CAMINHOS
DE ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
João Inácio Kolling
Prólogo
São
múltiplos os caminhos e, maior ainda é o número dos atalhos para o alcance do
que se espera da espiritualidade cristã.
Além
disso, ocorre um fenômeno de intensa mistura de espiritualidade cristã com
elementos de outras formas religiosas não cristãs e até de pensamentos
filosóficos que, ao invés de facilitar bom alcance de um nível satisfatório e
eficaz de espiritualidade cristã, pode desviar para longe deste significado.
Sob
esta mistura de elementos da espiritualidade, pode-se observar que ocorrem
situações bem contraditórias através de pessoas que se dizem ser de profunda
espiritualidade, mas, que se mostram mesquinhas, rígidas, autoritárias,
intransigentes e com ares de superioridade. Isso permite desconfiar que, de
fato, não se trate de espiritualidade cristã.
Por outro lado, escutamos com frequência
pessoas afirmando que sua espiritualidade as leva a receber tudo quanto pedem
de Deus. É assunto intrigante: será que Deus privilegia algumas pessoas, e lhes
concede, de forma paternalista e dependente, tudo quanto algumas pessoas
especiais lhe pedem?
Ao mesmo tempo, não faltam pessoas queixosas
que vivem se lamentando de que Deus não lhes ajuda em nada. Dizem que rezam fervorosamente,
que fazem novenas, participam de eventos religiosos especiais de cura e
libertação, mas, que Deus não lhes dá a mínima atenção para o atendimento do
que pedem.
Outro
perfil de pessoas se apresenta como muito espiritualizada, mas se revela altamente
fanática, a ponto de mostrar indícios doentios. Acham que entendem tudo do céu
e da terra; tem conselho oco e sem graça para qualquer situação, mas, não
percebem que sua vida se torna progressivamente mais mesquinha.
Em razão destes evidentes e muitos
outros mal-entendidos em torno da espiritualidade cristã, que muitas vezes
apresenta de tudo, menos de qualificação cristã, resolvemos apresentar algumas noções
gerais que eventualmente poderão despertar algumas balizas de facilitação para
um discernimento em torno dos caminhos que podem alargar a vida com a
espiritualidade cristã.
Trata-se
de uma abordagem de modestas noções introdutórias, com vistas a alargar o
entendimento de possíveis escolhas de caminhos de espiritualidade que sejam
capazes de produzir frutos abundantes para o bem pessoal e o de muitas outras
pessoas.
Intencionalmente
não desenvolvemos este texto de acordo com o rigor acadêmico e cientifico, para
que a fluência descritiva pudesse ser mais amena para leitores que
costumeiramente não tem o hábito de fazer leituras extensas e cheias de
digressões argumentativas e referenciais.
Como
a espiritualidade cristã envolve realidades muito diversas e, não
necessariamente canalizadas para o mesmo fim, pode também a espiritualidade
cristã mal orientada afastar-se do seu itinerário mais desejado.
Quando
desejamos cultivar uma espiritualidade cristã, sempre importa que ela não se
confunda com meras piedades ou com práticas exteriores, embora estas possam
constituir-se em ricos meios para alguma “experiência hierofânica”, isto é, podem
levar a produzir condições capazes de fazer experimentação de algo divino,
sobrenatural, indizível, através de fatos e coisas muito pequenas, simples e
ordinárias da nossa vida.
De
uma espiritualidade cristã espera-se, em sentido muito geral, que ajude a lidar
com problemas pessoais e com os que se manifestam no entorno da lida de
amizade, de trabalho e de lazer.
A
busca de forças que ajudem a mudar os rumos da vida, ao lado do encantamento,
tende a aumentar medos e mecanismos de fuga ou de abandono. Por isso,
contata-se uma frágil persistência de muita gente de boa vontade, que tenta
aprofundar-se na espiritualidade cristã, mas, que abandona sem demora a iniciação
diante das dificuldades que aparecem.
Para que os caminhos levem a experimentar
segurança, convêm certa vigilância e percepção diante das muitas formas de
atalho que, em vez de nos aproximar de imediato das grandezas apontadas por
Jesus Cristo, acabam nos distanciando paulatinamente devido aos desencantos e
decepções que tal empreendimento nos propicia.
Este
texto foi escrito com o desejo bem modesto de alargar algumas noções gerais em
torno dos distintos modos de entender a espiritualidade e da sua estreita
agregação a traços do esoterismo, da meditação e da Yoga e, até mesmo com
religiosidade de práticas exteriores, que, sob o título da espiritualidade
cristã, podem levar-nos aos caminhos opostos desta espiritualidade.
Na
primeira parte deste texto destacamos alguns caminhos atraentes que parecem
encurtar o tempo e o espaço diante do que desejamos alcançar com o cultivo da
espiritualidade cristã. Nestes atalhos, abordamos o esoterismo, a Yoga, a
meditação, e a religiosidade.
Na
segunda parte ponderamos um pouco mais especificamente sobre a espiritualidade
cristã e salientamos outros caminhos, bonitos e simpáticos, mas, que não
necessariamente levam ao fim desejado, como a espiritualidade que cega; a
espiritualidade conquistadora, a espiritualidade da ascensão idealizada, a
espiritualidade midiatizada, e, para realçar a que consideramos valiosa, digna,
e merecedora de consideração, a espiritualidade para a interioridade das
fraquezas, tentações e paixões que atormentam nosso psiquismo e nosso mundo
subjetivo. Por fim, enfatizamos algumas pistas para um aporte de inovação na
espiritualidade cristã.
Iª PARTE
I - ATALHOS
ATRAENTES, CONFUNDIDOS COM ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
O termo “espiritualidade” é de uso
recente e moderno. O cristianismo, ao longo da história usou outros termos equivalentes
ao significado que hoje damos à palavra espiritualidade. Em épocas se falou de
Teologia Espiritual, em ascese (elevação da vida); em mística (como cultivo da
fé para perceber sinais da grandeza e da bondade de Deus). No entanto, o
significado mais comum e fácil de ser entendido, foi o de que espiritualidade
significava “vida cristã”. Sob este sentido, ressalta-se algo muito
significativo: espiritualidade não é um privilégio raro de alguém, mas, todos
os batizados ao seguimento de Jesus Cristo são convidados a se aprofundar nas
características centrais e marcantes de Jesus Cristo.
Espiritualidade
com o significado de uma vida cristã coerente constitui uma noção muito valiosa
e simpática para o entendimento da espiritualidade em nossos dias.
Paulo
apóstolo, na carta aos Coríntios (3,10) já destacava que muitas tentações
emergem na vida humana, mas que o cultivo de fidelidade a Deus não permitiria
que as tentações se tornassem maiores do que a capacidade de lidar com elas, de
suportá-las e de sair delas. Paulo lembrava, assim, a dimensão dinâmica da
espiritualidade cristã.
Atualmente
vivemos a tentação de deixar a noção de “vida cristã” e nos enveredar por
significados mais vagos, evasivos e imprecisos. E um significado, que muito se difunde,
equivale à identidade de grupos religiosos que querem ser portadores do
espírito de Jesus Cristo com capacidade superior aos demais grupos religiosos. Tendem
a centralizar a afirmação da identidade do grupo com a suposição de que seu caminho
é o melhor para equilibrar a lida com os próprios limites.
Da
raiz judaico-cristã herdamos um sentido de espírito e de espiritualidade como
capacidade de auscultar o que vem de Deus. Por isso, o desejo de captar o
Espírito de Deus, que os cristãos denominaram de Espírito Santo, não pretendia
negar a materialidade da condição da nossa vida, mas, impregná-la da presença
do amor maior de Deus.
Com
o passar dos anos desencadearam-se outros modos de assimilar a espiritualidade.
