domingo, 13 de outubro de 2013

Conhecimento e a questão de caos e cosmos

Preâmbulo

Conhecimento é um assunto sobre o qual há muitas controvérsias. Nós poderíamos - como Aristóteles fez num de seus livros, - tratar longamente sobre esta questão, ponderar e, contudo, concluir que ainda persistem muitos outros problemas não resolvidos em torno deste tema. Aristóteles deu a tal tipo de análise o nome de “Aporia”, isto é, faz-se uma busca de entendimento do problema de um determinado assunto, mas que continua problema porque a gente não consegue resolvê-lo. Vamos, por conseguinte, apenas problematizar um pouco o conceito “conhecimento”, e relacionar este campo com algumas implicações culturais.
O que estaria este espaço acadêmico subentendendo ou pressupondo com o tema conhecimento e crescimento social?  Podem ser pensadas coisas distintas, contrárias e até contraditórias sobre o efeito do conhecimento para avanços sociais. Seria de toda a sociedade, de alguns segmentos, como os dos intelectuais que se formam em ambientes universitários, ou conhecimento como um saber de síntese da herança dos valores pessoais, comunitários e culturais? E se esta herança está em crise? Imagino que a proposição do tema desta semana acadêmica quer, na verdade, enfatizar que o estudo aqui realizado deve implicar em qualidade de vida para a comunidade local.
 O que se pressupõe, então, com o conhecimento? É dominar algo para desbravar mais? É adquirir um status social que permite melhores salários? Ou tem este período de estudos acadêmicos uma hipoteca, ou seja, uma cobrança para que repercuta bem nesta cidade e em outros espaços em vierem a estabelecer-se?
O conhecimento pode ser entendido como ato intelectivo, como saber em torno do objeto estudado, como criação da mente, ou, como tecnologia ou acúmulo do saber humano. Se o pensamos neste último aspecto, ainda não nos livramos de muitos outros problemas decorrentes, porque também o acúmulo do saber precisaria ser situado, pois implica num determinado quadro histórico-cultural.
Em outros termos, há um saber acadêmico, um saber prático, um saber científico, um saber tecnológico, um saber intuitivo, um saber do senso comum, que pode ser verdadeiro e bom, mas que ainda não está provado. Teriam todos estes modos iguais condições de propiciar desenvolvimento social?
O problema maior é que certos modos de conhecimento são considerados os melhores e os ótimos para uns, mas, que não servem para outros e nem os ajudam. Por isto, caberia a pergunta aporética: que tipo de conhecimento leva a crescimento social? Tal pergunta já remete a outro aspecto social: crescimento de quem?

