RESUMO: A incompletude é constatada e sentida. Muito
cedo na vida humana, aparecem constatações e sentimentos de incompletude, quer
física, psíquica, relacional ou motivacional. Fazer uma ponderação sobre
constatações e sentimentos tão evidentes poderá parecer uma ocupação
insignificante, mais do que óbvia e sem implicações. No entanto, a constatação
da incompletude tende a constituir-se fonte de muitos problemas humanos.
O
desejo de livrar-se do desconforto causado pela incompletude aponta para o
atraente e simpático campo da plenitude, mas as mediações para o alcance deste
patamar de qualidade, além de variadas, podem tornar-se funestas, pois, o desejo
de evadir-se da incompletude pode levar indivíduos a buscar fora de si, em
formas de alienação, de rebeldia e de violência ou, dentro de si, na forma
egoísta, a almejada plenitude e torná-los monstruosos.
A
importância e a peculiaridade da nossa abordagem decorrem do enfoque
antropológico de salientar alguns importantes referenciais para permitir
escolhas capazes de ajudar no alcance de maior perfectibilidade. [1]
Palavras-chave:
Incompletude. Compensações. Desejos. Perfectibilidade. Sentido.
Introdução
A incompletude, mesmo não
constituída em assunto empolgante para conversas tanto populares quanto
eruditas, é, todavia, sentida, todos os dias, como experiência na condição
humana. Querendo ou não, sentem-se os humanos obrigados a lidar com
constatações que mostram, ao lado das suas grandes capacidades, um antagonismo
de extraordinária fragilidade, e que em todos os dias os interpela para preencher
a falta de algo, seja na mediação dos recursos técnicos, eletrônicos e midiáticos,
ou na procura de reagentes somáticos para diminuir dores, suprir fomes,
expectativas, ansiedades e tantos outros limites.
O termo “incompletude” decorre
do adjetivo derivado da palavra latina “incompletu”
que significa imperfeito, não acabado ou não completo. Assim, a palavra incompletude é usada para expressar a
característica muito peculiar e específica da condição humana, que é a da
constante necessidade de se completar com serviços, obras, ações e valores que
lhe dêem significado. É nesta perspectiva antropológica que vamos alargar uma
das muitas dimensões da cultura humana e que, por isto mesmo, nos distingue
radicalmente da vida de outros seres neste planeta.
Uma vez que há pouco
acesso a literatura sobre o tema, apresentamos nos itens que seguem algumas
noções introdutórias ao entendimento deste sentimento humano, e apontamos para algumas
das profundas repercussões na vida e no agir cotidiano: no psiquismo, nos
desejos, na linguagem, na estética, no modo de consumir, no modo de buscar a
liberdade e de organizar a vida.
1. Aspectos antropológicos da incompletude
Um sinônimo da palavra incompletude
é “inacabamento”, condição específica tanto das obras humanas quanto da
experiência que, geralmente é interpretada como factível de mais qualidade e
poder de satisfação. Paulo Freire destaca que os seres humanos são os únicos
seres que revelam consciência desta limitação:
“Minha
franquia ante os outros e o mundo mesmo é a maneira radical como me experimento
enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento... Na
verdade, o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é própria da experiência
vital. Onde há vida há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o
inacabamento se tornou consciente”.[2]
Na
lida cotidiana, muitos são os aspectos demonstrativos de que as pessoas humanas
não se sentem seres completos: ficam insatisfeitos com o que fazem e esperam;
ficam frustrados diante de limites físicos, afetivos e psíquicos; sentem
necessidade de amparo, de segurança, de proteção; sentem necessidade de um
“TU”, seja ele o transcendente, ou uma pessoa, ou um animal ou até mesmo um
objeto para se completar; também sentem que carecem de carinho, de afeto e de
sinais simbólicos capazes de expressar que outras pessoas gostam de delas;
necessitam de aprovação, de elogio, e de confirmação do que fazem; carecem de
sinais de perdão diante do que erram; enfim, o assunto incompletude, diz algo
básico da condição de seres humanos: não são completos e precisamos de uma
infinidade de situações para se sentirem razoavelmente preenchidos e,
gradualmente mais completos, seja na segurança, nos bens, nos valores ou, na
esperança de algo que possa ser melhor para o sentido da existência.
