Como
a rapsódia do período trágico da Grécia antiga, que cantava versos à escravidão
explorada para sonhar com as mordomias da elite dominante e a induzia a
aguentar a dureza do humilhante trabalho cotidiano, a cantoria do carnaval, -
como as danças indígenas pedindo chuva, - fazem as renovadas rapsódias que levam
a bailar e dançar com as melhores acrobacias pela vida feliz, solta e sem
regras.
Enquanto
o cotidiano de exaustivo e explorado trabalho causa enfado, cansaço, estresse e
esgotamento afetivo-emocional para o alcance mínimo de meios econômicos para
empanturrar-se com compras e ser muito feliz, os carnavais constituem aquelas
momentâneas quebras deste cotidiano de incontáveis regras e exigências.
A
obrigatoriedade de obediência às inúmeras leis dos códigos e ordens que
massacram por mil outras insinuações e atrelam indivíduos à totalidade, cultiva-se
uma cantoria rapsódica de que também poderão ser felizes como as instâncias
superiores do poder, que ostentam um ar de plena felicidade.
Um
velho mito perpassa os acalantados sonhos da alegria e da prazerosa pertença à
totalidade da nação, e mesmo subsumidos no anonimato, os sujeitos, normalmente
relegados, vivem por alguns dias o clima de copa, de torneio, de disputa, de
campeonato e de festas altamente onerosas, sob a encantadora sensação de que
deixaram de serem indivíduos anônimos, para se sentirem enlevados à condição da
pertença igualitária, sob o suave entretenimento, no qual todos podem dançar de
mãos dadas, sem medos e sem censuras.
O
carnaval oferece esta chance de catarse de experimentar por alguns dias a
quebra do jugo das incontáveis leis, cobranças e atrelamentos às ordens
superiores. O clímax do júbilo eufórico produz uma amnésia temporária de todo
sofrimento sob as hierarquias e os controles rígidos: sobre horários, posturas,
sorrisos e aquela nuvem tenebrosa que ameaça a estabilidade do emprego e a
iminência de ser substituído por outra pessoa mais eficiente, bem como os
inúmeros riscos de ser humilhado, de passar vergonha e de ser comparado. Além
disso, não deixa de rondar o olhar onisciente do controle policial e dos chefes
arbitrários a fazer cobranças de postura, de aparência e de sorrisos
artificiais.
Assim
o carnaval, desde há muitos séculos, funciona como liberação de uma concessão
especial para esquecer o mundo das regras estabelecidas a fim de viver o
arrebatamento de um sonhado mundo fraterno, feliz e solidário, e para soltar-se
numa deleitosa prática de exultação da vida como eterna festa.
Quando
o cotidiano envolve tanta coisa proibida e tanta cobrança de regras que
molestam o bom humor, o carnaval permite extravasar, por algumas horas, todo o
avesso deste duro pão de cada dia.
Nos
antigos carnavais a máscara e o enfeite escondiam o “eu” real das pessoas –
para evitar vinganças e revides – a fim de contestar a negação das liberdades
individuais, fautora de tantos sofrimentos advindos de humilhação, desprezo e
vergonha.
Nos
carnavais de nossos dias, os mundos individualizados, tão ardentemente
desejados, produzem outra sinistra experiência: a de ser relegado e de
submergir no mundo do anonimato, pois, ali borbulham os causticantes
sentimentos de inexistência, com pontas de ferro escaldante, para relegar a um
mundo perdido e ignorado pelo todo da sociedade.
Assim,
sentir-se convidado a ser livre por alguns dias de toda esta pressão psíquica
que entorta os ombros, aponta o gozo da vida feliz tão projetado pela mídia,
mas que, tampouco, os livra da indiferença, que dói mais que a pressão
escravizadora das leis. Por isso, poder protestar com a nudez e transar segundo
a propaganda tão insinuadora, como expressão de felicidade, permite,
simultaneamente, o direito de extrapolação das divisas de limites no comer, no
beber, no descansar e na forma de portar-se diante dos outros.
Como
no tempo antigo da Grécia, a liberação ao mundo escravo para sonhar que, pelo
menos no mundo fantasioso, de sentir-se de igual para igual com a elite
luxuosa, ostensiva, aufere o direito de inebriar-se com vinhos, carnes gordas e
rolar com as imaginárias belas damas, untadas com leite de cabra.
Hoje
o carnaval, amplamente planejado para produzir um imenso delírio social,
permite aos perdidos do anonimato social, relegado à inexistência, cultivar um
momento da desejada proeminência diante do todo social, e mostrar, através do
corpo, despido ou mascarado, a imagem que sonha para o dia-a-dia da sua vida.
Assim
o desejo profundo de pertença a um grupo solidário acolhedor, leva à sensação
fugaz e passageira de que dando a mão a qualquer outra pessoa anônima, está
inserida numa comunidade alegre e feliz e muito unida com a totalidade do
sistema.
Pelo
menos, aparentemente, o fantasma dos incontáveis mecanismos de exclusão deixa
de rondar o atormentado mundo sofrido, que sob a coloração tênue e esbranquiçada
deixa entrever a descartabilidade.
Na
quarta-feira de cinzas, a aurora desperta o relógio para a dolorosa rotina das
neuroses do sistema dos mandantes totalitários, e segue preenchendo o psiquismo
com uma enfadonha ameaça: para não desaparecer totalmente, precisa-se aceitar
outro ano de dura vigilância pública, que, por um nada, pode aumentar a dureza
da vida, já no limite da suportabilidade.
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