Primeiramente, o caminho mais valorizado era o do martírio para imitar Jesus
Cristo em seus sofrimentos; com as grandes perseguições aos cristãos foi
amadurecendo, aos poucos, o ideal da vida ascética e da virgindade. Talvez pela
influência grega que cultivava uma ascética de afastamento do mundo material
para captar, pela reminiscência (recordação antiga) as coisas puras do mundo de
Deus, pois, os seres humanos estariam na Terra para expiar alguma maldade feita
lá no céu quando estavam no âmbito de Deus.
A
virgindade, por sua vez constituía uma realidade mais ampla do que evitar
relações genitais. Como em outras manifestações religiosas antigas, significava
a abertura da totalidade da existência ao acolhimento de Deus para Nele
tornar-se fecundo em grandezas para a vida humana.
A
partir de Orígenes, que foi um influente pensador cristão, mas, marcado pelo
pensamento grego, introduziu-se a conotação contemplativa à espiritualidade e a
contemplação significava elevar-se acima das paixões e fraquezas humanas para
alegrar-se com coisas divinas. Tempos depois, o enfoque dado à espiritualidade
cristã apontava para a profunda humanidade de Jesus e convidava as pessoas a
fazer algo similar através da atenção esmerada aos sofrimentos, com serviços de
caridade e desvelo à vida de pessoas que passavam por carências e necessidades
variadas.
A
partir do século cinco, com o surgimento dos monastérios (grandes casas com
monges ou monjas), foi se alargando uma nova síntese para o significado de
espiritualidade. Consistia na fuga do mundo cheio de problemas e de
dificuldades para a convivência, a fim de morar em lugares afastados,
solitários e que permitissem cultivar uma intimidade profunda com Deus, através
da clássica noção de trabalhar, rezar e ler muito. A espiritualidade ficou
conhecida pela expressão latina de “Ora et Labora” (Reza e trabalha).
Depois
de mais uns séculos, já na Idade Média, assimilou-se a espiritualidade mais
pelo horizonte psicológico, no qual se deu primazia aos laços afetivos,
cordiais e de boa vizinhança. Deixou-se de lado a busca de elevados níveis
espirituais de cunho mais intelectualizado e mental.
Nesta
perspectiva, São Francisco de Assis tornou-se referência deste novo modo de
vivenciar a espiritualidade cristã, e, que foi sintetizada na expressão “paz e
bem” e na bela oração da paz, atribuída a ele, que ressalta a harmonização do
ser humano com as outras criaturas e com o cosmos.
O
jeito de São Francisco alastrou-se amplamente na Igreja e a renovou profundamente
para melhor. Suplantou o modo clássico de austeridade, resignação, renúncia e
abnegação. Por isso, sua perspectiva mais psicológica da espiritualidade ecoa
com muita simpatia ainda em nossos dias na Igreja católica.
2.1 –
Modos de buscar uma espiritualidade cristã
Já
salientamos diversos caminhos possíveis, mas, o que mesmo nos move a agir em
busca de espiritualidade?
Temos
uma capacidade de selecionar valores e projetos. Temos igualmente capacidade de
escolher caminhos que possam preencher nossas expectativas espirituais. Mesmo
que vivamos bombardeados por informações e veiculação de mundos religiosos,
tendemos a escolher a partir de referenciais conhecidos por alguém que nos é
simpático.
Desta
pessoa de confiança aceitamos argumentos e indicações sem muito senso crítico e
sem muita desconfiança da seguridade dos dados que ele nos apresenta.
Inicialmente não se percebem seus interesses ideológicos, sua visão mais aberta
ou fundamentalista, e passamos a assimilar o que ele nos sugere.
Deste
modo, muitas orientações para a espiritualidade cristã nos insinuam algo muito
propenso aos desejos: encontrar superação, êxito e prosperidade. Sob o
encantamento da Teologia da prosperidade, somos induzidos a precisar, mais do
que os outros, de graças, bênçãos e curas para que possamos sentir-nos mais
abençoados e muito mais agraciados por Deus do que os outros. E assim se vai ao
caminho da espiritualidade da mesma forma como a pessoa capitalista ambiciosa
parte para novas conquistas. Tal foco tende a amenizar e até a abafar qualquer
necessidade de corresponsabilidade pelo bem comunitário ou do bem comum.
Importa que um “eu” conquistador dobre Deus para que me seja mais favorável do
que vem se manifestando aos demais. Assim a barganha do poder pessoal, tende a
comprar tudo, até o céu, e a valer-se de chantagens e de tentativas de corromper
Deus para favores especiais e avantajados.
Por
outro lado, mesmo que a busca seja humilde, reta e honesta, o caminho não
costuma ser similar ao de pistas bem sinalizadas e belamente ornamentadas.
Trata-se muito mais de um tateio numa estrada que, a cada pouco, apresenta
atalhos, entradas e saídas que tornam insegura a trajetória.
Quando
se anda num lugar desconhecido e aparece insegurança a respeito do caminho que
conduz ao lugar onde desejamos chegar, sempre aparece simpática a indicação de
um caminho de atalho. Parece que ele nos aproxima em menos tempo do alvo
desejado. Além disso, os informantes dão tantas explicações que a gente imagina
a maravilhosa rota e já na primeira estrada de desvio, não mencionada, voltamos
ao velho impasse.
Na
busca da espiritualidade, que é este abrir-se para algo novo, que, de um lado
atrai, mas que, de outro, traz insegurança e até incertezas sobre o real
alcance do novo, os indicativos que encurtam a distância, geralmente
apresentados com detalhes minuciosos, constituem um alívio simpático, porque
nos levam a antecipar a proximidade de quem desejamos visitar. Assim também
existem itinerários de cultivo, que, no entanto, confirmam aquele ditado
popular de que o atalho normalmente faz o caminho tornar-se longo, difícil e
imprevisível.
A
busca da sensibilização para sentir e captar o Espírito de Deus, em vez de nos
aprofundar no caminho das Sagradas Escrituras, nos leva a atalhos de esoterismo,
meditação e yoga, religiosidade, etc. Isso não significa que estes caminhos não
levem ao fim desejado. Eles abrem perspectivas benéficas, mas podem não
constituir o caminho mais seguro para aprofundar-nos na espiritualidade.
Um
primeiro aspecto que requer de nós uma atenção especial é o do esoterismo.
1.1 –
Esoterismo
O
termo ‘esoterismo’ tende a ser entendido a partir da sua raiz grega ‘esotero’,
com o significado do que está dentro, ou, do que está no interior. Existe
também a palavra grega ‘exotero’ (com “x’ em vez de ‘s’) que significa o
contrário, o que é exterior e acessível a todos.
Feita
esta distinção, ainda resta um pequeno alerta de que esoterismo não é a mesma
coisa do que espiritualidade. Pode, no entanto, estar misturado e até confundir-se
com a espiritualidade.
O
esoterismo geralmente está relacionado com tradições filosóficas e religiosas
antigas, reveladas como novidades e segredos para a vida plena, mas, apenas
repassados para algumas poucas pessoas que são escolhidas ou às que mostram
muito interesse pela aquisição de conhecimentos falados ou escritos destes gurus
ou líderes. São despertadas pela vontade de entrar neste encantado mundo de
novidades e de mistérios ocultos. Por isso, facilmente se mesclam elementos do
ocultismo.
No
caminho do esoterismo cria-se uma espécie de mistério em torno de realidades
ocultas, que somente os iniciados teriam capacidade de captar ou acessar. Por
isso, cria-se uma graduação, como a de escada ascendente para os iniciados e
eles somente poderão aprofundar-se no conhecimento das realidades ocultas ou
divinas, subindo progressivamente estas etapas em que segredos da vida lhes são
revelados, aos poucos, e na medida em que avançam no discipulado.