Se
a incompletude, de um lado, pode assustar, revela de outro lado, uma
perspectiva sumamente interessante que é a da perfectibilidade, isto é, os
hominídeos são dotados de uma inquietação que os leva a refazer e reconstruir
constantemente sua condição de seres humanos. Nesta direção, torna-se muito
significativa a capacidade de entender e de lidar com as incompletudes como
meio de agregar valor ao sentido da vida, bem como o de elevar, na relação com
os outros, a qualidade da existência.
Como seres que todos os
dias precisam refazer-se, mesmo que se considerem próximos de Deus, dada à sua
capacidade inventiva e de transformação, sentem e constatam os humanos que
superam com larga folga a capacidade dos demais seres que habitam o Planeta
Terra, mas, simultaneamente caracterizam-se por limitações físicas, psíquicas e
afetivas, incomparavelmente maiores do que a dos outros animais. Destacamos
alguns aspectos:
a) Fragilidade física – os seres humanos nascem com espantosa fragilidade física e, além dos
muitos cuidados, necessitam de muitos anos de vida para chegar a ter a mínima
capacidade de autonomia e de auto-sustentação. Até mesmo no aspecto psíquico e
de motricidade, uma criança nasce altamente incompleta. Precisa de muita
interação com pessoas e ambientes para dar os primeiros sinais desta capacidade.
Comparados
aos demais seres do planeta, certamente, os humanos são de longe os mais demorados
para chegar à mínima capacidade de auto-suficiência. Vendo um patinho que,
pouco depois de nascer, já se defende com boa capacidade de natação, ou uma
pequena cobra que ao sair da casca já sabe enrolar-se de forma a ser capaz de
dar um bote e morder soltando veneno para se defender, se os comparamos a um
bebê, revela-se este espantosamente mais limitado, frágil e dependente.
Pelo olhar da Antropologia Cultural costuma-se
dizer que os humanos nascem no mínimo 24 meses antes do tempo, e, além disso,
levam de oito a dez anos para chegar a um elementar nível de auto-sobrevivência,
que alguns animais já apresentam poucas horas após o nascimento.
Tudo quanto
os demais seres herdam automaticamente, os seres humanos, estão condicionados a
ter que conquistar através de um árduo processo cultural, mas que, por sua vez,
leva a superar enormemente a capacidade inata dos demais viventes da Terra.
b) Insatisfação profunda – Na Antropologia costuma-se aplicar aos outros animais a condição de
nascerem “satisfeitos”, ou seja, nascem com predisposição inata para as
características de sua espécie. Por exemplo, ninguém precisa ensinar ao filhote
de João-de-Barro a fazer curso de engenharia e de arquitetura a fim de edificar
sua casinha de barro. Ele já nasce naturalmente equipado com esta capacidade
(nasce satisfeito). O que nos animais ocorre por instinto e comando natural do
cerebelo, no animal humano, é frágil e depende do cérebro e da cultura para ser
completado. Um pensador antigo, Aristóteles, dizia que tudo o que entra em
nossa vida passava pelos cinco sentidos.
Os animais
apresentam sentidos mais apurados do que os humanos. Basta compará-los a uma
águia para enxergar, a um cachorro no olfato e, a uma corsa para voar.
O detalhe
curioso é que os seres humanos compensam os limites diante da especialização
dos animais, com inventos de máquinas e recursos que os tornam capazes de voar
muito mais rápido que uma ave (com avião), a gritar muito mais alto que um Leão
(através de amplificadores de som), a enxergar melhor que a águia (por meio de
binóculos e de telescópios) de modos que, superam os animais com larga vantagem
através do que inventam. Em outras palavras, os humanos compensam os limites
com inventos que os levam a superar em larga escala os outros seres conhecidos
na Terra.
