sábado, 15 de fevereiro de 2020

O CARNAVAL DOS MUITOS CARNAVAIS




            Como a rapsódia do período trágico da Grécia antiga, que cantava versos à escravidão explorada para sonhar com as mordomias da elite dominante e a induzia a aguentar a dureza do humilhante trabalho cotidiano, a cantoria do carnaval, - como as danças indígenas pedindo chuva, - fazem as renovadas rapsódias que levam a bailar e dançar com as melhores acrobacias pela vida feliz, solta e sem regras.
            Enquanto o cotidiano de exaustivo e explorado trabalho causa enfado, cansaço, estresse e esgotamento afetivo-emocional para o alcance mínimo de meios econômicos para empanturrar-se com compras e ser muito feliz, os carnavais constituem aquelas momentâneas quebras deste cotidiano de incontáveis regras e exigências.
            A obrigatoriedade de obediência às inúmeras leis dos códigos e ordens que massacram por mil outras insinuações e atrelam indivíduos à totalidade, cultiva-se uma cantoria rapsódica de que também poderão ser felizes como as instâncias superiores do poder, que ostentam um ar de plena felicidade.
            Um velho mito perpassa os acalantados sonhos da alegria e da prazerosa pertença à totalidade da nação, e mesmo subsumidos no anonimato, os sujeitos, normalmente relegados, vivem por alguns dias o clima de copa, de torneio, de disputa, de campeonato e de festas altamente onerosas, sob a encantadora sensação de que deixaram de serem indivíduos anônimos, para se sentirem enlevados à condição da pertença igualitária, sob o suave entretenimento, no qual todos podem dançar de mãos dadas, sem medos e sem censuras.
            O carnaval oferece esta chance de catarse de experimentar por alguns dias a quebra do jugo das incontáveis leis, cobranças e atrelamentos às ordens superiores. O clímax do júbilo eufórico produz uma amnésia temporária de todo sofrimento sob as hierarquias e os controles rígidos: sobre horários, posturas, sorrisos e aquela nuvem tenebrosa que ameaça a estabilidade do emprego e a iminência de ser substituído por outra pessoa mais eficiente, bem como os inúmeros riscos de ser humilhado, de passar vergonha e de ser comparado. Além disso, não deixa de rondar o olhar onisciente do controle policial e dos chefes arbitrários a fazer cobranças de postura, de aparência e de sorrisos artificiais.
            Assim o carnaval, desde há muitos séculos, funciona como liberação de uma concessão especial para esquecer o mundo das regras estabelecidas a fim de viver o arrebatamento de um sonhado mundo fraterno, feliz e solidário, e para soltar-se numa deleitosa prática de exultação da vida como eterna festa.
            Quando o cotidiano envolve tanta coisa proibida e tanta cobrança de regras que molestam o bom humor, o carnaval permite extravasar, por algumas horas, todo o avesso deste duro pão de cada dia.
            Nos antigos carnavais a máscara e o enfeite escondiam o “eu” real das pessoas – para evitar vinganças e revides – a fim de contestar a negação das liberdades individuais, fautora de tantos sofrimentos advindos de humilhação, desprezo e vergonha.
            Nos carnavais de nossos dias, os mundos individualizados, tão ardentemente desejados, produzem outra sinistra experiência: a de ser relegado e de submergir no mundo do anonimato, pois, ali borbulham os causticantes sentimentos de inexistência, com pontas de ferro escaldante, para relegar a um mundo perdido e ignorado pelo todo da sociedade.
            Assim, sentir-se convidado a ser livre por alguns dias de toda esta pressão psíquica que entorta os ombros, aponta o gozo da vida feliz tão projetado pela mídia, mas que, tampouco, os livra da indiferença, que dói mais que a pressão escravizadora das leis. Por isso, poder protestar com a nudez e transar segundo a propaganda tão insinuadora, como expressão de felicidade, permite, simultaneamente, o direito de extrapolação das divisas de limites no comer, no beber, no descansar e na forma de portar-se diante dos outros.
            Como no tempo antigo da Grécia, a liberação ao mundo escravo para sonhar que, pelo menos no mundo fantasioso, de sentir-se de igual para igual com a elite luxuosa, ostensiva, aufere o direito de inebriar-se com vinhos, carnes gordas e rolar com as imaginárias belas damas, untadas com leite de cabra.
            Hoje o carnaval, amplamente planejado para produzir um imenso delírio social, permite aos perdidos do anonimato social, relegado à inexistência, cultivar um momento da desejada proeminência diante do todo social, e mostrar, através do corpo, despido ou mascarado, a imagem que sonha para o dia-a-dia da sua vida.
            Assim o desejo profundo de pertença a um grupo solidário acolhedor, leva à sensação fugaz e passageira de que dando a mão a qualquer outra pessoa anônima, está inserida numa comunidade alegre e feliz e muito unida com a totalidade do sistema.
            Pelo menos, aparentemente, o fantasma dos incontáveis mecanismos de exclusão deixa de rondar o atormentado mundo sofrido, que sob a coloração tênue e esbranquiçada deixa entrever a descartabilidade.
            Na quarta-feira de cinzas, a aurora desperta o relógio para a dolorosa rotina das neuroses do sistema dos mandantes totalitários, e segue preenchendo o psiquismo com uma enfadonha ameaça: para não desaparecer totalmente, precisa-se aceitar outro ano de dura vigilância pública, que, por um nada, pode aumentar a dureza da vida, já no limite da suportabilidade.

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