O
que é peculiar do esoterismo é que os mais iniciados afirmam que conseguem
contatos com o sobrenatural ou com leis e segredos do universo, que segundo
eles, não seriam alcançáveis pelas outras pessoas comuns. Destes segredos,
revelados, aos poucos, e somente para algumas pessoas que fazem a iniciação,
estaria ao seu alcance um sentido mais profundo para a vida e as coisas que a rodeiam.
As outras pessoas não seriam capazes de captar estas realidades superiores.
Há,
portanto, um pressuposto no esoterismo a respeito da possibilidade de captar
segredos e mistérios raros, apenas para quem segue os passos de um mestre, guia
ou guru.
Além
de aspectos importantes que podem melhorar a qualidade da vida com este
seguimento, este caminho também pode envolver alguma malandragem e magia, a fim
de permitir aos líderes esotéricos a possibilidade de elevar-se socialmente
acima dos demais através da incorporação de elementos de curandeirismo e
mistura de elementos de diferentes religiões e filosofias. Tal processo,
chamado de sincrético, facilmente abre caminho para especulações um tanto fantasiosas,
sem comprovação real, objetiva e empírica ou prática do que se aponta.
A
tentação de alguém elevar-se diante dos membros do seu grupo de relações
através de acessos diretos e ocultos aos segredos divinos ou da natureza é muito
grande em nossos dias. E os que se dizem iniciados insistem na sua
superioridade, mediante treinamentos, exercícios, leituras e práticas de ritos,
alcançados por meio de condições especiais, mas, que acabam misturando ritos
mágicos para obtenção de forças ocultas.
Mesmo
em comunidades cristãs muito religiosas, certos membros atribuem a si mesmos
ares especiais de superioridade, porque se acham portadores de poderes divinos
como os de cura e libertação, de exorcismo, de línguas e de vidência do que vai
acontecer. Neste assunto, facilmente apelam a segredos de práticas religiosas e
espiritualistas, mas que, na verdade, nem são coisas tão ocultas, secretas e
privilegiadas.
Podemos
constatar que numa religião também se fazem ritos e orações para um diálogo
como o divino (Deus, o sobrenatural ou o além), mas, tem um fundamento, e uma
doutrina, que é aberta e acessível a qualquer pessoa, e não somente a um
pequeno e seleto grupo de pessoas iniciadas no seguimento de uma determinada
pessoa privilegiada que se apresenta como guru.
Está
ali uma diferença básica, pois, religião e espiritualidade tendem a abrir-se ao
mundo e às pessoas, enquanto que o esoterismo cultiva segredos e os revela
apenas a pequena parcela de seguidores.
Geralmente
o esoterismo se constitui num caminho fácil e atraente para pessoas que se
sentem excluídas ou pouco valorizadas num ambiente social e que, através do
esoterismo, procuram afirmar-se socialmente com seus poderes especiais de
previsibilidades, exorcismos e expulsões demoníacas. Todavia, a limitação mais
visível do esoterismo está no exclusivismo de poucas pessoas, enquanto que a
espiritualidade cristã é um caminho aberto a qualquer pessoa e a todas as
pessoas.
Num
nível parecido ao do esoterismo encontra-se a Yoga e a meditação. Têm raízes e
práticas milenares, mas, não necessariamente se afiguram como equivalentes à
espiritualidade cristã.
1.2 –
Yoga e Meditação
Tanto
a yoga quanto a meditação constituem atividades que podem ser altamente benéficas
para a qualidade de vida das pessoas. Todavia, existem muitas formas e muitas
orientações canalizadas para diferentes práticas religiosas e facilitam uma
mistura de crenças que pode mais atrapalhar do que ajudar na organização da
vida cristã.
Yoga
e meditação têm como objetivo geral uma harmonização de todos os campos da vida,
seja na lida diária, na consciência, na estabilidade emocional e no modo de
solidificar a personalidade.
A
busca de harmonia e de estabilidade normalmente implica em ajustar-se bem ao
entorno das pessoas e do lugar onde se vive. Esta capacidade de dar-se bem com
as pessoas próximas, como os membros de parentesco, de vizinhança ou dos
ambientes de trabalho, sempre é muito valorizada porque gera bem-estar e bom
humor na convivência.
Uma
das suposições básicas da Yoga é a de que existe uma harmonia na organização do
universo e que, através da meditação e dos exercícios de concentração, uma
pessoa consegue captar esta harmonia e inserir-se nesta bela organização do
cosmos.
Hoje
existem dúvidas a respeito desta suposição porque o universo pode ser visto
pelo contrário da harmonia e da estabilidade, uma vez que há uma constante
mudança e muita movimentação cruel como as forças que desfazem um planeta e
criam outro; e, mesmo se olharmos para a Terra: quanta violência e quanta morte
decorrente de vulcões, terremotos, guerras, entre humanos, entre animais e
entre forças da natureza.
A
própria e encantadora beleza de ambientes naturais revela que estão cheios de
agressividades, como a da água disputando espaços com a terra, as plantas
valendo-se de tudo para sobreviver e afastar outras que ameacem sua expansão;
animais que matam para sobreviver e perseguem a todos os outros que ameaçam seu
ambiente de reserva. Até os múltiplos tipos de passarinhos, que tanto nos
encantam pela beleza e pelos seus maravilhosos gorjeios, demonstram
agressividade cruel por conquistas de domínio e de espaço.
Certamente
é importante uma boa sintonia com o ambiente natural que nos envolve, porque
estamos mergulhados neste mundo de lutas pela sobrevivência em meio a grandes
mobilizações, sejam as do ar ou dos muitos eco-sistemas de vida, que podem
complementar-se de uma forma razoavelmente equilibrada. Isto nos ajuda a
perceber que, real e objetivamente, nem tudo é tão romântico e poético como
facilmente se pressupõe.
Nossa
proximidade com pessoas e com os ambientes cósmicos certamente não é igual ao
de um monte de pedras. Estas podem estar próximas e até amontoadas, sem estarem
conectadas entre si, por algum vínculo vital, afetivo ou de sobrevivência. Entre
os seres humanos, manifesta-se carência de proximidade com outras pessoas.
Se
uma pedra tirada de um monte de pedras não afeta as demais, uma pessoa que
morre, ou se afasta por algum motivo, pode perturbar e causar impactos
significativos na organização da vida pessoal das pessoas próximas.
Os
seres humanos também carecem de relações de outra natureza e de um sentido para
o que fazem. Mesmo com as enormes diferenças de grupos humanos raciais, sociais
e culturais, ecoa um grito forte que revela necessidade de vínculos de
proximidade e de interação com outras pessoas, com animais e com plantas.
Enquanto
que uma pedra tirada de um monte de pedras não afeta as demais que estão
amontoadas, em nós, por exemplo, se um órgão não funciona bem, ele acaba
afetando diretamente os demais órgãos. Da mesma forma, na convivência, algum
desequilíbrio, seja por doença, por tensão, conflito ou desencontro, afeta o
psiquismo e a afetividade. Pode ferir a auto-estima, pode causar decepção
profunda e desencantamento com as coisas; e pode mudar os projetos e as
mediações para o alcance dos objetivos, em vista de um sentido que dê razão à
vida. O físico Fridjof Capra, afirma que o nosso corpo é uma miniatura do
universo: é um grande sistema que organiza sub-sistemas.
Assim, podemos perceber que, o mesmo alimento
ingerido e o mesmo ar que respiramos, alimenta e oxigena os diferentes sistemas
como o respiratório, o ósseo, o muscular, o digestivo, o circulatório, o
neurológico, o urinário, etc. Cada um destes sistemas é autônomo, mas, ao mesmo
tempo está estreitamente interligado com os outros. O sistema central, que para
Capra é o emocional, permite um equilíbrio razoável para que nenhum sistema
seja prejudicado. No entanto, quando o estado emocional não está bem, pode
algum órgão não receber bem as necessárias enzimas ou desequilibrar o mundo dos
micro-organismos que o mantêm. Com isso, os anticorpos de defesa não conseguem
evitar que um tipo tome o lugar de outros e provoque o que chamamos de doença,
infecção ou enfermidade.