Portanto, a natural insatisfação leva a
constantes descobertas, a novos inventos e a extraordinários aprimoramentos tecnológicos
para melhor completar a vida humana. Basta lembrar o significado do celular, da
internet, e de tantos outros Chips.
c) Interpelação dos sofrimentos e das decepções – São fatores que mostram a
incompletude e simultânea busca de mais plenitude. Diante de tudo quanto causa
sofrimento, despertam-se desejos e procedimentos para sair desta situação, seja
no campo da saúde, das lidas cotidianas, ou das formas de trabalho que fazem
sofrer. O desejo de livrar-se da dor e o de evitar que ela se manifesta, leva a
incontáveis pesquisas, tanto para encontrar remédios que aliviem e combatam as
dores, quanto da busca de recursos que ajudem a viver com mais saúde e
bem-estar. As próprias frustrações diante dos lenitivos para as dores e as doenças,
instigam a buscar novas formas que possam ser mais eficazes no alcance de
melhores níveis de saúde.
d) Lampejos de intuição – A incompletude gera uma natural propensão a pensar para frente. De vez
em quando, estes sonhos de olhos abertos para novas possibilidades despertam
intuições ou de inventos ou de saídas para diminuir situações que se mostram
limitadas.
e) A lida com tragédias – Sejam pessoais, grupais ou coletivas, seguidamente os seres humanos se
vêem diante de situações catastróficas e causadoras de muita dor, grande sofrimento,
comoção e revolta. Até mesmo estas situações podem revelar-se altamente benéficas
para ações positivas em favor de maior completude, porque potencializam para
mover as pessoas a fazer algo a fim de que situações similares sejam evitadas ou
contornadas;
f) Vivência da fé religiosa – Dos desencantos advindos da violência de pessoas
religiosas e da hipocrisia de muitos líderes religiosos, podem resultar reações
de compaixão e de não-violência, mas, também podem desencadear-se buscas de
superação, buscas de maior coerência, e de transcendência para níveis mais
elevados de qualidade de fé. A própria
necessidade de intervenções divinas já se torna uma clara demonstração de
incompletude, ou de incapacidade para lidar com situações difíceis de
convivência, de dúvida e de incerteza.
g) Perfectibilidade – Lesões, acidentes, abusos, quer de comida, bebida ou de qualquer outro
procedimento, geralmente enchem o psiquismo com desejos e expectativas direcionadas
para maior capacidade de controle pessoal e para o alcance de níveis mais
satisfatórios de conduta e de comportamento.
Geralmente mesmo com índices satisfatórios ou
com resultados bons diante do que envolveu empenho ao rever a trajetória, passa-se
ao nível dos desejos com vistas a conseguir maior perfeição, eficiência e
superação no que foi feito.
Estes
poucos aspectos já são ilustrativos para salientar uma noção de que a
incompletude tem alcance e repercussão muito mais profunda na vida humana do
que à primeira vista possa parecer. Trata-se, por conseguinte, de uma rica
dimensão capaz de despertar buscas diuturnas e de novas saídas ao longo de toda
a existência. Significa que a atribuição de seres humanos só se caracteriza na
medida em que a constatação da incompletude leva a agir positivamente e a
buscar algo novo que preencha e complete estas fendas. Esta ação permite que se
alargue a segurança em torno de tudo quanto não entendemos e de tudo quanto
fazemos para sobreviver com os efeitos das fendas ou interstícios de fatos, e
com as perdas aparentemente absurdas e das coisas que não são entendidas.
2. Incompletude Psíquica
Diante
dos aspectos de incompletude humana, acima destacados, convém salientar que também
existe uma incompletude psíquica. Basta perceber como a consciência de pessoa,
de identidade, de “Eu”, não constituem realidades humanas prontas, fechadas e
acabadas. Somente através de um longo processo de descobertas e de muitos
estímulos de outras pessoas que uma criança vai se formando na consciência de
um “Eu”. Mesmo em pessoas adultas, a ausência de fatores estimulantes predispõe
para experiências de perda do valor de si, da auto-estima e acaba em
experiências de solidão.
