A parcimônia de dados
Evangélicos e a exuberante imaginação dos textos apócrifos e das devoções
marianas
O tema da “Mariologia” é altamente instigante. Basta observar as polarizações
que se estabelecem entre as defesas de milagres e aparições de Nossa Senhora de
um lado e, por outro, um intenso e ofensivo ataque a estas mesmas aparições e
às devoções marianas.
A enormidade de textos, tanto de artigos, quanto de panfletos e de livros, seja
contra ou a favor, já é um evidente sinal de que o assunto “Nossa Senhora”
(Maria) mexe com muita gente.
Se já existe tanta literatura escrita e artística sobre Maria, mãe de Jesus
Cristo, teria significado apresentar mais um texto sobre o assunto?
Não temos a pretensão de avançar no conhecimento já produzido, mas apenas a de
relacionar certos problemas, envolvendo os textos apócrifos, as aparições e o
significado dos dogmas, aspectos que, geralmente, são de acesso mais limitado
porque a literatura popular sobre a piedade mariana é mais farta. Desejamos,
contudo, que tal fornecimento de dados não se restrinja a somar forças para um
movimento ingênuo e retrógrado que se apossa da mãe de Jesus para fazer dela
uma guerra ideológica com vistas a justificar interesses obscurantistas que não
se mostram nem evangélicos e nem eclesiais.
Constatamos que muitas pessoas que se consideram fervorosas devotas de Nossa
Senhora conseguem esvaziar a grandiosa força de Maria, mãe de Jesus, dos
relatos evangélicos e os transformam numa religiosidade alienante que invoca a
doce mãezinha do céu, ou a “toda-poderosa” rainha do universo que está acima
dos deuses. Contraditoriamente, usam Nossa Senhora para despertar medo, com
sombrias ameaças a todos quantos não se submetem a determinadas devoções
marianas e a certos ritos com devoções mumificadas que ela, seguidamente volta
a exigir dos seres humanos.
Sobretudo na exploração das aparições, manifesta-se uma típica insistência em
traços culturais de uma época do passado, que apresenta, de forma banal e
repetitiva, uma mal humorada senhora que sempre derrama muitas lágrimas de água
e de sangue, para, no meio deste sentimento exaltado, apelar à ameaça de
horrores, de castigos e de danos, a todos quantos não se dispõem a cumprir
rigorosamente suas exigências. Parece que esta “deusa chorona”[1] não
consegue ver outra coisa no meio da humanidade do que depravação, falta de fé e
maldade. Será que ela não enxerga nada de bom neste mundo de Deus? Não poderia
ela elogiar o incontável número de mulheres e de homens que - como ela, -
ampliam sua fé e se tornam gestores de vida, de acordo com o ensinamento do seu
Filho? Basta olhar somente para nossas comunidades cristãs e veremos quanto
milagre acontece porque pessoas de fé encontram na encantadora jovem Maria, um
itinerário de fé e, com este caminho de boas motivações, se sentem
impulsionados para serviços e ações em favor da realização do projeto de Jesus
Cristo.
O teólogo Leonardo Boff destaca com muita propriedade que: “a fé cristã
apresenta Maria como o grande ícone revelador da face feminina de Deus. A
vontade de auto-entrega de Deus se realizou em Maria numa plenitude que não
comporta mais crescimento. O Espírito Santo veio efetivamente sobre ela (Lc
1,35); contemplou-a para ser Seu templo e Seu sacrário entre os homens; com ela
se inicia – porque toda mulher é Eva, isto é, mãe da vida – o germinar da vida
divinizada”.[2]
Será que não está faltando um modelo de “Maria, irmã”, não para
fazer guerras e contra-ataques, mas que leva a agir para a plenitude do amor de
Deus? Os inimigos imaginários nem sempre são os piores inimigos, pois o rigor
obscurantista de certas intransigências oferece uma adversidade muito pior,
porque mata todo o projeto salvador de Jesus Cristo. Talvez por isso que
Alberto Maggi tenha escrito:”Itinerário de amor e não de guerra! E o cristão
com ela- não luta, não combate contra inimigos verdadeiros ou hipotéticos.”[3] Nem mesmo Jesus Cristo recomendou
combate às trevas, mas, que seus seguidores brilhassem como luz rutilante no
meio delas (Mt 5,14).
Diante desta estranha diferença entre as informações marianas que a Bíblia nos
oferece e o que se afirma em algumas devoções populares em torno de Nossa
Senhora, quem estaria fornecendo dados mais seguros e significativos para a fé
cristã?
I
MARIA
NOS EVANGELHOS
O livro de Clodovis Boff, com o título Introdução à Mariologia, publicado
pela Ed. Vozes, oferece uma visão rica e exaustiva sobre Maria no Segundo
Testamento e sobre o que a Igreja publicou a seu respeito, especialmente em
documentos recentes. Aqui vamos destacar apenas alguns dados centrais para
salientar adiante, alguns outros elementos da Mariologia, os dos textos
Apócrifos, os das aparições e os dos dogmas com seus significados simbólicos.
Os Evangelhos, pelo que se referem à Maria, mãe de Jesus, encontram-se bem
distantes da piedade popular mariana, fonte inesgotável de dados sobre esta
mesma Maria. Entretanto, do pouco que os Evangelhos abordam, transparece uma
significativa espiritualidade desta criatura, tanto na relação com Deus e seu
Filho, quanto na relação com os discípulos dele e, ainda, na relação com as
mulheres amigas.
Os evangelistas Mateus e Marcos oferecem pouquíssimas informações sobre Maria.
Mateus parece dar mais importância a José do que a Maria. Salienta o aspecto
virginal de Maria segundo um entendimento dos profetas, mas, ainda assim trata
de Maria em relação a seu Filho. Menciona sua genealogia (1,1) e o anúncio a
José de que Maria estaria grávida do Espírito Santo (1,18).
Marcos chega até a relativizar o valor da sua maternidade em relação a Jesus,
pois destaca apenas a maternidade biológica. Isto aparece em dois textos: 3,33: “Quem
é minha mãe?”; em 6,1-6: “É este o filho de Maria?”...
Lucas oferece alguns dados a mais, mas praticamente todos restritos à
infância de Jesus: sua concepção, nascimento, adolescência. Estes dados foram
apresentados numa perspectiva teológica que centraliza a ação de Deus na vida
de seu filho, Jesus de Nazaré. Lucas apresenta Maria falando em apenas quatro
ocasiões, mas a coloca como núcleo da Bíblia, porque serviu de mediação para
que a proposta do amor de Deus se manifestasse na vida de seu Filho, Jesus
Cristo. Um aspecto importante da abordagem de Lucas é o de que Maria era uma
pessoa livre, determinada, acolhedora e aberta ao “outro”, por exemplo, na
visita à sua prima. Também se refere à anunciação e, no Magnificat, coloca na
sua boca uma grande riqueza humana manifestada em mulheres do primeiro
testamento da Bíblia. O que Lucas fez, no início do seu evangelho, foi o de
estabelecer um paralelo com o texto de Sofonias (3,14-17) e, quando se refere à
visita de Maria a Isabel e estabelece outro paralelo com 2Sm 6,2-16 para
destacar a diferença entre a antiga e a nova arca.
O Evangelista João destaca a importância de Maria no início da vida pública de
Jesus e salienta sua presença na hora difícil da crucificação. A mediação que
Maria faz em Caná, numa festa, revela extraordinária sensibilidade e intuição
em torno do que seu Filho seria capaz de fazer. João também mostrou Maria como
uma mulher forte, pois se manteve de pé diante da cruz em que seu Filho foi
morto como um subversivo da ordem e da religião estabelecida. Outra imagem rica
da reflexão teológica Joanina é a de que Maria representa a comunidade cristã
que se redime e que se salva. Ela é manifestada como horizonte de alcance da
humanidade que se transforma.[4]
Estes referenciais evangélicos, contudo, deixaram inúmeras dúvidas nos fiéis
seguidores de Jesus Cristo. Que traços de personalidade e de fé apresentaram
seus pais, como viveram e como chegaram ao privilégio de gerar o salvador Jesus
Cristo?
II
MARIA
SEGUNDO OS EVANGELHOS APÓCRIFOS
Ao longo dos primeiros séculos da Igreja Católica circularam pelo menos 496
textos de evangelhos apócrifos. Ao lado dos poucos dados dos quatro
evangelistas da nossa Bíblia, estes outros textos foram certamente preenchendo
e formando um arcabouço de uma figura heróica em torno de Maria. O que
certamente não faltou, tal como se procedeu em relação à vida dos pais de
personagens importantes do primeiro testamento da Bíblia, foi o rico
envolvimento de sinais e experiências divinas, com muitas lendas, sentimentos,
fantasias e deduções imaginárias.
Cabe salientar outra característica que os primeiros seguidores de Jesus Cristo
tiveram que enfrentar: a da apologética, uma autodefesa contra os ataques, que
vinham tanto de pensadores gregos, quanto de gnósticos convictos e de correntes
no interior da própria Igreja, tal como a dos docetistas que desconsideravam o
lado humano e feminino de Maria, para salientar o âmbito divino da ação de
Jesus Cristo. Esta autodefesa também envolvia um contra-ataque, no qual estes
cristãos se apropriaram de exaltações que eram próprias das divindades
femininas do mediterrâneo e as aplicaram à Maria.
Não faltaram, tampouco, ataques da parte oficial da Igreja, que passou a
considerar todos estes textos como sendo não canônicos, ou não inspirados por
Deus para a orientação dos seguidores de Jesus Cristo.
Sabe-se também que um não-cristão, chamado Celso, desferiu duras críticas à
devoção popular mariana. Para ele, Maria não teria passado de uma pobre menina
de aldeia, que, depois de desposada por José, teria engravidado de um soldado
chamado Pantira, razão pela qual José a teria abandonado.[5]
Um ataque desta natureza iria, com certeza, levar muitos crentes a uma postura
de exagerada justificação do messianismo de Jesus Cristo, e tirando quaisquer
resquícios de ambigüidade da sua paternidade. Passaria, sem dúvida, a destacar
decência, grandeza e dignidade de seus pais, apelando até mesmo à descendência
de Davi e de outros privilégios divinos que envolveram a ancestralidade dos
heróis do primeiro testamento.
Portanto, entre a espiritualidade de Maria, destacada pelos quatro
evangelistas, e as sublimes fantasias e desejos em torno de Maria, que geraram
estes incontáveis fatos e textos ao longo da história, não podemos ignorar
muitos sentimentos de doçura, de mansidão, de intercessão, de comparações
poéticas e uma extraordinária expressão simbólica de arte, para apresentar esta
importante criatura, chamada Maria.
Os textos apócrifos constituem, certamente, a fonte popular muito rica da
devoção a Maria. Por isto mesmo, significam uma contradição no interior da
Igreja Católica. A mesma oficialidade que não considera estes textos inspirados
por Deus, os levou em conta na promulgação de diversos dogmas marianos, como os
da Imaculada Conceição e da Assunção ao Céu. Temos que lidar com esta
contradição.
a) O apócrifo “Livro de Tiago”
No século IV um dos textos mais veiculados no interior da Igreja Católica foi o
chamado “Livro de Tiago”. É um tratado que recolheu muitos dados anteriores do
início do século II, e tinha o objetivo de oferecer informações seguras e
capazes de dissipar as dúvidas que permaneciam sobre Maria, mãe de Jesus.
Sabe-se, todavia que o Proto-Evangelho de Tiago norteia-se mais por argumentos
apologéticos do que históricos.
Este livro destaca, sobretudo, o lado heróico de Maria e para tanto, recorreu à
literatura bíblica antiga a fim de salientar que não se tratava de menina pobre
de aldeia, mas da filha do rico e abençoado Joaquim. O nascimento de Maria,
como o nascimento de Samuel, de João Batista e de outros grandes heróis
bíblicos, segue um mesmo quadro de antecedentes. Deus escolheu uma mulher
estéril e sacralizou seu ventre para gerar o santo e bendito herói. Deste modo,
também Ana, mãe de Maria, concebeu por obra de Deus, na ausência de Joaquim (o
que geraria o dogma da Imaculada Conceição).
Maria teria sido um prodígio de Deus desde pequena. Sua mãe a consagrou para
servir a Deus no Templo. Aos três anos já se revelava extraordinária para
dançar, cantar e louvar a Deus.
Para justificar a virgindade de Maria e a ação genuína de Deus na concepção de
Jesus Cristo, o “Livro de Tiago” salienta que Maria, humilhada pela cobrança de
ter traído seu marido, se submeteu a um ainda mais humilhante teste para
revelar a ausência de qualquer mancha de impureza na sua gravidez. O próprio
Deus teve que intervir para que ela se submetesse ao vexame do “ordálio” dos
ciúmes. Tanto ela quanto José teriam sido coagidos a ingerir um líquido, ou uma
“xaropada” e subir a uma Montanha no deserto. Caso voltassem sãos e salvos,
estaria configurado o atestado de ausência de pecado. Como os dois regressaram
em perfeita saúde, José pode transbordar de alegria porque, com isso, deixou de
ser condenado pelo sumo sacerdote. Este costume, situado numa tradição antiga,
como a salientada em Nm 5,11-31, ainda vigorava na tradição rabínica dos
primeiros séculos do segundo testamento. Se o resultado desse positivo, as
vítimas seriam excluídas da pertença à nação e da participação no Templo.
O “Livro de Tiago” ainda vai mais longe: mulheres teriam metido os dedos na
vagina de Maria e teriam constatado sua virgindade, mesmo depois do parto,
prova típica dos grandes itinerários de heróis antigos, e, tal como o gesto de
Tomé, que meteu a mão no lado de Jesus...[6]
b) Evangelho do Pseudo-Mateus
Este texto surgiu no século VI. Apresenta grande quantidade de poemas, cantos e
tradições em torno da família de Jesus e destaca Maria com exageros
fantásticos.
Com apenas três anos, Maria teria sido capaz de cantar, de dançar, de rezar e
de vivenciar a fé, no mesmo nível das pessoas adultas. Já naquela idade, seu
rosto teria resplandecido como a neve e ela teria lidado com a lã, para
confeccionar tecidos, como as mulheres adultas.
Tudo isto culminava num dado ainda mais fantástico: sua concepção, gravidez e
parto estariam diretamente envolvidas pelo âmbito da divindade. Nem mesmo seu
parto teria passado pela frágil condição humana do “inter urinam et faeces
nascimur”, ou seja, não se viu envolta por urina, fezes e sangue, como costuma
acontecer.
Estes poucos dados apócrifos já nos atestam que a devoção mariana popular não é
uma questão recente de nossos dias, mas é da tradição antiga da Igreja
Católica.
Segundo Jacir de Freitas Faria[7] a maior parte da
simpatia e do aconchego que muitas pessoas explicitam em torno de Nossa
Senhora, ao longo dos séculos, vem de uma tradição oral e que foi expressa nos
Evangelhos apócrifos. Pelo menos 15 destes Evangelhos revelam dados sobre a
concepção, nascimento e os outros grandes momentos da vida de Maria, mãe de
Jesus. Este imaginário continua muito vivo em mães e filhos.
A seguir apresentamos os principais tópicos deste imaginário
religioso:
2.1 – Quanto ao nascimento de Maria: Joaquim e Ana, pais de Nossa Senhora já estavam
casados há 20 anos sem ter filhos, o que representava humilhação e
discriminação do casal. Joaquim, então, teria fugido para as montanhas. Ana,
devota, insistiu na oração e concebeu Maria[8]. Fez logo
uma promessa: a filha Maria ficaria no Templo por nove anos, consagrada a
Deus. Aos seis meses Maria já teria dado sete passos e voltou ao regaço
da mãe. Ana, então, teria desejado que Maria somente fosse andar no Templo e
por isso preparou um santuário no quarto para que nada de impuro pudesse tocar
o corpo de Maria. Outras meninas sem mácula poderiam entreter-se com Maria. No
primeiro aniversário de Maria os pais teriam feito uma grande recepção e
convidaram sacerdotes e escribas, anciãos e todo o povo de Israel. Os sacerdotes
então suplicaram a Deus para que concedesse a esta menina um nome glorioso e
eterno. A mãe, então, levou-a ao santuário do quarto e lhe deu de mamar. Já no
segundo aniversário de Maria, levaram-na ao Templo para cumprir a promessa de
Ana, mas, resolveram esperar mais um ano para que não viesse sentir saudades
dos pais. Aos três anos, foi então abençoada no Templo e o sacerdote lembrou
que ela mostraria a salvação aos filhos de Israel. Maria passou a viver no
Templo como uma pomba e era alimentada por um anjo.
2.2 – Quanto à anunciação de Maria
Quando atingiu 12 anos, os sacerdotes, querendo evitar que ela viesse a manchar
o santuário do Senhor, procuraram um esposo para Maria. O sumo sacerdote entrou
no santo dos santos e depois anunciou que teria que ser um viúvo. Entre os
muitos pretendentes, estava José. O escolhido teria sido este viúvo idoso, pai
de três filhos, chamado José. Primeiramente teria recusado o convite por se
achar muito idoso. Como o sacerdote insistiu, José, atemorizado, aceitou levar
Maria para sua casa, mas declarou que continuaria a fazer construções, mantendo
seu ofício. Com isso, Maria foi morar em Nazaré.
Enquanto
José viajou a trabalho, Maria concebeu do Espírito Santo. Como José não aceitou
o fato, Maria fugiu para a casa de Isabel.
Segundo
o proto-evangelho de Tiago, tudo isto envolveu angústia e bronca por parte de
José. No sexto mês de gravidez, José se jogou no chão e teria chorado
amargamente, porque ela teria maculado sua virgindade. Alguém deveria tê-la
seduzido. Como poderia alguém que cresceu ao lado do santo dos santos poderia
aviltar sua alma? Também ela tria desandado em choro para assegurar que
continuava pura e virgem, alegando não saber o que possa ter ocorrido para
encontrar-se grávida. José entrou num dilema: afastar-se dela, mas o que fazer?
Ocultar a falta de Maria ou denunciá-la? Quando reforçou o pensamento de
abandoná-la, um anjo lhe teria dito em sonho de que ela é fruto do Espírito
Santo, e que levaria o nome de Jesus e que salvaria o povo dos pecados. Mesmo
assim, José, com Maria teria sido chamado a júri, pois, como viúvo, teria
violado a lei ao engravidar Maria, entregue à sua confiança. Ele teria
consumado o casamento sem torná-lo público. Maria, em meio ao choro também
assegurou diante de Anãs, que era pura e que não havia perdido a virgindade.
José, por sua vez, também garantiu que era puro em relação à Maria.
Mais
tarde, quando José aceitou o fato porque Maria teria comprovado sua inocência e
então vai com ela para Belém a fim de fazer o recenseamento. Na viagem, perto
de Belém, Jesus teria nascido numa manjedoura e Maria teria continuada virgem
após o nascimento de Jesus.
Para
nós, o importante é que Maria se moveu pela fé e é por isso que foi chamada de
bem-aventurada. Este percurso na fé não a deixou isenta de dores, sofrimentos e
de muitas dificuldades. Ela parece não ter sido uma mulher privilegiada com
todas as facilidades divinas, mas, bem ao contrário, vivenciou dores e
condicionamentos humanos, como nós os vivenciamos. Por isso, se a Igreja a
declara “imaculada” é porque também nós, pelo crescimento na fé e na caridade,
somos convidados a nos tornar menos maculados.
A anunciação ainda significa outro dado muito estranho. Segundo tradição
antiga, Jerusalém era o lugar da morada de Deus. Por conseguinte, o anjo
Gabriel (nome que significa que Deus é forte), deveria dar a boa notícia da
iminente gestação do salvador, no lugar adequado, no Templo da cidade de
Jerusalém. Teria que dirigir-se a um sacerdote, conhecedor da Lei e rigoroso
praticante das coisas de Deus. Aproximadamente 18 mil sacerdotes estavam
desejosos de oferecer incenso a Deus e desfrutar de suas boas informações.
Mesmo Zacarias, muito correto e piedoso, não poderia acreditar neste Gabriel e,
ainda mais, dizendo que esta insignificante Maria seria mãe do filho de Deus.
Se Deus não podia ser visto, como iria agir em Maria? Ela aceita a informação
do anjo (mensageiro que comunica algo especial de Deus). Como poderia conceber,
se ela, sendo mulher, sequer poderia chegar perto Dele no Santo dos Santos? Era
algo totalmente inusitado e não imaginável. Heresia pura! E ainda mais,
pastores odiados e magos considerados pagãos, reconheceram esta manifestação de
Deus na condição humana. Um problema a mais: que tipo de anjo do Senhor seria
este? Ele trazia uma notícia realmente subversiva da liberdade para todos
aqueles que sequer eram vistos como pessoas, ante o Deus que residia no Templo.