1 – O conhecimento

Quando nos indagamos sobre o que é conhecer e como conhecemos, percebemos logo que se trata de um assunto complicado e que os pensadores, ao longo dos últimos 2.500 anos, ainda não conseguiram deixar satisfatoriamente resolvido este assunto.
Campos de estudo como teoria do conhecimento, da gnosiologia e da epistemologia, envolvem muitos problemas e explicações diferentes sobre o ato de conhecer. Os pensadores gregos antigos distinguiam a palavra “conhecimento” da palavra “saber” ou ciência (mas não no sentido que nós lhe damos hoje).
Quando somos iniciantes em qualquer área do conhecimento ou da sabedoria, encontramos muitas dificuldades para distinguir o que é verdadeiro do que é falso, quer como conhecimento ou como sabedoria.
A literatura do Antigo Testamento da Bíblia nos oferece uma noção de “sabedoria”, muito parecida com a dos gregos antigos. O livro da Sabedoria salienta atitudes ou predisposições que são necessárias para quem quer buscar a sabedoria: precisa-se de simplicidade, de retidão e de prudência. Na segunda parte do referido livro, destaca-se que a ausência de sabedoria provoca algumas dificuldades práticas como estultice, superficialidade e uma predisposição à impiedade, ou ausência de justiça. Isto pode servir de boa referência para qualquer busca de conhecimento ainda em nossos dias.
 Os pensadores antigos, tanto bíblicos quanto gregos, perceberam que, para responder o que era conhecimento, precisavam saber definir a realidade. Há estruturas para conhecer e métodos para conhecer. Por exemplo, quando descrevemos um fato, assim como o constatamos, isto ainda não significa conhecer. É apenas uma descrição que ainda não explica a origem e o procedimento do fato. O problema se torna, sobretudo, complexo porque depende de dois elementos distintos: o do sujeito que pensa conhecer algo; e, o do objeto apreendido por este sujeito. Onde está o foco: no objeto ou no sujeito? Isto propicia três tipos de problemas: a) dar muita importância ao objeto; b) dar importância para o sujeito que estuda o objeto; c) assumir uma postura neutra de sujeito e de objeto. Este último tipo de problema é fonte de grandes polêmicas em nossos dias em torno da pergunta: pode a ciência ser neutra?  Em outras palavras, quem faz estudos científicos e por quais motivos? Pode muito bem, sob a justificativa da neutralidade da ciência, estar escondido um grande interesse econômico ou de outra natureza.
De qualquer forma, o significado de conhecer, fenomenologicamente, é apreender. Um sujeito capta um objeto que lhe é exterior, mas, geralmente o objeto envolve o sujeito a partir de interesses. Isto implica no como o objeto é apreendido. O objeto, porém, pode ser algo em si, como uma caixa, ou um animal, ou algo representado. O apreender um objeto, ou seja, o conhecimento sensível depende dos estados de afeto ou de humor que se alteram facilmente e, por isto, podem ficar afetados por excesso de medo, de pavor ou de encantamento e, por muitos outros distúrbios do afeto. Por esta razão, torna-se conveniente lembrar que o antigo filósofo Parmênides já sustentava a possibilidade do conhecimento sensível correr o risco de ser falso e enganoso. Isto nos indica que o conhecimento não é algo imediato e pronto, mas, requer uma relação do nosso mundo subjetivo com o que objetivamente se manifesta de modos que, o conhecedor pode vir a conhecer mais o objeto já conhecido. Mesmo assim, quando olhamos excessivamente o objeto, tendemos a tornar-nos categóricos e dogmáticos porque separamos o sujeito envolvido neste objeto de estudo. Por outro lado, quando prendemos demais a atenção ao sujeito, damos demais importância a fatores emocionais, subjetivos ou de um ambiente histórico e cultural e, tal procedimento, nos torna mais racionais e idealistas. Corremos sempre este risco de pender um pouco mais para um ou para outro lado ou até totalmente para um destes lados.
Esta problemática em torno do ato de conhecer é comprovada ao longo do tempo pela enormidade de explicações fornecidas sobre o mundo, sobre a vida e as coisas, a tal ponto que, para nós, fica difícil saber o que ainda vale e o que não vale. De um lado, fala-se a partir da ciência com excesso de idealização e fantasia; e, de outro, apresentam-se afirmações categóricas que também não se afinam com o nosso mundo de sentimentos e intuições. O interessante, todavia, é perceber que ocorre notável crescimento do espírito científico, mesmo que, em certas ocasiões, a propaganda antecipada e exagerada estraga o resultado das pesquisas porque as compromete com resultados nem sempre verificáveis. Um exemplo típico ocorreu com o anúncio da clonagem da ovelha Dolly, que, na verdade, omitiu informações sobre as tentativas que fracassaram e resultaram em monstros, em vez de ovelhas. Hoje, vivemos esta particular crise nas ciências porque elas estão muito estreitamente vinculadas à eficácia, isto é, a pesquisa geralmente é movida e financiada por interesses pragmáticos de resultados que possam permitir grandes vendas e lucros. Isto nos leva a conectar a ciência com a ideologia. Grande parte, ou quase tudo o que se produz como científico é movido por interesses de grupos nos quais os fins justificam os meios.
Estes dados já nos evidenciam que é difícil definir o conhecimento. Também se torna difícil dizer que se conhece algo, a não ser explicitar como este algo se manifesta ou aparece. Seria, portanto, um conhecimento provisório ou precário e que induz a mais buscas para melhor entendimento. Por outro lado, afirmações categóricas sobre o que é conhecer também são perigosas, pois o conhecimento não é imediato. Descartes, por exemplo, concluiu o “penso, logo existo” o que, na verdade, foi um grande erro, pois existimos muito antes de pensar. Mesmo quando encontramos dificuldades para deixar claro o conceito de conhecimento, temos certa intuição relativa ao conhecimento, isto é, sabemos separar muito bem o que é amar uma pessoa e conhecer uma pessoa, ou, então, distinguir o pavor, o medo, do conhecimento de um monstro, por exemplo.
No geral costuma-se sustentar que o fundamento do conhecer é a realidade. Só que esta não é nem estática e nem fixa. Ela também muda. De qualquer forma, a maior atenção ao real gerou os chamados conhecimentos naturais e o maior destaque ao racional, como ciência do espírito.
Entretanto, também as chamadas ciências do espírito, ou da razão, encontram certas dificuldades de sustentação teórica. Por exemplo, o conceito antigo e tradicional de conhecimento significava adequação do objeto ao intelecto. O filósofo Immanuel Kant (1724 – 1804) deslocou este foco de entendimento ao concluir que o conhecimento não depende do objeto, mas dos juízos emitidos sobre ele. Significa que podem ser ditas muitas coisas e, ditas coisas muito diversas sobre um mesmo objeto, seja ele de matéria, de um fato, ou de Deus. Antes de Kant, explicava-se o ser das coisas pela Ontologia. Para Kant, somente podemos conhecer o fenômeno e não a essência das coisas. A antiga preocupação do conhecimento visava três tipos de conhecimento: o de Deus, o do universo e o da alma. Kant concluiu que estes tipos de conhecimento não são atingíveis pelo conhecimento. São, contudo, atingíveis através da consciência moral e da fé. Quis, com isso, dizer que a razão apresenta limitações para explicar as coisas.

