quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O boi Alegre e o Sereno



No tempo em que Morocó ainda se constituía numa comunidade rural de aproximadamente 100 famílias, todos os moradores dependiam das lidas agrícolas e todos possuíam pelo menos uma junta de bois para as lidas cotidianas.
Seu Breno, não muito afoito para as lidas da lavoura, mostrava propensão mais acentuada para ficar sentado na sombra e tomar muito chimarrão ao longo do dia e se alguém o visitava, era rico em lamúrias sobre os tempos difíceis e as fatalidades da vida. No comentário dos outros, mesmo vendo como os outros lavravam e gritavam com tudo quanto o pulmão lhes permitisse, tanto o nome dos bois quanto palavrões com vistas a admoestar os bois a fim de que andassem na linha, e evitassem que os vergalhões ficassem desproporcionais e mal alinhados, seu Breno não despertava sua desconfiança para empreender algo similar.
Os gritos com os bois constituíam uma disputa parecida com a dos galos nos terreiros e cada um queria impressionar mais e melhor os demais a respeito de sua dedicação e de seu rendimento no serviço. Os bois acabavam, então, como bodes expiatórios de muitos xingamentos e impropérios, mas a finalidade deste tratamento ríspido era a de que andassem bem alinhados e em ritmo acelerado. Por isso, ocorria verdadeira disputa para começar a despertar a aurora em pleno serviço de aração e continuar gritando até na escuridão da noite para demonstrar resistência física e ambição por produzir mais do que os outros.
 A dedicação pelo êxito e superação dos demais costumava fazer ribombar pela planície a expressão mais comum usada no xingamento dos bois: “Seu filho da puta!” Provavelmente também constituía catarse para extravasar todas as outras raivas retidas e reprimidas diante da esposa e dos filhos. Até os bois se acostumaram à expressão coletiva e ao ouvi-la, aceleravam, pelo menos por alguns metros, o ritmo dos passos. Os lavradores, por sua vez, primavam para que os bois andassem no ritmo mais acelerado possível por muitas horas a fio. Queriam que a sulcagem rendesse o máximo ao longo de um dia. Tal disputa rendia assuntos de conversa nos domingos, sobretudo antes e depois das celebrações religiosas.
Na casa de Breno, o cavalo, os porcos, as galinhas, os bois e as vacas sempre sofriam de deficiências alimentares. As galinhas não botavam ovos, os porcos adoeciam a toda hora, as vacas não davam leite e os bois sofriam de fraqueza generalizada e não agüentavam puxar o arado durante o dia todo. Eles, além de sofrerem de DNA, pois sua data de nascimento era muito antiga, andavam bem adequados para certos conceitos e gostos de estética. Eram esqueléticos como algumas modelos que desfilam nas passarelas, e, mesmo que os nomes fossem simpáticos, pois um era chamado de Alegre e o outro de Sereno, não significava que a vida deles era fácil. O Sereno teve o azar de ver seu nome substituído, porque a vinda de um novo vizinho tinha o mesmo nome. Se chegasse ao conhecimento de que um boi do vizinho mais próximo fosse chamado pelo nome de Sereno, com certeza, interpretaria o caso como ofensa grave.
Se o Sereno já era vagaroso, fraco e de pouco pique de arrancada, agora, teve que conformar-se com um segundo batismo que lhe auferiu o nome de Brazino. O procedimento deve ter mexido na auto-estima do velho boi e, no dia seguinte, em pleno serviço de aração, ele caiu e morreu. Mas logo este boi! Ele não apresentava barriga proeminente como indicativo de doenças cardiovasculares, nem sofria com problemas de colesterol, nem com excesso de açúcar no sangue e nem mesmo com elevado índice de triglicerídeos e de creatinina. Tudo indicava que tinha definhado por pelo menos dois outros fatores relacionados: subnutrição e velhice. Se o fato entristeceu seu velho parceiro de infortúnio, o boi Alegre, o episódio prestou-se, contudo, para inúmeros e debochados comentários da vizinhança a respeito do azar que este boi teve ao longo da sua vida, uma vez que teve que viver tantos anos sob regime de intensa privação alimentar.
Por uma aparente e triste sina, o boi Alegre perdeu suas referências e, poucas semanas depois, também foi encontrado morto próximo do estábulo. A gozação tornou-se ainda mais difundida e todo mundo comentava o trágico desfecho da vida dos bois do seu Breno. Alguns foram mais diretos e explícitos e lhe falaram que boi também come pasto. Mesmo sem levar muito a sério os conselhos que recebia, seu Breno teve que comprar outra junta de bois.
O azar do seu Breno foi o de que era época de aração e ele não encontrava boi manso para tais lidas. Andou por diversos dias à procura de bois e, por fim, teve que conformar-se com a aquisição de bois pequenos, ainda fracos para o arrocho de dias inteiros de aração, mas, pelo menos eram compatíveis com o pouco dinheiro que seu Breno dispunha para adquiri-los. Se os bois mortos eram lerdos, estes novos, não obedeciam nenhum comando e se mostravam literalmente anárquicos diante das ordens dadas por Breno.
Inconformado com a péssima qualidade dos bois, Breno voltou a quem os vendera, a fim de reclamar das graves limitações dos bois e pensando em devolvê-los. Ao explicar as características da conduta dos dois desobedientes, ficou pelo menos elucidado que se tratava de um problema da falta de tradutor. Segundo o ex-dono, os boizinhos haviam sido amansados sob comandos em língua alemã e que não entendiam nada e nenhum comando dado em língua portuguesa. Seu Breno voltou para casa, um tanto desconfiado, e, no dia seguinte começou a falar em alemão com eles. Foi então que teve a grata surpresa de constatar que os boizinhos eram dóceis e obedientes. Mesmo assim, a nova dupla teria pela frente uma evidência de tempos muito difíceis de serem vividos. Teriam que tornar-se fortes com pouco trato. Sem demora, pareciam apresentar mais chifre que cabeça e era fácil contar os vales entre as costelas. Para continuar o deboche, os vizinhos difundiram que aqueles bois do Breno enganavam a torcida porque apresentavam suas gorduras escondidas debaixo das costelas.


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