2.3 – Quanto à vida de Maria no Egito: Para fugir da perseguição romana, a Sagrada Família
teria passado cinco anos no Egito. Na educação de Jesus, os pais percebem que
ele é diferente dos outros meninos desta idade. Até os doutores do Templo
teriam ficado encantados com sua sabedoria.
Como foi o contexto real de Maria? Seu lugar de origem, Nazaré da
Galiléia, era de péssima fama. Não era a região santa e privilegiada da morada
gloriosa de Deus (Jerusalém), pensado como o centro do mundo. O povo da
Galiléia era desprezado e tido como gente inferior, pois sua origem
medo-pérsica era desconsiderada diante do auto-engrandecimento hebraico. O uso
do termo “samaritano” já se constituía num insulto contra aquela gente. Do
ponto de vista religioso, era um povo considerado idolátrico, porque adorava
divindades no monte Garizim, em vez de ir à morada de Deus na cidade de
Jerusalém. Este povo tampouco seguia a lei, os ritos e cultos hebraicos.[9] A Galiléia não teve participação nos grandes
acontecimentos do reino de Israel, pois, politicamente, era contra a monarquia,
tão defendida até pelos profetas do sul.
2.4 – Quanto à presença de Maria na
vida adulta de Jesus: José teria morrido antes da vida
pública de Jesus. Maria teria incentivado a vida pública de Jesus. Mesmo na dor
da paixão e a difícil despedida, ela não o abandonou. Ela também teria sido a
primeira a se encontrar com ele no túmulo e teria se encantado com sua
ressurreição.
2.5 – Quanto à assunção de Maria ao
céu: Quando se passaram dois anos da morte
de Jesus, este teria comunicado a Maria que ela também iria morrer dentro de
três dias. Os apóstolos, então fizeram vigília na sua casa e Jesus com seus
anjos leva Maria à dormição. Depois de enterrá-la no lugar indicado por Jesus,
ele voltou e a levou para o céu e lá a condecorou como rainha do céu.
Mesmo de evangelhos apócrifos, muitos destes dados relativos a Nossa Senhora
acabaram sendo proclamados como dogmas de fé, tal como o da assunção. Este
dogma está fundamentado em textos apócrifos e certamente quer passar-nos uma
mensagem muito importante: o que Deus fez com Maria, pode vir a acontecer com
cada um de nós.
O assunto da virgindade também é altamente polêmico. Este dogma, proclamado em
553, talvez para salientar que Deus pode lidar do mesmo jeito com a nossa
fragilidade humana, especialmente no campo simbólico no qual a virgindade seria
existencial e não apenas questão carnal ou genital. Como lidar com isto hoje?
Se nela a concepção foi tão diferente do normal da maternidade, porque tanta
invocação de uma mulher tão estranha? Teria sido apenas uma imagem simbólica
para dizer que a virgindade dela foi um jeito de nos remeter a Deus?
A partir dos apócrifos poder-se-á também concluir que a história de Maria, foi,
na verdade, a história do povo de Israel, numa aproximação do que Raquel
representou para o povo: um modelo de mãe. No entanto, os evangelhos apócrifos
de Maria, segundo Jacir de Freitas Faria,[10] apresentam
textos anti-semíticos.
III
HERANÇAS
BÍBLICAS PARA O ENTENDIMENTO DE MARIA
Da história bíblica antiga transparece que a mulher nem sempre gozou dos mesmos
direitos do homem, tanto na vida social, quanto na participação dos cultos. Em
Ex 38,8; Dt 12,12 e Jz 21, 21; consta que a mulher participava de procissões e
serviços religiosos. Quando Esdras implantou a reforma religiosa, depois do
exílio na Babilônia, as mulheres foram impedidas desta participação. O rigor
desta mudança foi tão radical que judeus casados com mulheres estrangeiras
foram orientados para que mandassem embora estas mulheres com seus filhos (Esd
10).
Aos poucos, passou-se a dar mais valor ao nascimento de filhos machos e com
real desprezo ao nascimento de meninas. Estas passaram a ser interpretadas como
castigo, enquanto que o nascimento de meninos era interpretado como bênção. O
importante era gerar um filho varão. A mãe que gerasse uma menina teria que
suportar, além desta menina, um segundo peso, o de se sentir infectada por três
meses e, para purificar-se, teria que submeter-se a abluções segundo
prescrições da Lei (Lev 12,5). Era próprio do tempo antigo, que meninas fossem
abandonadas como forma de superar a tristeza: “quando deres à luz, se
for um menino, tem-no; se for menina, enjeita-a.” [11] Este costume viria a ser abolido
somente no século IV da era cristã.
O primeiro testamento da Bíblia é farto em textos que discriminam a mulher. Seu
primeiro livro já enfatiza que foi através da mulher que o pecado entrou no
mundo e que, sua culpa, é a nossa causa de morte; Levítico 12,2-5 prescreveu
que a menina, ao nascer, teria que ficar mais tempo impura do que menino.
No capítulo 11 de Juízes, interpretou-se como ação inspirada por Deus a atitude
do guerrilheiro Jefté, que, ao vencer os amonitas, matou sua filha única em
sacrifício de louvor a Deus; Gênesis, 2,18 destaca a mulher como auxiliar do
homem. O livro dos Provérbios, no capítulo 31, pelo modo de indicar o tipo de
mulher perfeita, salienta claramente este lado servil da mulher. O texto a
estabelece como uma bela máquina de serviço que não pára de agir. Não poderia
ter feito algum elogio porque ela é pessoa? Outro livro bíblico, o de Juízes,
capítulo 15, enquadra a mulher como objeto de negociação, e a coloca no mesmo
nível de vacas e de asnos; Mais outro texto bíblico, Números 31, informa que
nas partilhas dos espólios de guerra, a mulher era enumerada depois dos burros;
assim também o livro do Levítico considera impureza tudo o que se relaciona a
sexualidade e ainda discrimina a mulher, porque em seu ciclo menstrual, torna
impuro tudo quanto toca ao longo de sete dias: a cama onde se deitar, a cadeira
onde sentar e a água em que lavar suas roupas ficarão impuras. Se alguém
tivesse relações sexuais com ela, nestes dias, também ficaria impuro. Um belo
resumo desta discriminação da mulher se encontra no capítulo 7 do livro do
Eclesiástico: entre mil, Deus teria encontrado um homem para abençoá-lo e
nenhuma mulher para esta honra... Tal herança permite imaginar o contexto no
qual Maria, uma jovem hebréia, enfrentaria o casamento e a maternidade.
De onze anos para frente, uma menina era considerada maior de idade. Poderia,
então, deixar a dependência do pai, para ficar submissa a um marido. Só que o
casamento não constituía nem ato religioso e sacramental como em nossos dias e
nem tampouco, uma festa social. Limitava-se, antes, ao desfecho de uma
negociação que acontecia entre os pais. Não havia esta independência dos jovens
poderem escolher seus pretendentes parceiros ou parceiras a partir de
sentimentos de simpatia ou de amor. Em Deuteronômio 22, informa-se que a
família do esposo pagava um dote que teria que ultrapassar cinqüenta moedas de
prata. Significa que uma moça era literalmente comprada e um homem poderia
desposar muitas mulheres. Em tal procedimento, certamente não estiveram
ausentes certas formas de barganha, pois ela seria apreciada e valorizada ou
desvalorizada por certos traços físicos. Podemos imaginar alguém dizendo: eu só
pago tantas pratas, porque ela tem nariz torto ou perna grossa ou fina, etc.
O casamento de Maria com José, certamente aconteceu de acordo com a tradição
expressa em Ezequiel 16, segundo a qual, o rapaz jogava o manto sobre a jovem e
a declarava esposa e ela cabia responder que ele seria seu marido. De acordo
com o costume da época, José, depois que Maria fora assumida como “Issà” sua
esposa, não poderia enjeitá-lo, pois, uma traição seria considerada crime. As
núpcias propriamente ditas viriam a acontecer somente um ano depois, geralmente
em terças-feiras, e caso o marido viesse a constatar que a esposa não era
virgem, poderia dispensá-la no dia seguinte. Nesta segunda etapa do casamento é
que costumava acontecer uma festa de núpcias e que normalmente durava cerca de
uma semana.
No caso de José e Maria, a questão do dote denota que Maria era de família
muito pobre, pois não se pagou um dote significativo. Além disso, pobreza
representava castigo de Deus ou antecedentes pouco recomendados como incesto ou
adultério. De acordo com Mt (13,55), José era carpinteiro. O nome “Yôsêf”
significa “que Deus faça crescer”. Mesmo assim, segundo Alberto Maggi, o
conceito deste casal, em Nazaré, não foi dos melhores, porque se desfrutasse de
bom conceito não precisaria ter fugido para o Egito. Apesar de ser considerado
descendente de Davi, que viveu mil anos antes de José, a ancestralidade próxima
deixou um péssimo conceito para José: a imoralidade de alguns dos seus
antecessores levou a estabelecer na legislação que todos os descendentes
masculinos seriam considerados bastardos (pessoas geradas fora do casamento),
uma equivalência aos escravos e, por isso mesmo, sujeitos a chicotadas como
eles.[12] Como poderia, então, um bastardo
participar do reino de Deus? Esperava-se a volta de Elias para purificar o povo
de Israel, especialmente para assegurar uma genealogia genuinamente judaica. A
declaração de que José era justo, visava, certamente, incluí-lo na lista destes
fiéis seguidores da Lei. Na verdade, o que se informa sobre José nos
Evangelhos, se restringe praticamente a esta noção de que ele era justo.
De acordo com o quadro cultural da época, seria completamente estranha a
atitude de Maria se ela fosse abrir a boca contra seu marido ou apresentar um
comportamento auto-determinado.
IV
A
ANUNCIAÇÃO DE MARIA
A anunciação feita a Maria, tal como sua imaculada conceição, também nos coloca
na perspectiva da integração da unidade primitiva, que foi rompida na história
humana. Por isto, a ação do Criador é a mesma da origem: age o poder criador do
Alto, o Espírito que pairava sobre as águas, para que a “virgem” se torne
fecunda. Deste modo, o significado da anunciação equivale à aurora da reatância
ou da nova criação, em que o humano e o divino, através de Cristo, realizam
novamente a unidade, quebrada pelo pecado humano.
Da parte divina ocorreu a iniciativa do diálogo para ativar as energias da
criação. Agora, os homens e as mulheres, são interpelados a participar na
tarefa fundamental da recomposição da unidade. Os seres humanos precisam desta
ação simbólica do Anjo, que precisa interpelar para uma ação dinâmica que
novamente estabeleça a individuação na totalidade das coisas: o humano
integrado no divino.[13]
A riqueza deste significado teológico, todavia, não significa apenas olhar para
o céu e esperar milagres fáceis, mas, um grande desgaste de energias humanas
para recuperar de novo a unidade perdida e “des-velar” ou, destampar, as
máscaras que nos afastaram desta intimidade com o transcendente. Há tanta forma
egoísta e racional que nos cega para a percepção desta realidade profunda da
vida humana. Para quem se cultiva no racionalismo, fica extremamente difícil
admitir que o desconhecido possa agir em favor de mais qualidade para a nossa
condição humana. Anunciação significa algo que vem de Deus. Por isso, a
fragilidade dos condicionamentos humanos e sócio-culturais recebe uma indicação
para agir rumo à recriação da unidade. A “virgindade” diante do mistério divino
é, pois, muito mais do que uma questão meramente genital. Significa que a
humanidade pode refletir esta realidade divina. Em outras palavras: o Espírito
pode fecundar energias para que os seres humanos se tornem menos contaminados
com tudo quanto simboliza o “velho Adão”. Lúcio Pinkus salienta que há muitos
significados marcantes da Anunciação:
“Parece-nos
que, diante do luminoso sinal da Imaculada Conceição, a Anunciação representa
como que o primeiro estágio do processo que quer chegar à totalidade e,
portanto, à abolição das separações e dos opostos”.[14]
A resposta a esta abertura se expressa na
significativa resposta: “Faça-se em mim, segundo a tua vontade”. Não é a do
“Eu” fechado, isolado e preso no intimismo da pessoa narcizista, mas a do “Eu”
que se abre à totalidade do divino. É fecundidade para ultrapassar as leis
biológicas e encontrar a manifestação do Espírito que integra o feminino no dom
da vida.
V
A
MARIA DAS APARIÇÕES
Mesmo empolgante, o assunto das aparições de Nossa Senhora revela-se
extremamente ambíguo. É indubitável que possam ocorrer aparições, mas se
prendemos atenção aos conteúdos das supostas mensagens de Nossa Senhora, em
distintas aparições, algo se torna evidente: os ouvintes e os interlocutores
das mensagens não poderiam estar com visões alucinatórias?
Pode muito bem uma alucinação conduzir a uma profunda mudança de vida e, sob o
aspecto religioso, significar uma intensa experiência de Deus, capaz de
transformar radicalmente a vida. No entanto, parece que a maioria das
narrativas de aparições revela aspectos psicopatológicos, isto é, há
componentes psicológicos geralmente ligados a uma condição mórbida e freadora
do que está acontecendo na vida religiosa ou na sociedade. São ameaças
apocalípticas sobre o que vai acontecer, caso não ocorra um regresso a certo
modo de rezar e de agir. Neste sentido, as aparições não deixam de revelar uma
forte conotação política. Basta lembrar a aparição de Fátima, em meio ao
catolicismo nacionalista da ditadura de Salazar em Portugal, que, ao mesmo
tempo, se constituiu em fator repressivo e de manipulação diante do medo de
desordens que o avanço comunista poderia provocar no país.
Além do risco de manipulação política as aparições também se prestam para
intensa exploração econômica, pois envolvem a administração do acesso, a dos
bens de venda e consumo e uma ampla rede para dar suporte a viagens, estadias e
outras variadas formas de consumo própria do turismo.
Ao lado das dimensões políticas e econômicas das aparições, convém ressaltar
também a da mídia, pois a opinião pública torna-se amplamente informada sobre
pressupostas vantagens de visitas ao santuário, além de propagandas e de ação
de muitas instâncias hierárquicas no interior da Igreja.
A tendência destas manipulações, evidentemente, não significa negação da
existência de aspectos positivos nas romarias aos lugares de aparições.
Enquanto ricos fazem turismo considerado cultural, pobres vão ali procurar
intervenção e podem alimentar uma potencialidade libertadora, capaz de levá-las
a procurar mais justiça na organização humana. Mesmo assim, nem sempre o
discurso religioso veiculado nestes espaços de evangelização está preocupado
com a dimensão libertadora que se faz necessária dentro e fora da Igreja.
Os perigos e as iminentes ameaças que estariam por acontecer, revelam a
tendência de se explorar o medo e uma clara pretensão de enquadramento das
pessoas para um determinado tipo de orações e de procedimentos. Neste sentido,
cabe lembrar que, qualquer devoção ou ritual, pode expressar uma profunda
riqueza religiosa. Entretanto, nestas esperanças misturam-se, com a maior
facilidade, sonhos e fantasias, e, por isto mesmo, a mistura facilita um grande
risco de desvio capaz de transformar estes ritos ou devoções em ideologias,
conteúdos divulgados e movidos para favorecimento de grupos ou de algumas
pessoas; e em idiossincracias, que constituem uma verdadeira perversão
do significado simbólico, porque levam determinadas pessoas a apropriar-se de
significados simbólicos e a se estabelecerem como donos e, no presumido direito
exclusivo de repassá-las às demais pessoas de fé. Muito disso aparece evidente
em devoções marianas e neo-pentecostais, como o do movimento carismático. Se
certos ritos expressam fantasias sociais de esperança, apropriar-se deste
controle, pode tanto significar ideologia, pois interessa a certo grupo de
interesse, quanto de idiossincracia, porque quando alguém se considera
privilegiado pela visão, ou pelo dom da cura ou por qualquer outra natureza
privilegiada, destrói o sentido da devoção e do ritual.[15]
Se nos damos conta de muitos textos bíblicos do primeiro testamento, vemos que salientam
mudanças políticas e sociais decorrentes de sonhos e de visões. Também hoje há
um número incontável de pessoas que se lembra de sonhos envolvendo Nossa
Senhora, Jesus Cristo, santos, santas e outras instâncias divinas. Muitas
vezes, são prolongamentos de imagens ou motivações agradáveis que ocorreram em
orações, conversas, desejos ou de distintas formas de cultivo da fé. De um modo
geral, estas experiências, ocorrem sem causar maiores inquietações. No entanto,
certos sonhos podem causar abalos emocionais e outros, podem causar profundas
experiências que levam a mudança radical no rumo da vida. Nestes casos, quando
se trata de motivação positiva, que dá vigor e maior capacidade de ação do que
a anterior ao sonho costuma-se, em tais casos, considerar o fato como uma
experiência de Deus, ou, uma experiência mística. Todavia, quando alguém teve
visão, sonho ou alucinação que apenas envolve mendicância de afeto e de
envolvimento, então, classifica-se tal ato como sendo mórbido, isto é, uma
perturbação do psiquismo da pessoa. Mesmo em meio a muitos atos mórbidos, podem
certas visões representar algo de extraordinário e de divino, sobretudo quando
fornecem maior força de fé e constituem um elã de vida coerente, estável e
solidário.
No caso dos dados que Nossa Senhora das aparições pede aos fiéis, fica muito
estranha a dimensão salvadora de Jesus Cristo, pois, se veio apontar um rumo de
um projeto de vida que salva, porque iria Ele, agora, mandar ameaças através de
sua mãe, coisas estranhas às noções bíblicas acerca do que ambos fizeram. E
ainda mais, sempre numa atitude chorona e pessimista diante do mundo existente!
Talvez por isso o grande teólogo Schilleebeeckx tenha sugerido: “precisamos
inculcar muito mais no povo o culto a Maria Santíssima do que a devoção a Nossa
Senhora de Fátima”[16]
O conteúdo das mensagens de aparições, por outro lado, não deixa de apresentar
uma fantasia com esperanças para algo bom e melhor na sociedade. Sob este
aspecto, elementos religiosos podem manifestar uma clara definição política.
Por exemplo, a aparição de Nossa Senhora de Fátima de 1917, revela uma posição
política carregada de medos que, no mesmo ano, a revolução russa representava
para países europeus como Portugal. A mensagem teve nítido conteúdo político de
um desejo de recuperação de um ”status quo” que existia antes. Se nos
reportamos para a Maria dos textos bíblicos, certamente nos enchemos de outra
motivação política: para algo que rompe a atual sociedade e que leva a criar
outra, menos sedimentada por medos e prepotências, religiosas ou políticas.
Maria, mãe de Jesus, apostou o melhor de suas energias para que pudesse
acontecer o projeto do seu Filho... Assim, o simbolismo de uma boa fantasia
política teria que estimular um novo ambiente social e não somente restringir o
desejo a uma determinada oração popular. A melhor solução para aquele momento
histórico certamente não teria sido a de ver tudo como errático, mas, em meio a
tal dificuldade social, fermentar algo que pudesse gerar uma transcendência
social e ir para além do que levou àquela situação. Portanto, parece que uma
importante mediação de Maria, pela memória do que fez, seria a de apontar para
algo mais do que estava vigente nas formas religiosas da época. Se a revolução
representava um grande inconformismo, mais do que brecar e impedir, a mensagem
de Maria teria que despertar para a rica abertura que ela manifestou diante de
Deus. Abriria, pois, uma perspectiva catalizadora para a auto-transcendência
das formas de cristianismo então vivenciadas. Novas formas comunitárias
poderiam estar no horizonte auspicioso e político das perspectivas de Nossa
Senhora...
Os textos evangélicos revelam que a mãe de Jesus foi uma mulher forte, ativa,
atuante e, por isto mesmo, constituiu um itinerário de crescimento na fé que
leva ao projeto do seu Filho. Por que, então, a Maria das aparições só fala de
sofrimentos, de perigos e de ameaças? Não deveria ela revelar a glória do
âmbito de Deus e reconhecer algumas coisas bonitas de santas mulheres e de
santos homens deste mundo de Deus, e, que apontam sinais e caminhos para a
completude em Deus?
É inegável que muitíssimas pessoas, frágeis na sua estrutura psíquica, se
movem, nas devoções marianas, por um autêntico sentimento religioso, mas elas
também podem estar sendo manipuladas pelos presumidos interlocutores de Nossa
Senhora das aparições e que não levam ao projeto de seu Filho Jesus Cristo.
