Ainda persistem discussões em torno de gênero com vistas a estabelecer
o que é peculiar e específico da condição masculina e da feminina.
Na vasta literatura sobre o que é direito de cada gênero, vigorou predominantemente
a valorização de costumes da hegemonia de direitos e poderes, culturalmente
sustentados a unhas e dentes, porque representaram avanços sobre momentos
anteriores.
Atualmente alarga-se a
tendência de buscar não a primazia matricial ou patriarcal, mas o direito de
uma pessoa poder desfrutar de outra, e hierarquizar normas para exercer
controle sobre sua conduta, sobretudo no âmbito doméstico.
Com esta atenção primordial
para a instância do poder, descarta-se a possibilidade de entendimento da
diferença e do mistério da vida da outra pessoa, mesmo da parceria de namoro ou
da que complementa o casamento.
A
defesa ou a condenação de costumes e de praxes culturais, nem sempre considera
o sentido de complementação e a possibilidade da função transformadora que esta
complementação pode exercer na vida humana.
Enquanto
ficamos no nível de discussão do que é de direito a partir de costumes e
tradições, podemos estar perdendo a capacidade de considerar a noção mais
importante do ponto de vista antropológico: o processamento do público e do
privado.
A
ausência de condições do ambiente familiar, ou por falta de diálogo, ou a
convivência movida por interesses pragmáticos de uniões fracassadas, leva as
novas uniões, mesmo sem consentimento dos filhos, e impede viver o mundo
privado. Sem este âmbito da vida, não se ativam os jogos afetivos que
determinam o estado de humor de todos os membros constituintes daquele bloco ou
aglomeração tida como familiar.
Certamente
um olhar atencioso de um pai leva seu filho a fazer com mais gosto alguma
tarefa que precisa fazer. Assim também, procedimento movido por poder,
acompanhado de um ar superior de controle e de arrogância, levará o filho a
devolver outro mecanismo de agressão ou de deslocamento desta raiva, normalmente
de forma não-verbal.
Assim, nas projeções,
fixações, contra-projeções, submissões e deslocamentos de sintomas que
diuturnamente afetam o espaço familiar, os desequilíbrios acabam afetando a
praxe da vida.
Entretanto,
nenhuma família é uma ilha isolada, porque todas são diariamente afetadas por
situações públicas ou sociais. O que ocorre neste nível de incidência? Em
primeiro lugar, uma intensa ativação dos desejos, o que abafa totalmente a
memória, precisamente esta que é capaz de apontar horizontes reais para a vida.
Se o ambiente doméstico leva em conta a
invasão de informações a que está submetida, ela perde, gradualmente, o que é
original em suas relações afetivas e passa a absorver etiquetas como formas de
expressão de vida.
Esta imitação de outras
pessoas transformadas em mito, idealizadas ou de imagens criadas por
propagandas, propicia status, títulos, honras e cargos, mas, leva à gradual perda
da capacidade de equilibrar-se neste mundo criado para o consumo. Equivale a
pretender caminhar equilibradamente com uma perna de um metro (dimensão
pública) e com outra de apenas meio metro (dimensão privada). Se tal caminhar
só pode ser capenga, tenderá a desanimar o caminheiro do processo de recriar motivações
para a vida.
Há
mais de cinco décadas o pensador Francês Emmanuel Mounier já alertava, em sua
obra O Personalismo, sobre o risco da
confusão entre intimidade e promiscuidade.
Muitas bandeiras, tidas como
de emancipação e de libertação de tabus e de costumes, podem estar tremulando
para favorecer uma socialização controladora e imperialista, que tira do espaço
familiar a condição da intimidade.
A intimidade vem sendo
profanada pela invasão agressiva de novidades, que, mesmo frustrantes, são
desviadas para outras novidades.
A multiplicidade de fantasias criadas a partir
de fatos reais e de outros meramente fictícios, incidem sobre a vida familiar
como equivalência da contratação do gambá para cuidar do aviário.
Com
esta fragilidade, a relação de homem e mulher facilmente cai da intimidade para
a promiscuidade. Em vez de ser fonte de comunhão, de alegria e de gosto pela
vida, a relação conjugal e familiar pode despertar sentimentos de culpa, de
isolamento e de mal-estar, porque a profanação da intimidade leva ao
desrespeito, ao desfrute, à agressão e ao risco de poder vir a ser descartado.
A
perda da intimidade provoca um efeito indireto que é o da perda da capacidade
de “filtrar” ou “processar” tudo o que advém da vida social.
Sem esta filtragem, ocorre a
absorção da fantasia e da idealização que ignora o que é peculiar e próprio do
espaço familiar.
Ao
espaço familiar não compete apenas absorver, porque ele tem em si a riquíssima
função de socializar seus membros e a de enriquecer a sociedade com estes
valores.
Não estaria ocorrendo, em
nossos dias, uma demasiada ausência de socialização dos filhos no espaço
doméstico? Se eles absorvem o mundo consumista e apenas se norteiam por
etiquetas, como esperar deles valores de socialização que respeitem os outros?
Bloco familiar sem socialização equivale a
pretender instalar uma hidráulica para fornecer água filtrada e tratada para o
consumo humano, mas que apresenta, na torneira dos consumidores, água suja e
com coliformes fecais em excesso...
Afinal,
o que estaria sujando a água da intimidade? Tanto hábitos, quanto paixões e
desequilíbrios afetivos levam à invasão da intimidade e cortam a fronteira ou a
divisa do necessário distanciamento que o respeito à outra pessoa, seja marido,
mulher, filho ou qualquer outra pessoa exige.
No
desrespeito da intimidade explodem mil formas diferentes de desequilíbrio
emocional e esta condição passa a ser levada diretamente para o ambiente
social.
Assim
como a mulher pode invadir a intimidade do marido e vice-versa, o mesmo se
repete no relacionamento entre pais e filhos e dali passa para o âmbito social.
Uma pequena transgressão da
intimidade na família pode induzir para um caminho de grandes apropriações de
bens públicos.
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