domingo, 13 de outubro de 2013

O santo Cindo

Numa pequena e simpática cidade do planalto médio do Rio Grande do Sul, muito se falava do santo “Cindo”. Um solteirão beirando os sessenta anos de idade, mesmo fazendeiro, não casado e sem histórias de tentativas de namoro, davam um ar misterioso a este celibatário leigo. Vivia de forma bem exótica na cidade e percorria a pé os dez quilômetros que separavam sua residência da fazenda, onde tinha um belo pinheiral e um bom lote de gado. Entre as mulheres, tanto jovens quanto solteironas, corria a gozação de que um casamento com o santo “Cindo” seria um ótimo investimento para o futuro. Simultaneamente, a gozação também enveredava para a provável frustração diante do estilo de vida do referido santo que, muito provavelmente, nem iria interessar-se por maiores intimidades e nem mesmo por prole. Na apresentação do vestuário, santo “Cindo” não se constituía num expoente das novidades da moda masculina, mas andava sempre limpo e bem aprumado. Mesmo sendo fazendeiro, nunca foi visto andar de botas e bombachas, traço típico dos demais fazendeiros daquela região. O bigode um tanto grisalho, nem sempre andava muito proporcional, pois num lado ficava mais aparado do que no outro. Provavelmente, “Cindo” o cortava sem olhar-se no espelho. A residência do santo “Cindo” era o que mais motivava comentários, porque constituía um mini-zoológico, com uma barulhenta convivência de gatos, de cachorros, de ratos, de gambás, de galinhas e de alguns porcos andando soltos em redor da casa. Muita gente ia até a casa do santo “Cindo” para dele saber algo dos meandros das divindades. Ia fazer uma consulta e ele “birificava” (em vez de “verificava”), com os santos no céu, se as coisas estavam favoráveis ou desfavoráveis para as pessoas e para as comunidades interioranas do município, aqui na terra. O conceituado santo era um caboclo baixote e troncudo. Aparentava ser de uma estepe indígena. Impressionava pela tosse seca e pelas palavras meio quebradas na conversa. Tais características permitiam uma primeira intuição do porque daquele sujeito ser chamado de santo “Cindo”. Deveria ser um santo que tosse, uma vez que a conotação cacofônica do seu nome dava uma equivalência a “San Tossindo”, ou devido a uma bronquite asmática ou até de uma insuficiência cardíaca. Na verdade, o santo “Cindo” era uma espécie de curandeiro, que misturava alguns elementos espíritas com algumas artimanhas de beatice, de religiosidade popular católica e com presumidos segredos do alcance dos poderes dos altos céus. Tratava-se de um sujeito realmente divertido. Quando as comunidades católicas resolviam programar suas festas de padroeiro, todas, sem exceção, iam à casa do santo “Cindo” para que ele “birificasse” se o dia previsto iria ser de sol ou de chuva. Raramente ele confirmava tempo bom para o dia previsto da festa e, sempre indicava uma semana anterior ou posterior ao dia oficial do santo para, então, ser feita a dita festa. Curioso era o detalhe: ele se recolhia num canto, fazia uns ruídos e bênçãos para todo lado, gesticulava e, daqui a pouco, vinha dizer o dia indicado para a festa. Ao chegar à véspera do dia sugerido, quem nunca faltava no local dos preparativos da festa era o santo “Cindo”. Se o dia de fato estivesse bem ensolarado, todo mundo já acrescentava algum mérito a mais na santidade de “Cindo”. O normal, todavia, era o contrário, céu nublado e com fortes trovões, indicando muita chuva. Neste caso, o Cindo caminhava ao lado dos que esquartejavam as vacas para o churrasco, esfregava as mãos, cada pouco as erguia aos céus e, de repente, chegava perto dos responsáveis pela organização da festa e exclamava: - Gente! Eu estou lutando com umas trezentas e cinqüenta forças de santos lá nos céus, mas desta vez, o capeta conseguiu juntar mais forças e eu estou perdendo o jogo! Ajudem a rezar e eu vou “birificar” de novo, daqui a pouco, para ver se consigo vencer estas forças do capeta e mandar esta chuva embora. Já estou até cansado de lutar com as minhas forças, mas não vou desistir e não vou me entregar, assim no mais, ao poder desse chifrudo. Ao fazer tal declaração, santo “Cindo” já estava impreterivelmente redimido e perdoado pela comunidade, pois, o problema nunca se constituía de erro da “birificação” dele, mas, da ardilosa maldade diabólica, que, de vez em quando, conseguia enganá-lo sorrateiramente, mesmo com seus muitos aliados no céu. Assim, sempre saía vitorioso na aprovação da opinião pública da comunidade. Estranhamente, a comunidade, no ano seguinte, não marcava festa sem antes consultar o santo “Cindo”. Para mexer um pouco com o santo “Cindo”, o padre da paróquia falou, um dia, que ele também tinha uma força divina, que era Santa Terezinha, a padroeira da cidade. No dia seguinte, já veio o revide, pois, de noite, a santa teria aparecido pessoalmente ao santo “Cindo” e lhe teria dito que ele poderia dar um pinheiro à Igreja. O intento do padre era insignificante ante o poderoso das forças divinas. Ficou evidente que o padre não poderia competir com o santo “Cindo”, no hegemônico campo das “birificações” espirituais. Afinal, também esta fazenda espiritual tinha dono! Poderia alguém ainda valer-se da ousadia de pretender algum sucesso no âmbito das forças divinas? Dias depois, movido por sentimentos um tanto debochadores, o padre resolveu provocar o dito santo de Ciríaco e falou, a alguns fofoqueiros próximos do “Cindo”, que santa Terezinha tinha lhe aparecido outra vez, num sonho. O efeito foi imediato: na mesma noite a santa padroeira da paróquia foi encontrar-se novamente com o santo “Cindo” e lhe sugeriu doar mais outro pinheiro para a Igreja. Não restou outra coisa melhor do que desistir da rivalidade com o homem das forças de “birificação”, pois, a continuar na provocação, o padre poderia terminar com o pinheiral do homem santo. De qualquer forma, a mediação do “santo milagreiro” fez com que a Igreja recebesse dois pinheiros e que renderam mais de quinze dúzias de boas tábuas ao patrimônio da paróquia. Foi, certamente, o milagre mais notável e evidente para um reconhecimento do homem que se atribuía trânsito livre entre os santos para as consultas divinas.

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