domingo, 22 de novembro de 2020

NOSTALGIA DE HÁBITOS

 

 

            Existem hábitos e hábitos: uns envolvem praxes nos procedimentos; outros, envolvem vestuário de cunho religioso, talar e litúrgico.

1 - Hábitos psicopáticos

No campo dos procedimentos humanos existem hábitos doentios e psicopáticos, através dos quais pessoas se valem de manipulações para obter confiança de outras pessoas. É o tipo de procedimento em que pessoas exploram favores para prender outras pessoas à sua dependência, através de sentimentos de dívida.

Como possuem um “ego” muito irreal e elevado de si mesmas, as pessoas marcadas por traços psicopáticos gostam de falar de si e de inflar-se com elogios aos procedimentos efetuados. Veem perfeição nas táticas que usaram para vencer outras pessoas e mostram-se arrogantes na capacidade de elevar ainda mais seu “ego”.

Como não são empáticas, as pessoas psicopáticas pouco ligam para os outros, e mesmo que sofram adversidades, sustentam seus procedimentos com firmeza e agressividade, porque se consideram referências íntegras e corretas. E, para sustentar sua imagem acima do limiar da normalidade, mentem descaradamente em função do que desejam. Em decorrência, não vivenciam quaisquer sentimentos de vergonha, de arrependimento ou de culpa pelo que prejudicaram outras pessoas.

Estes hábitos mórbidos revelam indiferença diante dos outros. Tampouco se emocionam com suas dores ou alegrias, porque são egoístas e confiam excessivamente em si mesmas. Por isso também tendem a ser agressivas e violentas com as demais, uma vez que se orientam precipuamente pelas suas práticas, rotinas e manias.

2 – Hábitos edificantes

Os hábitos, quer de horário, de procedimentos de higiene, de equilíbrio da saúde; de boa relacionalidade; de auto-controle; de vida saudável; de auto-avaliação; de busca e cultivo de valores religiosos e de aprimoramento de auto-transcendência e de boa qualidade de vida, etc., podem produzir não apenas identidade de elevada auto-estima, mas, também de elevadas motivações para o bem viver.

Por outro lado, os mesmos bons hábitos podem enrijecer a flexibilidade diante de novidades, imprevistos e interpelações variadas que a toda hora aparecem. Assim, os hábitos podem agir de forma similar à ação dos carrunchos na madeira e podem prejudicar tanto a dimensão religiosa quanto de sensibilidade ante apelos fortes que advém de todos os lados.

Os hábitos, se de um lado dão firmeza e segurança ao que se faz, podem produzir resistência a quaisquer mudanças e inovações, porque levam as pessoas a agarrar-se excessivamente a esquemas e ideias inadequadas. Basta lembrar que a grande batalha de Jesus Cristo contra os ancestrais judaicos do seu momento histórico visou tradições religiosas que produziram um narcisismo dos que presumiam ser os bons praticantes das regras e dos bons costumes herdados. Produziam uma vida estanque, injusta, estamental e uma espiritualidade que os levava a um deleite da sua própria mediocridade. Na imagem da pesca milagrosa, eles se conformavam com os minguados peixinhos da beira do mar...  A resistência produzida pelos hábitos, levava estes grupos de judeus a resistirem à força do Evangelho, porque preferiam suas práticas monótonas, repetitivas e alienantes.

Percebe-se, pois, que o “caruncho” dos hábitos vai roendo paulatinamente toda a solidez dos ritmos de vida capaz de motivar o empreendimento de mudanças na vida. O caminho da comodidade fácil dos hábitos, sempre indica o sofá macio das seguranças, mas, também leva consigo as inquietações, entusiasmos e paixões por algo novo e inusitado.

No livro “A Peste” Albert Camus já explicitava que a pior epidemia não é a biológica, mas a moral, porque esta, em situações de crise, induz à falta de solidariedade para fazer algo contra prepotências, arrogâncias, genocídios. A crise, por sua vez, permite alastrar também o melhor da vida que é pensar mais no bem-estar de outros do que no próprio bem-estar.

Diante dos hábitos pode-se dizer que o “estilo faz a doutrina”, ainda mais quando implica em muita renda e entremeio.

3 – Hábitos Talares

Talar (do Latim “Talus” significa calcanhar) constitui veste ampla que desce até os calcanhares e que passou a constituir a veste comum dos clérigos.

Durante as perseguições dos primeiros séculos do cristianismo ainda não se pensava em veste peculiar dos clérigos, até mesmo porque não poderiam chamar atenção sobre si mesmos a fim de evitar perseguição e morte. Deste modo, os clérigos, assim como os leigos, se vestiam conforme o costume da época.

Para quem exercia funções religiosas e litúrgicas havia a recomendação que usassem vestes limpas, sobretudo para os ministros do altar. Geralmente não era a mesma roupa usada durante a semana.

No início do século IV, mudança no costume da veste romana, levou ao abandono das vestes talares, ou túnicas habituais, pois os romanos passaram a imitar os bárbaros que se vestiam com roupas curtas e mais confortáveis.

A partir de concílios eclesiásticos da Igreja Católica, a novidade adotada pelos romanos não foi recomendada aos clérigos. Foi sugerido que permanecessem no uso da veste longa, fechada e escura, sem qualquer ornamento, como forma de expressar humildade e modéstia. Ademais a recomendação apontava para monges que viviam isolados e pobres. O vestuário simples, apenas uma túnica e um cinto, facilitava seu modo de vida. Tal costume tornou-se refratário para outras inovações ao longo dos séculos da história da Igreja. Já na Idade Média, os monges e clérigos, muito distantes da moda do vestuário quotidiano das pessoas, acabaram nitidamente distintos dos demais, pois, permaneceram com a batina simples de tempos mais antigos. Eles também recebiam um reforço, através de orientações de Concílios para que se mantivessem no costume mais antigo sem vestes espalhafatosas e luxuosas.