Vale, pois, a desconfortável pergunta que Immanuel Kant formulou em relação aos
teólogos e religiosos que estavam pressupondo a possibilidade de contatos
diretos com Deus, dispensando os demais deste itinerário, para informá-los a
respeito do que Deus deles esperava. Kant perguntou se estas exigências eram
realmente as de Deus ou as da cabeça dos teólogos ou pregadores? Basta escutar
pregações explicativas das mais variadas sobre o que Deus é e o que quer e faz,
para constatar que, de modo geral, são idéias refletindo os desejos da cabeça
do pregador sobre os ouvintes.
A quem Nossa Senhora se revelou em aparições? Não apareceu para falar ao Papa,
nem aos bispos em Concílios, nem aos teólogos em Congressos, nem a psicólogos
em Clínicas, nem a prestigiados santos e santas da Igreja, mas, somente a
certos estereótipos de pessoas simples e piedosas.
Em primeiro lugar, tal como aconteceu com Maria mãe de Jesus, diante das
expectativas messiânicas, estas aparições frustram e decepcionam muitos níveis
e muitas áreas de conhecimento. Pessoas simples e piedosas podem estar mais atentas
a manifestações divinas do que pessoas cultas e de elevados níveis acadêmicos,
porque são menos racionais e racionalistas de que pessoas com mais elevados
níveis de estudo, mas, elas também são extraordinariamente frágeis para serem
sugestionadas, porque não avaliam os fatos com senso crítico. Em algumas
narrativas de aparições, mesmo coletivas, não emergem ali conteúdos de um
arquétipo coletivo ou do inconsciente de um grupo humano que se reúne em
determinado lugar de aparições já com expectativas comuns? Basta declarar que,
em qualquer lugar inóspito ocorreu um fenômeno extra ou para-normal de alguma
aparição divina, que já começam a afluir multidões humanas com expectativas de
serem agraciadas por algo extraordinário.
Da mesma forma, em lugares de aparições, a concentração permite que aflorem
sentimentos profundos, ainda que perturbados e estranhos ao linguajar de
instâncias superiores de Deus, tais como as da aparição de Fátima no dia 25 de
novembro de 1978 aos seus prediletos padres:
”Filhos prediletos, a cada momento
deixai-vos conduzir por mim e secundai sempre os desejos do meu coração
imaculado. No silêncio e no escondimento, Vossa Mãe Celeste está agora atuando
seu grande desígnio de Amor. Esta é a hora da minha batalha. Desde já,
convosco, comecei a atacar o meu Adversário, justo onde parece tenha obtido,
momentaneamente, a vitória. Onde Satanás destruiu, eu construo. Onde Satanás
feriu, eu curo. Onde Satanás venceu, eu agora obtenho o maior triunfo... O meu
amor quer agora manifestar-se, de forma extraordinária, especialmente aqueles
que se extraviaram e correm o grave perigo de se perderem eternamente...
Quantas almas vão para o inferno porque não mais se reza, porque o pecado
difunde-se e não é mais reparado, porque o erro é facilmente seguido”[17]
Precisaria a mãe de Jesus, desta linguagem de guerra, de demonização e de
revanche para recuperar terreno perdido em comunidades cristãs com seu
predileto exército de padres? A ênfase no privilégio da castidade de
Maria tem muitas vezes uma relação estranha porque a virgindade de Maria é
associada à proteção do celibato dos padres e ela é apresentada como a mãe dos
padres. Por que esta virgindade não a torna mãe dos demais homens e mulheres?
Parece tratar-se de um reducionismo para afirmar que quem é filho de Maria tem
que ser virgem como ela...
Ocorre inegavelmente um fator mórbido (doentio) em muitas pessoas que se movem
dentro de certos estereótipos marianos, pois alguns processos de formação
cristã distorcem a mensagem que a figura de Maria representa para a iniciação
cristã, sobretudo de crianças. Uma imagem fantasiosa de Maria passa a ser
utilizada para coagir as crianças, como “não faça isso que a mamãe do céu não
gosta!”. Também uma atitude ambígua em relação à sexualidade pode facilitar
muitas projeções para despertar culpa. Há muito “santinho”, estatuetas e figas
que podem prestar-se mais para a repressão de sentimentos do que para
alargá-los em vista da harmonia com Deus, na imagem do restabelecimento da
unidade primitiva.
Em muitas pastorais e movimentos eclesiais de nossos dias o perfil de
inquietações não é muito diferente e, se não é em nome de Nossa Senhora,
apela-se à mesma linguagem para as interpelações do Espírito Santo, pois, sob
sua inspiração, também são declaradas manifestações demoníacas por todos os
lados. Por isso, apresenta-se o apelo e as convocações para arrebanhar fiéis,
que, como os soldados na guerra, devem agir, rápida e dinamicamente, para
derrotar o espaço tomado pelo demônio e restaurar o que este inimigo já
incorporou para o seu lado[18].
As rápidas e profundas mudanças sociais dos últimos séculos, de fato, avivam
muitos valores do inconsciente coletivo que despertam saudades em torno das
formas de cordialidade e de solidariedade que marcaram a vida de muitas pessoas
de fé e que, ao verem o desmoronamento destes mundos, alimentam medos ante os
muitos riscos com armas, poluição e desequilíbrio de eco-sistemas. Por isso
elas pressentem que a ordem do alto possa repassar o horizonte das esperanças
que, em outros momentos, lhes preencheram o sentido da vida.[19]
Também se deve levar em conta o forte desejo exotérico que eclode em todas as
manifestações religiosas e, que desperta nas pessoas mais iniciadas num
determinado modo de rezar, a auto-elevação de poder indicar o caminho mais
eficaz para ser seguido pelos outros, a fim de que possam obter o mesmo avanço
espiritual e os mesmos segredos de êxito. Todos estes videntes enxergam que na
política dos governantes, no modo de ser da organização política e cultural e
nos fenômenos das novas formas religiosas, que seu modo de ser, estreitamente
ligado às manifestações do sagrado, os deixa num nível privilegiado para haurir
segredos das forças divinas e repassá-los aos demais. É, na verdade, o que
todos ansiamos pela nossa natureza política de querer agir e atuar sobre os
outros: queremos que os outros sintam o sentido que encontramos nas raízes de
nossa fé. Entretanto, estas raízes podem ser meramente ideológicas ou de um
nível de fé bem elementar e que sequer considera os elementos essenciais do
projeto cristão que a entidade religiosa supõe seguir. Por isso, a
religiosidade mariana em torno das aparições, ao invés de incorporar toda a
riqueza, como a de Jesus Cristo, espera das aparições os resultados que
deveriam advir de um amadurecimento religioso e de um seguimento que requer
confrontação com a realidade que muda. Portanto, não é suficiente criticar o
que fica diferente, mas cultivar a sensibilidade para captar o que Deus
manifesta no meio destas diferenças. Como Lúcio Pinkus lembra:
“... com muita facilidade o
tema das aparições pode estar ligado à necessidade inconsciente de obter uma
prova do amor exclusivo da grande Mãe e, assim, participar de modo evidente de
uma relação exclusiva, em que está incluída a aquisição de um papel específico
e até de um poder que tem uma dinâmica própria, que até dispensa instâncias
normais de avaliação dos carismas, como são as hierárquicas.” [20]
Geralmente esta relação das pessoas videntes com Nossa Senhora desconsidera as
outras formas tradicionais canonizadas e leva as pessoas a estabelecer o mesmo
tipo de mediação para contato com estes valores divinos, porque os aponta como
fonte das bondades divinas, acessíveis em meio a um mundo rodeado por
contaminações demoníacas. Afinal, quantos não desejam uma fé prodigiosa, capaz
de promover as pessoas que se sentem interlocutoras das aparições a uma
elevação do conceito social e do nível simbólico da cultura, e, ainda,
desbancar todo este mundo de avanços científicos da humanidade e todas as
personificações do mal? Ao desejar este milagre, os seguidores desta pessoa
agraciada deixam de olhar para os verdadeiros milagres que acontecem todos os
dias e até mesmo através dos sacramentos, e estabelecem como referência de fé o
senso carismático do segredo da aparição.[21]
Tanto a personalidade de pessoas videntes quanto o grupo que as envolve,
constitui tema difícil de estudo na perspectiva conclusiva como realmente
milagroso ou meramente mórbido, no sentido de perturbação emocional. Talvez,
por isso, tão poucas pessoas ousem emitir uma opinião sobre este assunto, o
que, no entanto, deixa um campo aberto para a expansão e vasta divulgação do
fato das aparições.
VI
A
MARIA DOS DOGMAS
Os dogmas marianos envolvem apresentações distintas
da imagem do feminino. Em outras palavras, salientam o modo como o feminino faz
parte do “sagrado”. Uma leitura teológica bíblica, anterior à do pensamento
cristão, havia deixado o feminino em desvantagem na relação ao masculino. Na
origem do nosso mundo teria existido a harmonia. A ruptura do homem e da mulher
com Deus teria levado à expulsão do Éden e à dura tarefa de trabalhar e de
procurar alimentos, o teria separado homens e mulheres para atividades distintas.
A mulher, gerando filhos, também os geraria para a morte, pois a separação das
atividades tornar-se-ia fator de competitividade e estabeleceria a posse no
lugar da parceria e da comunhão. Mesmo com atrações e repulsas, homens e
mulheres tornaram-se objetos uns dos outros. Daí também a divisão entre razão e
afeto ou razão e emotividade.
O pensamento cristão, contudo, enfatiza a salvação, pois permite entender que a
pessoa fiel, apesar das cisões que causa, poderá voltar à harmonia originária
dos seres com a realidade envolvente e com Deus. Sua mediação, através de
Cristo, ofereceu gratuitamente este dom para que se recuperasse a unidade entre
homem e mulher, bem como, da vida com a morte. Na condição de filhos de Deus,
esta relação permite renovar a antiga unidade e a harmonia com Deus, da qual
Cristo é o grande modelo. Por isso, no jeito de Cristo, está aberto
o caminho para a superação das divisões.
Como esta perspectiva de salvação requer a participação consciente da pessoa
humana, surge uma dificuldade, porque no cultivo da fé entram também os
diferentes níveis psicológicos das pessoas convidadas a estabelecer a unidade
originária. Se a busca da plenitude em Deus requer da pessoa o desenvolvimento
da sua individualidade, bem sabemos que este desenvolvimento não é linear.
Ocorrem desistências, submissões, crises e novas desintegrações, tornando
difíceis os níveis razoáveis de unidade interna e de harmonia da própria
pessoa, que, por sua vez, seriam básicas para uma boa experiência religiosa.
Por outro lado, tal condição requer ainda que se integre o feminino, tão
excluído da harmonia humana e até mesmo nos espaços de celebração dos espaços católicos.
O espaço feminino vai ser encontrado precisamente em Maria, o símbolo da
humanidade que se salva, e, que se realiza na integração com o transcendente.
Por este motivo, Maria se torna uma figura simbólica central para recuperar a
unidade com Deus. Ao lado deste importante papel, todavia, abre-se o caminho de
grandes e profundas divergências em torno de Maria: é a “deusa” toda
privilegiada com dons particulares para oferecer aos suplicantes, ou o modelo
de mulher concreta que nos aponta um itinerário de harmonização conosco, com os
outros, com a natureza envolvente e com Deus? Neste caso, em vez de solicitar
intervenções especiais, teríamos que percorrer o seu jeito de lidar com a vida
para chegarmos à plenitude da salvação.
Segundo Clodovis Boff, os dogmas não resultam diretamente de dados da escritura
bíblica, mas, decorrem desta escritura. Vejamos, pois, estes dogmas conhecidos
e polemizados.
6.1 – Imaculada Conceição
Este dogma foi decretado pelo papa Pio IX em 1854.
É uma original maneira de colocar Nossa Senhora como sinal luminoso que indica
a fonte da luz, ou seja, uma forma de estabelecer a relação do humano com o
divino. Ela passa a ser vista como ponto de ligação destas duas realidades.
Seria esta concepção de Maria, a noção originária da humanidade ainda sem
pecado, sendo feliz no Éden, à imagem e semelhança do criador? Certamente,
pois, é o que celebramos na liturgia. Lúcio Pinkus usa uma metáfora para
ilustrar este aspecto:
“Podemos
dizer que entre a eternidade e o tempo, a Imaculada Conceição é a única forma
concreta em que Deus pode reconhecer-se, porque a sua imagem aí se
reflete sem alterações; nela, pois, temos a primeira e a única criatura que
pode compreender e abranger Deus como imagem primordial do Homem, ou seja, a
“sua” idéia na mente divina, o seu arquétipo originário, na espessura do
homem/mulher históricos”[22]
Por estarmos separados da realidade originária sem pecado, Maria seria o
reflexo da luz que nós não atingimos por causa de nossa realidade pecadora. O
estado de pureza nos daria a condição de captar esta energia divina. Como ela
foi notável nesta virtude, impregnou-se de Deus para difundi-lo de forma eficaz
através de Cristo. Portanto, mais do que excepcional e privilegiada ela se
tornou eminente pelo modo como se harmonizou com o mistério divino. Sob este
aspecto, a festa da Imaculada Conceição nos aflora o sentimento de que ainda
estamos separados de Deus, mas, que podemos captar e manter esta energia.
Remete-nos, pois, a um devir, ou seja, podemos chegar a esta realidade
imaculada. Em outras palavras, o sinal da luz que Maria reflete, nos aponta o
caminho de chegar à luz. Ela aponta o caminho da unidade harmoniosa. Se ela nos
fornece sinais da energia divina, sempre nos remete à originalidade primigênia
da unidade, oferecendo-nos, pois, um caminho para chegarmos novamente à pureza
e unidade original. Isto representa o essencial da existência cristã. Trata-se
igualmente de uma forma de conhecimento religioso muito significativo para quem
orienta sua vida para a transcendência cristã.
6.2 – A Assunção ao céu de corpo e
alma
O dogma de que Maria foi recebida no céu de corpo e
alma, foi declarado por Pio XII no ano de 1950. A razão desta
proclamação seria a da proximidade de Maria com seu Filho Jesus. Na verdade,
uma antropologia dualista. O papa Pio XII, no entanto, quis valorizar a vida da
condição humana para a destinação celeste. ”Prolongando esta inspiração
para a nossa época de niilismo e de aviltamento do corpo feminino, pode-se
dizer que a imaculada é igualmente ícone do sentido último da vida, que é a
vida perene e integral, incluindo plenamente a corporalidade humana”.[23]
Teoricamente Maria, como as outras criaturas humanas, esteve também na mesma
condição humana que envolve a cada um de nós diante do Deus Uno e Trino. Na
prática, ela acaba sendo considerada diferente e, ao ser apresentada como igual
a Jesus, também acaba assimilada como aquela que pode substituí-lo: “Sempre
de novo se percebe que Maria aparece não como um ser humano, mas sim como uma
figura simbólica da dimensão feminina de Deus, nitidamente ausente na piedade
popular”.[24]
Por isso, Maria, em muitas formas religiosas, acaba
assimilada como sendo mais misericordiosa do que Jesus Cristo e mais unida ao
Espírito Santo do que ele.
6.3 – Maria como mãe de Deus
A noção bíblica de que Maria, mãe de Jesus Cristo,
o Filho de Deus, constituir-se em “mãe de Deus” parece constituir-se de uma
conclusão teológica. Há, porém, outra herança de um arquétipo cultural muito
antigo e muito profundo na história humana e que estabelece uma relação entre
virgindade e maternidade. Já salientamos que o feminino é o fator que pode unir
a separação da condição humana com o âmbito de Deus. Como se trata de uma
imagem simbólica, certamente, não é através do aspecto físico e sexual que
vamos entender o assunto. A sexualidade tem na experiência religiosa humana um
significado de relação com Deus. As muitas imagens de núpcias abordadas na
Bíblia fornecem metáforas da relação com Deus. Por isto, mais do que o aspecto
físico da virgindade é o seu significado simbólico que importa, pois se refere
aos dois sexos, uma vez que a virgindade significa a capacidade de abertura ao
divino. Significa uma orientação incondicional ao absoluto. Desta forma, o
reflexo iluminador da Virgem Maria é também uma imagem forte para que a relação
entre homem e mulher, não constitua um ato isolado, mas a busca da plena
comunhão.
De acordo com Lúcio Pinkus, “precisamos enfatizar com clareza que, no
cristianismo, a virgindade de Maria não é elemento isolado, subsistente por si
mesmo, mas faz parte da polaridade virgindade-fecundidade representada pela
Virgem – Mãe, filha e ao mesmo tempo mãe da divindade, corpo mortal e imortal.
O símbolo, fazendo uma síntese desses opostos, mostra nitidamente que a
compreensão da existência humana, da história, só é possível dentro de uma
visão que saiba reunificar “céu e terra”, que não siga parâmetros unilaterais,
como os que nos oferecem os numerosos catálogos de definições puramente
racionais da realidade”.[25]
Esta virgindade que não pode ser pensada como atrofia ou negação da dimensão
sexual, pois simboliza a ação criadora de Deus, remete para além do nosso mundo
físico, para a unificação com o mundo de Deus. A virgindade de Maria, além do
estabelecimento de uma simetria do feminino em relação ao masculino ainda pode
denotar a superação dos vínculos do inconsciente de tudo quanto é atribuído à
Grande Mãe, ou seja, dos condicionamentos que prendem simbioticamente ao que
não é autenticamente humano.
6.4 – Virgindade de Maria
É dogma fácil de ser explicado, mas
difícil de ser aceito por muitas pessoas. Algumas pessoas chegam a supor que a
Igreja inventou este dogma só mesmo para poder reforçar a repressão sexual. Por
isto, estas pessoas vêem em Maria uma figura sem desejos sexuais, uma mulher
ideal para uma sociedade machista e controlada por homens. E se ela
tivesse sido uma pessoa normal como outras mulheres?
Em primeiro lugar, precisa-se considerar que a Bíblia, quando pondera sobre
virgindade não trata tanto da questão físico-biológica, mas usa esta imagem
como um recurso literário para realçar uma experiência de fé. Os textos, mais
do que reportagens jornalísticas, utilizam imagens simbólicas para explicar o
presente que Deus concedeu à humanidade através de Jesus Cristo. Por isto, fica
um tanto estranho para o diálogo com as ciências e outras religiões, a
sustentação de que Maria teria concebido um filho sem fecundação de
espermatozóide, ainda mais, num tempo em que ainda sequer se poderia imaginar
uma clonagem e continuar virgem.
De acordo com o dogma, o nascimento de Jesus foi obra do Espírito Santo,
excluindo uma possível relação sexual de José e a continuidade da virgindade de
Maria depois do parto. Tal argumento não quer significar desprezo às relações
sexuais de casais, mas salientar que a iniciativa de Deus e o sim de Maria,
trouxeram à humanidade o grande presente de Deus que foi Jesus Cristo. Quanto
ao segundo aspecto, o da virgindade após o nascimento de Jesus Cristo é uma
afirmação que traz algumas dificuldades na relação com o texto de Marcos 6,3:
Jesus teria tido irmãos (Tiago e Joset) e irmãs. A dúvida que permanece é: são
irmãos desta Maria, ou de outra?
O termo “irmão” também era usado para designar parentes, especialmente, primos.
Há também outra suspeita de que tenham sido os filhos que José teve, antes de
ficar viúvo, e que, por isto mesmo, seriam irmãos. A forma mais comum de
aceitação é a de que se tratava de primos.
Se permanecermos no nível físico ao discutir sobre a virgindade, apesar do
parto, ficamos num nível sem muita graça. Para além desta questão
biológica deve-se entender o significado simbólico. Mais do que salientar
questões ginecológicas, convém dar importância ao sentido simbólico que
ressalta a ação gratuita de Deus. Nesta perspectiva, a virgindade quer
significar que em Jesus a humanidade encontra um caminho novo. O que queremos
expressar, por exemplo, quando falamos de terra virgem? Que tem um grande
potencial para produzir, gerar plantas, alimentos, etc. Assim, falar que Maria
continuou virgem significa que nós também podemos produzir coisas novas e
encantadoras. E, se em Maria o corpo foi valorizado por Deus para ser um lugar
de habitação do Espírito de Deus, significa que o corpo humano não deve ser
usado como objeto. Nesta conotação, virgindade significa consagração da vida a
Deus, o que é muito mais amplo de sentido do que a mera não utilização genital.