2 – Conhecimento e crise cultural

O filósofo Sócrates foi condenado a se suicidar com a seiva de uma planta venenosa (cicuta), porque quando o rei Crítias, depois da fase de conquistas e vitórias, começou a amargar uma derrota após outra nas guerras que empreendia. Sócrates ousou questionar o sentido da vida humana dos jovens em tal projeto de morte.
 Na época, havia um conceito de educação: aos pais bastaria gerar os filhos porque o Estado se encarregaria de educá-los adequadamente para a guerra. Entretanto, o que significava a morte estúpida de todos os jovens nas batalhas fracassadas? Sócrates queria que os jovens pudessem engrandecer a cidade e fazer dela a excelência da cultura humana. Ao constatar a decadência da cidade, porque os soldados morriam miseravelmente nas guerras, procurou orientar os jovens mais novos para a descoberta, dentro de si, de outra razão, - a vida da cidade - como razão maior para sua existência. Não queria vê-los simplesmente vegetar como instrumento de guerra e morrer estupidamente, antes mesmo de constituir família. Tal procedimento, no entanto, foi considerado um conhecimento subversivo e inadequado para o governo da época... Hoje, desviamos aquele desafio de conhecimento socrático, o “conhece-te a ti mesmo”, para uma introspecção meramente emocional.
É importante salientar que o conhecimento passa, seguidamente, por novas formas de entendimento, especialmente quando ocorrem inovações que trazem novas expectativas em relação ao que pode vir a acontecer.
 Um olhar retrospectivo sobre o passado humano permite leva-nos a constatar que, ao longo de cerca de três milhões de anos – tempo atribuído à condição humana no Planeta Terra, - já ocorreram muitas alterações nos quadros sociais, em função de novos significados e, por isto mesmo, crises no conceito de conhecimento.
Um pouco de imaginação em torno do que pode ter significado, há cerca de três mil anos atrás, a capacidade dos povos amansarem cavalos e plantas, nos induz a pensar que deve ter significado um verdadeiro terror para a defesa de outros povos, aldeias e tribos, que não dispunham desta tecnologia. Os indoeuropeus conseguiram dominar grande parte do planeta habitável da época, com esta inovação tecnológica de somar a energia do cavalo à da energia muscular humana. Assim, muitas tribos, aldeias e povos foram eliminados ou submetidos diante da alta superioridade das invasões, através da montaria de cavalos. Era um avanço tecnológico que se sobrepunha ao que de melhor existia na força braçal e no conhecimento então disponível.
Mais tarde, já no período da cultura clássica grega, a inovação da vida de aldeias e das tribos nômades para a vida urbana, significava o máximo do conhecimento humano. Se povos, como os etruscos e sabinos, que deram origem ao povo romano, dominavam a tecnologia de construir cidades, isto veio a significar crise profunda do conhecimento anterior da vida agrícola e sedentária. A modernização de Roma passou a gerar uma crise de três dimensões para os outros povos: ética, tecnológica e política.
a) Ética – do ponto de vista ético, a adoção dos avanços do conhecimento significava a relativização dos valores das tribos ou das aldeias rurais para caçar, produzir, colher, cultivar sentimentos de pertença, de ajuda, de defesa, etc.
b) Tecnológica – o novo invento criou novas motivações e aguçou a mente para outros passos de aplicação do invento. A novidade precisava ser vendida, divulgada e tenderia, naturalmente, a favorecer a elevação na estratificação social.
c) Política – Da inovação tecnológica resultou uma conseqüência política que foi a de colonizar as mentes para práticas em vista das novidades. Isto gerou o imperialismo. Ilustro o aspecto com um exemplo: em Anápolis uma indústria farmacêutica, produtora da “pílula do dia seguinte” ajudou com generosas e polpudas verbas a campanha dos Deputados que vieram a eleger-se por Goiás. Estes querem, agora, a todo preço discutir e alterar a lei em torno do aborto. Vindo a ser aprovada tal mudança, o laboratório vai impor-se e gerar uma crise profunda em todos os valores éticos que se estabeleceram em cima de outros critérios e ponderações de valor.
Crise parecida nos afeta atualmente na crise da vida agrícola com a vida urbana.  Embora o surgimento da cidade seja milenar, hoje, apresenta uma nova revolução ligada ao uso e consumo de energia. A energia do cavalo, aliada à força muscular de um soldado, fazia-o tornar-se incomparavelmente superior a um soldado tradicional de aldeias e tribos. Quando a máquina substituiu a força de muitos cavalos e homens, gerou-se uma crise profunda. Hoje, quando a cidade se vale da energia potencializada e com baixo consumo, ela acaba debochando da força braçal humana. E só mesmo quem não sabe ou não consegue fazer outra coisa que se resigna a fazer trabalhos que consomem intensamente sua energia muscular. Um único quilo de urânio enriquecido produz 33 milhões de cavalos-vapor de energia.
A vida camponesa ou de pequenas cidades rurais, da qual a maioria de nós deve ter vindo, processou ao longo dos últimos séculos, um quadro ético e moral para a convivência em que predominava o senso do bem-comum, ou seja, o aparato coletivo. Por isto, o compromisso social exercia forte influência na vida pessoal das pessoas. Implicava em arte, em ações comunitárias, no sentido moral da retidão, da generosidade e da satisfação de visitar e ser visitado, além dos fortes vínculos de socialização através do parentesco.
Atualmente, com as inovações tecnológicas urbanas, como um agricultor se auto-interpreta? Parece que vive um intenso complexo de inferioridade. Vê que não consegue competir com a cidade, que faz o comércio do que produz e percebe que muito pouco dos seus anseios reais é atendido pelo poder político. Por isto, já sabe de algo evidente: em tudo quanto sonha, sabe que consegue apenas o mínimo do que gostaria de receber. Ele vê que seu mundo de valores não conta para os políticos que agem de forma imperialista sobre ele. O que poderá fazer, então? Ou desliga o mundo dos avanços e se consola com o sítio ou a terra que adquiriu, ou abandona este mundo que lhe era extremamente sagrado e tenta incorporar-se ao mundo urbano.
O mundo urbano, por sua vez, quebra ainda mais o seu mundo de valores rurais ou campesinos. A decadência do seu ETHOS (modo de ser e de lidar com os outros, com o mundo e com o que está para além deste mundo) provoca os sintomas da ANOMIA, termo que Émile Durkheim usou para designar a crise social gerada pela industrialização do seu tempo. Tratava-se de uma doença social de desrespeito às regras estabelecidas. As modificações drásticas no estilo de vida da cidade, que aglomerava as levas de pessoas que se deslocavam do ambiente rural, fez com que ali aparecessem grupos alienados e tão marginalizados que vieram a representar grande ameaça para a própria cidade.
Ao lado dos alienados, os outros indivíduos passaram a um comportamento mais reservado e de fechamento sobre si mesmos, porque não estavam habituados aos novos valores sociais. Sem suas raízes e seus padrões de convivência, eles também perdem o senso de obrigação e por decorrência, perdem também seus vínculos de pertença a um grupo social ou à cidade. A perda das referências, que uma vez davam sentido de valor e de pertença, faz com que estes indivíduos entrem num processo de apatia, fruto da desmoralização de seu mundo ético-moral. Como órfãos, acham-se no direito de fazer qualquer coisa.
As cidades atuais progridem e se inovam através de intenso processo migratório, quer internacional ou nacional e fazem com que as motivações que levaram pioneiros a criar estas cidades, sintam que, precisamente estas cidades quebram os valores que os levaram à criação destas cidades. Incrementadas por intenso fluxo migratório, comercial, turístico e de inovação tecnológica, estas cidades geram políticas que massacram todo o mundo de valores da sociedade camponesa.