Como
a nossa consciência é capaz de estender-se para além do corpo, o que uma pedra
certamente não consegue fazer, meditação e yoga teriam esta função de nos
vincular melhor aos cosmos. Diferentes estágios de meditação e de exercícios de
concentração ajudariam a ampliar esta consciência para uma sintonia com a
harmonia do todo, que alguns vão denominar de Deus, ou simplesmente o divino
que integra e anima estes cosmos.
Entrar
em harmonia ou em ajuste amplo com o cosmos, independente das variedades de
perspectivas religiosas, com certeza, é um caminho que pode fazer bem para as
motivações da vida. É benéfico todo o recurso que ajude a estar de bem com a própria
personalidade, com a auto-estima, com o humor alegre e edificante. Sem dúvida,
ajuda para que os subsistemas do organismo possam ajustar-se melhor do que
mediante um psiquismo agitado, frustrado, pessimista e cheio de ressentimentos
e mágoas.
A
captação da grandeza de harmonia, tanto no sistema orgânico quanto no psíquico,
torna-se, evidentemente, uma tarefa valiosa para viver bem. Por isso, a
capacidade de controlar os sentidos e a mente sempre ajuda a desligar fatores
que perturbam o bem-estar e o sentimento de melhor integração na amplitude da
vida do cosmos.
Assim,
como os exercícios de relax são eficazes perante fatores que causam tensões e
mau funcionamento de órgãos, os momentos de meditação predispõem para melhor
organizar o rendimento da capacidade física, com boa oxigenação e adequação
orgânica. A meditação também ajuda a manter a mente mais calma e a produzir
maior capacidade de percepção de grandezas interiores, com a recriação de
energias e de boas motivações para intuir algo novo que melhore a qualidade da
vida.
A
mera capacidade de amenizar os transtornos de ansiedade já constitui fator de
reconhecimento à yoga e à meditação pela função muito importante na vida:
ajudam a plenificar a vida para mais sentido e alegria de viver.
Por outro lado, melhoram a concentração para tarefas
mentais, aumentam vigor o físico e psíquico, aumentam a liberdade e deixam as
pessoas mais criativas diante da pluridimensionalidade de situações imprevistas
que seguidamente aparecem na vida. Enfim, propiciam também um agradável
sentimento de viver a vida com maior inteireza.
No
entanto, parece que deixam uma lacuna no que se refere à construção dinâmica e
positiva do Reino que Jesus anunciou. Este requer algo para além de uma harmonia
estanque, pois, interpela a agir no meio da organização humana, conturbada, e
conflitiva, que não apenas carece de indignação, mas também do embalo para
elevar-se na qualidade.
1.3 –
Religiosidade
Religiosidade
constitui mais um campo da vida que facilmente se mistura ou se confunde com a
espiritualidade. Geralmente a religiosidade não alcança os objetivos da
espiritualidade, porque prende pessoas a piedades e a ritos exteriores que a
acomodam e levam a fazer sempre mais as mesmas coisas.
Uma
característica muito presente e visível da religiosidade é a do dogmatismo,
isto é, uma forte insistência em normas, regras, regimentos e apelos à
repetição de exercícios que até esvaziam a fé porque as pessoas são levadas a
observar preceitos e detalhes de rituais religiosos que não causam mudanças na
vida, mas apenas aprofundam os hábitos e costumes.
Outro
traço marcante da religiosidade é o do sectarismo, que também está presente em
outros modos de pertença a grupos, sejam eles de cunho religioso, político, ou
meramente social. Na verdade, o sectarismo é um fenômeno humano que se
manifesta em qualquer organização. Sectarismo vem da palavra latina “sectare”,
que significa separar uma parte do todo. Num exemplo prático, seria como pegar
um abacaxi, cortar uma pequena parte da casca e começar a sustentar que esta
pequena parte é muito melhor do que o resto do abacaxi. É uma tendência de
formar guetos no interior de um grupo maior de pertença. Envolve certa intuição
de começar algo novo e mais valioso para as pessoas do que aquilo que vem sendo
feito e oferecido no grupo maior.
Outra
ilustração do sectarismo no campo religioso é o da grande ramificação de novas
Igrejas evangélicas, e o de tantas congregações religiosas, ordens e movimentos
para a criação de grupos novos na Igreja católica, sejam de jovens, de casais
ou de interessados numa forma mais exclusivista de fazer algo parecido, mas,
muito melhor do que aquilo que vem sendo feito pelo grupo predominante.
A
intenção de querer oferecer algo melhor do que os outros oferecem, tende
facilmente para um rigorismo em torno de algumas práticas, o que leva muitos se
afastar, sem demora, da pertença ao grupo ou à comunidade, e iniciam a formação
de outros grupos, ou saem para procurar algum com o qual mais se identificam.
Isto gera uma grande migração religiosa e também uma rivalidade acompanhada de
intensa propaganda e de marketing para atrair maior número de membros ao novo grupo.
Ao
lado do rigorismo para agregar mais membros, o sectarismo na religiosidade leva
a muitas afirmações categóricas. É ‘assim porque é assim’ e ninguém pode
questionar nada. Nas expressões categóricas também são muito comuns conhecidas
formas de tratamento diretivo, como: faça isto, feche os olhos, ponha a mão no
coração, diga isso a Deus... No fundo, é uma forma que infantiliza as pessoas,
mesmo adultas para condições de submissão. Constituem táticas sutis de
dominação e de imposição a partir dos que estão no comando do grupo. Há um
ditado popular que ilustra este mecanismo: quanto mais fraco for o argumento a
ser apresentado, tanto mais se apela aos gritos, aos rompantes, aos gestos
patéticos e enfáticos, que, com os floreios da oratória, visam dominar os
membros ouvintes.
A
religiosidade também pode ser constatada pela busca um tanto obsessiva de
grandes feitos e obras. Nesta propensão materialista em torno de algo
impactante, como obras, eventos e grandes concentrações, facilmente os que
muito apelam a uma espiritualidade superior, acabam mesmo esfriando o fervor da
fé, porque insinuam demais na execução de orações, de tarefas e atividades programadas.
Ao
lado desta exteriorização, a religiosidade também tende para a centralização do
barulho e da agitação. Muito grito e muito exagero no volume do som refletem
que a aspiração maior é a conseguir alargar o número de adeptos. É por isso que
podemos assistir a tanta extravagância em celebrações religiosas, onde o mais
importante é a ascensão de quem anima o grupo. Dali também decorre a promoção
de muitos eventos ostensivos que, na argumentação, são para Deus, mas que,
efetivamente, visam o engrandecimento dos promotores.
Ainda
outra perspectiva marcante da religiosidade é a da concepção meramente
antropocêntrica, isto é, o fim são conquistas humanas de um grupo ou de uma
organização e não o que se almeja como mundo mais integrado no amor de Deus. Assim,
criam-se normas para os outros e alargam-se orientações para piedades, que precisam
ser executadas nos mínimos detalhes exteriores.
Como
se pode observar, a religiosidade apresenta um alto potencial de alienação. Ao
invés de alargar direitos e condições dignas, desloca o foco das atividades
para muitas obras e eventos que não aproximam da experiência de Deus.
IIª PARTE
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
Se
a comparação da busca de espiritualidade cristã, feita ao caminho e seus
atalhos pode nos ofuscar a clareza em torno de um rápido e seguro caminho para
aproxima-nos mais de Deus, o mesmo se pode efetuar diante dos muitos caminhos
conhecidos e que não necessariamente levam a melhores níveis de
espiritualidade.
