quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A rua como lugar da patologia social

           Assim como existem patologias físicas, somáticas e psíquicas nos indivíduos, ocorrem patologias sociais que afetam a imagem e o bem-estar coletivo. A rua não só revela o coletivo no seu crescimento material e cultural, mas também explicita muitas de suas doenças, pois constitui elemento central das edificações urbanas modernas. Nenhum espaço agrega tanto quanto a rua os contrastes e as contradições da diferenciação social e do antagonismo da qualidade de algumas ruas e avenidas em relação a outras, bem como, o que as ladeia: desde casas miseráveis a mansões suntuosas, tudo reflete a clássica diferenciação de classes sociais, chaga viva e muito visível da doença social de nossos dias.
 A simples classificação de centro, periferia, vila, bairro residencial, bairro operário, favela, etc., revela o horizonte das profundas desigualdades sociais que ali se manifestam, seja na plena e irradiante luz solar do dia, na luminosidade romântica do luar, ou na mais recôndita escuridão da noite.
As últimas décadas foram particularmente favoráveis para separar de forma visível e escancarar o preclaro distanciamento de lugares, de formas e de sujeitos, segundo seus níveis sociais conquistados ou perdidos. É assim que se ostenta o lugar dos funcionários de banco, dos dentistas, dos médicos, dos agrônomos, dos advogados, enfim, das entidades que se auto-interpretam com certo status nos bens simbólicos da cultura estabelecida. Por outro lado, também se definem os lugares dos beberrões de pinga, dos mundos perversos e das condições desprezadas.
Se a rua, de um lado, separa todos estes mundos em constantes mobilizações, ela passa a constituir-se, também, num outro e novo espaço, o do consumo, o da eletrônica, o da telemática e da visualização de todo tipo de combinações aleatórias que possam levar ao aumento de desejos. Assim, na medida em que desaparecem as tradicionais formas de vínculos de pertença, como partido, classe, ideologia, religião, família, os novos lugares sociais tendem a criar um mundo altamente hiper-real e de espantosa exposição, a tal ponto que já não comporta a necessária ordem e nem respeito às mais elementares regras de eficiência. Ali tudo se atropela em função de grandes promoções, de shows, de mercados, de anúncios, e de visualização do que se encontra para além das vitrines.
 Os que tendem a se mostrar impacientes com muitas coisas, se submetem com relativa resignação às enormes filas de bancos e lotéricas. Tudo é suportado em função dos sonhos e do prazer haurido diante do que os olhos possam visualizar. A onda está nas possibilidades de deslizar, de patinar, se não é no real das escadas rolantes, dos elevadores, dos carros, das motos, das bicicletas e dos skates, então, no mundo solto da imaginação, da fantasia dos espetáculos, dos vídeo-games, dos caça-níqueis, dos parques, das loterias, enfim, onde se pode escorregar até o infinito, para fruir novas emoções.
A rua, ao lado do que agrega para as fantasias, constitui também espaço proeminente para o trágico e a tragédia. Como a vida da “pólis” grega, na fase da decadência urbana do período clássico, a rua continua a ser um lugar unidirecional para revelar estilos, poderes econômicos, excentricidades, estereótipos consumistas, modismos, mistura do trágico com o cômico, do triste com o alegre, do sério com a irreverente, do bom-senso com a estupidez. A rua revela não só a condição do lugar que se habita, mas também as concepções coletivas, as tensões, as resistências culturais e os desequilíbrios da ordem estabelecida.
 Apesar da sinalização moderna, nem todos quantos andam na rua a pensam e sentem como rua. Para alguns, ainda é uma estrada de vilarejo, na qual se pode andar na contramão, estacionar em sentido contrário, ultrapassar pela esquerda e pela direita, parar no meio da pista para conversar com outro motorista, dirigir atendendo celular ou ingerindo sorvete, ou, ainda, imprimindo uma velocidade abusiva além dos limites, ou tão lenta que congestiona o trânsito. O que significa mostrar-lhes estranheza? Faz lembrar os velhos “coronelismos”.