O
inconformismo com os frutos da interação, geralmente aquém do esperado, e com as
atribuições menos gratificantes do que os esperados, sobretudo das pessoas mais
próximas, revela como a incompletude se manifesta também no nível psíquico e afetivo,
pois tanto pelo que é auferido quanto o que se consegue alcançar, despertam olhares
para frente do resultado, pois, indicam que o alcance poderia ter sido melhor,
mais amplo ou maior, ou mais intenso e mais profundo. Ligado a este aspecto,
encontra-se ainda a constante busca do que não se possui, seja nas habilidades
físicas, nas capacidades intelectuais, nos valores simbólicos mais prestigiados,
ou até mesmo na ambição por objetos: todos eles envolvem desejos para além do
que foi alcançado. Até mesmo a rotina de serviços, de ocupações ou de palavras
ouvidas, desperta sentimentos de tédio, de melancolia ou de decepção e aponta
para desejos de outras sensações mais agradáveis e gratificantes.
3. Incompletude e Linguagem
Uma
das formas de preencher a incompletude e, talvez, a de maior repercussão, é a de se emocionar e de explicitar este estado de humor a
outras pessoas. A relação com o mundo, com as coisas e com as pessoas gera um
elevado potencial de emoções e, o tipo de relações estabelecidas, leva a
expressar este mundo de sensações através da linguagem. O ato de vivenciar
emoções leva à conversação ou à expressão através de múltiplas formas
simbólicas, artísticas e culturais. Toda a linguagem é, pois, decorrência dum
suporte emocional, porque há estreita relação entre o ato de emocionar-se e o
de expressar estas emoções através da conversação, da arte ou da simbólica
forma de comunicar este estado a outras pessoas. Esta comunicação pode ocorrer tanto pelo que
se fala, quanto pelo que se deixa de falar, pois se comunica muito mais pela
linguagem não verbal do que através da linguagem das palavras.
Desta
realidade de seres falantes, pode-se perceber que o linguajar e a entonação da
voz muda de acordo com a mudança das emoções. Assim, também o agir humano
decorre das emoções e do que acontece nas conversações: podem nascer idéias,
valores e símbolos que, além de preencher a incompletude, orientam na vida.
A
mudança do nível de emoções tende a levar para novas conversações, que, por sua
vez, através da linguagem, provocam mudanças culturais da nossa história. Pode-se
constatar que, desde o ambiente familiar, firmam-se formas de convivência que
legam características peculiares ao modo de emocionar-se. Estas características
direcionam modos de lidar com a incompletude da vida.
4. Incompletude e boniteza
Desejos
de melhorar a aparência de traços físicos constituem outra forte tônica da
incompletude, porque remetem para algo mais do que foi fornecido pela carga
genética, e envolvem traços de um ambiente cultural, para a perspectiva de encantar
e de agradar a outras pessoas. Através de vestes, de odores, de ornamentos e de
bricolagens, as pessoas demonstram que, com tais adornos complementares ao
corpo, revelam sensação de incompletude e o natural desejo de completar-se mais
no visual para relações mais satisfatórias de interação com outras pessoas.
Ainda
que os fatores de gosto e de capacidade de apreciação do que é estético e
bonito não são inatos e dependem de fatores educativos e culturais, o simples ato
de encantar-se por alguém ou por algo que seja belo acaba, normalmente, na
consciência ou na constatação de que poderia ser mais bonito ou, com algum
traço diferente. Está ali outra faceta da incompletude.
Não é
por nada que muitas pessoas não agüentam observar sua feição no espelho. Embora
existam outras que se olham demais e se tornam narcizistas em torno do
encantamento da auto-imagem, no geral, as pessoas se confrontam com ideais e
padrões estabelecidos como ícones de beleza. Dali decorre uma questão
intrincada do ponto de vista estético: o que é mais importante: a boniteza ou a
capacidade de apreciar coisas belas e encher-se de encantamento?
