domingo, 13 de outubro de 2013

O quase milagre do padre

Tudo estava como nos outros dias de fainas diárias. O padre Chico almoçou, foi ao quarto e, como rotineiramente fazia, ia esfregar sua perna dolorida em decorrência dos limites de muitas cirurgias para substituir os ligamentos do joelho direito. Desencantado com os insucessos de diversas intervenções cirúrgicas, apelou ao exercício das populares massagens com óleo de mocotó e as complementava com um ritual de auto-sugestão positiva. Deste modo, enquanto esfregava a perna com o óleo, ia repetindo o refrão que se estabeleceu a fim de encontrar uma forma de conviver com os limites do joelho e as decorrentes dores. Por isso ia se repetindo a expressão: “contigo quero ajeitar-me bem e contigo quero ficar velho!” Apesar dos limites impostos pela instabilidade da articulação do joelho, padre Chico procurava zelosamente todas as mediações para dar conta de forma pelo menos razoável sua tarefa de pároco. Necessitava de motivação especial para dar conta das duras lidas cotidianas de visitar regularmente vinte e quatro comunidades do interior do município e com elas celebrar os sacramentos católicos, além das muitas outras tarefas do seu ofício. Quando já estava sentado no velho fusca para ir a mais uma comunidade interiorana, lembrou-se de que havia esquecido parte do material que iria utilizar. Ao sair penosamente do carro a fim de rapidamente buscá-lo, fui surpreendido pela visualização de uma velha senhora, dura, quase imóvel, que parecia deslocar-se com rodinhas sob os pés para vir ao seu encontro. Ela fez sinal de que queria falar com ele. Já inquieto com a possibilidade da velhinha atrasar seu tempo cronometrado para chegar no horário previsto ao seu compromisso, percebeu que a velhinha arrastava mais uma perna do que a outra, e logo percebeu que pelo calcanhar da perna mais arrastada subia um vergão enorme, torto e azulado, como se fosse uma veia bem saliente. Do que aprendera com sua mãe, este seria um sinal evidente de tétano ou de morte iminente. O fato de uma mulher aparecer, nesta hora, deveria constituir indício de algo inusitado. Ao aproximar-se mais, a velhinha solicitou ao padre para que lhe desse uma bênção. Ele logo inquiriu: - Bênção para quê? - Ela, com olhar fixo, lerda e aparentemente delirante, falou: - Para mordedura de jararaca! - De jararaca? - replicou o padre: minha senhora, para isso tem que ir muito rapidamente ao Hospital que fica ali na esquina da quadra. Vamos fazer o seguinte: eu invoco uma bênção e então a levo rapidinho até lá. É simples, se o médico de plantão estiver ocupado, uma enfermeira lhe aplica uma injeção antiofídica e a senhora já começará a melhorar. Ela, no entanto, se mostrou relutante e continuou a insistir que somente queria a bênção. Padre Chico, todo nervoso e apressado já puxou as rezas à distância, preocupado em como levar esta estranha senhora o mais rápido possível até o Hospital. A velha senhora voltou a insistir em mais um detalhe: que o padre lhe colocasse as mãos sobre a cabeça para a referida bênção. O pedido enervou ainda mais o padre. De um lado, querendo repreendê-la pelo atrevimento inoportuno, quando ele já deveria estar andando na estrada, conteve-se e, num renovado esforço, procurou não demonstrar irritabilidade com o fato. Enquanto ele tentava recriar sentimentos pelo menos respeitosos, suas mãos trêmulas avançaram lentamente para atingir a cabeça da velhinha, numa mistura de nervosismo, impaciência e medo de que a velha senhora acabasse morrendo ali mesmo, tão perto do hospital. O padre reiniciou a oração da bênção e com voz embargada pelo clima de insegurança, só pensou em pedir a Deus que ativasse todos os anticorpos de defesa a fim de que a velha senhora não viesse morrer ali, sem o necessário socorro médico. Terminada a oração, qual mula empacadora, a velhinha não aceitou entrar no carro sob nenhum pretexto, para ir até o hospital e ali receber um antiofídico. A tentativa de convencê-la foi enrolando o tempo, e, o padre ainda mais impaciente, literalmente não conseguiu convencer a velha senhora para ir ao médico. Com sentimento de culpa por não prestar o melhor serviço a fim de tentar salvar a vida da velha senhora, o padre até tentou puxá-la pelo braço para o carro. Ela, no entanto, mostrou-se relutante e irredutível em não ir ao médico. O padre sentiu-se ainda mais desconfortável. Ao constatar o horário deu-se conta de que já estava bem atrasado para a tarefa assumida a mais de trinta quilômetros de distância por difícil estrada de muito barro. Sem vislumbre de qualquer alternativa imediata, acabou indo rapidamente para o velho fusca e se mandou estrada afora. Depois de alguns quilômetros rodados, voltou uma vacilação de dúvida causticante na consciência: e se esta