimentado há décadas.
            Jesus simplesmente indicou um caminho com a cama: pega sua cama e ande! Cama significa o mundo passado, com aquilo que deu certo na infância e nos mecanismos de ajustamento do bloco familiar, mas que, na vida adulta, não produz mais os mesmos efeitos. Muitas manhas, artimanhas, diante de acontecimentos que não deram certo para o alcance de estratégias usadas, apontaram o caminho da cama. Frustrações, sentimentos de desamparo e expectativas de afeto, ao lado daquelas dores de mágoas, facilmente induzem alguém a ficar de cama.
            Cama é refúgio tão bom e tão agradável, mas, a permanência prolongada na cama atrofia os músculos e pode tornar uma pessoa dependente e incapaz de andar... Além disso, leva a remoer todos os dias os mesmos sentimentos. E quando estes são de mágoa, de raiva ou de culpa, o psiquismo acaba não despertando nada melhor do que comprar atenção e afeto.
            Aquele mendigo interlocutor de Jesus, socialmente sustentado e rotulado ao nível da mendicância pelos que o acompanhavam há trinta e oito anos, não foi convidado, pelos religiosos de fervor e zelo que por ele cruzavam, para sair deste nível de dependência. Nem mesmo se moveram por um tão simples ato caridoso de jogá-lo na piscina e resolver seu problema.
            O ambiente religioso daquele lugar social havia transformado o mendigo de afeto a acomodar-se a passar o tempo todo vivendo de migalhas dos religiosos que o alienaram a este papel social de mendigo.
            Hoje continuamos rodeados por mendigos. Alguns são pedintes de esmola para sobreviver, mas, muitas levas são meros mendigos de afeto, unicamente movidos pelo sentimento de que merecem dó, compaixão e bajulação. Dependentes, submissos e atrelados a opiniões alheias, sobretudo, de lideranças da comunidade cristã e dos orientadores espirituais, não andam na vida porque esperam soluções de pessoa iluminada e poderosa. São como lanternas sem bateria.
            Andar com a cama equivale a lidar com as próprias limitações, com feridas expostas que muitas vezes precisam receber um curativo, para permitir que, simultaneamente, se possa ajudar melhor a outras pessoas em dificuldades, e que carecem, geralmente, de muito mais do que de curativo. Elas carecem de sentido para além do que vivenciam. Por isso a espiritualidade da vida cristã permite que a preciosidade do jeito de Cristo, através da fragilidade do vaso que é a nossa própria vida, seja estendida a outras fragilidades de pessoas que necessitam de curativos e de alguma palavra de esperança.
            A recomendação de Jesus ao mendigo foi a de que andasse com a cama. Assim, quando nos atrelamos à cama, ao mundo da lamúria e da prostração porque não recebemos o desejado, acabamos presos à cama (ao passado) e não ultrapassamos o mundo cinzento das lamentações. O estímulo para andar com a cama, fez com que o mendigo andasse e retornasse com razões para louvar a Deus. Isto é muito diferente do que sessões de louvor que não passam de compra de afeto e que levam líderes espirituais a almejar multidões de seguidores e com o fito de constituir um fã-clube de bajuladores, mas, que apenas despertam atrelamentos à “cama” da dependência servil, sem andar com a cama (com os problemas produzidos no passado).
            A espiritualidade cristã pode ainda hoje alargar duas dimensões que necessitam relacionar-se: a do gratuito amor de Deus e a da contingência e da fragilidade da condição humana. Para esta relação tornar-se complementar, não basta o extremismo de entregar-se resignadamente à espera de soluções da parte de Deus ou de outras pessoas; e, nem, tampouco, o outro extremo de um “eu” isolado, que conquista o que deseja, e que pretende colocar Deus no seu bolso como moeda de barganha.
            Como joia mantida em vaso de barro, a preciosidade da nossa vida está envolvida pela hipersensibilidade alérgica a incontáveis manifestações capazes de despertar reações desproporcionais, impróprias e inadequadas para o bem viver com o mundo interior e permitir que dele possam emergir motivações boas para conviver, tanto com a constatação dos estragos no invólucro de nossas marcas afetivas, quanto com as incontáveis situações que atrapalham a convivência normal do dia a dia.
            Enfim, evidencia-se que a espiritualidade cristã requer a condição de humilde caminhante. O seguimento de Jesus Cristo, na condição de discípulo aprendiz pela vida afora, levará a integrar o passado com um olhar de gratuidade perante o que foi superado, e, com uma sensibilidade aguçada para auscultar melhor as vozes, as luzes e as interpelações de Deus, em meio às tantas dúvidas, impasses e desencontros que se mesclam na nossa rica consciência humana.

           



<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

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