A noção da virgindade perpétua de Maria, mãe de Jesus Cristo aponta, também,
para um mundo de ideais que ainda podem efetivar-se. ”Vale como símbolo
de uma pluralidade de valores, tais como a autonomia psicológica e espiritual
da pessoa, a afirmação da liberdade humana frente à escravidão da carne, a
relativização do sexo em vista de um amor trans-genital e de uma fecundidade
meta-biológica, o testemunho do Spiritus creator que pode
tornar vida desde a impotência humana, a incorruptibilidade ética na política,
enfim, o apelo ecológico no sentido de se cuidar da integridade da natureza,
evitando qualquer forma de violação”.[26]
VII
MARIA
E A DIGNIDADE DA MULHER
As devoções populares a Maria facilmente a situam no âmbito divino.
Aparentemente, nada demais. No entanto, esta forma se presta para uma sutil
afirmação da hegemonia do poder masculino, porque reforça uma tradicional
submissão da mulher ao homem e, por isto mesmo, Maria é estabelecida para o
exercício de papéis inferiores no espaço divino.
Se observarmos mulheres em protestos de rua com faixas, não as vemos portarem
bandeiras de Nossa Senhora. Por que esta ausência de Maria na luta por
dignidade?
A mulher divina e submissa, tão apregoada em discursos religiosos, parece ser
encarada como ser humilde, submisso, mas, simultaneamente, serviçal e atenciosa
para conceder tudo quanto pode intermediar da parte de Deus. Não estaria esta
imagem de Maria reforçando a submissão das mulheres a homens e autoridades
estabelecidas? Os programas marianos apresentados em diversos canais de
televisão brasileira são particularmente ilustrativos para ressaltar a indução
ao conformismo. Parece também muito estranha a forma como se coroa a imagem e
se conversa com ela, a rainha do poder celestial...
A apresentação de uma santa Nossa Senhora divina, sem sexo e sem sexualidade,
mas colocada como modelo de santidade, pode constituir-se num discurso
ideológico que induz a um ideal feminino de auto-doação, de humilde e resignada
submissão em tudo, até no desvelo de gerar e criar muitos filhos.
Certamente ocorrem casos isolados em que devoções marianas despertam
personalidades femininas e também masculinas para serviços de coordenação menos
prepotentes e autoritárias dos controles masculinos. É como um ditado popular
que afirma: “as mulheres exercem muitos cargos e serviços fundamentais na
sociedade, mas, quem aponta o dedo indicador, tende a ser sempre uma mão
masculina!”. Não se pode, pois, esquecer que, Maria, mãe de Jesus de Nazaré foi
mulher pobre e humilde e, nesta condição, mulher humana que está ao lado da
nossa condição humana e que se sentiu interpelada por Deus para um caminho de
santidade.
Embora a devoção mariana tenha aglutinado muitas imagens divinas de Maria como
rosto materno de Deus, mesmo assim, nem sempre estas imagens nos remetem para a
vivência do espírito de Deus, pois se apela a Maria para que ela resolva de
forma imediata e fácil nossos problemas. A predisposição para viver o espírito
de Deus, certamente passa por um processo de fé e de crescimento na capacidade
de ação para que a vida humana se torne mais justa. Maria, a mulher pobre da
Galiléia, não se apresentou como uma criatura celestial, mas, evidentemente,
aglutina as esperanças dos que lutam para promover mais bem-estar entre os
seres humanos.
A revelação de Deus aconteceu num ambiente humano da Galiléia. Não ocorreu nos
âmbitos do poder masculino de Jerusalém ou de qualquer outra cidade importante.
Por isso, deve-se considerar que naquela mulher pobre da Galiléia, Deus fez
grandes coisas... Também significa que, hoje, quando homens e mulheres se
colocam em atitude parecida com a de Maria diante de Deus, Ele age
beneficamente da mesma forma. Trata-se, por conseguinte, de uma postura muito
distinta daquela de solicitar tudo e qualquer coisa para que ela,
resignadamente, e num gesto de auto-doação, atenda todos os pedidos.
Nesta relação da Maria humana e divina, Susan Ross sustenta que Maria está
servindo a dois papéis religiosos e teológicos distintos:
a) Na
perspectiva teológica o feminino divino representa uma presença obstinada na
piedade das pessoas ante uma resistência oficial que procura negar imagens
femininas do divino;
b) Presta-se
também como uma espécie de “madrinha” para orientar métodos e doutrinas
teológicas.[27]
Por esta razão, não se pode ignorar a relação de Maria com o anjo. Diante dele,
Maria experimentou que Deus se dirigiu a ela. Por isto, se encheu de “luz”
especial. E convém não esquecer que se tratava de uma menina de 13 a 14
anos, idade preparando-se para o casamento, segundo os costumes daquela época.
A imagem da figura amável que dá força a incontáveis pessoas em situações
difíceis e significativas da vida, não exime dúvidas quanto aos variados
títulos de “virgem”, “mãe de Deus”, “medianeira”, “intercessora”, “protetora”,
etc. Nisto E. Drewermann considera Maria na perspectiva do projeto do amor de
Deus, associada ao mito:“a única possibilidade de falar da história humana
de forma que ela se dê a conhecer como revelação divina é faze-lo à maneira de
mito[28]. Significa admitir que um anjo
diga algo prodigioso e que uma “luz do céu” possa invadir-nos. Anjo, pode ser
qualquer pessoa que nos dá uma boa notícia ou que nos abre os olhos para
enxergar para além das decepções, das crises ou das doenças graves.
A exaltação de Maria, pode tanto prestar-se para incutir nas mulheres um ideal
feminino de abnegação e de muitos sacrifícios, quanto para a busca da plenitude
de homens e de mulheres. Existem formas marianas que podem alienar as mulheres
e afirmar a supremacia masculina. Entretanto, é de se desejar que toda a
devoção mariana possa pautar-se por conceitos do Magnificat, sobretudo os que
destacam a salvação do pobre por parte de Deus. Significa, por conseguinte, que
deve ajudar na libertação das mulheres de tudo quanto às induz ao sacrifício de
suportar passivamente o que o poder masculino lhes impõe. Não dá para esquecer
que também o homem é um pequeno e frágil filho de mulher. Significa, pois, que
tanto homens quanto mulheres podem encontrar no ícone Maria de Nazaré uma força
que se revela dom de Deus para o bem da condição humana.
Por outro lado, a devoção mariana precisa admitir a necessidade de acolher
dolorosas podas, a fim de que os seus frutos sejam bons para a convivência
humana e não apenas para buscas individualizadas de auto-salvação.
Epílogo
No título deste opúsculo já destacamos o que entendemos como essencial na
devoção mariana: que Maria, mãe de Jesus, - segundo o que consta nos
Evangelhos, - é uma figura que nos remete para o cerne da fé cristã: o da
pedagogia de Deus que age de “baixo para cima”, e não através de poderes
mágicos e aterrorizadores que provêm do alto.
A antiga tentação de inverter esta ordem persiste em nossos dias e faz com que
fatores emocionais e imaginativos estabeleçam Maria como uma grande deusa. O
imaginário que lhe coloca manto sobre o corpo, pedras brilhantes enfeitando o
vistoso manto e a coroa para simbolizar o poder máximo, certamente se encontra
distante da imagem da Maria que haurimos da Bíblia.
Com a inversão dos atributos de Deus, parece que até mesmo Ele fica refém da
grande mãe e deusa que é invocada acima Dele. Com isto, já não se busca
vivenciar um crescimento da fé, como aconteceu com Maria, mas, se invoca a
grande deusa, para que, magicamente, resolva tudo quanto não queremos, não
conseguimos e nem desejamos enfrentar.
A memória da humilde Maria de Nazaré, pela confiança que alimentou em Deus,
ajuda-nos a constatar que ela se tornou capaz de apostar de corpo e alma no
projeto de seu Filho e, por isso mesmo, se tornou capaz de não sucumbir em
sentimentos de fracasso ou de mágoa profunda e depressiva diante da morte
humilhante do seu Filho. Pelo contrário, encontrou força interior para
permanecer de pé junto à cruz e agir positivamente nas primeiras comunidades cristãs.
A capacidade de elevar Maria, mãe de Jesus, para as instâncias supremas do
poder divino e, como eficaz protetora das opções celibatárias, pode tornar-se
meio para manipulações ideológicas que ajudam a diminuir a dignidade e o
reconhecimento da grandeza feminina. Ainda que a maioria das comunidades
católicas dependa fundamentalmente da ação de mulheres, o dedo indicador para a
ação destas mulheres, infelizmente, ainda continua sendo o dedo masculino. Este
dedo indicativo em riste coíbe intensamente a capacidade de alargar e fazer
plenificar o projeto de Jesus Cristo, como condição que salva.
A exploração imagética em torno dos lugares milagrosos pode ofuscar o
verdadeiro milagre que acontece por intercessão de Maria e que leva a uma vida
segundo moldes muito distintos dos da resignação fatalista diante de uma
poderosíssima rainha dos altos céus. Se ela é uma mediação para levar ao
projeto de vida proposto por Jesus Cristo, a força do milagre está mais na
capacidade de dedicar-se a este projeto do que na ação miraculosa para atender
certos suplicantes.
Em suma, a antiga noção de que a unidade do mundo humano com o mundo divino
havia sido rompida pela condição humana, encontra em Maria um caminho de
possibilidades para que estes dois âmbitos voltem a interpenetrar-se. Por isto,
a virgindade de Maria, ao contrário de uma privação castradora, representa esta
abertura fértil da vida para reconciliação dos laços da primigênia unidade
humana e divina.
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[1] A imagem
pode parecer chocante, mas não convêm confundi-la com outro aspecto de valor
profundo para os cristãos. Trata-se do aspecto doloroso de Maria. Enquanto que
as antigas deusas não vinham sendo associadas à fragilidade humana das dores,
parece que a origem das dores de Maria se relaciona a uma sensibilidade de quem
olha com intuição e agudeza de espírito para frente e vê, por esta razão, as
dificuldades da lida com o mal que se estabeleceu nas relações e na existência
humana, e a difícil tarefa de agregar forças para conduzi-la novamente à
originalidade da harmonia. O ato de constatar que muitas pessoas resistem na
aceitação deste caminho para a unidade primigênia, necessariamente implica em
dor, porque esta maldade não ajuda para a reconciliação com Deus. Se, por
exemplo, lembramos Maria de pé diante da cruz, na qual seu filho pendia como um
guerrilheiro anarquista é, na verdade, um convite para que nos associemos à sua
capacidade, a fim de também somarmos forças que nos levem às raízes da nossa
condição humana.
[2] BOFF,
Leonardo. Ave Maria – o feminino e o Espírito Santo, p.
12. No mesmo livro, o autor destaca que o feminino não é exclusividade da
mulher, mas uma determinação essencial de todo ser humano, porque cada ser é
feminino e masculino (p. 22). O feminino é uma fonte inesgotável do mistério
humano. Certos atributos como “vitalidade, profundidade, interioridade,
sentimento, receptividade, doação, cuidado e aconchego que se expressa na
existência humana do varão e da mulher... tem seu último fundamento no próprio
Deus, que, na história da salvação, manifestou também dimensões femininas
(p.23)”.
[3] MAGGI,
Alberto. Nossa Senhora dos heréticos. São Paulo: Paulinas, 1990, p.
18.
[4] No Brasil
há uma realidade histórica de uma intensa devoção mariana de origem popular e
que se desenvolveu como um caudaloso rio ao longo dos séculos, mas sua água
ainda não fornece a riqueza que foi a vida concreta de Maria. Por isso, a busca
de lugares de romaria e devoções que misturam visões fatalistas como a que se
reza na oração da Salve Rainha: gemendo e chorando neste vale de lágrimas…
Desta forma, o lado da alegria, da transformação e da elevação no nível da
vida, parece fluir pouco ou nada nestas torrentes de piedade. O Papa Paulo VI,
há muitas décadas, já recomendava uma revisão da piedade mariana. Escreveu: “O
culto cristão, de fato, é por sua natureza e culto ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo, ou conforme se expressa a liturgia, ao Pai por Cristo no
Espírito… Na Virgem Maria, de fato, tudo é relativo a Cristo e depende Dele…(
Na Exortação Apostólica sobre o culto à Bem-Aventurada Virgem Maria,
Paulinas, 1974, p. 36.)
[5] Conforme
Carmiña Navia Velasco, em artigo Os Apócrifos de Maria
de Nazaré. IN: REVISTA DE INTERPRETAÇÃO LATINOAMERICANA, No. 58 – 2007/3,
p. 52.
[6] O
referido proto-evangelho de Tiago salienta: “A parteira saiu da gruta e
Salomé veio ao seu encontro. Disse-lhe a parteira: Salomé, Salomé… uma virgem
deu à luz, coisa que não é compatível com a sua natureza. Respondeu Salomé:
‘Tão certo como vive o Senhor meu Deus se não introduzir meu dedo e não
examinar a sua natureza, não creio que a virgem deu à luz. A parteira entrou,
preparou Maria e Salomé examinou sua natureza. E Salomé gritou: tentei o Deus
vivo. E eis que minha mão, atingida pelo fogo, se separa de mim. Ela rezou ao
Senhor e a parteira foi curada na mesma hora. E eis que o anjo do Senhor
apareceu diante de Salomé, dizendo:’ Tua prece foi ouvida diante do Senhor
Deus. Aproxima-te e toca o menino e ele será a tua salvação’.”(A História
do Nascimento de Maria – proto-evaqngelho de Tiago, p. 66)
[7] Em artigo História de
Maria, mãe e apóstola de seu filho, nos evangelhos apócrifos. REVISTA DE
INTERPRETACÃO BÍBLICA LATINO-AMERICANA, no. 58 – 2007/3, p. 13-15.
[8] Maria era um
nome comum. Quanto ao significado da palavra “Maria” há mais de setenta
explicações, grande parte oriunda da religiosidade popular. Ao nome corresponde
também Miriam (Mir ou Meri, de origem egípcia significa amado, amada; do
hebraico se acrescenta iah e iam, com o significado de “amada de Javé”). Outra
significação é excelsa ou elevada. De acordo com raízes hebraicas pode
também significar corpulenta, vidente e senhora... Os evangelhos não oferecem
explicação do nome Maria.
[9]
Segundo o Talmude, todos os samaritanos seriam impuros porque nasceram de
mulheres, consideradas impuras desde o berço. (MAGGI, Alberto, op. cit. p. 28).
[10] Segundo o
final do texto de Jacir de Freitas Faria, op. cit., p. 15. O autor ainda
salienta que tanto memórias popular quanto dogmas de Nossa Senhora surgiram a
partir dos textos apócrifos, tais como palma e véu, assunção, títulos das
ladainhas atribuídos a ela, os nomes dos pais, a visita que a Sagrada Família
recebeu dos magos e o nascimento em manjedoura.
[11] Citado por
Alberto Maggi em Nossa Senhora dos Heréticos, p. 39.
O autor segue com outra citação de Cassandra de Posídipo, do livro L’ermafrodita, no
século III: “um filho, qualquer um o cria, mesmo sendo pobre; em
sendo uma filha, sempre será enjeitada, mesmo se se é rico.”
[12] Alberto
Maggi, op. cit. P. 58-59. O peso da expressão “bastardo” era grave: se alguém
chamasse outra pessoa de bastarda, seria condenada a receber 40 chicotadas.
[13] O
Evangelista Lucas apresenta o início da vida de Maria com muito amor e doçura,
mas, ao mesmo tempo, apresentou Maria como mãe das dores. Colocou na boca de
Simeão uma afirmação forte: uma espada transpassará sua alma... (2,35). Que
sentido teria esta expressão? Provavelmente nasceu da comparação de que a Palavra
de Deus era mais penetrante do que uma espada. Maria teria experimentado o
poder desta Palavra de Deus, o que implicava numa entrega... Outra tradição,
advinda do primeiro testamento da Bíblia, colocava a espada como símbolo de
inimizade. Por isto, a dor seria a constatação da incredulidade do povo e as
hostilidades contra Jesus Cristo. Fonte de dor também é guardar certas coisas
no coração, tal como Maria fez, segundo o evangelista
Lucas.
[14] Lúcio
Pinkus, op. cit., p. 129.
[15] O
grande Papa Mariano Paulo VI salientou a este respeito: “A chamada à
atenção para os conceitos fundamentais expostos pelo concílio Vaticano II,
sobre a natureza da Igreja – ‘Família de Deus’,’Povo de Deus’,’Reino de
Deus’,’Corpo Místico de Cristo’ – permitirá, na verdade, aos fiéis,
reconhecerem mais prontamente qual a missão de Maria no mistério da mesma
Igreja e qual o seu eminente lugar na Comunhão dos Santos.”(Exortação
Apostólica sobre o culto à Bem-Aventurada virgem Maria, p. 42)
[16] Citado
por Neri Feitosa, no opúsculo Maria Santíssima, p. 13.
[17] Opúsculo Nossa
Senhora aos sacerdotes seus filhos prediletos do Movimento Sacerdotal
Mariano, Cx. Postal 92, José Bonifácio, SP (sem outros dados bibliográficos),
p. 12-13.
[18] Umberto
Galimberti destaca que alimentar vãs ilusões nas pessoas, além de má educação,
infantiliza a fé, e arremata: “É lamentável constatar que o
cristianismo ficou reduzido e retrocedeu a estes níveis. Crentes e não crentes
haviam feito uma idéia deferente dessa religião, que pôs a sua chancela sobre
todo o ocidente. Pensavam uns e outros que a fé proposta
trilhasse caminhos mais comprometidos, que a esperança, projetada
para além do pessimismo, se distinguisse do jogo das ilusões, que a caridade pregada
levasse a humanidade para fora da lógica elementar amigo/inimigo, que até então
regulara as relações entre os homens. Mas não. Deparamo-nos mais uma vez com o
milagre que todas as religiões, mesmo as mais distantes do cristianismo,
registram e enfatizam como prova da sua verdade.” (no livro Rastros do
Sagrado, p. 246).
[19] Há,
contudo, uma rica herança histórica da oração do Terço ou do Rosário, que
apresenta, desde o início, intuições muito originais, como a da índole
evangélica nos seus sinais mais fortes. “O Rosário, por conseguinte, é
uma oração evangélica, como hoje em dia, talvez mais do que no passado, gostam
de a definir os pastores e estudiosos…O Rosário, de fato,considera numa
sucessão harmoniosa os principais eventos ‘salvíficos’ da mesma Redenção, que
se realizaram em Cristo…” (Exortação Apostólica sobre o culto à
Bem-Aventurada virgem Maria, p. 60).
[20] No
livro O Mito de Maria – uma abordagem simbólica, p.197-198.
[21] Umberto
Galimberti faz uma importante observação a este respeito. Cita que apesar de
Jesus Cristo der dito: felizes os que crêem sem ter visto (Jo 20,29), a Igreja
se sente pouco responsável quando entrega a fé à prova do milagre e a santidade
à sua escrupulosa constatação: “Não se pode dizer simplesmente, por exemplo,
que padre Pio tem ‘odor de santidade’ não porque as pessoas sentem com o olfato
‘o aroma delicado das flores’ que sempre acompanha a intervenção milagrosa do
padre Pio, mas porque viram nele um testemunho de fé em que crêem e de que
participam. (no livro Rastros do Sagrado, p. 245). Também destaca que “reunir
multidões em torno do milagre é uma tentativa de ignorar a dor com a ilusão de
uma solução súbita e inesperada para ela. Significa sair do destino do homem
que sempre conheceu, além da beleza da vida, também a sua crueldade; significa
abandonar o homem a uma expectativa improvável que cria, junto à dor, o aumento
da trágica desilusão, induzida pela ilusão”. (idem, ibidem) Toda esta
exploração do Deus dos milagres pode representar mera fuga da própria dor e
busca de satisfação imediata de desejos, que pouco ou nada tem a ver com a “boa
nova”do cristianismo...
[23] BOFF, Clodovis. Por
uma mariologia social. In: CONCILIUM, 327 – 2008/4, p.55.
[24] ADAMIAK, Elzbita. Caminhos
da Mariologia. In: CONCILIUM, 327 – 2008/4, p.39.
[25] Lúcio
Pinkus, op. cit., p. 139-140. O autor ainda destaca mais outro aspecto muito
interessante: enquanto que Eva foi tirada do homem, o Segundo Testamento revela
a inversão, pois o homem novo, o Cristo, é tirado de Maria, restabelecendo-se,
assim, o equilíbrio do feminino diante do masculino e a relação de Jesus com
Maria é o contrário do que aconteceu entre Adão e Eva...
[26] BOFF,
Clodovis. Por uma Mariologia Social. In: CONCILIUM, 327 –
2008/4, p.54.
[27] ROSS, Susan. Maria:
Humana, feminina, divina? In: CONCILIUM, 327 – 2008/4, p. 26.
[28] Citado
por Carmiña Navia Velasco, no artigo Maria de Nazaré revisitada.
In: CONCILIUM, 327 – 2008/4, p. 18 e 19.