mulher morreu ali, perto da casa paroquial, vai divulgar-se no rádio e no jornal que o padre não prestou o necessário socorro! Fez meia-volta na estrada e voltou para trás, pensando em pedir ajuda de algumas pessoas para apressar o socorro da velha senhora e aliviar-se do sentimento de culpa de omissão na prestação de socorro. Assim que chegou ao ponto de saída, não viu mais vestígio da dita mulher e, um tanto aliviado, deduziu que pelo menos outras pessoas mais prestimosas tivessem socorrido e conduzido esta senhora até o Hospital. Re-encetou, um pouco mais aliviado, a sua rota a fim de não atrasar-se excessivamente. Chegando lá, procurou justificar o atraso e mesmo sem mencionar o motivo, não conseguiu ficar tranqüilo na condução da celebração. A todo instante, voltava-lhe na mente a imagem da cena da relutância da velha senhora em aceitar sua ajuda e ele imaginava que, ao retornar, impreterivelmente teria que marcar horário para celebrar a encomendação fúnebre desta senhora. E como ficaria a consciência? O retorno da atividade programada pareceu mais demorado e tenso, pois, na mente do padre passava a certeza de que a velha senhora estaria morta. Surpreendentemente, ao chegar à residência, nenhum sinal e nenhuma informação relativa a moribundos. A estranha ausência de notícias mais funestas, todavia, não aliviou suficientemente a consciência do padre. Foi, então, ao Hospital para inteirar-se a respeito do que poderia ter redimido sua omissão de socorro. Estranhamente a senhora não dera entrada no Hospital. No dia seguinte, a atenção do padre estava integralmente direcionada para eventuais notícias ou informações, pois algo deveria vir a tornar-se público. Contudo, persistiu o mesmo silêncio. Este silêncio aterrador prolongou-se por mais de uma semana. Repentinamente quem apareceu na casa paroquial, com um galo velho debaixo do braço, foi esta velha senhora. O galo parecia ser da idade da dona. Numa das pernas, já estava sem a espora. A da outra perna parecia ser bem mais comprida que a coxa, o que evidenciava ainda mais a extraordinária velhice do galo. Um tanto depenado, mas com um olhar altaneiro de quem ainda poderia cantar grosso por mais algum tempo, o galo, na suposição do padre, devia ter pelo menos mais de dez anos de idade. Na verdade, o galo constituiu a retribuição pelo extraordinário efeito da bênção que curou instantaneamente os efeitos da mordida da cobra jararaca da desconhecida velha senhora que tanto o inquietou. Veio, enfim, a surpresa totalmente inédita e imprevista a respeito dos fatos. A velha senhora, com olhar perspicaz, e, com boa fluência, narrou a seqüência dos fatos. Ao ter sido mordida pela jararaca, no interior, na comunidade do Morocó, sentiu logo vertigem, endurecimento da nuca e dificuldade para andar. Ao contar à sua vizinha a respeito do que lhe tinha ocorrido, recebeu a imediata recomendação: - Dona Ingrácia, vá até aquele padre, que tem aquelas mãos grandonas, e peça que ele faça uma reza e coloque aquelas mãos sobre sua cabeça, que você fica curada! Quando eu estive doente e quando senti aquelas mãos grandonas sobre minha cabeça, eu me senti curada na hora. Foi então que o padre Chico atinou para o motivo da insistência da bênção, incluindo a imposição das mãos sobre a cabeça. Dona Ingrácia narrou, então, como lhe sucedeu a experiência da cura: ao sentir as mãos sobre a cabeça, constatou que os olhos completamente embaciados voltaram ao normal e ela passou a enxergar com nitidez. Ao dar uns passos para trás, por não aceitar ir até o Hospital, sentiu que se destravou a nuca e ao descer o degrau de acesso à sala, constatou que também as pernas voltaram à sua flexibilidade normal para caminhar. Livre das dificuldades que molestavam sua vida, sentiu-se em perfeitas condições para caminhar por diversos quilômetros até sua casa. O galo, na verdade, foi entregue ao padre como sinal de agradecimento para pagar a cura. A narrativa da dona Ingrácia aliviou a espantosa inquietude que o padre alimentou em torno da sua omissão de préstimos, mas trouxe, imediatamente, outra inquietude maior sobre as motivações da sua fé: afinal, se ele tivesse sido vítima da picada de uma cobra venenosa, dar-se-ia por satisfeito com uma imposição de mãos, mesmo que a oração fosse fervorosa? Constatou que o efeito terapêutico da cura estava na persuasão da palavra da vizinha de dona Ingrácia. Suas mãos grandonas apenas serviram de referência para algo muito mais amplo do que as dimensões da sua fé e ele se sentiu desconfortavelmente interpelado sobre a qualidade da sua fé para seu serviço religioso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

    Criativa e super-rápida na inovação, A era digital facilita a vida e a ação, Mas enfraquece relacionamentos, E produz humanos em...