3. Conhecimento como bem simbólico da cultura

Quando consideramos o conhecimento na perspectiva do acúmulo de saber ou o domínio amplo de certos campos do saber, especialmente o acadêmico, então, falar de conhecimento e de crescimento social adquire uma conotação mais sociológica. Numa sociedade ou numa cultura, como o francês Pierre Bourdieu estudou exaustivamente, os campos do saber desfrutam de uma escala muito variada de status. Toda cultura estabelece níveis simbólicos de valor maior para certas áreas de conhecimento. É o que podemos perceber em qualquer espaço universitário. Tem aluno que gosta muito mais do que outros, de exibir na camiseta ou na pasta ou em adesivo no carro o curso que freqüenta. Até para conquistar um namorado ou uma namorada, faz muita diferença ostentar curso de medicina, de geologia ou de administração e pedagogia... Há cursos que apresentam um grande status simbólico e outros são altamente desprestigiados. Isto indica algo extremamente polêmico: afinal que tipo de crescimento estes cursos poderão propiciar?
Nem todo o saber adquirido em espaços universitários tem o mesmo valor e consideração na sociedade. Neste prisma, nem todo conhecimento remete a crescimento social. Muitíssimos cursos dão certo status acadêmico, mas sequer existe espaço social para agir. Por isto, vemos títulos de doutor para todos os lados, quando seus portadores são apenas graduados.
A observação deste quadro do grande status de algumas áreas de conhecimento e o do desprestígio de outras, leva-nos a perceber que o avanço social em algumas áreas do conhecimento é duvidoso e ambíguo. Por exemplo, na ótica de Gramschi, qualquer sujeito que entra num nível universitário, faz parte, na sociedade, de uma categoria social que ele chamou de “intelectual orgânico”. E o que faz um intelectual orgânico? Situa-se entre duas outras classes sociais, a alta e a baixa. O intelectual orgânico trabalha muito com a classe de baixo, mas, tende a estar com os olhos e as ambições voltadas para a classe alta. No geral, as profissões mais bem remuneradas, localizam-se no meio dos pobres, e tiram de lá o dinheiro para viver o status que se aproxima o mais possível do nível da classe alta. Por exemplo, um médico, ou um dentista, tende a lidar com a doença de pessoas muito pobres, mas faz delas a fonte de renda para viver o status da sua profissão. Não cabem generalizações, mas o que certos títulos acadêmicos permitem na sociedade é simplesmente uma ladroagem legalizada, justificada no título. Por exemplo, quanto advogado, é ladrão de primeiríssima qualidade, mas ainda desfruta de privilégios e mordomias. Por que um tem direito de cobrar somas invejáveis por uma consulta ou consultoria de uma hora, enquanto que outro não pode cobrar tal valor pelo serviço de um mês inteiro?
Nesta perspectiva de análise, o conhecimento está relacionado a um crescimento social, mas, profundamente desigual e é o grande fator de manutenção da desigualdade social. Em outras palavras, é um conhecimento que produz profunda injustiça e desigualdade social, como tão bem podemos constatar em nosso País.