A parcimônia de dados
Evangélicos e a exuberante imaginação dos textos apócrifos e das devoções
marianas
O tema da “Mariologia” é altamente instigante. Basta observar as polarizações
que se estabelecem entre as defesas de milagres e aparições de Nossa Senhora de
um lado e, por outro, um intenso e ofensivo ataque a estas mesmas aparições e
às devoções marianas.
A enormidade de textos, tanto de artigos, quanto de panfletos e de livros, seja
contra ou a favor, já é um evidente sinal de que o assunto “Nossa Senhora”
(Maria) mexe com muita gente.
Se já existe tanta literatura escrita e artística sobre Maria, mãe de Jesus
Cristo, teria significado apresentar mais um texto sobre o assunto?
Não temos a pretensão de avançar no conhecimento já produzido, mas apenas a de
relacionar certos problemas, envolvendo os textos apócrifos, as aparições e o
significado dos dogmas, aspectos que, geralmente, são de acesso mais limitado
porque a literatura popular sobre a piedade mariana é mais farta. Desejamos,
contudo, que tal fornecimento de dados não se restrinja a somar forças para um
movimento ingênuo e retrógrado que se apossa da mãe de Jesus para fazer dela
uma guerra ideológica com vistas a justificar interesses obscurantistas que não
se mostram nem evangélicos e nem eclesiais.
Constatamos que muitas pessoas que se consideram fervorosas devotas de Nossa
Senhora conseguem esvaziar a grandiosa força de Maria, mãe de Jesus, dos
relatos evangélicos e os transformam numa religiosidade alienante que invoca a
doce mãezinha do céu, ou a “toda-poderosa” rainha do universo que está acima
dos deuses. Contraditoriamente, usam Nossa Senhora para despertar medo, com
sombrias ameaças a todos quantos não se submetem a determinadas devoções
marianas e a certos ritos com devoções mumificadas que ela, seguidamente volta
a exigir dos seres humanos.
Sobretudo na exploração das aparições, manifesta-se uma típica insistência em
traços culturais de uma época do passado, que apresenta, de forma banal e
repetitiva, uma mal humorada senhora que sempre derrama muitas lágrimas de água
e de sangue, para, no meio deste sentimento exaltado, apelar à ameaça de
horrores, de castigos e de danos, a todos quantos não se dispõem a cumprir
rigorosamente suas exigências. Parece que esta “deusa chorona”[1] não
consegue ver outra coisa no meio da humanidade do que depravação, falta de fé e
maldade. Será que ela não enxerga nada de bom neste mundo de Deus? Não poderia
ela elogiar o incontável número de mulheres e de homens que - como ela, -
ampliam sua fé e se tornam gestores de vida, de acordo com o ensinamento do seu
Filho? Basta olhar somente para nossas comunidades cristãs e veremos quanto
milagre acontece porque pessoas de fé encontram na encantadora jovem Maria, um
itinerário de fé e, com este caminho de boas motivações, se sentem
impulsionados para serviços e ações em favor da realização do projeto de Jesus
Cristo.
O teólogo Leonardo Boff destaca com muita propriedade que: “a fé cristã
apresenta Maria como o grande ícone revelador da face feminina de Deus. A
vontade de auto-entrega de Deus se realizou em Maria numa plenitude que não
comporta mais crescimento. O Espírito Santo veio efetivamente sobre ela (Lc
1,35); contemplou-a para ser Seu templo e Seu sacrário entre os homens; com ela
se inicia – porque toda mulher é Eva, isto é, mãe da vida – o germinar da vida
divinizada”.[2]
Será que não está faltando um modelo de “Maria, irmã”, não para
fazer guerras e contra-ataques, mas que leva a agir para a plenitude do amor de
Deus? Os inimigos imaginários nem sempre são os piores inimigos, pois o rigor
obscurantista de certas intransigências oferece uma adversidade muito pior,
porque mata todo o projeto salvador de Jesus Cristo. Talvez por isso que
Alberto Maggi tenha escrito:”Itinerário de amor e não de guerra! E o cristão
com ela- não luta, não combate contra inimigos verdadeiros ou hipotéticos.”[3] Nem mesmo Jesus Cristo recomendou
combate às trevas, mas, que seus seguidores brilhassem como luz rutilante no
meio delas (Mt 5,14).
Diante desta estranha diferença entre as informações marianas que a Bíblia nos
oferece e o que se afirma em algumas devoções populares em torno de Nossa
Senhora, quem estaria fornecendo dados mais seguros e significativos para a fé
cristã?
I
MARIA
NOS EVANGELHOS
O livro de Clodovis Boff, com o título Introdução à Mariologia, publicado
pela Ed. Vozes, oferece uma visão rica e exaustiva sobre Maria no Segundo
Testamento e sobre o que a Igreja publicou a seu respeito, especialmente em
documentos recentes. Aqui vamos destacar apenas alguns dados centrais para
salientar adiante, alguns outros elementos da Mariologia, os dos textos
Apócrifos, os das aparições e os dos dogmas com seus significados simbólicos.
Os Evangelhos, pelo que se referem à Maria, mãe de Jesus, encontram-se bem
distantes da piedade popular mariana, fonte inesgotável de dados sobre esta
mesma Maria. Entretanto, do pouco que os Evangelhos abordam, transparece uma
significativa espiritualidade desta criatura, tanto na relação com Deus e seu
Filho, quanto na relação com os discípulos dele e, ainda, na relação com as
mulheres amigas.
Os evangelistas Mateus e Marcos oferecem pouquíssimas informações sobre Maria.
Mateus parece dar mais importância a José do que a Maria. Salienta o aspecto
virginal de Maria segundo um entendimento dos profetas, mas, ainda assim trata
de Maria em relação a seu Filho. Menciona sua genealogia (1,1) e o anúncio a
José de que Maria estaria grávida do Espírito Santo (1,18).
Marcos chega até a relativizar o valor da sua maternidade em relação a Jesus,
pois destaca apenas a maternidade biológica. Isto aparece em dois textos: 3,33: “Quem
é minha mãe?”; em 6,1-6: “É este o filho de Maria?”...
Lucas oferece alguns dados a mais, mas praticamente todos restritos à
infância de Jesus: sua concepção, nascimento, adolescência. Estes dados foram
apresentados numa perspectiva teológica que centraliza a ação de Deus na vida
de seu filho, Jesus de Nazaré. Lucas apresenta Maria falando em apenas quatro
ocasiões, mas a coloca como núcleo da Bíblia, porque serviu de mediação para
que a proposta do amor de Deus se manifestasse na vida de seu Filho, Jesus
Cristo. Um aspecto importante da abordagem de Lucas é o de que Maria era uma
pessoa livre, determinada, acolhedora e aberta ao “outro”, por exemplo, na
visita à sua prima. Também se refere à anunciação e, no Magnificat, coloca na
sua boca uma grande riqueza humana manifestada em mulheres do primeiro
testamento da Bíblia. O que Lucas fez, no início do seu evangelho, foi o de
estabelecer um paralelo com o texto de Sofonias (3,14-17) e, quando se refere à
visita de Maria a Isabel e estabelece outro paralelo com 2Sm 6,2-16 para
destacar a diferença entre a antiga e a nova arca.
O Evangelista João destaca a importância de Maria no início da vida pública de
Jesus e salienta sua presença na hora difícil da crucificação. A mediação que
Maria faz em Caná, numa festa, revela extraordinária sensibilidade e intuição
em torno do que seu Filho seria capaz de fazer. João também mostrou Maria como
uma mulher forte, pois se manteve de pé diante da cruz em que seu Filho foi
morto como um subversivo da ordem e da religião estabelecida. Outra imagem rica
da reflexão teológica Joanina é a de que Maria representa a comunidade cristã
que se redime e que se salva. Ela é manifestada como horizonte de alcance da
humanidade que se transforma.[4]
Estes referenciais evangélicos, contudo, deixaram inúmeras dúvidas nos fiéis
seguidores de Jesus Cristo. Que traços de personalidade e de fé apresentaram
seus pais, como viveram e como chegaram ao privilégio de gerar o salvador Jesus
Cristo?
II
MARIA
SEGUNDO OS EVANGELHOS APÓCRIFOS
Ao longo dos primeiros séculos da Igreja Católica circularam pelo menos 496
textos de evangelhos apócrifos. Ao lado dos poucos dados dos quatro
evangelistas da nossa Bíblia, estes outros textos foram certamente preenchendo
e formando um arcabouço de uma figura heróica em torno de Maria. O que
certamente não faltou, tal como se procedeu em relação à vida dos pais de
personagens importantes do primeiro testamento da Bíblia, foi o rico
envolvimento de sinais e experiências divinas, com muitas lendas, sentimentos,
fantasias e deduções imaginárias.
Cabe salientar outra característica que os primeiros seguidores de Jesus Cristo
tiveram que enfrentar: a da apologética, uma autodefesa contra os ataques, que
vinham tanto de pensadores gregos, quanto de gnósticos convictos e de correntes
no interior da própria Igreja, tal como a dos docetistas que desconsideravam o
lado humano e feminino de Maria, para salientar o âmbito divino da ação de
Jesus Cristo. Esta autodefesa também envolvia um contra-ataque, no qual estes
cristãos se apropriaram de exaltações que eram próprias das divindades
femininas do mediterrâneo e as aplicaram à Maria.
Não faltaram, tampouco, ataques da parte oficial da Igreja, que passou a
considerar todos estes textos como sendo não canônicos, ou não inspirados por
Deus para a orientação dos seguidores de Jesus Cristo.
Sabe-se também que um não-cristão, chamado Celso, desferiu duras críticas à
devoção popular mariana. Para ele, Maria não teria passado de uma pobre menina
de aldeia, que, depois de desposada por José, teria engravidado de um soldado
chamado Pantira, razão pela qual José a teria abandonado.[5]
Um ataque desta natureza iria, com certeza, levar muitos crentes a uma postura
de exagerada justificação do messianismo de Jesus Cristo, e tirando quaisquer
resquícios de ambigüidade da sua paternidade. Passaria, sem dúvida, a destacar
decência, grandeza e dignidade de seus pais, apelando até mesmo à descendência
de Davi e de outros privilégios divinos que envolveram a ancestralidade dos
heróis do primeiro testamento.
Portanto, entre a espiritualidade de Maria, destacada pelos quatro
evangelistas, e as sublimes fantasias e desejos em torno de Maria, que geraram
estes incontáveis fatos e textos ao longo da história, não podemos ignorar
muitos sentimentos de doçura, de mansidão, de intercessão, de comparações
poéticas e uma extraordinária expressão simbólica de arte, para apresentar esta
importante criatura, chamada Maria.
Os textos apócrifos constituem, certamente, a fonte popular muito rica da
devoção a Maria. Por isto mesmo, significam uma contradição no interior da
Igreja Católica. A mesma oficialidade que não considera estes textos inspirados
por Deus, os levou em conta na promulgação de diversos dogmas marianos, como os
da Imaculada Conceição e da Assunção ao Céu. Temos que lidar com esta
contradição.
a) O apócrifo “Livro de Tiago”
No século IV um dos textos mais veiculados no interior da Igreja Católica foi o
chamado “Livro de Tiago”. É um tratado que recolheu muitos dados anteriores do
início do século II, e tinha o objetivo de oferecer informações seguras e
capazes de dissipar as dúvidas que permaneciam sobre Maria, mãe de Jesus.
Sabe-se, todavia que o Proto-Evangelho de Tiago norteia-se mais por argumentos
apologéticos do que históricos.
Este livro destaca, sobretudo, o lado heróico de Maria e para tanto, recorreu à
literatura bíblica antiga a fim de salientar que não se tratava de menina pobre
de aldeia, mas da filha do rico e abençoado Joaquim. O nascimento de Maria,
como o nascimento de Samuel, de João Batista e de outros grandes heróis
bíblicos, segue um mesmo quadro de antecedentes. Deus escolheu uma mulher
estéril e sacralizou seu ventre para gerar o santo e bendito herói. Deste modo,
também Ana, mãe de Maria, concebeu por obra de Deus, na ausência de Joaquim (o
que geraria o dogma da Imaculada Conceição).
Maria teria sido um prodígio de Deus desde pequena. Sua mãe a consagrou para
servir a Deus no Templo. Aos três anos já se revelava extraordinária para
dançar, cantar e louvar a Deus.
Para justificar a virgindade de Maria e a ação genuína de Deus na concepção de
Jesus Cristo, o “Livro de Tiago” salienta que Maria, humilhada pela cobrança de
ter traído seu marido, se submeteu a um ainda mais humilhante teste para
revelar a ausência de qualquer mancha de impureza na sua gravidez. O próprio
Deus teve que intervir para que ela se submetesse ao vexame do “ordálio” dos
ciúmes. Tanto ela quanto José teriam sido coagidos a ingerir um líquido, ou uma
“xaropada” e subir a uma Montanha no deserto. Caso voltassem sãos e salvos,
estaria configurado o atestado de ausência de pecado. Como os dois regressaram
em perfeita saúde, José pode transbordar de alegria porque, com isso, deixou de
ser condenado pelo sumo sacerdote. Este costume, situado numa tradição antiga,
como a salientada em Nm 5,11-31, ainda vigorava na tradição rabínica dos
primeiros séculos do segundo testamento. Se o resultado desse positivo, as
vítimas seriam excluídas da pertença à nação e da participação no Templo.
O “Livro de Tiago” ainda vai mais longe: mulheres teriam metido os dedos na
vagina de Maria e teriam constatado sua virgindade, mesmo depois do parto,
prova típica dos grandes itinerários de heróis antigos, e, tal como o gesto de
Tomé, que meteu a mão no lado de Jesus...[6]
b) Evangelho do Pseudo-Mateus
Este texto surgiu no século VI. Apresenta grande quantidade de poemas, cantos e
tradições em torno da família de Jesus e destaca Maria com exageros
fantásticos.
Com apenas três anos, Maria teria sido capaz de cantar, de dançar, de rezar e
de vivenciar a fé, no mesmo nível das pessoas adultas. Já naquela idade, seu
rosto teria resplandecido como a neve e ela teria lidado com a lã, para
confeccionar tecidos, como as mulheres adultas.
Tudo isto culminava num dado ainda mais fantástico: sua concepção, gravidez e
parto estariam diretamente envolvidas pelo âmbito da divindade. Nem mesmo seu
parto teria passado pela frágil condição humana do “inter urinam et faeces
nascimur”, ou seja, não se viu envolta por urina, fezes e sangue, como costuma
acontecer.
Estes poucos dados apócrifos já nos atestam que a devoção mariana popular não é
uma questão recente de nossos dias, mas é da tradição antiga da Igreja
Católica.
Segundo Jacir de Freitas Faria[7] a maior parte da
simpatia e do aconchego que muitas pessoas explicitam em torno de Nossa
Senhora, ao longo dos séculos, vem de uma tradição oral e que foi expressa nos
Evangelhos apócrifos. Pelo menos 15 destes Evangelhos revelam dados sobre a
concepção, nascimento e os outros grandes momentos da vida de Maria, mãe de
Jesus. Este imaginário continua muito vivo em mães e filhos.
A seguir apresentamos os principais tópicos deste imaginário
religioso:
2.1 – Quanto ao nascimento de Maria: Joaquim e Ana, pais de Nossa Senhora já estavam
casados há 20 anos sem ter filhos, o que representava humilhação e
discriminação do casal. Joaquim, então, teria fugido para as montanhas. Ana,
devota, insistiu na oração e concebeu Maria[8]. Fez logo
uma promessa: a filha Maria ficaria no Templo por nove anos, consagrada a
Deus. Aos seis meses Maria já teria dado sete passos e voltou ao regaço
da mãe. Ana, então, teria desejado que Maria somente fosse andar no Templo e
por isso preparou um santuário no quarto para que nada de impuro pudesse tocar
o corpo de Maria. Outras meninas sem mácula poderiam entreter-se com Maria. No
primeiro aniversário de Maria os pais teriam feito uma grande recepção e
convidaram sacerdotes e escribas, anciãos e todo o povo de Israel. Os sacerdotes
então suplicaram a Deus para que concedesse a esta menina um nome glorioso e
eterno. A mãe, então, levou-a ao santuário do quarto e lhe deu de mamar. Já no
segundo aniversário de Maria, levaram-na ao Templo para cumprir a promessa de
Ana, mas, resolveram esperar mais um ano para que não viesse sentir saudades
dos pais. Aos três anos, foi então abençoada no Templo e o sacerdote lembrou
que ela mostraria a salvação aos filhos de Israel. Maria passou a viver no
Templo como uma pomba e era alimentada por um anjo.
2.2 – Quanto à anunciação de Maria
Quando atingiu 12 anos, os sacerdotes, querendo evitar que ela viesse a manchar
o santuário do Senhor, procuraram um esposo para Maria. O sumo sacerdote entrou
no santo dos santos e depois anunciou que teria que ser um viúvo. Entre os
muitos pretendentes, estava José. O escolhido teria sido este viúvo idoso, pai
de três filhos, chamado José. Primeiramente teria recusado o convite por se
achar muito idoso. Como o sacerdote insistiu, José, atemorizado, aceitou levar
Maria para sua casa, mas declarou que continuaria a fazer construções, mantendo
seu ofício. Com isso, Maria foi morar em Nazaré.
Enquanto
José viajou a trabalho, Maria concebeu do Espírito Santo. Como José não aceitou
o fato, Maria fugiu para a casa de Isabel.
Segundo
o proto-evangelho de Tiago, tudo isto envolveu angústia e bronca por parte de
José. No sexto mês de gravidez, José se jogou no chão e teria chorado
amargamente, porque ela teria maculado sua virgindade. Alguém deveria tê-la
seduzido. Como poderia alguém que cresceu ao lado do santo dos santos poderia
aviltar sua alma? Também ela tria desandado em choro para assegurar que
continuava pura e virgem, alegando não saber o que possa ter ocorrido para
encontrar-se grávida. José entrou num dilema: afastar-se dela, mas o que fazer?
Ocultar a falta de Maria ou denunciá-la? Quando reforçou o pensamento de
abandoná-la, um anjo lhe teria dito em sonho de que ela é fruto do Espírito
Santo, e que levaria o nome de Jesus e que salvaria o povo dos pecados. Mesmo
assim, José, com Maria teria sido chamado a júri, pois, como viúvo, teria
violado a lei ao engravidar Maria, entregue à sua confiança. Ele teria
consumado o casamento sem torná-lo público. Maria, em meio ao choro também
assegurou diante de Anãs, que era pura e que não havia perdido a virgindade.
José, por sua vez, também garantiu que era puro em relação à Maria.
Mais
tarde, quando José aceitou o fato porque Maria teria comprovado sua inocência e
então vai com ela para Belém a fim de fazer o recenseamento. Na viagem, perto
de Belém, Jesus teria nascido numa manjedoura e Maria teria continuada virgem
após o nascimento de Jesus.
Para
nós, o importante é que Maria se moveu pela fé e é por isso que foi chamada de
bem-aventurada. Este percurso na fé não a deixou isenta de dores, sofrimentos e
de muitas dificuldades. Ela parece não ter sido uma mulher privilegiada com
todas as facilidades divinas, mas, bem ao contrário, vivenciou dores e
condicionamentos humanos, como nós os vivenciamos. Por isso, se a Igreja a
declara “imaculada” é porque também nós, pelo crescimento na fé e na caridade,
somos convidados a nos tornar menos maculados.
A anunciação ainda significa outro dado muito estranho. Segundo tradição
antiga, Jerusalém era o lugar da morada de Deus. Por conseguinte, o anjo
Gabriel (nome que significa que Deus é forte), deveria dar a boa notícia da
iminente gestação do salvador, no lugar adequado, no Templo da cidade de
Jerusalém. Teria que dirigir-se a um sacerdote, conhecedor da Lei e rigoroso
praticante das coisas de Deus. Aproximadamente 18 mil sacerdotes estavam
desejosos de oferecer incenso a Deus e desfrutar de suas boas informações.
Mesmo Zacarias, muito correto e piedoso, não poderia acreditar neste Gabriel e,
ainda mais, dizendo que esta insignificante Maria seria mãe do filho de Deus.
Se Deus não podia ser visto, como iria agir em Maria? Ela aceita a informação
do anjo (mensageiro que comunica algo especial de Deus). Como poderia conceber,
se ela, sendo mulher, sequer poderia chegar perto Dele no Santo dos Santos? Era
algo totalmente inusitado e não imaginável. Heresia pura! E ainda mais,
pastores odiados e magos considerados pagãos, reconheceram esta manifestação de
Deus na condição humana. Um problema a mais: que tipo de anjo do Senhor seria
este? Ele trazia uma notícia realmente subversiva da liberdade para todos
aqueles que sequer eram vistos como pessoas, ante o Deus que residia no Templo.
