Assim como
existem patologias físicas, somáticas e psíquicas nos indivíduos, ocorrem
patologias sociais que afetam a imagem e o bem-estar coletivo. A rua não só
revela o coletivo no seu crescimento material e cultural, mas também explicita
muitas de suas doenças, pois constitui elemento central das edificações urbanas
modernas. Nenhum espaço agrega tanto quanto a rua os contrastes e as
contradições da diferenciação social e do antagonismo da qualidade de algumas
ruas e avenidas em relação a outras, bem como, o que as ladeia: desde casas
miseráveis a mansões suntuosas, tudo reflete a clássica diferenciação de
classes sociais, chaga viva e muito visível da doença social de nossos dias.
A simples classificação de centro, periferia,
vila, bairro residencial, bairro operário, favela, etc., revela o horizonte das
profundas desigualdades sociais que ali se manifestam, seja na plena e
irradiante luz solar do dia, na luminosidade romântica do luar, ou na mais recôndita
escuridão da noite.
As últimas
décadas foram particularmente favoráveis para separar de forma visível e
escancarar o preclaro distanciamento de lugares, de formas e de sujeitos, segundo
seus níveis sociais conquistados ou perdidos. É assim que se ostenta o lugar
dos funcionários de banco, dos dentistas, dos médicos, dos agrônomos, dos
advogados, enfim, das entidades que se auto-interpretam com certo status nos
bens simbólicos da cultura estabelecida. Por outro lado, também se definem os
lugares dos beberrões de pinga, dos mundos perversos e das condições
desprezadas.
Se a rua, de
um lado, separa todos estes mundos em constantes mobilizações, ela passa a
constituir-se, também, num outro e novo espaço, o do consumo, o da eletrônica,
o da telemática e da visualização de todo tipo de combinações aleatórias que
possam levar ao aumento de desejos. Assim, na medida em que desaparecem as
tradicionais formas de vínculos de pertença, como partido, classe, ideologia,
religião, família, os novos lugares sociais tendem a criar um mundo altamente
hiper-real e de espantosa exposição, a tal ponto que já não comporta a
necessária ordem e nem respeito às mais elementares regras de eficiência. Ali
tudo se atropela em função de grandes promoções, de shows, de mercados, de
anúncios, e de visualização do que se encontra para além das vitrines.
Os que tendem a se mostrar impacientes com
muitas coisas, se submetem com relativa resignação às enormes filas de bancos e
lotéricas. Tudo é suportado em função dos sonhos e do prazer haurido diante do
que os olhos possam visualizar. A onda está nas possibilidades de deslizar, de
patinar, se não é no real das escadas rolantes, dos elevadores, dos carros, das
motos, das bicicletas e dos skates, então, no mundo solto da imaginação, da
fantasia dos espetáculos, dos vídeo-games, dos caça-níqueis, dos parques, das
loterias, enfim, onde se pode escorregar até o infinito, para fruir novas
emoções.
A rua, ao lado
do que agrega para as fantasias, constitui também espaço proeminente para o
trágico e a tragédia. Como a vida da “pólis” grega, na fase da decadência
urbana do período clássico, a rua continua a ser um lugar unidirecional para
revelar estilos, poderes econômicos, excentricidades, estereótipos consumistas,
modismos, mistura do trágico com o cômico, do triste com o alegre, do sério com
a irreverente, do bom-senso com a estupidez. A rua revela não só a condição do
lugar que se habita, mas também as concepções coletivas, as tensões, as
resistências culturais e os desequilíbrios da ordem estabelecida.
Apesar da sinalização moderna, nem todos
quantos andam na rua a pensam e sentem como rua. Para alguns, ainda é uma
estrada de vilarejo, na qual se pode andar na contramão, estacionar em sentido
contrário, ultrapassar pela esquerda e pela direita, parar no meio da pista
para conversar com outro motorista, dirigir atendendo celular ou ingerindo
sorvete, ou, ainda, imprimindo uma velocidade abusiva além dos limites, ou tão
lenta que congestiona o trânsito. O que significa mostrar-lhes estranheza? Faz
lembrar os velhos “coronelismos”.