4 - O Sagrado e o Profano

Em 1917, um livro de Rudolph Otto provocou grandes repercussões ao oferecer um novo enfoque sobre o significado da religião. A constatação do aspecto religioso, todavia, se prestou também para iluminar a realidade material do estudo, do trabalho e do significado da profissão que alguém exerce.
Em vez de preocupar-se com as idéias sobre Deus e sobre a religião, Rudolph Otto se preocupou pelo entendimento do modo como as pessoas experimentam Deus e a Religião, ou seja, estudou as modalidades de experiência religiosa. Até então, muitos escritores, especialmente teólogos, haviam escrito idéias sobre Deus e sobre as conseqüências práticas resultantes destas idéias, que, na verdade, poderiam estar absolutamente distantes de Deus. Otto procurou entender como alguém experimenta o “sagrado”, o que é algo muito diferente da explicação do sagrado.
Nosso mundo de trabalho também envolve a contraposição de sagrado e profano, mas com relação ao modo como lidamos com o diferente e com a natureza.
Uma importante constatação de Otto foi a de que a experiência do sagrado não é mero fato racional, pois, normalmente envolve dois sentimentos muito estranhos: pavor e encantamento ante o “numinoso”, ou seja, experimentamos, ao mesmo tempo, uma grande força de atração e, simultaneamente, medo e repulsa. Este temor e pavor revelam-se como“mysterium fascinans” (experiência de algo que atrai e apavora ao mesmo tempo). Experimenta-se o sagrado como o “totalmente outro” e a linguagem humana é incapaz de expressar adequadamente como se experimenta este “totalmente outro”. Algo similar ocorre diante de certas áreas do conhecimento: encantam e apavoram...
O sagrado é sempre reconhecido como potência de uma ordem muito diversa da organização das forças que existem na natureza. Por isto a manifestação do sagrado é uma hierofania.

4. 1 - As Hierofanias
A história dos encantamentos revela grande quantidade de hierofanias, desde as do encanto ante uma pedra, diante das sinuosidades variadas da terra, negócios, até a revelação de Jesus Cristo ou a aparição de divindades, de almas ou de santos e de santas.
Atualmente, poucas pessoas tendem a aceitar as experiências do sagrado a partir de pedras, árvores ou flores e bichos. Na verdade, não significa uma adoração de pedras, imagens ou lugares, mas, de como esta pedra ou os outros objetos revelam algo de encantador ou de sagrado. Ainda que esta pedra continue sendo pedra, acaba, ao mesmo tempo, sendo outra coisa. Por isso, as pessoas mais arcaicas e primitivas procuravam viver no sagrado ou perto de objetos sagrados. O homem moderno também quer ficar o máximo possível no âmbito do que o encanta, sejam bens, negócios ou possíveis espaços a serem desbravados. O sagrado passa a ser sinônimo de poder perene e eficaz. Disso resulta o clássico estabelecimento de uma oposição entre sagrado e profano. A pessoa, através deste poder, quer encher-se do sagrado e estar profundamente dentro da realidade. Ela quer permanecer o máximo de tempo no espaço sagrado. Quer saturar-se deste poder.
Nos últimos séculos começou a ser pensado o mundo, na sua totalidade, sem vínculo com a sacralidade. Por este motivo, percebemos, hoje, um grande precipício entre sagrado e profano, isto é, muda pó modo de relacionamento com o mundo e as coisas. O mundo deixou de ser pensado como sagrado e que por isto mesmo, deve ser respeitado e admirado. A natureza, os objetos, as casas, certas relações e até o sexo, bem como, muitos lugares, passaram, por isto, a ser considerados objetos usáveis e manipuláveis segundo as mais variadas intuições ou possibilidades da fantasia humana. Continuam a ser vistos como meios para entrar em contato com o sagrado. O homem moderno, todavia, dessacraliza cada vez mais estes espaços e estas mediações. Basta comparar o entendimento da terra para um agricultor, um caçador e um cidadão urbano...
Conforme Eliade, “para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta rupturas, quebras, há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras”.[1]
 Enquanto o espaço sagrado é forte, os outros espaços são amorfos. O sagrado é visto como o único elemento real e que dá forma e sentido ao que circunda uma pessoa. Neste sentido, o sagrado acaba dando um sentido ontológico ao mundo. Em outras palavras, a dessacralização faz o espaço tornar-se homogêneo, a partir de um centro que o organiza.
 Já a concepção dessacralizada do mundo, entende o espaço como neutro e homogêneo. No entanto, mesmo que existam posturas profanas, estas geralmente não são puras, pois, até mesmo na concepção do profano, ocorre mescla de elementos da concepção do sagrado.
Como é destacado o sagrado na Bíblia? Que Deus se manifesta como um Ser pessoal e que se dirige aos seres humanos (aos fiéis) e lhes propõe uma aliança: dispõe-se a guiá-los ou conduzi-los no caminho da vida. Este Deus pode aparecer a qualquer pessoa. Isaías, por exemplo, destaca que Ele é santo e que Ele convida para que o povo também se torne santo.
Nosso mundo moderno, entretanto, não se move pela orientação religiosa, mesmo que esta se encontre em muitas dimensões da cultura. A tendência cada vez maior de ação sobre o mundo a natureza a partir de uma orientação dessacralizada do mundo, leva a não somente considerar a natureza como espaço vital para os seres humanos, mas como algo que pode ser mudado, alterado e transformado de acordo com as intuições que desperta nos indivíduos. Assim, a natureza, mais do que um objeto de admiração e encantamento se torna objeto de ação de acordo com a cosmovisão que nasce desta relação. Por isto estamos mergulhados numa dupla perspectiva de lida com a natureza: a de salvar, proteger e cuidar do que a natureza oferece; e, a de pensar o ser humano e como esta natureza pode preenchê-lo da melhor forma. A centralização do ser humano causa mudanças profundas na relação com a natureza. O resultado prático disto é o do grande avanço das ciências naturais, mas, que produz resultados ambivalentes: de um lado, lidas irresponsáveis com os produtos da natureza; e, de outro lado, a capacidade de redescobrir relações, vínculos e o equilíbrio entre os seres humanos e os recursos da natureza. Este necessário discernimento requer uma nova ética da relação do homem com a natureza.
Diante do risco que o avanço da ciência representa para o futuro da natureza, não significa que devamos renunciar a todo progresso humano, técnico e científico, para nos submeter a formas religiosas ingênuas e remitizadas, como tantas tendências religiosas querem fazer em nossos dias através da onda neoconservadora e fundamentalista, mas, a de levar esta mesma razão técnica a tornar-se mais crítica para discernir como melhor relacionar os desejos humanos com os recursos que a natureza oferece.