 Os clérigos mais antigos, os eremitas, vestiam-se de hábito de cor preta para simbolizar sua morte para o mundo. Com o tempo, o hábito (batina) passou a tornar-se a veste comum para todos os clérigos católicos, com outras expressões simbólicas: os trinta e três botões pretendiam expressar alusão a vida de Jesus Cristo e os cinco botões em cada manga pretendiam lembrar as chagas pelas quais o Senhor Jesus passou.

Mais tarde, pela influência da tradição protestante, o hábito talar inteiramente preto passou a incorporar um colarinho de cor branca, que, posteriormente também foi adaptado às camisas clericais e conhecidas como “clergyman”. Acrescentou-se ainda o uso de uma faixa na cintura, e, pendente para o lado esquerdo, tanto para ajustar o hábito talar, ou batina, quanto para simbolizar o domínio sobre o fogo das paixões, lembrando a parábola de Jesus Cristo acerca dos rins cingidos.

Sob este sinal de entrega a Cristo, ocorreram muitas manifestações a fim de que os clérigos se vestissem de forma similar aos demais, para evitar que eles se constituíssem num grupo à parte na sociedade, uma vez que eles deveriam ser notáveis não pela veste fora de costume, mas, pelo seu modo de ser e de vivenciar os valores evangélicos.

Mesmo assim, o uso da veste talar, ou batina, foi obrigatório até o Concílio Vaticano II na década de 1960. A partir deste Concílio o uso de batina ficou restrito a número insignificante de clérigos mais idosos ou tradicionalistas.

Desaparecida do horizonte da vida clerical, a batina vem ressurgindo sob outras motivações nos dias atuais, não diretamente ligadas aos fatores de pertença produzidos pela moda das últimas décadas. O que levaria a um movimento reacionário ao da moda atual?

Na década de 1980 surgiu nos Estados Unidos um movimento neoconservador, no âmbito das Igrejas católicas, com grande publicidade das orientações do padre Richard Gohn Neuhaus. Já no ano de 2005, com a eleição de Bento XVI este movimento neoconservador e, já tecno-conservador, criou uma tradição integrista com marcante retorno ao neotradicionalismo, que cultivou como um dos pontos centrais a rejeição radical do concílio Vaticano II, e, com este, a modernidade e a abertura da Igrejas a este mundo moderno. Aos poucos este catolicismo conservador se revelou também antiliberal, que foi além de João Paulo II e de Bento XVI, porque se aferrou à perspectiva de Víctor Orbán, primeiro ministro húngaro no sentido de uma guerra à democracia liberal.

Com o Papa Bento XVI esta saudosa característica da veste talar readquiriu novo fôlego, sobretudo, entre seminaristas e padres novos, porque o Papa, com seu exemplo, voltou a reintroduzir costumes já soterrados pelo passado, como chapéus e rendas usadas no século XVI, além de algumas outras extravagâncias como o uso de sapatos vermelhos e camisolas negras. Ainda que esta volta ao passado tenha sido justificada como desejo de continuidade a celebrações marcantes de um outro tempo, hoje já existe uma próspera indústria de moda religiosa impregnada pelo saudosismo de tempos distantes.

Em torno destas bricolagens religiosas, com muita franja e colorido, já surgem lojas internacionais oferecendo peças de vestuário para clérigos que ultrapassam quatro mil euros, ou seja, mais de vinte e quatro mil reais e afetam um intenso repertório de consumismo, tanto no clero religioso quanto diocesano.

A roupa pomposa, em séculos passados, já foi expressão de poder, pois, membros de Ordens religiosas tinham tantos bens que estavam muito acima do nível econômico comum das pessoas e expressavam, nas vestes requintadas, o seu prestígio político e seu poder.

 A partir do Concílio Vaticano II, não vigora mais esta identidade de Igreja, mas a do serviço, da simplicidade e os clérigos são convidados a identificar-se no ambiente cultural das demais pessoas do entorno.

Esta ampla volta ao uso de batina apresenta uma visível conotação fundamentalista. Há regiões como África e Ásia em que o clero tende à absorção dos costumes da moda vigente, e se veste com roupas de todas as cores e se enfeita com aparatos extravagantes como capulanas, turbantes, hábitos de cores variadas e se considera muito afinado com os rumos da Igreja. No entanto, o hábito não é uma condição precípua para ser clérigo.

 O que se requer do clérigo é que seja testemunho de vida e que os aparatos de vestes não o induzam ao status do poder e de superioridade presumida pelo seu modo de ser, mas, que ele, como pessoa humanitária, facilite a sociabilidade, a interação e a conformidade com o ambiente de vida, sem a diferenciação de um suposto poder espiritual superior caos demais.

Atualmente não se pode esquecer o contexto no qual Jesus chamou seus primeiros seguidores na beira do mar da Galiléia: ele os chamou, os acolheu e os elegeu para um serviço, que fugia diametralmente das vestes e dos rituais dos sacerdotes do Templo, que, mancomunados com o poder político estabelecido, oprimiam o povo de Israel.

Os chamados por Cristo foram convidados a aprofundar uma relação existencial com Ele e, este pano de fundo, ainda hoje configura o ministério dos clérigos: são chamados para serviço e não para serem papagaios ornamentais; e, menos ainda, para constituírem uma presumida casta superior que vive da nostálgica fantasia de um momento histórico distante, e que já não se coaduna com as interpelações do nosso tempo. Servem apenas para comprar alguns elogios e bajulações de outras pessoas nostálgicas por vetustos encantamentos.

 

 

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