2.3 – Quanto à vida de Maria no Egito: Para fugir da perseguição romana, a Sagrada Família
teria passado cinco anos no Egito. Na educação de Jesus, os pais percebem que
ele é diferente dos outros meninos desta idade. Até os doutores do Templo
teriam ficado encantados com sua sabedoria.
Como foi o contexto real de Maria? Seu lugar de origem, Nazaré da
Galiléia, era de péssima fama. Não era a região santa e privilegiada da morada
gloriosa de Deus (Jerusalém), pensado como o centro do mundo. O povo da
Galiléia era desprezado e tido como gente inferior, pois sua origem
medo-pérsica era desconsiderada diante do auto-engrandecimento hebraico. O uso
do termo “samaritano” já se constituía num insulto contra aquela gente. Do
ponto de vista religioso, era um povo considerado idolátrico, porque adorava
divindades no monte Garizim, em vez de ir à morada de Deus na cidade de
Jerusalém. Este povo tampouco seguia a lei, os ritos e cultos hebraicos.[9] A Galiléia não teve participação nos grandes
acontecimentos do reino de Israel, pois, politicamente, era contra a monarquia,
tão defendida até pelos profetas do sul.
2.4 – Quanto à presença de Maria na
vida adulta de Jesus: José teria morrido antes da vida
pública de Jesus. Maria teria incentivado a vida pública de Jesus. Mesmo na dor
da paixão e a difícil despedida, ela não o abandonou. Ela também teria sido a
primeira a se encontrar com ele no túmulo e teria se encantado com sua
ressurreição.
2.5 – Quanto à assunção de Maria ao
céu: Quando se passaram dois anos da morte
de Jesus, este teria comunicado a Maria que ela também iria morrer dentro de
três dias. Os apóstolos, então fizeram vigília na sua casa e Jesus com seus
anjos leva Maria à dormição. Depois de enterrá-la no lugar indicado por Jesus,
ele voltou e a levou para o céu e lá a condecorou como rainha do céu.
Mesmo de evangelhos apócrifos, muitos destes dados relativos a Nossa Senhora
acabaram sendo proclamados como dogmas de fé, tal como o da assunção. Este
dogma está fundamentado em textos apócrifos e certamente quer passar-nos uma
mensagem muito importante: o que Deus fez com Maria, pode vir a acontecer com
cada um de nós.
O assunto da virgindade também é altamente polêmico. Este dogma, proclamado em
553, talvez para salientar que Deus pode lidar do mesmo jeito com a nossa
fragilidade humana, especialmente no campo simbólico no qual a virgindade seria
existencial e não apenas questão carnal ou genital. Como lidar com isto hoje?
Se nela a concepção foi tão diferente do normal da maternidade, porque tanta
invocação de uma mulher tão estranha? Teria sido apenas uma imagem simbólica
para dizer que a virgindade dela foi um jeito de nos remeter a Deus?
A partir dos apócrifos poder-se-á também concluir que a história de Maria, foi,
na verdade, a história do povo de Israel, numa aproximação do que Raquel
representou para o povo: um modelo de mãe. No entanto, os evangelhos apócrifos
de Maria, segundo Jacir de Freitas Faria,[10] apresentam
textos anti-semíticos.
III
HERANÇAS
BÍBLICAS PARA O ENTENDIMENTO DE MARIA
Da história bíblica antiga transparece que a mulher nem sempre gozou dos mesmos
direitos do homem, tanto na vida social, quanto na participação dos cultos. Em
Ex 38,8; Dt 12,12 e Jz 21, 21; consta que a mulher participava de procissões e
serviços religiosos. Quando Esdras implantou a reforma religiosa, depois do
exílio na Babilônia, as mulheres foram impedidas desta participação. O rigor
desta mudança foi tão radical que judeus casados com mulheres estrangeiras
foram orientados para que mandassem embora estas mulheres com seus filhos (Esd
10).
Aos poucos, passou-se a dar mais valor ao nascimento de filhos machos e com
real desprezo ao nascimento de meninas. Estas passaram a ser interpretadas como
castigo, enquanto que o nascimento de meninos era interpretado como bênção. O
importante era gerar um filho varão. A mãe que gerasse uma menina teria que
suportar, além desta menina, um segundo peso, o de se sentir infectada por três
meses e, para purificar-se, teria que submeter-se a abluções segundo
prescrições da Lei (Lev 12,5). Era próprio do tempo antigo, que meninas fossem
abandonadas como forma de superar a tristeza: “quando deres à luz, se
for um menino, tem-no; se for menina, enjeita-a.” [11] Este costume viria a ser abolido
somente no século IV da era cristã.
O primeiro testamento da Bíblia é farto em textos que discriminam a mulher. Seu
primeiro livro já enfatiza que foi através da mulher que o pecado entrou no
mundo e que, sua culpa, é a nossa causa de morte; Levítico 12,2-5 prescreveu
que a menina, ao nascer, teria que ficar mais tempo impura do que menino.
No capítulo 11 de Juízes, interpretou-se como ação inspirada por Deus a atitude
do guerrilheiro Jefté, que, ao vencer os amonitas, matou sua filha única em
sacrifício de louvor a Deus; Gênesis, 2,18 destaca a mulher como auxiliar do
homem. O livro dos Provérbios, no capítulo 31, pelo modo de indicar o tipo de
mulher perfeita, salienta claramente este lado servil da mulher. O texto a
estabelece como uma bela máquina de serviço que não pára de agir. Não poderia
ter feito algum elogio porque ela é pessoa? Outro livro bíblico, o de Juízes,
capítulo 15, enquadra a mulher como objeto de negociação, e a coloca no mesmo
nível de vacas e de asnos; Mais outro texto bíblico, Números 31, informa que
nas partilhas dos espólios de guerra, a mulher era enumerada depois dos burros;
assim também o livro do Levítico considera impureza tudo o que se relaciona a
sexualidade e ainda discrimina a mulher, porque em seu ciclo menstrual, torna
impuro tudo quanto toca ao longo de sete dias: a cama onde se deitar, a cadeira
onde sentar e a água em que lavar suas roupas ficarão impuras. Se alguém
tivesse relações sexuais com ela, nestes dias, também ficaria impuro. Um belo
resumo desta discriminação da mulher se encontra no capítulo 7 do livro do
Eclesiástico: entre mil, Deus teria encontrado um homem para abençoá-lo e
nenhuma mulher para esta honra... Tal herança permite imaginar o contexto no
qual Maria, uma jovem hebréia, enfrentaria o casamento e a maternidade.
De onze anos para frente, uma menina era considerada maior de idade. Poderia,
então, deixar a dependência do pai, para ficar submissa a um marido. Só que o
casamento não constituía nem ato religioso e sacramental como em nossos dias e
nem tampouco, uma festa social. Limitava-se, antes, ao desfecho de uma
negociação que acontecia entre os pais. Não havia esta independência dos jovens
poderem escolher seus pretendentes parceiros ou parceiras a partir de
sentimentos de simpatia ou de amor. Em Deuteronômio 22, informa-se que a
família do esposo pagava um dote que teria que ultrapassar cinqüenta moedas de
prata. Significa que uma moça era literalmente comprada e um homem poderia
desposar muitas mulheres. Em tal procedimento, certamente não estiveram
ausentes certas formas de barganha, pois ela seria apreciada e valorizada ou
desvalorizada por certos traços físicos. Podemos imaginar alguém dizendo: eu só
pago tantas pratas, porque ela tem nariz torto ou perna grossa ou fina, etc.
O casamento de Maria com José, certamente aconteceu de acordo com a tradição
expressa em Ezequiel 16, segundo a qual, o rapaz jogava o manto sobre a jovem e
a declarava esposa e ela cabia responder que ele seria seu marido. De acordo
com o costume da época, José, depois que Maria fora assumida como “Issà” sua
esposa, não poderia enjeitá-lo, pois, uma traição seria considerada crime. As
núpcias propriamente ditas viriam a acontecer somente um ano depois, geralmente
em terças-feiras, e caso o marido viesse a constatar que a esposa não era
virgem, poderia dispensá-la no dia seguinte. Nesta segunda etapa do casamento é
que costumava acontecer uma festa de núpcias e que normalmente durava cerca de
uma semana.
No caso de José e Maria, a questão do dote denota que Maria era de família
muito pobre, pois não se pagou um dote significativo. Além disso, pobreza
representava castigo de Deus ou antecedentes pouco recomendados como incesto ou
adultério. De acordo com Mt (13,55), José era carpinteiro. O nome “Yôsêf”
significa “que Deus faça crescer”. Mesmo assim, segundo Alberto Maggi, o
conceito deste casal, em Nazaré, não foi dos melhores, porque se desfrutasse de
bom conceito não precisaria ter fugido para o Egito. Apesar de ser considerado
descendente de Davi, que viveu mil anos antes de José, a ancestralidade próxima
deixou um péssimo conceito para José: a imoralidade de alguns dos seus
antecessores levou a estabelecer na legislação que todos os descendentes
masculinos seriam considerados bastardos (pessoas geradas fora do casamento),
uma equivalência aos escravos e, por isso mesmo, sujeitos a chicotadas como
eles.[12] Como poderia, então, um bastardo
participar do reino de Deus? Esperava-se a volta de Elias para purificar o povo
de Israel, especialmente para assegurar uma genealogia genuinamente judaica. A
declaração de que José era justo, visava, certamente, incluí-lo na lista destes
fiéis seguidores da Lei. Na verdade, o que se informa sobre José nos
Evangelhos, se restringe praticamente a esta noção de que ele era justo.
De acordo com o quadro cultural da época, seria completamente estranha a
atitude de Maria se ela fosse abrir a boca contra seu marido ou apresentar um
comportamento auto-determinado.
IV
A
ANUNCIAÇÃO DE MARIA
A anunciação feita a Maria, tal como sua imaculada conceição, também nos coloca
na perspectiva da integração da unidade primitiva, que foi rompida na história
humana. Por isto, a ação do Criador é a mesma da origem: age o poder criador do
Alto, o Espírito que pairava sobre as águas, para que a “virgem” se torne
fecunda. Deste modo, o significado da anunciação equivale à aurora da reatância
ou da nova criação, em que o humano e o divino, através de Cristo, realizam
novamente a unidade, quebrada pelo pecado humano.
Da parte divina ocorreu a iniciativa do diálogo para ativar as energias da
criação. Agora, os homens e as mulheres, são interpelados a participar na
tarefa fundamental da recomposição da unidade. Os seres humanos precisam desta
ação simbólica do Anjo, que precisa interpelar para uma ação dinâmica que
novamente estabeleça a individuação na totalidade das coisas: o humano
integrado no divino.[13]
A riqueza deste significado teológico, todavia, não significa apenas olhar para
o céu e esperar milagres fáceis, mas, um grande desgaste de energias humanas
para recuperar de novo a unidade perdida e “des-velar” ou, destampar, as
máscaras que nos afastaram desta intimidade com o transcendente. Há tanta forma
egoísta e racional que nos cega para a percepção desta realidade profunda da
vida humana. Para quem se cultiva no racionalismo, fica extremamente difícil
admitir que o desconhecido possa agir em favor de mais qualidade para a nossa
condição humana. Anunciação significa algo que vem de Deus. Por isso, a
fragilidade dos condicionamentos humanos e sócio-culturais recebe uma indicação
para agir rumo à recriação da unidade. A “virgindade” diante do mistério divino
é, pois, muito mais do que uma questão meramente genital. Significa que a
humanidade pode refletir esta realidade divina. Em outras palavras: o Espírito
pode fecundar energias para que os seres humanos se tornem menos contaminados
com tudo quanto simboliza o “velho Adão”. Lúcio Pinkus salienta que há muitos
significados marcantes da Anunciação:
“Parece-nos
que, diante do luminoso sinal da Imaculada Conceição, a Anunciação representa
como que o primeiro estágio do processo que quer chegar à totalidade e,
portanto, à abolição das separações e dos opostos”.[14]
A resposta a esta abertura se expressa na
significativa resposta: “Faça-se em mim, segundo a tua vontade”. Não é a do
“Eu” fechado, isolado e preso no intimismo da pessoa narcizista, mas a do “Eu”
que se abre à totalidade do divino. É fecundidade para ultrapassar as leis
biológicas e encontrar a manifestação do Espírito que integra o feminino no dom
da vida.
V
A
MARIA DAS APARIÇÕES
Mesmo empolgante, o assunto das aparições de Nossa Senhora revela-se
extremamente ambíguo. É indubitável que possam ocorrer aparições, mas se
prendemos atenção aos conteúdos das supostas mensagens de Nossa Senhora, em
distintas aparições, algo se torna evidente: os ouvintes e os interlocutores
das mensagens não poderiam estar com visões alucinatórias?
Pode muito bem uma alucinação conduzir a uma profunda mudança de vida e, sob o
aspecto religioso, significar uma intensa experiência de Deus, capaz de
transformar radicalmente a vida. No entanto, parece que a maioria das
narrativas de aparições revela aspectos psicopatológicos, isto é, há
componentes psicológicos geralmente ligados a uma condição mórbida e freadora
do que está acontecendo na vida religiosa ou na sociedade. São ameaças
apocalípticas sobre o que vai acontecer, caso não ocorra um regresso a certo
modo de rezar e de agir. Neste sentido, as aparições não deixam de revelar uma
forte conotação política. Basta lembrar a aparição de Fátima, em meio ao
catolicismo nacionalista da ditadura de Salazar em Portugal, que, ao mesmo
tempo, se constituiu em fator repressivo e de manipulação diante do medo de
desordens que o avanço comunista poderia provocar no país.
Além do risco de manipulação política as aparições também se prestam para
intensa exploração econômica, pois envolvem a administração do acesso, a dos
bens de venda e consumo e uma ampla rede para dar suporte a viagens, estadias e
outras variadas formas de consumo própria do turismo.
Ao lado das dimensões políticas e econômicas das aparições, convém ressaltar
também a da mídia, pois a opinião pública torna-se amplamente informada sobre
pressupostas vantagens de visitas ao santuário, além de propagandas e de ação
de muitas instâncias hierárquicas no interior da Igreja.
A tendência destas manipulações, evidentemente, não significa negação da
existência de aspectos positivos nas romarias aos lugares de aparições.
Enquanto ricos fazem turismo considerado cultural, pobres vão ali procurar
intervenção e podem alimentar uma potencialidade libertadora, capaz de levá-las
a procurar mais justiça na organização humana. Mesmo assim, nem sempre o
discurso religioso veiculado nestes espaços de evangelização está preocupado
com a dimensão libertadora que se faz necessária dentro e fora da Igreja.
Os perigos e as iminentes ameaças que estariam por acontecer, revelam a
tendência de se explorar o medo e uma clara pretensão de enquadramento das
pessoas para um determinado tipo de orações e de procedimentos. Neste sentido,
cabe lembrar que, qualquer devoção ou ritual, pode expressar uma profunda
riqueza religiosa. Entretanto, nestas esperanças misturam-se, com a maior
facilidade, sonhos e fantasias, e, por isto mesmo, a mistura facilita um grande
risco de desvio capaz de transformar estes ritos ou devoções em ideologias,
conteúdos divulgados e movidos para favorecimento de grupos ou de algumas
pessoas; e em idiossincracias, que constituem uma verdadeira perversão
do significado simbólico, porque levam determinadas pessoas a apropriar-se de
significados simbólicos e a se estabelecerem como donos e, no presumido direito
exclusivo de repassá-las às demais pessoas de fé. Muito disso aparece evidente
em devoções marianas e neo-pentecostais, como o do movimento carismático. Se
certos ritos expressam fantasias sociais de esperança, apropriar-se deste
controle, pode tanto significar ideologia, pois interessa a certo grupo de
interesse, quanto de idiossincracia, porque quando alguém se considera
privilegiado pela visão, ou pelo dom da cura ou por qualquer outra natureza
privilegiada, destrói o sentido da devoção e do ritual.[15]
Se nos damos conta de muitos textos bíblicos do primeiro testamento, vemos que salientam
mudanças políticas e sociais decorrentes de sonhos e de visões. Também hoje há
um número incontável de pessoas que se lembra de sonhos envolvendo Nossa
Senhora, Jesus Cristo, santos, santas e outras instâncias divinas. Muitas
vezes, são prolongamentos de imagens ou motivações agradáveis que ocorreram em
orações, conversas, desejos ou de distintas formas de cultivo da fé. De um modo
geral, estas experiências, ocorrem sem causar maiores inquietações. No entanto,
certos sonhos podem causar abalos emocionais e outros, podem causar profundas
experiências que levam a mudança radical no rumo da vida. Nestes casos, quando
se trata de motivação positiva, que dá vigor e maior capacidade de ação do que
a anterior ao sonho costuma-se, em tais casos, considerar o fato como uma
experiência de Deus, ou, uma experiência mística. Todavia, quando alguém teve
visão, sonho ou alucinação que apenas envolve mendicância de afeto e de
envolvimento, então, classifica-se tal ato como sendo mórbido, isto é, uma
perturbação do psiquismo da pessoa. Mesmo em meio a muitos atos mórbidos, podem
certas visões representar algo de extraordinário e de divino, sobretudo quando
fornecem maior força de fé e constituem um elã de vida coerente, estável e
solidário.
No caso dos dados que Nossa Senhora das aparições pede aos fiéis, fica muito
estranha a dimensão salvadora de Jesus Cristo, pois, se veio apontar um rumo de
um projeto de vida que salva, porque iria Ele, agora, mandar ameaças através de
sua mãe, coisas estranhas às noções bíblicas acerca do que ambos fizeram. E
ainda mais, sempre numa atitude chorona e pessimista diante do mundo existente!
Talvez por isso o grande teólogo Schilleebeeckx tenha sugerido: “precisamos
inculcar muito mais no povo o culto a Maria Santíssima do que a devoção a Nossa
Senhora de Fátima”[16]
O conteúdo das mensagens de aparições, por outro lado, não deixa de apresentar
uma fantasia com esperanças para algo bom e melhor na sociedade. Sob este
aspecto, elementos religiosos podem manifestar uma clara definição política.
Por exemplo, a aparição de Nossa Senhora de Fátima de 1917, revela uma posição
política carregada de medos que, no mesmo ano, a revolução russa representava
para países europeus como Portugal. A mensagem teve nítido conteúdo político de
um desejo de recuperação de um ”status quo” que existia antes. Se nos
reportamos para a Maria dos textos bíblicos, certamente nos enchemos de outra
motivação política: para algo que rompe a atual sociedade e que leva a criar
outra, menos sedimentada por medos e prepotências, religiosas ou políticas.
Maria, mãe de Jesus, apostou o melhor de suas energias para que pudesse
acontecer o projeto do seu Filho... Assim, o simbolismo de uma boa fantasia
política teria que estimular um novo ambiente social e não somente restringir o
desejo a uma determinada oração popular. A melhor solução para aquele momento
histórico certamente não teria sido a de ver tudo como errático, mas, em meio a
tal dificuldade social, fermentar algo que pudesse gerar uma transcendência
social e ir para além do que levou àquela situação. Portanto, parece que uma
importante mediação de Maria, pela memória do que fez, seria a de apontar para
algo mais do que estava vigente nas formas religiosas da época. Se a revolução
representava um grande inconformismo, mais do que brecar e impedir, a mensagem
de Maria teria que despertar para a rica abertura que ela manifestou diante de
Deus. Abriria, pois, uma perspectiva catalizadora para a auto-transcendência
das formas de cristianismo então vivenciadas. Novas formas comunitárias
poderiam estar no horizonte auspicioso e político das perspectivas de Nossa
Senhora...
Os textos evangélicos revelam que a mãe de Jesus foi uma mulher forte, ativa,
atuante e, por isto mesmo, constituiu um itinerário de crescimento na fé que
leva ao projeto do seu Filho. Por que, então, a Maria das aparições só fala de
sofrimentos, de perigos e de ameaças? Não deveria ela revelar a glória do
âmbito de Deus e reconhecer algumas coisas bonitas de santas mulheres e de
santos homens deste mundo de Deus, e, que apontam sinais e caminhos para a
completude em Deus?
É inegável que muitíssimas pessoas, frágeis na sua estrutura psíquica, se
movem, nas devoções marianas, por um autêntico sentimento religioso, mas elas
também podem estar sendo manipuladas pelos presumidos interlocutores de Nossa
Senhora das aparições e que não levam ao projeto de seu Filho Jesus Cristo.