Além
dos caminhos variados e das paisagens muito diversificadas que podem distrair e
desviar o foco, muitos podem surpreender-nos, encantar-nos, mas, também trazer
muitas dúvidas e incertezas que atrasam e protelam as expectativas alimentadas.
Como
espiritualidade implica em busca pessoal e dinâmica, podem alguns caminhos
frustrar-nos e sequer levar ao destino almejado. Mesmo a motivação profunda de
querer orientar-se para Deus, pode desviar-se da efetiva aproximação porque nos
distraímos com rótulos ideológicos e com indicadores do melhor percurso, nos
amarram com outros pedidos secundários de quem, em troca, quer carona para
outro endereço, ou nos pede outro favor mediante a informação fornecida. Assim,
a necessidade de pedir informações a muitas outras pessoas, desvia do programa
estabelecido com as melhores esperanças.
No
caminho do discipulado de Jesus Cristo, também não estamos livres de dissabores
e de muitas decepções. Por isso, o cultivo da vontade de ser melhor e de ser
mais humanitário, a exemplo de Jesus Cristo, requer uma disciplina. Momentos de
silencio, de meditação e de escuta do que se passa nos sentimentos mais
profundos, são certamente fundamentais para o avanço no caminho da
espiritualidade.
Do mesmo jeito que um deslocamento
através de um caminho já conhecido pode nos trazer imprevistos e surpresas,
tanto agradáveis e prazerosas quanto desconfortáveis e decepcionantes, pode um
caminho de espiritualidade, defrontar-nos com imprevistos e vacilações que
dificultam a segurança no caminho indicado por Jesus Cristo.
Ainda
que o caminho escolhido se apresente seguro, implica em lidar com o humor para
que a viagem não se torne um pesadelo. A não integração dos sentimentos
perturbadores pode distrair e atrapalhar a viagem. Assim, a espiritualidade do
“eu pecador” que quer elevar-se à grandeza de “Cristo salvador” requer empenho
regular.
Nas
buscas de aprofundamento da espiritualidade cristã torna-se valiosa a sensibilidade em torno das expressões
empáticas dos que nossa indicam caminhos, quando eles realmente manifestam
sentimento de valor à nossa pessoa. Esta capacidade de amor empático, de quem
realmente quer nos ajudar, seja a de sentir nossa inquietação, dúvida,
incerteza, quanto de sentir nossos grandes anseios, é muito valiosa para o
êxito do caminho.
2.1 – Uma
Espiritualidade que cega
Na
Bíblia católica, consta dentre os livros do primeiro testamento, o livro de Tobias
que menciona a cegueira de Tobit. Este texto não faz parte das Bíblias de
Igrejas Evangélicas. Este livro, aparentemente sem maior importância, apresenta
uma história em torno das dificuldades
vividas numa família, exilada da região do norte de Israel para a cidade de
Nínive, na Assíria.
Tobit
foi homem de profunda piedade, muito reto na observância das prescrições
bíblicas, muito caridoso, humanitário, que enterrava os corpos dos judeus que
morriam ali no exílio, jogados na rua; também se notabilizava pelo zelo e pela
piedade e fiel observância dos costumes judaicos. Casou-se com Ana, com quem
teve um filho, chamado Tobias, mas, toda esta prática religiosa e ambiente
familiar não impediu que se tornasse uma pessoa altamente insatisfeita e
lamuriosa. A culminância foi a da cegueira. Sem dinheiro e sem condições de
trabalho, virou feito um feixe de lamúrias e passou a levar uma vida pessimista
e cheia de lamentações.
Na
verdade, o velho Tobit começou a olhar demais para o céu, e muito pouco para as
coisas da Terra. A narrativa deixa a impressão de que se tratava de uma pessoa
piedosa, mas, pessimista a tal ponto que não via nada de bom ao seu redor. Mesmo
sendo uma pessoa altamente religiosa, nutria uma espiritualidade alienante.
Segundo o texto, ao olhar demasiadamente para o céu, caiu cocô de andorinha
sobre seus olhos e ele ficou cego.
Sem
capacidade de lidar com os problemas do dia-a-dia, e, sem satisfação com as
muitas piedades e práticas religiosas, ele, na verdade, ficou cego de sentido
para a vida, mais do que de vista, porque não acumulou ‘luz’ em sua vivência
religiosa para iluminar e contornar as dificuldades da sua vida.
2.1.2 - A
cura da cegueira do velho Tobit
Na
vivência do vazio interior, o velho Tobit foi se afundando na depressão e na
perda de gosto pela vida. Um dia apareceu-lhe uma visita especial de um amigo,
que se tornou um anjo, porque foi um intercessor em favor de novas razões para
a vida de Tobit. O amigo foi Rafael (Rafael significa que Deus cura).
O
fechamento de Tobit sobre si mesmo, cedeu lugar, pela mediação de Rafael, a uma
alegria contagiante em vista de algo novo, capaz de perceber para além do
pessimismo, que o havia esvaziado do gosto pela vida (Tob 5,10: “que alegria ainda posso ter? Estou cego e não posso ver a
luz do céu; estou mergulhado nas trevas, como os mortos que não contemplam a
luz; vivo como um morto; ouço a voz das pessoas mas não as vejo. Disse-lhe o amigo
(que o atendeu como um mensageiro de Deus naquele infortúnio): tem confiança,
que Deus em breve te curará. Ele te curará!...).
Hoje
falaríamos que Tobit entrou em estado de depressão. Igualmente deduzimos que a
exterioridade da sua vivência religiosa não lhe deu um suporte seguro e estável
para lidar com os momentos difíceis da vida. No entanto, graças ao humor alegre
de uma pessoa amiga, recuperou o que já havia sumido na sua vida: a confiança.
Este
amigo Rafael desencadeou o processo de saída da depressão: ofereceu-se para
acompanhar o filho Tobias a fim de ir ao país vizinho tentar reaver um
empréstimo que Tobit havia feito antes de ser levado ao exílio.
Na
viagem, algo inusitado aconteceu com Tobias, filho de Tobit. À noite, acampados
na beira do rio Tigre, ele quis lavar os pés e um grande peixe quis morder o
pé. Peixe grande da profundeza do rio significa o inconsciente da pessoa.
Quando uma pessoa está mal integrada e sem controle sobre seu inconsciente,
este pode leva-lo a fazer coisas muito piores do que morder o pé. Ele pode
mover a pessoa para a violência, para a tristeza profunda, para a insatisfação
e para a incapacidade de integrar-se na convivência com os outros. O
inconsciente desajustado pode induzir a muitos comportamentos doentios de
obsessões, rejeições, violências e, até de mecanismos de auto-destruição.
Naquele ambiente sem graça do velho Tobit, Tobias foi perdendo o gosto pela
vida, mas, também o sentido para conquistar algo novo e diferente.
O amigo pediu que Tobias agarrasse o peixe a
fim de extrair-lhe o fel, o coração e o fígado, porque se constituiriam em
remédio muito útil. Rafael disse que o coração e o fel teriam a capacidade de
expulsar espíritos maus. O fel curaria manchas brancas dos olhos.
À
noite, Rafael sugeriu pernoitar na casa de Ragüel, um parente de Tobias e que
tinha uma filha chamada Sara, com quem Tobias poderia vir a casar-se. Havia, no
entanto, um problema: Sara teria se casado sete vezes e terminado com a vida
dos maridos na primeira noite, e, assim continuava sem filhos. Quis suicidar-se
pelo distúrbio, mas, não teve coragem. Na verdade, o mesmo interesse pelo
suicídio também já havia passado pela cabeça de Tobias e só não interrompeu o
fluxo da sua vida por falta de coragem.
