quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Intimidade e Promiscuidade



Ainda persistem discussões em torno de gênero com vistas a estabelecer o que é peculiar e específico da condição masculina e da feminina.

Na vasta literatura sobre o que é direito de cada gênero, vigorou predominantemente a valorização de costumes da hegemonia de direitos e poderes, culturalmente sustentados a unhas e dentes, porque representaram avanços sobre momentos anteriores.  

                Atualmente alarga-se a tendência de buscar não a primazia matricial ou patriarcal, mas o direito de uma pessoa poder desfrutar de outra, e hierarquizar normas para exercer controle sobre sua conduta, sobretudo no âmbito doméstico.
Com esta atenção primordial para a instância do poder, descarta-se a possibilidade de entendimento da diferença e do mistério da vida da outra pessoa, mesmo da parceria de namoro ou da que complementa o casamento.
            A defesa ou a condenação de costumes e de praxes culturais, nem sempre considera o sentido de complementação e a possibilidade da função transformadora que esta complementação pode exercer na vida humana.
            Enquanto ficamos no nível de discussão do que é de direito a partir de costumes e tradições, podemos estar perdendo a capacidade de considerar a noção mais importante do ponto de vista antropológico: o processamento do público e do privado.
            A ausência de condições do ambiente familiar, ou por falta de diálogo, ou a convivência movida por interesses pragmáticos de uniões fracassadas, leva as novas uniões, mesmo sem consentimento dos filhos, e impede viver o mundo privado. Sem este âmbito da vida, não se ativam os jogos afetivos que determinam o estado de humor de todos os membros constituintes daquele bloco ou aglomeração tida como familiar.
            Certamente um olhar atencioso de um pai leva seu filho a fazer com mais gosto alguma tarefa que precisa fazer. Assim também, procedimento movido por poder, acompanhado de um ar superior de controle e de arrogância, levará o filho a devolver outro mecanismo de agressão ou de deslocamento desta raiva, normalmente de forma não-verbal.
Assim, nas projeções, fixações, contra-projeções, submissões e deslocamentos de sintomas que diuturnamente afetam o espaço familiar, os desequilíbrios acabam afetando a praxe da vida.
            Entretanto, nenhuma família é uma ilha isolada, porque todas são diariamente afetadas por situações públicas ou sociais. O que ocorre neste nível de incidência? Em primeiro lugar, uma intensa ativação dos desejos, o que abafa totalmente a memória, precisamente esta que é capaz de apontar horizontes reais para a vida.
 Se o ambiente doméstico leva em conta a invasão de informações a que está submetida, ela perde, gradualmente, o que é original em suas relações afetivas e passa a absorver etiquetas como formas de expressão de vida.
Esta imitação de outras pessoas transformadas em mito, idealizadas ou de imagens criadas por propagandas, propicia status, títulos, honras e cargos, mas, leva à gradual perda da capacidade de equilibrar-se neste mundo criado para o consumo. Equivale a pretender caminhar equilibradamente com uma perna de um metro (dimensão pública) e com outra de apenas meio metro (dimensão privada). Se tal caminhar só pode ser capenga, tenderá a desanimar o caminheiro do processo de recriar motivações para a vida.
            Há mais de cinco décadas o pensador Francês Emmanuel Mounier já alertava, em sua obra O Personalismo, sobre o risco da confusão entre intimidade e promiscuidade.
Muitas bandeiras, tidas como de emancipação e de libertação de tabus e de costumes, podem estar tremulando para favorecer uma socialização controladora e imperialista, que tira do espaço familiar a condição da intimidade.
A intimidade vem sendo profanada pela invasão agressiva de novidades, que, mesmo frustrantes, são desviadas para outras novidades.
 A multiplicidade de fantasias criadas a partir de fatos reais e de outros meramente fictícios, incidem sobre a vida familiar como equivalência da contratação do gambá para cuidar do aviário.
            Com esta fragilidade, a relação de homem e mulher facilmente cai da intimidade para a promiscuidade. Em vez de ser fonte de comunhão, de alegria e de gosto pela vida, a relação conjugal e familiar pode despertar sentimentos de culpa, de isolamento e de mal-estar, porque a profanação da intimidade leva ao desrespeito, ao desfrute, à agressão e ao risco de poder vir a ser descartado.
            A perda da intimidade provoca um efeito indireto que é o da perda da capacidade de “filtrar” ou “processar” tudo o que advém da vida social.
Sem esta filtragem, ocorre a absorção da fantasia e da idealização que ignora o que é peculiar e próprio do espaço familiar.
            Ao espaço familiar não compete apenas absorver, porque ele tem em si a riquíssima função de socializar seus membros e a de enriquecer a sociedade com estes valores.
Não estaria ocorrendo, em nossos dias, uma demasiada ausência de socialização dos filhos no espaço doméstico? Se eles absorvem o mundo consumista e apenas se norteiam por etiquetas, como esperar deles valores de socialização que respeitem os outros?
                Bloco familiar sem socialização equivale a pretender instalar uma hidráulica para fornecer água filtrada e tratada para o consumo humano, mas que apresenta, na torneira dos consumidores, água suja e com coliformes fecais em excesso...
            Afinal, o que estaria sujando a água da intimidade? Tanto hábitos, quanto paixões e desequilíbrios afetivos levam à invasão da intimidade e cortam a fronteira ou a divisa do necessário distanciamento que o respeito à outra pessoa, seja marido, mulher, filho ou qualquer outra pessoa exige.
            No desrespeito da intimidade explodem mil formas diferentes de desequilíbrio emocional e esta condição passa a ser levada diretamente para o ambiente social.
            Assim como a mulher pode invadir a intimidade do marido e vice-versa, o mesmo se repete no relacionamento entre pais e filhos e dali passa para o âmbito social.
                Uma pequena transgressão da intimidade na família pode induzir para um caminho de grandes apropriações de bens públicos.











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