A
imagética televisiva tende a impor certos perfis como sendo belos e, com isso,
institucionaliza ideários e academias para produzir algo que seja o mais
próximo do que é apresentado como sendo boniteza, mas, para induzir ao consumo.
Nesta manipulação as pessoas acabam submetidas a um padrão de imagem produzida
que dissocia a estética da ética. A conseqüência disto é gritante: um pum-pum
volumoso ou seios enormes, mesmo provocando escoliose por excesso de peso do
silicone enxertado, acaba sendo mais importante para a mídia do que uma pessoa
boa, reta, inteligente, a tal ponto que para o êxito televisivo de um programa,
o pum-pum supera com larga folga o destaque de uma sumidade intelectual. Ao
mesmo tempo, a imagem ou a aparência se torna mais importante do que o real.
Estética
ou boniteza pode constituir-se num estado de espírito que torna uma pessoa
capaz de fruir múltiplas coisas contempladas e não apenas uma imitação da
idealização apresentada para o consumo e a submissão. Portanto, boniteza pode
significar muito mais do que encher-se de etiquetas, amuletos e de bricolagens.
Talvez ajude a noção que Ernst Cassirer recupera de Sócrates diante da questão
“o que é o homem”?
“Declara-se
que o homem é criatura que está em busca constante de si mesmo – uma criatura
que, em todos os momentos de sua existência, deve examinar e escrutinar as
condições da sua existência. Nesse escrutínio, nessa atitude crítica para com a
vida humana, consiste o real valor da vida humana”.[3]
Esta
noção antiga certamente reforça a noção de que a busca que se empreende para
ser mais humano, ainda tem valor maior do que se apresentar beleza, segundo
certos padrões consumistas estabelecidos. Nem salões de beleza, nem academias
de musculação e nem mesmo academias científicas devem barrar a criatividade
inventiva e a de fruir a boniteza de obras, de valores, de ética, de gestos. Certamente
não é interessante que se incida no deslocamento de procurar a boniteza onde
menos se encontra: em vestes, posturas alienantes e meramente consumistas.
5 – Incompletude e desejos
Diante
do despertar quase infinito dos desejos, constata-se outro aspecto compensador
da incompletude que consiste em ocupar-se eminentemente com projetos que
alimentam os desejos.
Um
colega foi a um restaurante e, depois de ter feito um farto almoço, veio o
garçom pedir se tinha conseguido matar a fome. Ele imediatamente respondeu que
não. O garçom saiu discretamente e, depois de alguns instantes, voltou com o
gerente e mais duas pessoas que queriam saber por que ele não tinha conseguido
matar a fome. Foi então que, num tom irônico e gozador, o colega respondeu: se
eu tivesse matado a fome, jamais voltaria para almoçar de novo! Eu apenas
alimentei a fome e espero que, por isso mesmo, ela volte mais forte.
Em
nossos dias ocorre algo parecido na relação do consumo, que, geralmente, vem
associado com a noção de felicidade. Despertam-se, para tanto, desejos de
realização praticamente ilimitados. Neste campo, torna-se fácil um controle dos
desejos para que não sejam plenamente alcançados, porque, se fossem preenchidos,
as pessoas suspenderiam o consumo. Matariam a vontade de adquirir mais produtos
de consumo. No horizonte de sempre maiores e mais continuados projetos de
consumo, apontam-se sempre outros novos desejos que podem levar para além
daqueles desejos não plenamente realizados.
Esta decepção provocada diante de qualquer
objeto adquirido e que tenha causado frustração dos desejos alimentados, não é
suprida, mas, é compensada com a apresentação de outros novos desejos como
sendo capazes de trazer a felicidade esperada. Faz-se, desta forma, uma
confirmação do ditado popular que diz: “Me engane, que eu gosto”! Ou também,
como respondiam quando era menino e reclamava do burro que era muito lerdo para
o deslocamento: sugeriam que amarrasse uma vara nos arreios, de formas a cruzar
entre as suas orelhas e, num metro à frente, que ali amarrasse uma espiga de
milho. Assim que o burro quisesse mordê-la, ela iria para frente e ele
aceleraria o ritmo.