A rua, enfim, ainda constitui um lugar de excelência para se andar do jeito que se acha bom e, para se apossar dos espaços, sem muito desvelo pelas básicas regras oficiais de trânsito, sejam da indicação que forem. Por isso, a rua já não constitui um lugar de pensamento e de organização racional, mas o lugar dos sintomas mórbidos da organização da cidade.
 Pedreiros, ao construírem casas ou reformarem lojas, ocupam, sem maiores inquietações, todo o espaço do passeio com material de construção e artefatos para o serviço, e estendem sua área de serviço até mesmo para a pista de trânsito, a fim de ali preparar concreto, massa de levantamento e para depositar seus equipamentos.
 Ciclistas jogam a bicicleta no meio da calçada enfrente às portas de lojas, dos bancos e parecem sequer se importar com o que isso possa representar para outros transeuntes.
 Assim, um olhar simples e fenomenológico, permite captar muitos elementos contraditórios no espaço da rua.
A rua constitui igualmente o espaço da ausência de sensibilidade quanto ao uso e abuso de som, de descarga de carros e de motos, o que a torna uma verdadeira parafernália de poluição acústica, lugar de lixo jogado de qualquer jeito e em qualquer lugar, de cacos das garrafas de cerveja, latas de alumínio, copos descartáveis e de outros produtos plásticos espalhados por toda parte, sobretudo, nos lugares de comícios políticos, festas populares, áreas próximas a escolas e de outros eventos festivos.
 A calçada, propugnada como área exclusiva para a circulação de pedestres, sobretudo a das principais ruas e avenidas, apresenta, na verdade, uma função de ocupação múltipla: para uns, é o lugar da venda; para outros, é a sala ampliada para colocação de cadeiras, bancos e rodas de conversa; para outros, é o lugar do estacionamento da sua moto ou do seu carro, nada se importando com o que um pedestre precisa fazer para contornar o espaço territorial reservado; para outros ainda, é o lugar para as conversas de grupo, extensão dos restaurantes e bares, para sentar e tomar cerveja, para vender espetinho e lugar para observar os transeuntes.
A calçada é também o lugar do despejo das folhas que caem no pátio da casa, o lugar para jogar fora os resíduos fecais do cachorro; o lugar para se jogar tocos de cigarro, restos de alimentos, embalagens descartáveis de picolés e tantos outros produtos de venda, como se fosse o pátio de uma Fazenda, onde cachorros, galinhas, patos e outros animais domésticos se encarregam de fazer a reciclagem.
Evidencia-se, ao mesmo tempo, uma notável falta de atenção, de cuidado e de conservação dos bens públicos no âmbito da rua. Na verdade, uma clara ambigüidade entre o cotidiano e o pensamento. Enquanto se procura deixar a casa limpa e bem ajeitada, não é comum perceber-se a mesma preocupação no espaço da rua, talvez um resquício de um hábito rural, que permitia jogar janela ou porta a fora qualquer tipo de lixo porque os animais domésticos se encarregavam de fazer o processamento destes produtos.
                O antagonismo, remetido para o campo ético, nos leva a uma pergunta que implica numa contraposição mais radical: seria melhor vivermos de formas menos modernizadas, tendo picadas de atalho no meio do cerrado e das matas fechadas em vez de pistas de asfalto, e ter a cordialidade, o valor da pertença a uma comunidade, o significado do parentesco, das amizades, do amparo na alegria e na morte, do que ter todo este progresso de auto-pistas, asfaltos, shoppings, arranha-céus, lojas enfeitadas, status, etiquetas, tecnologia, carrões, unidades de tratamento intensivo e, ao mesmo tempo, encontrar tanta frieza, solidão, tanta droga, tanto assalto, tanta doença, tanto vazio existencial, tanta tensão, tantas crises de desânimo e tantas mortes estúpidas.

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