Diante
das perguntas de Ragüel, Tobias lhe revelou que era filho de Tobit. Ragüel lamentou profundamente a informação
dada sobre a cegueira de Tobit. Na janta, festiva e animada, Tobias criou
coragem inusitada e pediu Sara em casamento. Mesmo com a informação do que já se
sucedera nos sete casamentos anteriores de Sara, Ragüel almejou felicidade aos
dois a partir daquela noite, o que transformou a o estado de tristeza profunda
de Sara em alegria exuberante.
Ainda
naquela noite Sara colocou o fígado e o coração, que Tobias trouxera, sobre
brasas. O cheiro teria expulsado o demônio que teria tomado conta da vida de
Sara. Afinal de contas, que demônio teria perturbado a vida de Sara?
Para
os povos antigos o fígado era considerado como o órgão responsável pelo humor.
Tristeza e melancolia, na cultura grega, equivaliam à bílis negra ou
intoxicada; e que levava a vômitos, alergias, icterícias, etc. Já na cultura do
povo da Bíblia, o fígado era considerado a sede das emoções, tais como as de
medo, ciúme e cólera, emoções que eram capazes de impedir e de abafar o brilho
da luz vital de uma pessoa.
Ainda
outro significado de fígado, é aquele que procede da língua latina, pois
“Ficatum” significava figueira. É neste contexto que podemos entender a
estranha expressão de Jesus Cristo, feita a Natanael: ‘ eu te vi sob a
figueira!’. Era como dizer: ’eu te vi ocupado em atividades boas, em torno de
algo edificante e valioso’.
Muitas
vezes, como ocorreu com Sara, esta luz motivadora da vida desaparece e então
aparecem mecanismos entrópicos de cegueira e de desgosto com a vida. O trabalho
do anjo Rafael, ao indicar um sentido novo para Sara com Tobias, mostrou como
um gesto simples de fígado no seu bom desempenho, permite a agradável
experiência de que ‘Deus Cura’, que é o significado da palavra Rafael. Sara
mexeu no segredo da bile e conseguiu livrar-se da sua profunda tristeza e,
simultaneamente propiciar uma nova perspectiva para Tobias e seu velho pai
Tobit, que, com a aplicação do remédio, preparado por Sara, voltou a enxergar e
a viver na alegria...
O
episódio que envolveu tristes momentos na vida de Tobit, e que o levaram à
cegueira, teve uma guinada que transformou radicalmente o humor deste velho
frustrado: alegria exuberante no lugar da cegueira e do fígado azedo, ou, como
diríamos hoje, cegueira do mau humor.
A
pessoa amiga, - que foi Rafael, - ajudou a mudar a cegueira de Tobit, mas, articulou,
antes disso, o entorno da vida de Tobit, pois, agiu com perspicácia e bom senso
para a mudança radical na vida de Sara e de Tobias. Este belo resultado,
decorrente da atenção humanitária de Rafael, foi fundamental para que Tobit
pudesse novamente encantar-se com a alegria, no lugar da cegueira pessimista.
Assim,
uma espiritualidade cristã, deve sensibilizar-se para o que Deus revela na
contingência desta vida através de tantas coisas que podem afigurar-se como
ação bondosa de algum anjo Rafael. Espiritualidade requer atenção aos sinais
sensíveis do entorno humano que nos envolve. Do contrário, pode-se cair na
tentação de assimilar a espiritualidade como um mero processo ambicioso de
grandes conquistas.
2.2 – ESPIRITUALIDADE
DO “EU CONQUISTADOR”
Assim
como o sistema capitalista induz a conquistar a felicidade pela superação e
pelo acúmulo de bens, somos seduzidos a conquistar, num processo similar,
níveis, estágios e parâmetros mais elevados de espiritualidade. Com isso, ao
invés de nos tornar melhores em gestos e modos de ser, nos preocupamos
eminentemente pelo alcance de graças, de milagres, de curas, a fim de alargar o
poder pessoal e conquistador. Deste modo, o forte e poderoso já não é mais
Deus, mas, quem o convence e o dobra para atender pedidos e súplicas.
Na
verdade, esta perspectiva de espiritualidade, transforma a lida da
perfectibilidade em grande ocasião de negócios e de conquistas para aumentar o
poder espiritual.
Trata-se
de uma espiritualidade ascendente, que deseja elevação, reconhecimento e status
diante de Deus.
Como
vem ocorrendo convencimento intenso em favor de uma sociedade de consumo,
corremos o risco de entender algo parecido com a espiritualidade cristã. Quando
o fascínio indica a espiritualidade consumista, não interessa muito o empenho
para superar certos efeitos negativos dos transtornos psíquicos’, nem mesmo
preocupação com as dificuldades das pessoas do entorno, porque o estímulo
consumista leva a pensar obstinadamente nas metas, nas estratégias e nos prazos
estabelecidos para o alcance da realização dos desejos.
Com
esta atenção cegamente focada para o consumo de níveis ou quadros de maior
felicidade, acaba não sobrando muito espaço para as questões sociais e nem
tampouco para as interpelações do Evangelho de Jesus Cristo. Importa mais o
alcance do desejo pessoal e o seu devido reconhecimento.
A
espiritualidade conquistadora centraliza o desejo de felicidade, mas leva a
buscar a instância divina para ampliar o poder de auto-afirmação e, para tal
fim, importa quem facilita os interesses de forma simpática. Assim, muitas
pessoas santas são veneradas com maior intensidade, de acordo com seus supostos
créditos de fornecimento das presumidas graças que estão sendo esperadas. Como
nas lidas políticas, quer-se do campo da espiritualidade um meio de obtenção de
vantagens.
Sob
este perfil de espiritualidade, temos diante de nós uma imensa oferta de
propostas de êxito e alcance dos segredos espirituais. Na facilitação dos
atalhos, esperam-se acessos impregnados de magia e de intimismo a fim de
favorecer larga prosperidade material. Nesta ótica, não atrai a proposta de um
eventual caminho de solidariedade, a ser penosamente construído, e nem tampouco
uma cordialidade capaz de gestar experiências humanas gratificantes.
Nesta
perspectiva conquistadora também não interessa eventual caminho de
espiritualidade que ajude a lidar com as próprias fraquezas. Esta dimensão da
vida tende a ser abafada e ocultada pelas couraças de auto-defesa em função do
privilégio das metas a serem conquistadas.
Com
tal quadro, impõe-se a espiritualidade egocêntrica do sujeito isolado que quer
ser feliz, mas que, em nada se compromete pela elevação da justiça e de
condições mais dignas para tantos seres vítimas de espoliação.
O
resultado desta espiritualidade conquistadora equivale ao que se costuma
observar no macaco que mete a mão na cumbuca de nozes e enche tanto a mão que
não consegue mais tirá-la e sequer desconfia que se pegasse uma ou duas nozes,
poderia tranquilamente comer muitas e saciar sua fome.
A
espiritualidade na perspectiva bíblica cristã nos interpela para uma capacidade
que melhore o nível de solidariedade com as pessoas do entorno. Por isso, é bom
lembrar um lembrete do escritor francês Marc Auger relativo à importância do
empenho pela boa interação com outras pessoas: alguém somente consegue aumentar
sua auto-estima e o bem-estar consigo mesmo, quando se dá conta de que se amplia
o número de pessoas que lhe manifestam sentimentos de estima e de bem-querer.
2.3 – ESPIRITUALIDADE
DE ASCENSÃO
Muitas
pessoas que desejam crescer na espiritualidade cristã partem de uma questão
desviada do foco: inquietam-se em torno do que querem saber e conhecer, mas,
não se perguntam como poderiam ser melhores na convivência com os outros e com
o mundo frágil das próprias limitações.
O
risco desta espiritualidade é o do cultivo excessivo de ideais. Muitas pessoas
vivem de idealizações em torno do que querem atingir e dos níveis de santidade
que querem viver. Até se envolvem com belos sonhos de heroísmo e de virtudes de
grandiosa santidade com vistas a sentir elevação através de admiração e
encantamento por parte de outras pessoas.