Algo
similar se faz para povoar a sensação desconfortável de incompletude com um
horizonte de felicidade que sempre se adianta um pouco mais na medida em que sequer
apreendê-la. A tática, por conseguinte, é a de não satisfazer plenamente os
desejos a fim de que novos desejos sejam despertados diante da frustração do
não alcance dos desejos anteriores. Este parece constituir o segredo de toda a
publicidade e da estimulação do consumo, mola de sustentação da nossa sociedade
de consumo. Em outras palavras, procura-se despertar nas pessoas o vício da
busca de satisfação contínua de outros desejos, para esquecer os que foram
frustrados, mas, simultaneamente, para que não desistam diante das frustrações
e continuem a prender toda atenção para o alcance de outros desejos que neles
vem sendo despertados. O que representaria, por exemplo, a saciedade do
alcoolismo, para os produtores de bebidas alcoólicas; ou, o fim das doenças com
os remédios oferecidos como capazes de curá-las? A decepção é rapidamente
esquecida pela oferta de outros medicamentos mais eficazes e, assim corremos
cada dia mais, atrás das promessas exageradas, mas que constituem uma
mentirinha aceitável.
6. Incompletude e síndrome consumista
Assim
como cada dia mais se fortalece o costume de lidar com comandos de
computadores, tais como: deletar, remover, substituir, descartar, redefinir,
tudo rápido e em alta velocidade, tende-se a querer saltar rapidamente de uma
situação para outra, na obsessão insaciável por novas coisas para preencher a
incompletude. Chega a ser mórbido ou obsessivo este sintoma.
Durante
muitos séculos passados predominava o pilar social da produção para a
estabilidade: da família, da religião, do nome da empresa, da cidade e dos
valores sociais. Nos últimos tempos, acabou se impondo outro pilar de
sustentação, que é o do consumir e, conseqüentemente, o valor máximo para
nortear a vida passa a ser o da novidade. Disto decorre ainda outra repercussão
profunda: diante da novidade tudo se torna transitório, o que leva a produzir
tanto lixo que até se corre velozmente como as lebres para não ser transformado
em lixo por outras pessoas.
Quando
a novidade ocupa o lugar da permanência, fica estabelecido um limite bem
estreito entre o “desejar e querer um objeto de consumo” e o de “querer
livrar-se dele”. Até os prazeres entram neste novo ditame. Como o sociólogo Zygmunt
Bauman constatou, nesta síndrome consumista impõem-se três ditames: velocidade,
excesso e desperdício. Assim que os objetos foram desfrutados, quer-se vê-los rapidamente
despachados para o lixo. É o destino inevitável de tudo quanto compramos, mas, acaba
sendo também o destino das pessoas:
“Agora é a vez de as partes úteis
terem vida curta, volátil e efêmera, a fim de abrir caminho para a próxima
geração de produtos úteis. Só o lixo (infelizmente) tende a ser sólido e
durável. ‘Solidez’ agora é sinônimo de ‘lixo’”.[4]
Sabemos
que sempre ocorreu consumo de bens de toda espécie, quer material ou simbólico-cultural.
Tratava-se, todavia, de consumo mais individualizado. O que ocorre em nossos
dias, é um consumo social em que o indivíduo é socialmente induzido a procurar
satisfação dos desejos e se sente seduzido a desejar muito além do que
conseguiu alcançar. Se todos os seres do planeta quiserem ativar esta
potencialidade, evidentemente, teríamos que ter pela frente mais alguns outros
planetas capazes de viabilizar os intensos desejos de consumo e que acabam em
monumentais montanhas de lixo. Estas, por sua vez, constituem a maior ameaça de
sermos incorporados no mesmo lixo. Consome-se e se produz extraordinário lixo,
porque se é socialmente induzido a tal procedimento.