A rua, enfim, ainda
constitui um lugar de excelência para se andar do jeito que se acha bom e, para
se apossar dos espaços, sem muito desvelo pelas básicas regras oficiais de
trânsito, sejam da indicação que forem. Por isso, a rua já não constitui um
lugar de pensamento e de organização racional, mas o lugar dos sintomas
mórbidos da organização da cidade.
Pedreiros, ao construírem casas ou reformarem
lojas, ocupam, sem maiores inquietações, todo o espaço do passeio com material
de construção e artefatos para o serviço, e estendem sua área de serviço até
mesmo para a pista de trânsito, a fim de ali preparar concreto, massa de
levantamento e para depositar seus equipamentos.
Ciclistas jogam a bicicleta no meio da calçada
enfrente às portas de lojas, dos bancos e parecem sequer se importar com o que
isso possa representar para outros transeuntes.
Assim, um olhar simples e fenomenológico,
permite captar muitos elementos contraditórios no espaço da rua.
A rua constitui
igualmente o espaço da ausência de sensibilidade quanto ao uso e abuso de som,
de descarga de carros e de motos, o que a torna uma verdadeira parafernália de
poluição acústica, lugar de lixo jogado de qualquer jeito e em qualquer lugar,
de cacos das garrafas de cerveja, latas de alumínio, copos descartáveis e de
outros produtos plásticos espalhados por toda parte, sobretudo, nos lugares de
comícios políticos, festas populares, áreas próximas a escolas e de outros
eventos festivos.
A calçada, propugnada como área exclusiva para
a circulação de pedestres, sobretudo a das principais ruas e avenidas,
apresenta, na verdade, uma função de ocupação múltipla: para uns, é o lugar da
venda; para outros, é a sala ampliada para colocação de cadeiras, bancos e
rodas de conversa; para outros, é o lugar do estacionamento da sua moto ou do
seu carro, nada se importando com o que um pedestre precisa fazer para
contornar o espaço territorial reservado; para outros ainda, é o lugar para as
conversas de grupo, extensão dos restaurantes e bares, para sentar e tomar
cerveja, para vender espetinho e lugar para observar os transeuntes.
A calçada é
também o lugar do despejo das folhas que caem no pátio da casa, o lugar para
jogar fora os resíduos fecais do cachorro; o lugar para se jogar tocos de
cigarro, restos de alimentos, embalagens descartáveis de picolés e tantos
outros produtos de venda, como se fosse o pátio de uma Fazenda, onde cachorros,
galinhas, patos e outros animais domésticos se encarregam de fazer a
reciclagem.
Evidencia-se,
ao mesmo tempo, uma notável falta de atenção, de cuidado e de conservação dos
bens públicos no âmbito da rua. Na verdade, uma clara ambigüidade entre o
cotidiano e o pensamento. Enquanto se procura deixar a casa limpa e bem
ajeitada, não é comum perceber-se a mesma preocupação no espaço da rua, talvez um
resquício de um hábito rural, que permitia jogar janela ou porta a fora
qualquer tipo de lixo porque os animais domésticos se encarregavam de fazer o
processamento destes produtos.
O
antagonismo, remetido para o campo ético, nos leva a uma pergunta que implica
numa contraposição mais radical: seria melhor vivermos de formas menos
modernizadas, tendo picadas de atalho no meio do cerrado e das matas fechadas
em vez de pistas de asfalto, e ter a cordialidade, o valor da pertença a uma
comunidade, o significado do parentesco, das amizades, do amparo na alegria e
na morte, do que ter todo este progresso de auto-pistas, asfaltos, shoppings,
arranha-céus, lojas enfeitadas, status, etiquetas, tecnologia, carrões,
unidades de tratamento intensivo e, ao mesmo tempo, encontrar tanta frieza,
solidão, tanta droga, tanto assalto, tanta doença, tanto vazio existencial,
tanta tensão, tantas crises de desânimo e tantas mortes estúpidas.
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