4. 2 - O caos e o cosmos
O sentido geral que se costuma dar ao termo “caos” é o de confusão geral dos elementos, ou desordem nas coisas. Como os seres humanos se auto-iterpretam capazes de agir sobre o caos e de transformá-lo em “ordem”, tendem a querer estabelecer conjuntos ordenados em tudo o que os envolve, ou seja, querem estabelecer ordem nas coisas que se lhes aparecem como confusas e caóticas. Em outras palavras, querem transformar o “caos” em “cosmos”. Esta predisposição dos seres humanos para a ordem ou, para o cosmos, é, sem dúvida, muito ambivalente. Nem toda ordem de critérios éticos, estéticos, morais, religiosos, técnicos, científicos e culturais transforma caos em cosmos. É que na própria ordem, seja na dimensão humana que for, pode-se, no desejo de e3staelecer ordem, criar-se muito mais confusão do que existia. Até em briga de família isto se reflete em muitas ocasiões.
A imagem de sagrado e profano também perpassa esta contraposição de caos e de cosmos. Era idéia comum nos povos antigos, considerar o espaço habitado como sendo o mundo, ou o cosmos, e o resto, - o mundo desconhecido -, era visto como caos (fonte de medos, de espectros e de demônios). Podemos perceber que esta não é apenas uma questão de povos antigos. Em nossos dias, ainda prossegue muito distinta esta separação entre caos e cosmos. Até mesmo as nossas cidades apresentam espaços de cosmos (áreas nobres, estéticas, belas e ornamentadas, como certas praças...) e outros lugares tidos como caos (brejos, lixões, espaços ermos), onde não só aparecem ratos, maus elementos, mas também maus espíritos para a experiência de muitos habitantes. Basta considerar a guerra no Iraque. O desejo norte-americano de ali estabelecer ordem, pelo menos até o momento, só causou mais caos.
Segundo Mircea Eliade, “o sagrado funda o mundo, lugar onde o sagrado se manifestou, e por isto está na ordem cósmica”.[2]  Na contrapartida, lidamos de forma bem distinta com os espaços territoriais desconhecidos. Queremos, ali, desfazer o caos e desbravar estas áreas para que se transformem em cosmos, ou seja, em lugares do nosso mundo sagrado. Normalmente os pioneiros de uma cidade ou de uma região costumam sentir-se numa tarefa divina que é a de desbravar para criar um cosmos (seu mundo) neste lugar ou região que era tida como caos (outro mundo). Até mesmo as pessoas de uma região, quando vão para outra, costumam cultivar este sentimento. Dali decorre a facilidade de discriminar e fazer sair daquele espaço, em nome da ordem e do cosmos, os que ali residiam...
Hoje precisamos ficar um pouco atentos para certos discursos em torno da natureza, feitos numa perspectiva romântica e até ingênua, como a de insistir muito na harmonia e perfeição de convivência pacífica na natureza. Na verdade, ocorre uma profunda agressividade, não só entre animais, mas também nas plantas, nos seres humanos e nos micro-organismos que ocupam a maior parte da vida existente neste planeta. Ainda que entre nós seres humanos esta violência seja assustadora quando se enfatizam certos crimes e atentados à vida, também os que se consideram, retos, bons, justos e amáveis, não estão isentos de mecanismos de violência. Mesmo nas instâncias religiosas ou da proclamada justiça, nós não conseguimos camuflar a violência. Geralmente a contornamos com discursos de ajuda humanitária, técnica, especializada, de amor e de bem-querer, etc. Entretanto, não nos escapamos da desconfortável constatação: a de que somos seres violentos. Temos, todavia, uma sutil capacidade de disfarçá-la. A este fenômeno se dá o conceito de mimetismo, ou seja, encontramos formas para encobrir e para disfarçar nossa real violência.

