No tempo em que Morocó ainda se
constituía numa comunidade rural de aproximadamente 100 famílias, todos os
moradores dependiam das lidas agrícolas e todos possuíam pelo menos uma junta
de bois para as lidas cotidianas.
Seu Breno, não muito afoito para as
lidas da lavoura, mostrava propensão mais acentuada para ficar sentado na
sombra e tomar muito chimarrão ao longo do dia e se alguém o visitava, era rico
em lamúrias sobre os tempos difíceis e as fatalidades da vida. No comentário dos
outros, mesmo vendo como os outros lavravam e gritavam com tudo quanto o pulmão
lhes permitisse, tanto o nome dos bois quanto palavrões com vistas a admoestar
os bois a fim de que andassem na linha, e evitassem que os vergalhões ficassem desproporcionais
e mal alinhados, seu Breno não despertava sua desconfiança para empreender algo
similar.
Os gritos com os bois constituíam uma
disputa parecida com a dos galos nos terreiros e cada um queria impressionar
mais e melhor os demais a respeito de sua dedicação e de seu rendimento no
serviço. Os bois acabavam, então, como bodes expiatórios de muitos xingamentos
e impropérios, mas a finalidade deste tratamento ríspido era a de que andassem bem
alinhados e em ritmo acelerado. Por isso, ocorria verdadeira disputa para
começar a despertar a aurora em pleno serviço de aração e continuar gritando
até na escuridão da noite para demonstrar resistência física e ambição por
produzir mais do que os outros.
A dedicação pelo êxito e superação dos demais
costumava fazer ribombar pela planície a expressão mais comum usada no
xingamento dos bois: “Seu filho da puta!” Provavelmente também constituía
catarse para extravasar todas as outras raivas retidas e reprimidas diante da
esposa e dos filhos. Até os bois se acostumaram à expressão coletiva e ao
ouvi-la, aceleravam, pelo menos por alguns metros, o ritmo dos passos. Os
lavradores, por sua vez, primavam para que os bois andassem no ritmo mais
acelerado possível por muitas horas a fio. Queriam que a sulcagem rendesse o
máximo ao longo de um dia. Tal disputa rendia assuntos de conversa nos
domingos, sobretudo antes e depois das celebrações religiosas.
Na casa de Breno, o cavalo, os
porcos, as galinhas, os bois e as vacas sempre sofriam de deficiências
alimentares. As galinhas não botavam ovos, os porcos adoeciam a toda hora, as
vacas não davam leite e os bois sofriam de fraqueza generalizada e não
agüentavam puxar o arado durante o dia todo. Eles, além de sofrerem de DNA,
pois sua data de nascimento era muito antiga, andavam bem adequados para certos
conceitos e gostos de estética. Eram esqueléticos como algumas modelos que
desfilam nas passarelas, e, mesmo que os nomes fossem simpáticos, pois um era
chamado de Alegre e o outro de Sereno, não significava que a vida deles era
fácil. O Sereno teve o azar de ver seu nome substituído, porque a vinda de um
novo vizinho tinha o mesmo nome. Se chegasse ao conhecimento de que um boi do
vizinho mais próximo fosse chamado pelo nome de Sereno, com certeza,
interpretaria o caso como ofensa grave.
Se o Sereno já era vagaroso, fraco e
de pouco pique de arrancada, agora, teve que conformar-se com um segundo
batismo que lhe auferiu o nome de Brazino. O procedimento deve ter mexido na
auto-estima do velho boi e, no dia seguinte, em pleno serviço de aração, ele
caiu e morreu. Mas logo este boi! Ele não apresentava barriga proeminente como
indicativo de doenças cardiovasculares, nem sofria com problemas de colesterol,
nem com excesso de açúcar no sangue e nem mesmo com elevado índice de triglicerídeos
e de creatinina. Tudo indicava que tinha definhado por pelo menos dois outros fatores
relacionados: subnutrição e velhice. Se o fato entristeceu seu velho parceiro
de infortúnio, o boi Alegre, o episódio prestou-se, contudo, para inúmeros e debochados
comentários da vizinhança a respeito do azar que este boi teve ao longo da sua
vida, uma vez que teve que viver tantos anos sob regime de intensa privação
alimentar.
Por uma aparente e triste sina, o boi
Alegre perdeu suas referências e, poucas semanas depois, também foi encontrado
morto próximo do estábulo. A gozação tornou-se ainda mais difundida e todo
mundo comentava o trágico desfecho da vida dos bois do seu Breno. Alguns foram
mais diretos e explícitos e lhe falaram que boi também come pasto. Mesmo sem
levar muito a sério os conselhos que recebia, seu Breno teve que comprar outra
junta de bois.
O azar do seu Breno foi o de que era
época de aração e ele não encontrava boi manso para tais lidas. Andou por
diversos dias à procura de bois e, por fim, teve que conformar-se com a
aquisição de bois pequenos, ainda fracos para o arrocho de dias inteiros de
aração, mas, pelo menos eram compatíveis com o pouco dinheiro que seu Breno
dispunha para adquiri-los. Se os bois mortos eram lerdos, estes novos, não
obedeciam nenhum comando e se mostravam literalmente anárquicos diante das
ordens dadas por Breno.
Inconformado com a péssima qualidade
dos bois, Breno voltou a quem os vendera, a fim de reclamar das graves
limitações dos bois e pensando em devolvê-los. Ao explicar as características
da conduta dos dois desobedientes, ficou pelo menos elucidado que se tratava de
um problema da falta de tradutor. Segundo o ex-dono, os boizinhos haviam sido
amansados sob comandos em língua alemã e que não entendiam nada e nenhum
comando dado em língua portuguesa. Seu Breno voltou para casa, um tanto
desconfiado, e, no dia seguinte começou a falar em alemão com eles. Foi então
que teve a grata surpresa de constatar que os boizinhos eram dóceis e
obedientes. Mesmo assim, a nova dupla teria pela frente uma evidência de tempos
muito difíceis de serem vividos. Teriam que tornar-se fortes com pouco trato.
Sem demora, pareciam apresentar mais chifre que cabeça e era fácil contar os
vales entre as costelas. Para continuar o deboche, os vizinhos difundiram que
aqueles bois do Breno enganavam a torcida porque apresentavam suas gorduras
escondidas debaixo das costelas.
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