7. Incompletude e liberdade
A
história está repleta de casos em que se fizeram guerras e extermínios em nome
da liberdade. Ou se matou para garanti-la, ou se matou para reconquistar a que foi
roubada ou tolhida. A história humana também está repleta de casos heróicos em
que pessoas correram o risco de morte para aumentar a liberdade, sobretudo,
diante de formas autoritárias, coercitivas, controladoras e totalitárias.
Ardentemente
desejada, a liberdade constitui mais outra forma a revelar nossa incompletude.
A constante busca de mais liberdade nos lembra uma figura simbólica da
mitologia grega, Ulisses, um rei, valente, esperto, prudente e constante na
busca de mais liberdade.
Ulisses
representa a necessidade de lidar com mundos e valores que rapidamente
desaparecem para dar lugar a outros. Conta a narrativa mítica de que ele, como
rei de Atenas, participou da derrota dos Troianos. A astúcia de dar um cavalo,
com soldados em seu bojo para abrir os portões da cidade de Tróia, reservou a
Ulisses a imagem do rei astuto, mas, também cauteloso e prudente.
Ao
regressar da guerra, um temporal teria afastado o navio de Ulisses do resto da
frota, e ele teria passado vinte anos perdido no Mar Mediterrâneo. Neste tempo,
todavia, teria conhecido muitos lugares e pessoas, entre elas, a feiticeira
CIRCE, que arrumou mais um agravante à turbulenta viagem de regresso, pois
teria transformado os marinheiros de Ulisses em porcos. Como Ulisses era sagaz,
procurou rapidamente as ervas capazes de reverter o estado dos marinheiros
transformados em porcos.[5]
Lion
Feuchtwanger escreveu uma versão apócrifa deste episódio dos marinheiros de
Ulisses e, através dela, oferece outro detalhe da ambigüidade das buscas de
liberdade, porque implicam em lidar com novidades. Ulisses encontrou as ervas
mágicas para fazer os porcos voltarem ao estado de marinheiros, mas ao serem
interpelados por Ulisses, teriam se mostrado revoltados e fugiram em alta
velocidade. Ulisses teria conseguido pegar somente um deles, que, depois de
desenfeitiçado, voltou a ser marinheiro mediano, nada esperto, e, ao contrário
do que Ulisses poderia esperar, teria passado a agredi-lo porque queria ter
continuado a ser porco para poder chafurdar na lama, esquentar-se no sol,
comer, beber, grunhir...[6]
Aparentemente
nem todos querem a liberdade, mas, diante da vida monótona e sem graça dos
marinheiros, a vida dos porcos certamente representava um nível de maior
liberdade. Isto estabelece uma questão: a liberdade deixa os seres humanos mais
felizes, ou é fonte de tristezas e de decepções? Quando se é forçado a se
submeter a um tipo de controle social, levar a vida de porco poderá
evidenciar-se como algo que completa mais a vida do que ser um funcionário
escravizado... Por outro lado, o medo que a liberdade causa, pode induzir a
desejar que imposições isentem a dura tarefa de calcular os riscos das
conquistas na vida.
8. Incompletude e organização da vida
É
notório e de conhecimento geral que na organização dos seres humanos, ao longo
dos últimos milênios, prevaleceu uma dominação andrógena, isto é, prevaleceu um
poder hierarquizado e controlador da sociedade, movido pelos homens. Nas muitas
lutas feministas e femininas, até o momento, os resultados tem se mostrado
relativamente pequenos face à necessidade do que faz falta na organização da
vida humana pela metade excluída: as mulheres. Pequenas tentativas matriarcais
também não deram bons resultados, pois passaram a reproduzir a mesma
hierarquização do poder de controle masculino.