4.3 – O mimetismo da violência
O desejo que leva as pessoas humanas a querer estabelecer ordem no meio do caos, também leva a uma forma sutil de disfarce da violência. Se, por exemplo, tomamos um caso conhecido da Igreja Católica na Idade Média, que foi o de queimar bruxas e pessoas heréticas na frente das catedrais, ocorria algo interessante. Ao se queimar uma vítima, cantava-se o hino “Te Deum”, um hino de louvor a Deus.
 A questão importante para o nosso entendimento é o do porque se queimava alguma pessoa acusada: o motivo comum era porque praticava sacrifícios não estabelecidos na ordem oficial. Não se reparava que o fato de matar aquela pessoa significava outro sacrifício. Por isso, ao se condenar alguém ao sacrifício, se cometia um novo sacrifício, mas sem sentimento de culpa por tal ato. Ao contrário, elevava-se um louvor a Deus, porque se colocou ordem no meio do caos.
Curiosamente isto não foi apenas um problema da inquisição católica. Aconteceu em toda a história humana, aconteceu na colonização da América, e, se repete nas guerras e nas múltiplas formas de genocídio, tranqüilamente toleradas em nossos dias. Basta lembrar que os genocídios da invasão colonial americana eram justificados pelo argumento de que aqueles povos americanos cometiam sacrifícios humanos. Portanto, também fora da Igreja, e hoje, particularmente, nos governos civis e em todas as instâncias do poder, se repetem os mesmos fenômenos de queimação das “bruxas”, isto é, em nome da ordem, matam-se milhares de pessoas, sem nenhum constrangimento de que tais atos sejam de sacrifícios humanos até piores do que os da inquisição.
 Quando analisamos notícias que envolvem mortes em tiroteios, tais como as das favelas do Rio de Janeiro ou Lucas do Rio Verde, repete-se algo parecido: os valorosos heróis da polícia ou da pátria eliminaram um “marginal” ou um “elemento ameaçador” à sociedade... Parece que toda a sociedade consente pacificamente que tal ato foi necessário, e tampouco o interpreta como um sacrifício humano. Desta forma, podemos entender que, em muitos outros comportamentos humanos, está escondido um desejo mimético de violência. Por que mimético?
 Mimetismo é o termo usado para caracterizar a adaptação de certos animais ao meio-ambiente, a tal ponto que se confundem com ele. Por exemplo, muitos sapinhos, rãs e outros insetos e animais adquirem a mesma coloração das plantas em que vivem, a ponto de serem confundidos com aquelas plantas. Grande parte dos animais apresenta traços desta adequação ao meio-ambiente e isto lhes serve de auto-defesa ou de disfarce para captar outras presas. Entre os seres humanos, ocorre algo muito parecido nas relações. Sobretudo na violência, refletem-se estes disfarces.
Já vimos, acima, que até em torno do sagrado ocorrem violências. Assim, em muitas outras formas de relacionamento humano se reproduzem violências bem disfarçadas e, por vezes, até justificadas como sendo atos de amor ou procedimentos estritamente necessários para se manter a ordem diante das ameaças de confusão e de caos.
Podemos perceber que não é toda a realidade humana que se encontra envolvida neste mimetismo. Mesmo assim, a perspectiva do mimetismo da violência representa uma janela aberta que nos permite constatar muitos âmbitos da vida, envolvidos em atos violentos, mas, disfarçados como necessário procedimento de estabelecer ordem no meio do caos.
 Isto ajuda a entender tanta violência entre os seres humanos e, especialmente, a partir das instituições sociais. Em nome de estatutos, ou das regras máximas de um Estado ou de qualquer outra organização, cometem-se verdadeiras barbaridades e que contrastam profundamente com os discursos de harmonia, de paz e de serenidade na convivência. Recuperando uma experiência da linguagem religiosa da Bíblia, significa o pecado original, ou, esta natural inclinação para fazer outras pessoas sofrer. Parece que já nascemos com esta predisposição. Sempre que interpretamos algo como caótico, confuso ou ameaçador, passamos a valer-nos de formas miméticas de violência, com vistas a estabelecer ordem.
Ao desejar a ordem disfarçamos, no desejo mimético, nossos mecanismos de agressão e de violência. Por exemplo, se os pais batem nos seus filhos, não vão dizer-lhes que é por raiva, mas porque os amam e que querem tirá-los do caos do erro, do risco e do perigo. Portanto, ao lado dos bons argumentos para muitos atos humanitários e de ação em favor do bem comum, escondem-se disfarces de violência.
 Em certos grupos sociais tal fenômeno se torna bem explícito quando apelam a instâncias superiores e se interpretam certas posturas agressivas e violentas, como sendo interpelações do Espírito Santo, mas que podem estar simplesmente escondendo desejos miméticos de controle para uma presumida ordem, até em torno dos desejos mais sagrados.
 O livro do profeta Jeremias, do Antigo Testamento da Bíblia, ilustra bem este traço. Dirige-se a Deus para falar-lhe do sofrimento ao qual está submetido, mas expressa profunda confiança de que Deus se encarregue de proceder à devida e merecedora vingança.
Poderíamos perguntar-nos sobre o porque de tanto desejo mimético em nossas relações humanas. Segundo René Girard, o motivo principal está em focarmos um mesmo objeto. Por exemplo, quando duas pessoas querem um mesmo objeto, surge a rivalidade e, toda a relação humana que envolve reciprocidade implica em situações semelhantes, isto é, aceitar e não aceitar, sondar e não sondar o que uma pessoa está fazendo e, estas situações geram discordâncias.
 Da mesma forma, as relações entre raças, culturas e povos, produzem ambições distintas em torno de desejos despertados e, ao se pretender a consecução destes desejos, tende-se a agir sobre outros de forma violenta, mas, de forma disfarçada em fundamentos de regras estabelecidas ou, em direitos auto-proclamados. Trata-se de algo similar a duas meninas pequenas que disputam a posse da mesma boneca. Se uma é considerada a dona da boneca, a outra não quer aceitar esta posse. Na disputa, o objeto acaba facilmente destruído. Assim também numa oposição de idéias, de argumentos e de defesas ideológicas, encontra-se escondido, de forma geral, um desejo de posse, de espaços, de cargos ou de objetos. No afã de apropriação, cria-se oposição ao outro, mas, alega-se causa nobre e humanitária.
Quando a disputa em torno de um objeto leva à morte, a tendência é a de se tentar criar regras novas a fim de que outras pessoas não venham a repetir o que já foi feito com a vítima. Segundo René Girard, todas as instituições humanas decorrem de três pilares: a) o interdito – estabelecer regras para evitar que outras pessoas façam o que a vítima fez; b) o rito – fazer o que a vítima fez para salvar-nos; c) o mito – recordar continuamente estes fatos.[3]
O que pode significar a teoria mimética da violência humana?  Em primeiro lugar, nos ajuda a desmistificar os mecanismos de violência que se encontram estabelecidos em muitas instâncias da organização humana, sejam as de Igreja, as de serviços chamados de governo, as de poder público, de relações familiares e cotidianas. Portanto, não se pode pensar que apenas famílias mal estruturadas praticam violências. Elas estão longe de constituir a única fonte desencadeadora dos desejos que provocam disputas e violências. Estas refletem como tantos outros níveis da organização humana, as múltiplas formas de violência e de agressão.
Por outro lado, o conhecimento desta realidade humana da violência disfarçada, nos ajuda cultivar um pouco mais a capacidade lúdica e de humor, no sentido da sabedoria da concepção bíblica, isto é, entender como em nossas relações políticas, econômicas e sociais, se reproduzem violências, mas, que também podem apontar uma perspectiva de salvação. Em outras palavras, eu posso ser melhor do que a banalidade de muitos mimetismos violentos da lida normal com outras pessoas. Não preciso entrar no mesmo jogo, só porque a maioria das pessoas faz a mesma coisa na disputa pelos mais variados objetos.



