domingo, 13 de outubro de 2013

A ARTIMANHA DE UM CIGANO

Há algumas décadas atrás, quando raramente algum carro automotor rodava por estradas de Cunhataí, a maior parte do deslocamento de pessoas e de produtos era feita sobre o lombo de cavalos ou através de charretes puxadas por muares. O status em torno de cavalos grandes, imponentes e bem apresentáveis, costumava despertar alguns mecanismos exibicionistas, pois, não poucos se esmeravam para além dos limites com o intuito de apresentar seu animal bem encilhado e aprumado, toda vez que chegasse próximo da Igreja ou de algum outro espaço com mais gente. Tal desfile, além de gerar apreciações visuais, despertava comentários a respeito do trato, do valor e das características peculiares do cavalo. Assim como hoje se bate olho em marca de automóvel com atinentes comentários, olhava-se, então, para o esplendor de um cavalo. Como existiam cavalos novos e graciosos, existiam também os velhos, os estropiados e os que apresentavam manhas insanáveis. O pior defeito que um cavalo poderia apresentar era o de manifestar fobias a carros automotores, especialmente quando estes, além de audíveis a longa distância, espantavam com seus intensos barulhos como se fossem extraterrestres a colocar em pânico até os condutores das charretes ou dos montadores. Os cavalos, movidos, sabe-se lá por quais insondáveis resquícios psíquico-afetivos, quando se atravessavam na estrada, empinavam, e ameaçavam fugir, podiam saber que receberiam muitas chicotadas a fim de corrigir a manha. Alguns, no entanto, quanto mais apanhavam, tanto mais atrapalhavam seus condutores e mais os faziam passar por constrangimentos e apuros, toda vez que algum carro roncasse a alguma distância. Alguém sentir-se dono de um cavalo traumatizado significava perda de status nas rodas de apreciação dos animais, por mais vistoso e bonito que se apresentasse. Alguns donos ainda tentavam entregá-los temporariamente aos adestradores de longa prática, mas, geralmente nem estes conseguiam amenizar os distúrbios do psiquismo destes renitentes empacadores. Uma vez que não davam sinais de superação das fobias para cruzar de forma normal e serena por algum auto ou caminhão - que somente de vez em quando vinha atrás ou em sentido contrário, - acabavam, impreterivelmente, discriminados e vendidos a ciganos. Os ciganos que rotineiramente cruzavam pelas estradas, sempre em bandos de montadores e condutores de charretes, costumavam acampar-se à beira de qualquer córrego que atravessasse a estrada e ali ficavam, por algumas semanas, e saíam de casa em casa para diversas finalidades até se exaurirem as possibilidades de negócios. As mulheres iam para dizer a “sorte” e extorquir das donas de casa desde dinheiro a alimentos. Os homens iam para efetuar negócios envolvendo cavalos. Os ciganos sempre eram conhecidos de forma genérica, pois nunca se falava do nome de um cigano ou de uma cigana. Eles simplesmente não se apresentavam pelo nome, talvez por defesa de identidade a fim de que ninguém pudesse identificá-los para um eventual ajuste de negócios mal feitos. Como a vida os profissionalizou para a prática de trambiques, iam direto ao assunto e sabiam muito bem como efetuar uma espécie de hipnose para persuadir os interlocutores e convencê-los a fazer negócios. O conceito destes ciganos negociadores de cavalos era o de que eles jamais perdiam em negócio de cavalo. Eram exímios conversadores e com a maior facilidade enrolavam os vendedores através de proposição de trocas, que, se não envolvessem cavalos envolviam pelo menos alguma ferramenta, panela ou tacho de cobre, sempre de péssima qualidade. O morador Pedro Freitas possuía meia dúzia de cavalos e constatou que o número excedia a capacidade do capim na pastagem. Ademais, no lugar de um cavalo poderiam alimentar-se fartamente duas vacas leiteiras. Resolveu então vender alguns cavalos, especialmente para livrar-se de uma linda égua zaina, boa de marcha, mansa, e extraordinariamente dócil, mas, marcada pela inveterada obsessão de arrumar a maior confusão cada vez que algum automóvel chegasse perto. Por astúcia ou acaso, resolveu colocar à venda todos os cavalos, menos a égua. Alertou os dois meninos que, se um dia viesse algum cigano para comprar cavalos, que eles encenassem muita insistência para não vendê-la. Passados poucos dias, apareceram ciganos e logo mostraram interesse pelos cavalos. Pedro resolveu oferecer os cinco, excluindo apenas a égua doidivanas de eventual negócio. Como se tratava de um animal bonito e vistoso, um dos ciganos logo prendeu seu interesse na égua zaina, mais do que nos outros cavalos. Assim que os meninos viram o pai falar em venda, já começaram a insistir que, por amor de Deus, não a vendesse. Quando o pai, seu Pedro deu a entender que somente em último caso venderia a égua, os meninos começaram a chorar e a azucrinar a vida do pai para que não a vendesse. Isso acabou oferecendo um importante reforço para que o cigano se interessasse precipuamente pela aquisição da égua. Com conversa permeada por muito choro e lamúria por parte dos meninos, o cigano acabou comprando a égua a bom preço e a levou imediatamente embora. Já no dia seguinte Pedro Freitas estava afamado, pois, tinha sido o primeiro homem a lograr um cigano e vender-lhe uma égua altamente defeituosa. Rapidamente alguns amigos de Pedro o alertaram a respeito da possibilidade do cigano retornar para a devolução da linda égua zaina, assim que viesse a constatar sua manha. Dito e feito. Uma semana depois, veio o cigano montado num cavalo e já trazendo a égua encilhada. Pedro, que já se munira de alguma argumentação, foi logo falando meio grosso que não desfazia negócio feito. O cigano logo interpelou dizendo que não tinha vinda para devolver a água, mas que queria fazer outro grande negócio. - Qual é? - perguntou Pedro. - O cigano então falou: Alugue-me os dois meninos por meio dia, para ver se consigo vender essa égua. É a primeira vez que empaquei num negócio e não consigo vender essa égua bonitona de jeito nenhum. Eu preciso do choro destes dois meninos para ver se consigo convencer algum outro bobo, a fim de que me compre essa égua cheia de medos e de pavores diante de automóveis!

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