A
história da antiga Creta, ilha do Mediterrâneo, antes de ser avassalada por terremotos
e invasões de controle andrógeno, permite deduzir, todavia, que lá ocorreu um
poder de cooperação e que foi capaz de preencher mais o sentido da vida humana
do que o da dominação, que, infelizmente, produz vítimas e perdedores. Tudo
indica que a vida de Creta era matricial, ou seja, nem matriarcal e nem
patriarcal, porque a organização social não era feita pela força ou pela ameaça
dos homens e de algumas mulheres, mas pela parceria dos serviços.
A hierarquização dominadora que ainda prevalece
em nossa sociedade, na qual homens mandam e governam, quer na família ou nas
organizações mais complexas, poderia estar propiciando uma relação de parceria,
traço que é peculiar do feminino, a metade que não conta na hierarquização do
poder da sociedade.[7]
O que
se constata como relevante é que a sociedade andrógena não consegue resolver os
graves problemas humanos das guerras, da fome e da exploração, porque está nos
seus pressupostos básicos controlar ou incorporar tudo quanto possa apresentar
eventuais ameaças ao seu modo de ser. Os muitos séculos de procedimentos
andrógenos não amenizam os sofrimentos humanos, porque lhes falta o pressuposto
básico da parceria e da colaboração no lugar do controle e do domínio.
Epílogo
O mais inquietante do que
abordamos em torno da incompletude é que a constatação deste sentimento tem
conseqüências ambíguas. A compensação de limitações físicas em relação à
capacidade mais apurada de outras espécies de vida, pode gerar tanto superações
para viver melhor do que estas, mas, também pode tornar os seres humanos muitos
mais perversos e monstruosos, predadores e consumistas do que todas elas, a
ponto de ameaçar a viabilidade da vida no planeta e do planeta.
Como os desejos se
renovam continuamente, a busca da perfectibilidade pode ser buscada através de
mediações hedonistas sádicas que, além de prejudicar a vida de convivência,
desequilibra o relacionamento com a mãe Terra e com seus eco-sistemas.
A natural propensão
humana de procurar a plenitude abriu caminhos tanto para solidariedade, o
respeito e a promoção da qualidade de vida, quanto caminhos de perversidade,
alienação e de sofisticadas formas de boicote aos responsáveis intentos de
ampliação da liberdade e dos desejos de maior humanização da condição humana.
O uso e o abuso do poder
não somente privaram milhões de seres do direito de crescer na perfectibilidade
humana, mas, os eliminam através de genocídios, exclusões e múltiplas formas
reveladoras de que a incompletude humana pode fazê-lo usar todo o avanço
tecnológico e científico para ser pior do que tudo quanto possa ser imaginado
de crueldade, maldade, falsidade e vingança entre seres humanos. Ao lado das nuvens
sombrias que estas manifestações fazem deslocar sobre o futuro da humanidade,
ocorre, por outro lado, a capacidade de superação que faz perceber, que, parte
da mesma espécie humana revela a capacidade de se apresentar absolutamente
melhor do que o melhor que dela se possa imaginar.
[1] Texto já disponível no site das Faculdades La
Salle de Lucas do Rio Verde-MT.
[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. SP: Paz e Terra, 1996, p. 55.
[3] CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.
(trad. Tomás Rosa Bueno) São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 17.
[4] BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. RJ: Zahr Ed., 2007, p. 109. O autor também salienta
que o consumismo produz desejos ininterruptos altamente descartáveis como a
manutenção da boa forma que implica em fonte e produto de consumo... (p. 121)
[5] Fonte: WWW.nomismatike.hpg.ig.br
[6] BAUMANN, Sygmunt. Modernidade Líquida. RJ: Zahr Ed., 2001, p.25ss.
[7] Riane Eisler, em O Cálice e a espada – nosso passado, nosso futuro. SP: Palas Athena, 2007, p. 166, utiliza o
neologismo GILANIA (GI deriva da raiz grega GYNE = mulher): “Não se trata de um
escalonamento, como na androcracia - e que em grego deriva do verbo LYEIN ou
LYO, que por sua vez também tem duplo significado: resolver ou solucionar...”. Coloca-se
a hierarquia de dominação contra a outra que poderia preenchê-la melhor que é a
da realização.
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