Vale, pois, a desconfortável pergunta que Immanuel Kant formulou em relação aos
teólogos e religiosos que estavam pressupondo a possibilidade de contatos
diretos com Deus, dispensando os demais deste itinerário, para informá-los a
respeito do que Deus deles esperava. Kant perguntou se estas exigências eram
realmente as de Deus ou as da cabeça dos teólogos ou pregadores? Basta escutar
pregações explicativas das mais variadas sobre o que Deus é e o que quer e faz,
para constatar que, de modo geral, são idéias refletindo os desejos da cabeça
do pregador sobre os ouvintes.
A quem Nossa Senhora se revelou em aparições? Não apareceu para falar ao Papa,
nem aos bispos em Concílios, nem aos teólogos em Congressos, nem a psicólogos
em Clínicas, nem a prestigiados santos e santas da Igreja, mas, somente a
certos estereótipos de pessoas simples e piedosas.
Em primeiro lugar, tal como aconteceu com Maria mãe de Jesus, diante das
expectativas messiânicas, estas aparições frustram e decepcionam muitos níveis
e muitas áreas de conhecimento. Pessoas simples e piedosas podem estar mais atentas
a manifestações divinas do que pessoas cultas e de elevados níveis acadêmicos,
porque são menos racionais e racionalistas de que pessoas com mais elevados
níveis de estudo, mas, elas também são extraordinariamente frágeis para serem
sugestionadas, porque não avaliam os fatos com senso crítico. Em algumas
narrativas de aparições, mesmo coletivas, não emergem ali conteúdos de um
arquétipo coletivo ou do inconsciente de um grupo humano que se reúne em
determinado lugar de aparições já com expectativas comuns? Basta declarar que,
em qualquer lugar inóspito ocorreu um fenômeno extra ou para-normal de alguma
aparição divina, que já começam a afluir multidões humanas com expectativas de
serem agraciadas por algo extraordinário.
Da mesma forma, em lugares de aparições, a concentração permite que aflorem
sentimentos profundos, ainda que perturbados e estranhos ao linguajar de
instâncias superiores de Deus, tais como as da aparição de Fátima no dia 25 de
novembro de 1978 aos seus prediletos padres:
”Filhos prediletos, a cada momento
deixai-vos conduzir por mim e secundai sempre os desejos do meu coração
imaculado. No silêncio e no escondimento, Vossa Mãe Celeste está agora atuando
seu grande desígnio de Amor. Esta é a hora da minha batalha. Desde já,
convosco, comecei a atacar o meu Adversário, justo onde parece tenha obtido,
momentaneamente, a vitória. Onde Satanás destruiu, eu construo. Onde Satanás
feriu, eu curo. Onde Satanás venceu, eu agora obtenho o maior triunfo... O meu
amor quer agora manifestar-se, de forma extraordinária, especialmente aqueles
que se extraviaram e correm o grave perigo de se perderem eternamente...
Quantas almas vão para o inferno porque não mais se reza, porque o pecado
difunde-se e não é mais reparado, porque o erro é facilmente seguido”[17]
Precisaria a mãe de Jesus, desta linguagem de guerra, de demonização e de
revanche para recuperar terreno perdido em comunidades cristãs com seu
predileto exército de padres? A ênfase no privilégio da castidade de
Maria tem muitas vezes uma relação estranha porque a virgindade de Maria é
associada à proteção do celibato dos padres e ela é apresentada como a mãe dos
padres. Por que esta virgindade não a torna mãe dos demais homens e mulheres?
Parece tratar-se de um reducionismo para afirmar que quem é filho de Maria tem
que ser virgem como ela...
Ocorre inegavelmente um fator mórbido (doentio) em muitas pessoas que se movem
dentro de certos estereótipos marianos, pois alguns processos de formação
cristã distorcem a mensagem que a figura de Maria representa para a iniciação
cristã, sobretudo de crianças. Uma imagem fantasiosa de Maria passa a ser
utilizada para coagir as crianças, como “não faça isso que a mamãe do céu não
gosta!”. Também uma atitude ambígua em relação à sexualidade pode facilitar
muitas projeções para despertar culpa. Há muito “santinho”, estatuetas e figas
que podem prestar-se mais para a repressão de sentimentos do que para
alargá-los em vista da harmonia com Deus, na imagem do restabelecimento da
unidade primitiva.
Em muitas pastorais e movimentos eclesiais de nossos dias o perfil de
inquietações não é muito diferente e, se não é em nome de Nossa Senhora,
apela-se à mesma linguagem para as interpelações do Espírito Santo, pois, sob
sua inspiração, também são declaradas manifestações demoníacas por todos os
lados. Por isso, apresenta-se o apelo e as convocações para arrebanhar fiéis,
que, como os soldados na guerra, devem agir, rápida e dinamicamente, para
derrotar o espaço tomado pelo demônio e restaurar o que este inimigo já
incorporou para o seu lado[18].
As rápidas e profundas mudanças sociais dos últimos séculos, de fato, avivam
muitos valores do inconsciente coletivo que despertam saudades em torno das
formas de cordialidade e de solidariedade que marcaram a vida de muitas pessoas
de fé e que, ao verem o desmoronamento destes mundos, alimentam medos ante os
muitos riscos com armas, poluição e desequilíbrio de eco-sistemas. Por isso
elas pressentem que a ordem do alto possa repassar o horizonte das esperanças
que, em outros momentos, lhes preencheram o sentido da vida.[19]
Também se deve levar em conta o forte desejo exotérico que eclode em todas as
manifestações religiosas e, que desperta nas pessoas mais iniciadas num
determinado modo de rezar, a auto-elevação de poder indicar o caminho mais
eficaz para ser seguido pelos outros, a fim de que possam obter o mesmo avanço
espiritual e os mesmos segredos de êxito. Todos estes videntes enxergam que na
política dos governantes, no modo de ser da organização política e cultural e
nos fenômenos das novas formas religiosas, que seu modo de ser, estreitamente
ligado às manifestações do sagrado, os deixa num nível privilegiado para haurir
segredos das forças divinas e repassá-los aos demais. É, na verdade, o que
todos ansiamos pela nossa natureza política de querer agir e atuar sobre os
outros: queremos que os outros sintam o sentido que encontramos nas raízes de
nossa fé. Entretanto, estas raízes podem ser meramente ideológicas ou de um
nível de fé bem elementar e que sequer considera os elementos essenciais do
projeto cristão que a entidade religiosa supõe seguir. Por isso, a
religiosidade mariana em torno das aparições, ao invés de incorporar toda a
riqueza, como a de Jesus Cristo, espera das aparições os resultados que
deveriam advir de um amadurecimento religioso e de um seguimento que requer
confrontação com a realidade que muda. Portanto, não é suficiente criticar o
que fica diferente, mas cultivar a sensibilidade para captar o que Deus
manifesta no meio destas diferenças. Como Lúcio Pinkus lembra:
“... com muita facilidade o
tema das aparições pode estar ligado à necessidade inconsciente de obter uma
prova do amor exclusivo da grande Mãe e, assim, participar de modo evidente de
uma relação exclusiva, em que está incluída a aquisição de um papel específico
e até de um poder que tem uma dinâmica própria, que até dispensa instâncias
normais de avaliação dos carismas, como são as hierárquicas.” [20]
Geralmente esta relação das pessoas videntes com Nossa Senhora desconsidera as
outras formas tradicionais canonizadas e leva as pessoas a estabelecer o mesmo
tipo de mediação para contato com estes valores divinos, porque os aponta como
fonte das bondades divinas, acessíveis em meio a um mundo rodeado por
contaminações demoníacas. Afinal, quantos não desejam uma fé prodigiosa, capaz
de promover as pessoas que se sentem interlocutoras das aparições a uma
elevação do conceito social e do nível simbólico da cultura, e, ainda,
desbancar todo este mundo de avanços científicos da humanidade e todas as
personificações do mal? Ao desejar este milagre, os seguidores desta pessoa
agraciada deixam de olhar para os verdadeiros milagres que acontecem todos os
dias e até mesmo através dos sacramentos, e estabelecem como referência de fé o
senso carismático do segredo da aparição.[21]
Tanto a personalidade de pessoas videntes quanto o grupo que as envolve,
constitui tema difícil de estudo na perspectiva conclusiva como realmente
milagroso ou meramente mórbido, no sentido de perturbação emocional. Talvez,
por isso, tão poucas pessoas ousem emitir uma opinião sobre este assunto, o
que, no entanto, deixa um campo aberto para a expansão e vasta divulgação do
fato das aparições.
VI
A
MARIA DOS DOGMAS
Os dogmas marianos envolvem apresentações distintas
da imagem do feminino. Em outras palavras, salientam o modo como o feminino faz
parte do “sagrado”. Uma leitura teológica bíblica, anterior à do pensamento
cristão, havia deixado o feminino em desvantagem na relação ao masculino. Na
origem do nosso mundo teria existido a harmonia. A ruptura do homem e da mulher
com Deus teria levado à expulsão do Éden e à dura tarefa de trabalhar e de
procurar alimentos, o teria separado homens e mulheres para atividades distintas.
A mulher, gerando filhos, também os geraria para a morte, pois a separação das
atividades tornar-se-ia fator de competitividade e estabeleceria a posse no
lugar da parceria e da comunhão. Mesmo com atrações e repulsas, homens e
mulheres tornaram-se objetos uns dos outros. Daí também a divisão entre razão e
afeto ou razão e emotividade.
O pensamento cristão, contudo, enfatiza a salvação, pois permite entender que a
pessoa fiel, apesar das cisões que causa, poderá voltar à harmonia originária
dos seres com a realidade envolvente e com Deus. Sua mediação, através de
Cristo, ofereceu gratuitamente este dom para que se recuperasse a unidade entre
homem e mulher, bem como, da vida com a morte. Na condição de filhos de Deus,
esta relação permite renovar a antiga unidade e a harmonia com Deus, da qual
Cristo é o grande modelo. Por isso, no jeito de Cristo, está aberto
o caminho para a superação das divisões.
Como esta perspectiva de salvação requer a participação consciente da pessoa
humana, surge uma dificuldade, porque no cultivo da fé entram também os
diferentes níveis psicológicos das pessoas convidadas a estabelecer a unidade
originária. Se a busca da plenitude em Deus requer da pessoa o desenvolvimento
da sua individualidade, bem sabemos que este desenvolvimento não é linear.
Ocorrem desistências, submissões, crises e novas desintegrações, tornando
difíceis os níveis razoáveis de unidade interna e de harmonia da própria
pessoa, que, por sua vez, seriam básicas para uma boa experiência religiosa.
Por outro lado, tal condição requer ainda que se integre o feminino, tão
excluído da harmonia humana e até mesmo nos espaços de celebração dos espaços católicos.
O espaço feminino vai ser encontrado precisamente em Maria, o símbolo da
humanidade que se salva, e, que se realiza na integração com o transcendente.
Por este motivo, Maria se torna uma figura simbólica central para recuperar a
unidade com Deus. Ao lado deste importante papel, todavia, abre-se o caminho de
grandes e profundas divergências em torno de Maria: é a “deusa” toda
privilegiada com dons particulares para oferecer aos suplicantes, ou o modelo
de mulher concreta que nos aponta um itinerário de harmonização conosco, com os
outros, com a natureza envolvente e com Deus? Neste caso, em vez de solicitar
intervenções especiais, teríamos que percorrer o seu jeito de lidar com a vida
para chegarmos à plenitude da salvação.
Segundo Clodovis Boff, os dogmas não resultam diretamente de dados da escritura
bíblica, mas, decorrem desta escritura. Vejamos, pois, estes dogmas conhecidos
e polemizados.
6.1 – Imaculada Conceição
Este dogma foi decretado pelo papa Pio IX em 1854.
É uma original maneira de colocar Nossa Senhora como sinal luminoso que indica
a fonte da luz, ou seja, uma forma de estabelecer a relação do humano com o
divino. Ela passa a ser vista como ponto de ligação destas duas realidades.
Seria esta concepção de Maria, a noção originária da humanidade ainda sem
pecado, sendo feliz no Éden, à imagem e semelhança do criador? Certamente,
pois, é o que celebramos na liturgia. Lúcio Pinkus usa uma metáfora para
ilustrar este aspecto:
“Podemos
dizer que entre a eternidade e o tempo, a Imaculada Conceição é a única forma
concreta em que Deus pode reconhecer-se, porque a sua imagem aí se
reflete sem alterações; nela, pois, temos a primeira e a única criatura que
pode compreender e abranger Deus como imagem primordial do Homem, ou seja, a
“sua” idéia na mente divina, o seu arquétipo originário, na espessura do
homem/mulher históricos”[22]
Por estarmos separados da realidade originária sem pecado, Maria seria o
reflexo da luz que nós não atingimos por causa de nossa realidade pecadora. O
estado de pureza nos daria a condição de captar esta energia divina. Como ela
foi notável nesta virtude, impregnou-se de Deus para difundi-lo de forma eficaz
através de Cristo. Portanto, mais do que excepcional e privilegiada ela se
tornou eminente pelo modo como se harmonizou com o mistério divino. Sob este
aspecto, a festa da Imaculada Conceição nos aflora o sentimento de que ainda
estamos separados de Deus, mas, que podemos captar e manter esta energia.
Remete-nos, pois, a um devir, ou seja, podemos chegar a esta realidade
imaculada. Em outras palavras, o sinal da luz que Maria reflete, nos aponta o
caminho de chegar à luz. Ela aponta o caminho da unidade harmoniosa. Se ela nos
fornece sinais da energia divina, sempre nos remete à originalidade primigênia
da unidade, oferecendo-nos, pois, um caminho para chegarmos novamente à pureza
e unidade original. Isto representa o essencial da existência cristã. Trata-se
igualmente de uma forma de conhecimento religioso muito significativo para quem
orienta sua vida para a transcendência cristã.
6.2 – A Assunção ao céu de corpo e
alma
O dogma de que Maria foi recebida no céu de corpo e
alma, foi declarado por Pio XII no ano de 1950. A razão desta
proclamação seria a da proximidade de Maria com seu Filho Jesus. Na verdade,
uma antropologia dualista. O papa Pio XII, no entanto, quis valorizar a vida da
condição humana para a destinação celeste. ”Prolongando esta inspiração
para a nossa época de niilismo e de aviltamento do corpo feminino, pode-se
dizer que a imaculada é igualmente ícone do sentido último da vida, que é a
vida perene e integral, incluindo plenamente a corporalidade humana”.[23]
Teoricamente Maria, como as outras criaturas humanas, esteve também na mesma
condição humana que envolve a cada um de nós diante do Deus Uno e Trino. Na
prática, ela acaba sendo considerada diferente e, ao ser apresentada como igual
a Jesus, também acaba assimilada como aquela que pode substituí-lo: “Sempre
de novo se percebe que Maria aparece não como um ser humano, mas sim como uma
figura simbólica da dimensão feminina de Deus, nitidamente ausente na piedade
popular”.[24]
Por isso, Maria, em muitas formas religiosas, acaba
assimilada como sendo mais misericordiosa do que Jesus Cristo e mais unida ao
Espírito Santo do que ele.
6.3 – Maria como mãe de Deus
A noção bíblica de que Maria, mãe de Jesus Cristo,
o Filho de Deus, constituir-se em “mãe de Deus” parece constituir-se de uma
conclusão teológica. Há, porém, outra herança de um arquétipo cultural muito
antigo e muito profundo na história humana e que estabelece uma relação entre
virgindade e maternidade. Já salientamos que o feminino é o fator que pode unir
a separação da condição humana com o âmbito de Deus. Como se trata de uma
imagem simbólica, certamente, não é através do aspecto físico e sexual que
vamos entender o assunto. A sexualidade tem na experiência religiosa humana um
significado de relação com Deus. As muitas imagens de núpcias abordadas na
Bíblia fornecem metáforas da relação com Deus. Por isto, mais do que o aspecto
físico da virgindade é o seu significado simbólico que importa, pois se refere
aos dois sexos, uma vez que a virgindade significa a capacidade de abertura ao
divino. Significa uma orientação incondicional ao absoluto. Desta forma, o
reflexo iluminador da Virgem Maria é também uma imagem forte para que a relação
entre homem e mulher, não constitua um ato isolado, mas a busca da plena
comunhão.
De acordo com Lúcio Pinkus, “precisamos enfatizar com clareza que, no
cristianismo, a virgindade de Maria não é elemento isolado, subsistente por si
mesmo, mas faz parte da polaridade virgindade-fecundidade representada pela
Virgem – Mãe, filha e ao mesmo tempo mãe da divindade, corpo mortal e imortal.
O símbolo, fazendo uma síntese desses opostos, mostra nitidamente que a
compreensão da existência humana, da história, só é possível dentro de uma
visão que saiba reunificar “céu e terra”, que não siga parâmetros unilaterais,
como os que nos oferecem os numerosos catálogos de definições puramente
racionais da realidade”.[25]
Esta virgindade que não pode ser pensada como atrofia ou negação da dimensão
sexual, pois simboliza a ação criadora de Deus, remete para além do nosso mundo
físico, para a unificação com o mundo de Deus. A virgindade de Maria, além do
estabelecimento de uma simetria do feminino em relação ao masculino ainda pode
denotar a superação dos vínculos do inconsciente de tudo quanto é atribuído à
Grande Mãe, ou seja, dos condicionamentos que prendem simbioticamente ao que
não é autenticamente humano.
6.4 – Virgindade de Maria
É dogma fácil de ser explicado, mas
difícil de ser aceito por muitas pessoas. Algumas pessoas chegam a supor que a
Igreja inventou este dogma só mesmo para poder reforçar a repressão sexual. Por
isto, estas pessoas vêem em Maria uma figura sem desejos sexuais, uma mulher
ideal para uma sociedade machista e controlada por homens. E se ela
tivesse sido uma pessoa normal como outras mulheres?
Em primeiro lugar, precisa-se considerar que a Bíblia, quando pondera sobre
virgindade não trata tanto da questão físico-biológica, mas usa esta imagem
como um recurso literário para realçar uma experiência de fé. Os textos, mais
do que reportagens jornalísticas, utilizam imagens simbólicas para explicar o
presente que Deus concedeu à humanidade através de Jesus Cristo. Por isto, fica
um tanto estranho para o diálogo com as ciências e outras religiões, a
sustentação de que Maria teria concebido um filho sem fecundação de
espermatozóide, ainda mais, num tempo em que ainda sequer se poderia imaginar
uma clonagem e continuar virgem.
De acordo com o dogma, o nascimento de Jesus foi obra do Espírito Santo,
excluindo uma possível relação sexual de José e a continuidade da virgindade de
Maria depois do parto. Tal argumento não quer significar desprezo às relações
sexuais de casais, mas salientar que a iniciativa de Deus e o sim de Maria,
trouxeram à humanidade o grande presente de Deus que foi Jesus Cristo. Quanto
ao segundo aspecto, o da virgindade após o nascimento de Jesus Cristo é uma
afirmação que traz algumas dificuldades na relação com o texto de Marcos 6,3:
Jesus teria tido irmãos (Tiago e Joset) e irmãs. A dúvida que permanece é: são
irmãos desta Maria, ou de outra?
O termo “irmão” também era usado para designar parentes, especialmente, primos.
Há também outra suspeita de que tenham sido os filhos que José teve, antes de
ficar viúvo, e que, por isto mesmo, seriam irmãos. A forma mais comum de
aceitação é a de que se tratava de primos.
Se permanecermos no nível físico ao discutir sobre a virgindade, apesar do
parto, ficamos num nível sem muita graça. Para além desta questão
biológica deve-se entender o significado simbólico. Mais do que salientar
questões ginecológicas, convém dar importância ao sentido simbólico que
ressalta a ação gratuita de Deus. Nesta perspectiva, a virgindade quer
significar que em Jesus a humanidade encontra um caminho novo. O que queremos
expressar, por exemplo, quando falamos de terra virgem? Que tem um grande
potencial para produzir, gerar plantas, alimentos, etc. Assim, falar que Maria
continuou virgem significa que nós também podemos produzir coisas novas e
encantadoras. E, se em Maria o corpo foi valorizado por Deus para ser um lugar
de habitação do Espírito de Deus, significa que o corpo humano não deve ser
usado como objeto. Nesta conotação, virgindade significa consagração da vida a
Deus, o que é muito mais amplo de sentido do que a mera não utilização genital.