EPÍLOGO


            Em torno do que ponderamos nesta pequena abordagem, fica evidente que a ciência moderna levou os seres humanos a avanços fantásticos, sobretudo, na qualidade de vida a partir de novas descobertas de uso e consumo de energia. Neste grandioso progresso parece ter prevalecido o espírito da concepção antropológica de que o cosmos deve prevalecer sobre o caos, ou seja, o desejo humano pode mexer e ordenar qualquer coisa à sua disposição, seja solo, ar, água, corpo humano, bactérias, vírus e todo o mundo sub-atômico das células. O pretendido direito de colocar ordem na desordem da natureza transformou o conhecimento humano, qualquer que seja sua natureza, em perigoso instrumento de eliminação da vida humana neste planeta.
            Diante deste quadro, mais do que pensar em perspectivas fundamentalistas de uma volta a estruturas pré-modernas da condição humana, parece-nos que este mesmo conhecimento é possuidor de uma virtualidade capaz de levar os seres humanos a descobrir tantas outras formas e condições para que a vida humana não se inviabilize tão rapidamente como se preconiza nestes últimos tempos.
            Basta que não se pense como sagrado ou cosmos apenas o corpo humano e não apenas certos espaços, sejam sagrados ou profanos da vida urbana, mas que se alargue o leque do entendimento de que nem todo caos é feio, ruim, perigoso e desordenado.            



[1]  No livro O sagrado e o Profano, p. 21.
[2] ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano – a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 28.
[3]  Em René Girard com teólogos da libertação, p. 53.

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