Esta
perspectiva de espiritualidade traz o risco de produzir ‘espiritualidade
amouca’, isto é, leva as pessoas a não viverem seus próprios sentimentos, mas,
movem-se por intensa paixão pelo que lhes foi repassado por certos gurus. Por
isso, são capazes de brigar, perseguir e odiar por ideias alheias e ofender
muitas outras pessoas, simplesmente, pela defesa de uma orientação nem sempre
muito merecedora de consideração.
Brigam por ideias produzidas por outras
pessoas, e em torno delas agridem, humilham, destratam e partem para as
múltiplas formas de agressão e violência, especialmente a simbólica, através da
qual atacam os símbolos de valor das outras pessoas.
A
repressão da própria identidade para brigar e até matar por causa da defesa de
ideias alheias, geralmente reflete uma divisão interior doentia.
2.4 – ESPIRITUALIDADE
MIDIATIZADA
Constitui
certamente outra forma de espiritualidade vistosa, atraente, que advém do novo
jeito oferecido para o contato entre o fiel e o sagrado, através da mídia
eletrônica. É um simpático atalho que encurta caminhos de cultivo pessoal e
leva a experiências emocionais intensas e entusiasmadas.
O clima emotivo, com muito contraste de cores,
de cenários e de traços ornamentais dos gurus produz uma sensação festiva e
alegre para uma agradável experiência de Deus e desencadeia rápidos estágios de
êxtase e de alucinação eufórica.
Os
apresentadores, como as agências de turismo, apresentam roteiros atraentes, insinuantes
e com promessa de muita alegria e felicidade. Esta nova ambiência religiosa,
sem genuflexórios, sem inclinações humildes para expressar arrependimento, sem
a dureza das longas horas de oração, motivação, meditação e escuta do que se
passa no interior, tende para o clima festivo, exuberante e irradiador para o
fervor de um transbordamento do agir divino. É como um baile bem animado que
arrasta grande número de casais para a pista de dança.
Esta
nova modalidade de prática religiosa conta com o fantástico recurso “off-line”
para que mensagens sejam veiculadas e os espertos gurus rezam em favor da
pessoa fiel em dificuldades, como balconistas que tem atrás de si prateleiras
entulhadas com todas as ofertas que pobres pedintes possam esperar de Deus.
Ampliam-se
ao infinito as ofertas de mensagens religiosas, devocionais e com garantias de
efeitos imediatos para todos os gostos e necessidades. Assim, oração e cultivo
de fé viram sinônimo de marketing de grupos religiosos, com exposição ao vivo
da execução dos milagres e das curas (normalmente meros rituais de transe e de
auto-sugestão).
Da mesma novidade, mobilizam-se as capelas
virtuais com as mais atraentes ofertas de sagrado, com variadas orações em
“off-line”, de modos que uma pessoa em dificuldades já nem precisa rezar. Basta
que envie um valor ao guru, e o esperto rezador já negocia com Deus, em favor
desta pessoa, e lhe assegura, em meio à intensa bajulação, a realização do
milagre, desde que esta pessoa continue a colaborar com uma causa maior do
apresentador e igualmente se disponha a ajuda-lo e a promovê-lo diante de
outras pessoas, como alguém extraordinário, superior e poderoso no ajeitamento
das mediações espetaculares da parte de Deus.
Assim,
o meio comunicacional da mídia eletrônica produz nas pessoas fiéis uma vivência
de fé muito distinta daquela que veio da tradição cristã, porque a midiatização
constrói mundos sociais de pessoas e as induz a uma lógica de religião que não
tem nada a ver com penosa construção de comunidade, de cordialidade e de
superação de problemas sociais. Bastam buscas individuais que abasteçam o
intimismo do “eu” através do “meu Jesus Cristinho”, ou as da cega obstinação com
santos e santas protetoras, a fim de que através destas figuras galãs, Deus se
dobre aos seus pedidos insistentes.
O
resultado desta suposta espiritualidade é um nítido distanciamento de Jesus
Cristo, ou numa fixação em frases, procedimentos e aspectos isolados em torno
de Jesus Cristo, sem aderir ao conjunto do que ele fez e ensinou. Cria-se,
deste modo, uma nova religião, onde o sujeito se torna a referência e o centro
da religião. Ele não tem caminho difícil a percorrer e nem a aprender para ser
melhor, pois a sua religião é o que ele pensa e o que ele produz a partir deste
pensamento.
A
lenta, vagarosa e difícil ascese, cultivada ao longo de tantos séculos, cede
progressivamente o lugar à rapidez dos signos da informática com vistas a
oferecer, com muita velocidade e, de imediato, o suprimento dos desejos
subjetivos. Por isso, o quarto de uma pessoa passa a ser o lugar que equivalia
ao espaço da Igreja comunitária. Ali, no quarto, através do celular ou do
computador, escolhe-se, altera-se, combina-se a gosto e “deleta-se” o
indesejado. Sobra somente uma espiritualidade que depende do humor da pessoa
fiel.
No
meio deste mundo de interesses fragmentados, tanto na oferta quanto na procura,
as antigas tradições litúrgicas e os programas de vida para uma elevação do
nível da espiritualidade, passam a ser substituídas pelas escolhas, que são
feitas de acordo com as simpatias, com os tipos de gurus que animam programas
religiosos, e o perfil ideológico de quem orienta a vida. Aquilo que interessa
é gravado, compartilhado, difundido e recomendado como o melhor para a obtenção
de grandes bênçãos, graças, milagres, curas ou intervenções especiais da parte
de Deus.
Como
é quase evidente de se concluir, o aporte, ou alcance desta espiritualidade
parece distanciar-se cada dia mais do âmago da mensagem de Jesus Cristo e deixa
uma dúvida crucial: todos estes rituais “off-line”, educam para maior qualidade
de vida? Eles levam a constatar que o nível de satisfação com a espiritualidade
buscada é dinâmico e crescente?
Talvez
se deva tirar pano novo do meio das coisas velhas do baú da vida que, com
certeza poderá conduzir a um estágio mais elevado da qualidade de vida.
2.5 – ESPIRITUALIDADE
DA PEQUENEZ INTERIOR
É
caminho difícil como descer uma ladeira íngreme, com muitas pedras, valetas e
empecilhos que impedem deslocamento suave, fácil e agradável. Implica em descer
ao mundo interior e lidar com as próprias paixões, com as fantasias e com as ideias
obsessivas que seguidamente voltam a perturbar a mente.
O
difícil caminho da descida para dentro de si mesmo tende a assustar e a
despertar mecanismos de desvio, como o da distração, o do pavor de ter que
confrontar-se com as fragilidades, e com os tantos outros traumas e desencantos
que se cruzam no fundo do poço do próprio psiquismo. Ali geralmente afloram em
abundância as muitas experiências fracassadas, as decepções que feriram os
sentimentos, os erros reais que foram cometidos, além das muitas opções feitas
na vida que não levaram aos resultados almejados.
Lidar
com as feridas da própria existência facilmente leva a uma constatação: mesmo
com todas as próprias forças engajadas, ajeitar-se consigo mesmo, e com os próprios
problemas é tarefa que excede as forças pessoais. Somos frágeis, carentes de
algum amparo, de algum interlocutor, enfim, de algum “TU” que nos mostre que
mesmo tendo um longo e penoso o caminho pela frente, podemos alcançar a meta
que o próprio coração aponta: o de nos sentir bem, e o de sermos capazes de
amar e de nos sentir amados.
