domingo, 13 de outubro de 2013

O padre que detestava água

Filho de empresários bem sucedidos, padre Serafim era um grandalhão enorme e, com uma barriga de extraordinária envergadura. Seu peso girava em torno dos 120 quilos. Era inteligente, comunicativo e de boa oratória. Seus familiares eram pessoas muito aprazíveis e não se chegou à sapiência de que alguém deles fosse avesso a banhos. Mas o que é isso, um padre ser avesso a tomar banho? Muitos tentaram em vão explicações para o estranho hábito do padre Serafim. Conversador e falastrão, esperto e ágil no raciocínio, ninguém conseguia persuadi-lo de que, pelo menos um banho por semana, não faria nenhum mal à sua saúde. Mesmo que alguns hermeneutas tentassem explicação para entender a aversão do padre Serafim aos banhos, uns até chegaram a pensar que seria herança de um arquétipo francês, pois se dizia que estes, por não gostarem de banhos, inventaram uma compensação e passaram a utilizar perfumes para dissuadir o mau cheiro decorrente transpiração do corpo e da falta de banhos. Mesmo que padre Serafim estivesse abarrotado de roupas, perfumes e quinquilharias de toda natureza, não usava perfume, não usava roupa nova, mesmo com dúzias de cuecas, calças e camisas, diversos ternos e bons agasalhos de inverno. Alguns até suspeitaram que, de acordo com a teoria freudiana, padre Serafim tivesse tido algum trauma na fase anal e que por isso se mostrava tão esmerado a ajuntar enormes estoques de roupas, trecos e cacarecos, mas sem usá-los de forma alguma. Mas ele também não era exibicionista e somente por acaso algumas pessoas conseguiram ver o quanto de material tinha enfurnado em armários e baús. Ele mesmo nunca fez referência a esta aparente segurança que eventualmente poderia manifestar seqüela da retenção de fezes. Quanto mais intensas e sarcásticas fossem as afirmações indiretas, ou até mesmo explícitas para que padre Serafim tomasse pelo menos um banho por semana, não conseguiram surtir os menores efeitos. O que ao lado do desleixo com banhos implicava os avaliadores da conduta do padre Serafim é que ele não tinha a menor preocupação com troca de roupas. Sem constrangimento vestia a mesma roupa bem mais do que um mês, ainda que fosse pleno verão. Suava mais do que cavalo e fedia mais do que bode. Alguns colegas mais próximos convenceram padre Serafim a fazer uma terapia para ver se conseguia mudar o estranho e bizarro hábito de não tomar banho e não se lavar. Fez diversas formas de terapia, mas sem afetar seu traço peculiar. Era comum que, de quando em vez trocava a roupa antes de alguma celebração. Nestes raros casos, alguém da casa entrava no quarto e com uma vara de mais de metro de comprimento fisgava as roupas sujas e as levava direto ao latão de lixo na rua. Nem mesmo tal procedimento levava padre Serafim a explicitar eventual desconfiança em torno do misterioso sumiço das roupas sujas. Se toda esta renitência diante do banho era estranha, padre Serafim, contudo, levava uma grande vantagem sobre os demais quando se tratava de viajar. Não levava nem mala, nem sacola, nem pasta e nem mesmo material de higiene pessoal. Ia para qualquer lugar, apenas com a roupa do corpo e com um detalhe: bastava aparecer uma chance de algum caminhoneiro ir ao mais distante lugar ou cidade do Brasil e aceitar levá-lo junto, que lá se ia padre Serafim sem a menor provisão e sem um patacão no bolso. A saliva sempre lhe assegurava a capacidade de convencer o caminhoneiro a lhe pagar refeições e pousos. Padre Serafim, mesmo com uma conta de considerável valor no banco, decorrente de partilhas da empresa da família da qual era sócio, passava sede se tivesse que pagar uma bebida, mesmo que fosse uma garrafinha de água. Se os outros pagavam a conta, então, ia fundo em tudo quanto estivesse acessível, desde cerveja até comida. Numa viagem com colegas, estes se combinaram que iriam chegar a um restaurante afamado e que os que estivessem sentados no banco de trás pagariam a conta. Não adiantou nada, pois, assim que chegaram próximo do referido restaurante, onde sequer iriam chegar para refeição, padre Serafim já começou a alegar enjôo e mal-estar e que por isso não iria comer nada. Improvisaram, então, um argumento para chegar num outro restaurante mais modesto e que ficaria a alguns quilômetros mais adiante. Aí o enjôo passou e padre Serafim imediatamente voltou a ser falacioso. Ao se aproximarem do outro ponto indicado, padre Serafim pediu supinamente para parar o carro, abriu a porta e disse que seguiria com o caminhoneiro que vira na ultrapassagem e queria muito falar com ele. Desceu e ficou à espera do velho caminhão FNM, com certeza, para eivar-se do possível compromisso de ajudar a pagar uma refeição. Dúzias de outras tentativas não surtiram o menos efeito para fazer padre Serafim soltar um único centavo da sua carteira em viagens. Era passageiro gentil, cortês e conversador, mas, ninguém conseguiu fazê-lo contribuir com um vintém para custear combustível ou refeições. A aversão à água era de tal proporção na vida do padre Serafim que até mesmo para a celebração de um batismo arrumou a maior encrenca e teve que sair fugido da paróquia. Ao celebrar o batismo de uma criança, em vez de utilizar uma jarra de água para efetuar a unção sobre a cabeça da criança, apenas passou o dedo indicador na boca para molhá-lo com um pouco de saliva e fez um sinal da cruz sobre a testa da criança para dizer que estava batizada em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo. Aí fechou um inusitado fuzuê e padre Serafim só não apanhou em plena celebração porque foi extraordinariamente rápido para fugir pela porta lateral da sacristia. O episódio do batismo com saliva tornou-se meio para que os superiores do padre Serafim lhe colocassem uma condição sem a qual lhe seria negada a permanência na instituição religiosa. Ele nem se abalou. Em tom cordial, prometeu seguir à risca tudo quanto lhe pediam, mas, naquela mesma noite, desapareceu misteriosamente. Padre Serafim somente chegou a ser localizado muitos anos mais tarde. Estava internado num asilo, numa cidade no interior de São Paulo. Ali, morreu, mas, sem se dar por vencido pelos ditames da água. Foi perseverante na inalação do perfume natural e dos eflúvios advindos das entranhas do seu próprio corpo até o derradeiro afastamento da sua passagem entre os apreciadores dos efeitos da água e dos perfumes mais sutis produzidos em perfumarias.

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