A noção da virgindade perpétua de Maria, mãe de Jesus Cristo aponta, também,
para um mundo de ideais que ainda podem efetivar-se. ”Vale como símbolo
de uma pluralidade de valores, tais como a autonomia psicológica e espiritual
da pessoa, a afirmação da liberdade humana frente à escravidão da carne, a
relativização do sexo em vista de um amor trans-genital e de uma fecundidade
meta-biológica, o testemunho do Spiritus creator que pode
tornar vida desde a impotência humana, a incorruptibilidade ética na política,
enfim, o apelo ecológico no sentido de se cuidar da integridade da natureza,
evitando qualquer forma de violação”.[26]
VII
MARIA
E A DIGNIDADE DA MULHER
As devoções populares a Maria facilmente a situam no âmbito divino.
Aparentemente, nada demais. No entanto, esta forma se presta para uma sutil
afirmação da hegemonia do poder masculino, porque reforça uma tradicional
submissão da mulher ao homem e, por isto mesmo, Maria é estabelecida para o
exercício de papéis inferiores no espaço divino.
Se observarmos mulheres em protestos de rua com faixas, não as vemos portarem
bandeiras de Nossa Senhora. Por que esta ausência de Maria na luta por
dignidade?
A mulher divina e submissa, tão apregoada em discursos religiosos, parece ser
encarada como ser humilde, submisso, mas, simultaneamente, serviçal e atenciosa
para conceder tudo quanto pode intermediar da parte de Deus. Não estaria esta
imagem de Maria reforçando a submissão das mulheres a homens e autoridades
estabelecidas? Os programas marianos apresentados em diversos canais de
televisão brasileira são particularmente ilustrativos para ressaltar a indução
ao conformismo. Parece também muito estranha a forma como se coroa a imagem e
se conversa com ela, a rainha do poder celestial...
A apresentação de uma santa Nossa Senhora divina, sem sexo e sem sexualidade,
mas colocada como modelo de santidade, pode constituir-se num discurso
ideológico que induz a um ideal feminino de auto-doação, de humilde e resignada
submissão em tudo, até no desvelo de gerar e criar muitos filhos.
Certamente ocorrem casos isolados em que devoções marianas despertam
personalidades femininas e também masculinas para serviços de coordenação menos
prepotentes e autoritárias dos controles masculinos. É como um ditado popular
que afirma: “as mulheres exercem muitos cargos e serviços fundamentais na
sociedade, mas, quem aponta o dedo indicador, tende a ser sempre uma mão
masculina!”. Não se pode, pois, esquecer que, Maria, mãe de Jesus de Nazaré foi
mulher pobre e humilde e, nesta condição, mulher humana que está ao lado da
nossa condição humana e que se sentiu interpelada por Deus para um caminho de
santidade.
Embora a devoção mariana tenha aglutinado muitas imagens divinas de Maria como
rosto materno de Deus, mesmo assim, nem sempre estas imagens nos remetem para a
vivência do espírito de Deus, pois se apela a Maria para que ela resolva de
forma imediata e fácil nossos problemas. A predisposição para viver o espírito
de Deus, certamente passa por um processo de fé e de crescimento na capacidade
de ação para que a vida humana se torne mais justa. Maria, a mulher pobre da
Galiléia, não se apresentou como uma criatura celestial, mas, evidentemente,
aglutina as esperanças dos que lutam para promover mais bem-estar entre os
seres humanos.
A revelação de Deus aconteceu num ambiente humano da Galiléia. Não ocorreu nos
âmbitos do poder masculino de Jerusalém ou de qualquer outra cidade importante.
Por isso, deve-se considerar que naquela mulher pobre da Galiléia, Deus fez
grandes coisas... Também significa que, hoje, quando homens e mulheres se
colocam em atitude parecida com a de Maria diante de Deus, Ele age
beneficamente da mesma forma. Trata-se, por conseguinte, de uma postura muito
distinta daquela de solicitar tudo e qualquer coisa para que ela,
resignadamente, e num gesto de auto-doação, atenda todos os pedidos.
Nesta relação da Maria humana e divina, Susan Ross sustenta que Maria está
servindo a dois papéis religiosos e teológicos distintos:
a) Na
perspectiva teológica o feminino divino representa uma presença obstinada na
piedade das pessoas ante uma resistência oficial que procura negar imagens
femininas do divino;
b) Presta-se
também como uma espécie de “madrinha” para orientar métodos e doutrinas
teológicas.[27]
Por esta razão, não se pode ignorar a relação de Maria com o anjo. Diante dele,
Maria experimentou que Deus se dirigiu a ela. Por isto, se encheu de “luz”
especial. E convém não esquecer que se tratava de uma menina de 13 a 14
anos, idade preparando-se para o casamento, segundo os costumes daquela época.
A imagem da figura amável que dá força a incontáveis pessoas em situações
difíceis e significativas da vida, não exime dúvidas quanto aos variados
títulos de “virgem”, “mãe de Deus”, “medianeira”, “intercessora”, “protetora”,
etc. Nisto E. Drewermann considera Maria na perspectiva do projeto do amor de
Deus, associada ao mito:“a única possibilidade de falar da história humana
de forma que ela se dê a conhecer como revelação divina é faze-lo à maneira de
mito[28]. Significa admitir que um anjo
diga algo prodigioso e que uma “luz do céu” possa invadir-nos. Anjo, pode ser
qualquer pessoa que nos dá uma boa notícia ou que nos abre os olhos para
enxergar para além das decepções, das crises ou das doenças graves.
A exaltação de Maria, pode tanto prestar-se para incutir nas mulheres um ideal
feminino de abnegação e de muitos sacrifícios, quanto para a busca da plenitude
de homens e de mulheres. Existem formas marianas que podem alienar as mulheres
e afirmar a supremacia masculina. Entretanto, é de se desejar que toda a
devoção mariana possa pautar-se por conceitos do Magnificat, sobretudo os que
destacam a salvação do pobre por parte de Deus. Significa, por conseguinte, que
deve ajudar na libertação das mulheres de tudo quanto às induz ao sacrifício de
suportar passivamente o que o poder masculino lhes impõe. Não dá para esquecer
que também o homem é um pequeno e frágil filho de mulher. Significa, pois, que
tanto homens quanto mulheres podem encontrar no ícone Maria de Nazaré uma força
que se revela dom de Deus para o bem da condição humana.
Por outro lado, a devoção mariana precisa admitir a necessidade de acolher
dolorosas podas, a fim de que os seus frutos sejam bons para a convivência
humana e não apenas para buscas individualizadas de auto-salvação.
Epílogo
No título deste opúsculo já destacamos o que entendemos como essencial na
devoção mariana: que Maria, mãe de Jesus, - segundo o que consta nos
Evangelhos, - é uma figura que nos remete para o cerne da fé cristã: o da
pedagogia de Deus que age de “baixo para cima”, e não através de poderes
mágicos e aterrorizadores que provêm do alto.
A antiga tentação de inverter esta ordem persiste em nossos dias e faz com que
fatores emocionais e imaginativos estabeleçam Maria como uma grande deusa. O
imaginário que lhe coloca manto sobre o corpo, pedras brilhantes enfeitando o
vistoso manto e a coroa para simbolizar o poder máximo, certamente se encontra
distante da imagem da Maria que haurimos da Bíblia.
Com a inversão dos atributos de Deus, parece que até mesmo Ele fica refém da
grande mãe e deusa que é invocada acima Dele. Com isto, já não se busca
vivenciar um crescimento da fé, como aconteceu com Maria, mas, se invoca a
grande deusa, para que, magicamente, resolva tudo quanto não queremos, não
conseguimos e nem desejamos enfrentar.
A memória da humilde Maria de Nazaré, pela confiança que alimentou em Deus,
ajuda-nos a constatar que ela se tornou capaz de apostar de corpo e alma no
projeto de seu Filho e, por isso mesmo, se tornou capaz de não sucumbir em
sentimentos de fracasso ou de mágoa profunda e depressiva diante da morte
humilhante do seu Filho. Pelo contrário, encontrou força interior para
permanecer de pé junto à cruz e agir positivamente nas primeiras comunidades cristãs.
A capacidade de elevar Maria, mãe de Jesus, para as instâncias supremas do
poder divino e, como eficaz protetora das opções celibatárias, pode tornar-se
meio para manipulações ideológicas que ajudam a diminuir a dignidade e o
reconhecimento da grandeza feminina. Ainda que a maioria das comunidades
católicas dependa fundamentalmente da ação de mulheres, o dedo indicador para a
ação destas mulheres, infelizmente, ainda continua sendo o dedo masculino. Este
dedo indicativo em riste coíbe intensamente a capacidade de alargar e fazer
plenificar o projeto de Jesus Cristo, como condição que salva.
A exploração imagética em torno dos lugares milagrosos pode ofuscar o
verdadeiro milagre que acontece por intercessão de Maria e que leva a uma vida
segundo moldes muito distintos dos da resignação fatalista diante de uma
poderosíssima rainha dos altos céus. Se ela é uma mediação para levar ao
projeto de vida proposto por Jesus Cristo, a força do milagre está mais na
capacidade de dedicar-se a este projeto do que na ação miraculosa para atender
certos suplicantes.
Em suma, a antiga noção de que a unidade do mundo humano com o mundo divino
havia sido rompida pela condição humana, encontra em Maria um caminho de
possibilidades para que estes dois âmbitos voltem a interpenetrar-se. Por isto,
a virgindade de Maria, ao contrário de uma privação castradora, representa esta
abertura fértil da vida para reconciliação dos laços da primigênia unidade
humana e divina.
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[1] A imagem
pode parecer chocante, mas não convêm confundi-la com outro aspecto de valor
profundo para os cristãos. Trata-se do aspecto doloroso de Maria. Enquanto que
as antigas deusas não vinham sendo associadas à fragilidade humana das dores,
parece que a origem das dores de Maria se relaciona a uma sensibilidade de quem
olha com intuição e agudeza de espírito para frente e vê, por esta razão, as
dificuldades da lida com o mal que se estabeleceu nas relações e na existência
humana, e a difícil tarefa de agregar forças para conduzi-la novamente à
originalidade da harmonia. O ato de constatar que muitas pessoas resistem na
aceitação deste caminho para a unidade primigênia, necessariamente implica em
dor, porque esta maldade não ajuda para a reconciliação com Deus. Se, por
exemplo, lembramos Maria de pé diante da cruz, na qual seu filho pendia como um
guerrilheiro anarquista é, na verdade, um convite para que nos associemos à sua
capacidade, a fim de também somarmos forças que nos levem às raízes da nossa
condição humana.
[2] BOFF,
Leonardo. Ave Maria – o feminino e o Espírito Santo, p.
12. No mesmo livro, o autor destaca que o feminino não é exclusividade da
mulher, mas uma determinação essencial de todo ser humano, porque cada ser é
feminino e masculino (p. 22). O feminino é uma fonte inesgotável do mistério
humano. Certos atributos como “vitalidade, profundidade, interioridade,
sentimento, receptividade, doação, cuidado e aconchego que se expressa na
existência humana do varão e da mulher... tem seu último fundamento no próprio
Deus, que, na história da salvação, manifestou também dimensões femininas
(p.23)”.
[3] MAGGI,
Alberto. Nossa Senhora dos heréticos. São Paulo: Paulinas, 1990, p.
18.
[4] No Brasil
há uma realidade histórica de uma intensa devoção mariana de origem popular e
que se desenvolveu como um caudaloso rio ao longo dos séculos, mas sua água
ainda não fornece a riqueza que foi a vida concreta de Maria. Por isso, a busca
de lugares de romaria e devoções que misturam visões fatalistas como a que se
reza na oração da Salve Rainha: gemendo e chorando neste vale de lágrimas…
Desta forma, o lado da alegria, da transformação e da elevação no nível da
vida, parece fluir pouco ou nada nestas torrentes de piedade. O Papa Paulo VI,
há muitas décadas, já recomendava uma revisão da piedade mariana. Escreveu: “O
culto cristão, de fato, é por sua natureza e culto ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo, ou conforme se expressa a liturgia, ao Pai por Cristo no
Espírito… Na Virgem Maria, de fato, tudo é relativo a Cristo e depende Dele…(
Na Exortação Apostólica sobre o culto à Bem-Aventurada Virgem Maria,
Paulinas, 1974, p. 36.)
[5] Conforme
Carmiña Navia Velasco, em artigo Os Apócrifos de Maria
de Nazaré. IN: REVISTA DE INTERPRETAÇÃO LATINOAMERICANA, No. 58 – 2007/3,
p. 52.
[6] O
referido proto-evangelho de Tiago salienta: “A parteira saiu da gruta e
Salomé veio ao seu encontro. Disse-lhe a parteira: Salomé, Salomé… uma virgem
deu à luz, coisa que não é compatível com a sua natureza. Respondeu Salomé:
‘Tão certo como vive o Senhor meu Deus se não introduzir meu dedo e não
examinar a sua natureza, não creio que a virgem deu à luz. A parteira entrou,
preparou Maria e Salomé examinou sua natureza. E Salomé gritou: tentei o Deus
vivo. E eis que minha mão, atingida pelo fogo, se separa de mim. Ela rezou ao
Senhor e a parteira foi curada na mesma hora. E eis que o anjo do Senhor
apareceu diante de Salomé, dizendo:’ Tua prece foi ouvida diante do Senhor
Deus. Aproxima-te e toca o menino e ele será a tua salvação’.”(A História
do Nascimento de Maria – proto-evaqngelho de Tiago, p. 66)
[7] Em artigo História de
Maria, mãe e apóstola de seu filho, nos evangelhos apócrifos. REVISTA DE
INTERPRETACÃO BÍBLICA LATINO-AMERICANA, no. 58 – 2007/3, p. 13-15.
[8] Maria era um
nome comum. Quanto ao significado da palavra “Maria” há mais de setenta
explicações, grande parte oriunda da religiosidade popular. Ao nome corresponde
também Miriam (Mir ou Meri, de origem egípcia significa amado, amada; do
hebraico se acrescenta iah e iam, com o significado de “amada de Javé”). Outra
significação é excelsa ou elevada. De acordo com raízes hebraicas pode
também significar corpulenta, vidente e senhora... Os evangelhos não oferecem
explicação do nome Maria.
[9]
Segundo o Talmude, todos os samaritanos seriam impuros porque nasceram de
mulheres, consideradas impuras desde o berço. (MAGGI, Alberto, op. cit. p. 28).
[10] Segundo o
final do texto de Jacir de Freitas Faria, op. cit., p. 15. O autor ainda
salienta que tanto memórias popular quanto dogmas de Nossa Senhora surgiram a
partir dos textos apócrifos, tais como palma e véu, assunção, títulos das
ladainhas atribuídos a ela, os nomes dos pais, a visita que a Sagrada Família
recebeu dos magos e o nascimento em manjedoura.
[11] Citado por
Alberto Maggi em Nossa Senhora dos Heréticos, p. 39.
O autor segue com outra citação de Cassandra de Posídipo, do livro L’ermafrodita, no
século III: “um filho, qualquer um o cria, mesmo sendo pobre; em
sendo uma filha, sempre será enjeitada, mesmo se se é rico.”
[12] Alberto
Maggi, op. cit. P. 58-59. O peso da expressão “bastardo” era grave: se alguém
chamasse outra pessoa de bastarda, seria condenada a receber 40 chicotadas.
[13] O
Evangelista Lucas apresenta o início da vida de Maria com muito amor e doçura,
mas, ao mesmo tempo, apresentou Maria como mãe das dores. Colocou na boca de
Simeão uma afirmação forte: uma espada transpassará sua alma... (2,35). Que
sentido teria esta expressão? Provavelmente nasceu da comparação de que a Palavra
de Deus era mais penetrante do que uma espada. Maria teria experimentado o
poder desta Palavra de Deus, o que implicava numa entrega... Outra tradição,
advinda do primeiro testamento da Bíblia, colocava a espada como símbolo de
inimizade. Por isto, a dor seria a constatação da incredulidade do povo e as
hostilidades contra Jesus Cristo. Fonte de dor também é guardar certas coisas
no coração, tal como Maria fez, segundo o evangelista
Lucas.
[14] Lúcio
Pinkus, op. cit., p. 129.
[15] O
grande Papa Mariano Paulo VI salientou a este respeito: “A chamada à
atenção para os conceitos fundamentais expostos pelo concílio Vaticano II,
sobre a natureza da Igreja – ‘Família de Deus’,’Povo de Deus’,’Reino de
Deus’,’Corpo Místico de Cristo’ – permitirá, na verdade, aos fiéis,
reconhecerem mais prontamente qual a missão de Maria no mistério da mesma
Igreja e qual o seu eminente lugar na Comunhão dos Santos.”(Exortação
Apostólica sobre o culto à Bem-Aventurada virgem Maria, p. 42)
[16] Citado
por Neri Feitosa, no opúsculo Maria Santíssima, p. 13.
[17] Opúsculo Nossa
Senhora aos sacerdotes seus filhos prediletos do Movimento Sacerdotal
Mariano, Cx. Postal 92, José Bonifácio, SP (sem outros dados bibliográficos),
p. 12-13.
[18] Umberto
Galimberti destaca que alimentar vãs ilusões nas pessoas, além de má educação,
infantiliza a fé, e arremata: “É lamentável constatar que o
cristianismo ficou reduzido e retrocedeu a estes níveis. Crentes e não crentes
haviam feito uma idéia deferente dessa religião, que pôs a sua chancela sobre
todo o ocidente. Pensavam uns e outros que a fé proposta
trilhasse caminhos mais comprometidos, que a esperança, projetada
para além do pessimismo, se distinguisse do jogo das ilusões, que a caridade pregada
levasse a humanidade para fora da lógica elementar amigo/inimigo, que até então
regulara as relações entre os homens. Mas não. Deparamo-nos mais uma vez com o
milagre que todas as religiões, mesmo as mais distantes do cristianismo,
registram e enfatizam como prova da sua verdade.” (no livro Rastros do
Sagrado, p. 246).
[19] Há,
contudo, uma rica herança histórica da oração do Terço ou do Rosário, que
apresenta, desde o início, intuições muito originais, como a da índole
evangélica nos seus sinais mais fortes. “O Rosário, por conseguinte, é
uma oração evangélica, como hoje em dia, talvez mais do que no passado, gostam
de a definir os pastores e estudiosos…O Rosário, de fato,considera numa
sucessão harmoniosa os principais eventos ‘salvíficos’ da mesma Redenção, que
se realizaram em Cristo…” (Exortação Apostólica sobre o culto à
Bem-Aventurada virgem Maria, p. 60).
[20] No
livro O Mito de Maria – uma abordagem simbólica, p.197-198.
[21] Umberto
Galimberti faz uma importante observação a este respeito. Cita que apesar de
Jesus Cristo der dito: felizes os que crêem sem ter visto (Jo 20,29), a Igreja
se sente pouco responsável quando entrega a fé à prova do milagre e a santidade
à sua escrupulosa constatação: “Não se pode dizer simplesmente, por exemplo,
que padre Pio tem ‘odor de santidade’ não porque as pessoas sentem com o olfato
‘o aroma delicado das flores’ que sempre acompanha a intervenção milagrosa do
padre Pio, mas porque viram nele um testemunho de fé em que crêem e de que
participam. (no livro Rastros do Sagrado, p. 245). Também destaca que “reunir
multidões em torno do milagre é uma tentativa de ignorar a dor com a ilusão de
uma solução súbita e inesperada para ela. Significa sair do destino do homem
que sempre conheceu, além da beleza da vida, também a sua crueldade; significa
abandonar o homem a uma expectativa improvável que cria, junto à dor, o aumento
da trágica desilusão, induzida pela ilusão”. (idem, ibidem) Toda esta
exploração do Deus dos milagres pode representar mera fuga da própria dor e
busca de satisfação imediata de desejos, que pouco ou nada tem a ver com a “boa
nova”do cristianismo...
[23] BOFF, Clodovis. Por
uma mariologia social. In: CONCILIUM, 327 – 2008/4, p.55.
[24] ADAMIAK, Elzbita. Caminhos
da Mariologia. In: CONCILIUM, 327 – 2008/4, p.39.
[25] Lúcio
Pinkus, op. cit., p. 139-140. O autor ainda destaca mais outro aspecto muito
interessante: enquanto que Eva foi tirada do homem, o Segundo Testamento revela
a inversão, pois o homem novo, o Cristo, é tirado de Maria, restabelecendo-se,
assim, o equilíbrio do feminino diante do masculino e a relação de Jesus com
Maria é o contrário do que aconteceu entre Adão e Eva...
[26] BOFF,
Clodovis. Por uma Mariologia Social. In: CONCILIUM, 327 –
2008/4, p.54.
[27] ROSS, Susan. Maria:
Humana, feminina, divina? In: CONCILIUM, 327 – 2008/4, p. 26.
[28] Citado
por Carmiña Navia Velasco, no artigo Maria de Nazaré revisitada.
In: CONCILIUM, 327 – 2008/4, p. 18 e 19.
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