Segundo
o renomado místico alemão Anselm Grün, quando se consegue entrar neste abismo
de desconforto, que é o mundo interior, já se entra no pátio de Deus para bater
na da porta de Deus. Basta bater, pois, Ele se encontra ali e pode ajudar para
que consigamos conviver com o marasmo que nós mesmos conseguimos produzir em
nós. Por isso, o caminho de cultivo da “espiritualidade para baixo” nos leva a
rezar não as conquistas e as grandes façanhas, espertezas, astúcias, obras e
ações exteriores, mas, exatamente, o desconforto com os fracassos e com as
feridas que continuam a produzir mal-estar, bem como a incapacidade de nos
sentir bem no próprio corpo.
Esta
espiritualidade que mexe no baixo mundo dos porões do nosso interior é, precisamente,
a que nos leva a rezar, a fim de que a ajuda de Deus permita que integremos o
passado ferido e, mesmo com um pouco de complacência, que aprendamos a nos
ajeitar com ele e a torna-lo fonte de brincadeira e de bom humor. Em outras
palavras, é aprender a reconciliar-se com as próprias paixões e aprender a
escutar os ecos das raivas que ainda ecoam em nossos sentimentos feridos.
Então, emerge o evidente: carecemos da misericórdia de Deus e necessitamos
perdoar nosso passado mal integrado em
nós mesmos para liberar o fluxo do que nos eleva no gosto pela vida.
Por
vezes este caminho difícil implica em desvencilhar-se de outra pessoa que é
trazida negativamente para dentro deste mundo das paixões. Esta pessoa, mesmo
distante ou já falecida, pode ser reavivada na memória e manter-se incrustada
no melhor espaço do “eu” para causar um grande mal. Então, vem a difícil tarefa
de dar a mão a esta pessoa, declarada inimiga para que deixe de ser adversária
ferrenha ou perseguidora sem tréguas. Mais do que bater o olho no olho desta
pessoa, torna-se necessário estender a mão à ideia que produzimos a seu
respeito e que, interiorizada, continua a ser repetida constantemente de modos a
reavivar os irritantes sentimentos desagradáveis ou de mágoa de tempos
longínquos e que já não deveriam mais causar qualquer mal-estar.
Aprender
a viver com os limites, com todos os defeitos de fábrica das nossas
predisposições para certas doenças, permite encontrar verdadeiros tesouros nestes
vasos de barro amontoados em nosso mundo interior, mas, que contêm joias
preciosas do valor da nossa vida e que enfeitam os traços peculiares e genuínos
da nossa personalidade. Esta consciência é altamente recriadora e permite
perceber que diante das portas que se fecharam outras já podem estar
escancaradas para acolher ou se encontram acessíveis para serem abertas e
permitir novas descobertas da grandeza de Deus, independente da constatação
desta frágil pequenez da nossa condição.
EPÍLOGO
Com
o rico aporte da espiritualidade cristã, podemos trilhar o caminho dos
discípulos de Jesus Cristo. Como fez com o mendigo da piscina de Siloé, Jesus
não efetuou nenhum ato mágico, nem hipnótico, nem induziu a um estado de
transe; não fez cura nem libertação, nem concessão de vantagem e nem, tampouco,
jogou o mendigo na piscina, segundo seu desejo, alimentado há décadas.
Jesus
simplesmente indicou um caminho com a cama: pega sua cama e ande! Cama
significa o mundo passado, com aquilo que deu certo na infância e nos
mecanismos de ajustamento do bloco familiar, mas que, na vida adulta, não
produz mais os mesmos efeitos. Muitas manhas, artimanhas, diante de
acontecimentos que não deram certo para o alcance de estratégias usadas,
apontaram o caminho da cama. Frustrações, sentimentos de desamparo e
expectativas de afeto, ao lado daquelas dores de mágoas, facilmente induzem
alguém a ficar de cama.
Cama
é refúgio tão bom e tão agradável, mas, a permanência prolongada na cama
atrofia os músculos e pode tornar uma pessoa dependente e incapaz de andar...
Além disso, leva a remoer todos os dias os mesmos sentimentos. E quando estes
são de mágoa, de raiva ou de culpa, o psiquismo acaba não despertando nada
melhor do que comprar atenção e afeto.
Aquele
mendigo interlocutor de Jesus, socialmente sustentado e rotulado ao nível da
mendicância pelos que o acompanhavam há trinta e oito anos, não foi convidado,
pelos religiosos de fervor e zelo que por ele cruzavam, para sair deste nível
de dependência. Nem mesmo se moveram por um tão simples ato caridoso de jogá-lo
na piscina e resolver seu problema.
O
ambiente religioso daquele lugar social havia transformado o mendigo de afeto a
acomodar-se a passar o tempo todo vivendo de migalhas dos religiosos que o alienaram
a este papel social de mendigo.
Hoje
continuamos rodeados por mendigos. Alguns são pedintes de esmola para
sobreviver, mas, muitas levas são meros mendigos de afeto, unicamente movidos
pelo sentimento de que merecem dó, compaixão e bajulação. Dependentes,
submissos e atrelados a opiniões alheias, sobretudo, de lideranças da
comunidade cristã e dos orientadores espirituais, não andam na vida porque
esperam soluções de pessoa iluminada e poderosa. São como lanternas sem
bateria.
Andar
com a cama equivale a lidar com as próprias limitações, com feridas expostas
que muitas vezes precisam receber um curativo, para permitir que,
simultaneamente, se possa ajudar melhor a outras pessoas em dificuldades, e que
carecem, geralmente, de muito mais do que de curativo. Elas carecem de sentido
para além do que vivenciam. Por isso a espiritualidade da vida cristã permite
que a preciosidade do jeito de Cristo, através da fragilidade do vaso que é a
nossa própria vida, seja estendida a outras fragilidades de pessoas que
necessitam de curativos e de alguma palavra de esperança.
A
recomendação de Jesus ao mendigo foi a de que andasse com a cama. Assim, quando
nos atrelamos à cama, ao mundo da lamúria e da prostração porque não recebemos
o desejado, acabamos presos à cama (ao passado) e não ultrapassamos o mundo
cinzento das lamentações. O estímulo para andar com a cama, fez com que o
mendigo andasse e retornasse com razões para louvar a Deus. Isto é muito
diferente do que sessões de louvor que não passam de compra de afeto e que
levam líderes espirituais a almejar multidões de seguidores e com o fito de constituir
um fã-clube de bajuladores, mas, que apenas despertam atrelamentos à “cama” da
dependência servil, sem andar com a cama (com os problemas produzidos no
passado).
A
espiritualidade cristã pode ainda hoje alargar duas dimensões que necessitam
relacionar-se: a do gratuito amor de Deus e a da contingência e da fragilidade
da condição humana. Para esta relação tornar-se complementar, não basta o
extremismo de entregar-se resignadamente à espera de soluções da parte de Deus
ou de outras pessoas; e, nem, tampouco, o outro extremo de um “eu” isolado, que
conquista o que deseja, e que pretende colocar Deus no seu bolso como moeda de
barganha.
Como
joia mantida em vaso de barro, a preciosidade da nossa vida está envolvida pela
hipersensibilidade alérgica a incontáveis manifestações capazes de despertar
reações desproporcionais, impróprias e inadequadas para o bem viver com o mundo
interior e permitir que dele possam emergir motivações boas para conviver,
tanto com a constatação dos estragos no invólucro de nossas marcas afetivas,
quanto com as incontáveis situações que atrapalham a convivência normal do dia
a dia.
Enfim,
evidencia-se que a espiritualidade cristã requer a condição de humilde
caminhante. O seguimento de Jesus Cristo, na condição de discípulo aprendiz
pela vida afora, levará a integrar o passado com um olhar de gratuidade perante
o que foi superado, e, com uma sensibilidade aguçada para auscultar melhor as
vozes, as luzes e as interpelações de Deus, em meio às tantas dúvidas, impasses
e desencontros que se mesclam na nossa rica consciência humana.