segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

MEMÓRIA FRACA




            As queixas relativas ao golpe que a memória proporciona na hora de querer lembrar um dado importante tendem a aumentar na proporção da velocidade comunicacional. A fugacidade dos dados da memória constitui certamente um sintoma que perturba muita gente na sua auto-estima. Seria início precoce da doença de esclerose, da demência ou de Alzheimer?
            De fato, observar pessoas mais avançadas em idade, não afetadas pelas doenças atrofiadoras, elas esnobam uma invejável capacidade de reproduzir dados de muitas décadas atrás, com os mínimos detalhes que envolveram os fatos e com as referências nominais de quem viu, ouviu e acompanhou o desenrolar destes episódios.
            É evidente que até bem pouco tempo atrás o ritmo da vida parecia desenrolar-se com a sensação mais lenta e de que muito poucas coisas quebravam o cotidiano rotineiro dos acontecimentos. Também as informações eram mais escassas e mais locais. A memória as retinha com vasta amplitude de detalhes e podiam ser acionadas a qualquer momento.
            Sobretudo pessoas analfabetas cultivavam uma herança milenar de associação aos fatos com traços do entorno. O processo cognitivo de associação dos fatos marcantes com outras referências lhes permitia descrever os detalhes com enorme quantidade de minúcias, a tal ponto que qualquer fato irrisório dava assunto para longas conversas e muitos narradores extrapolavam a paciência para assegurar a precisão dos fatos lembrados como de absoluta veracidade, porque as cenas ficavam registradas com uma imensa quantidade de minudências.
            Atualmente constatamos uma notável alteração da capacidade de retenção de dados. Mais do que problema de estresse e esgotamento ou de alguma deficiência química, a memória passa a não ser mais um inabalável suporte para as lidas cotidianas. É que o segredo do sistema capitalista que nos envolve, vale-se de uma tática sutil que anula a capacidade de reter muitos dados na memória. Joga a felicidade para o futuro e, através da publicidade, tenta antecipá-la para ser desfrutada exaustivamente através dos objetos consumo, tanto materiais como simbólicos e culturais. Assim, a globalização tende a tornar reféns todos quantos tem potencialidade de comprar muitas coisas e nem mesmo os pobres se escapam desta indução.
            A extraordinária publicidade em torno do que um objeto promete vem associada a uma afirmação positiva e autoritária de que cada indivíduo precisa, como necessidade básica, adquirir novos e de mais inovados objetos para ser feliz. Com a memória relegada e o sonho frustrado, evade-se toda a presumida felicidade. O aborrecimento aparece de imediato, mas, também, e na mesma hora, ele também é relegado pelo oferecimento insinuante de outros objetos portadores de felicidade inusitada e mais duradoura. Assim, o movimento protelatório da felicidade requer imediato deslocamento para algo novo que corre na frente da vida real e indica o caminho capaz de propiciar aquela almejada felicidade. Assim, outro foco de felicidade, leva ao esquecimento instantâneo do sonho com a aquisição anterior, e ativa todos os desejos sobre um novo e possível objeto de consumo. O que frustrou, vai para o lixo e some.
            Neste movimento que obriga a todos a desejar ardentemente a mediação da felicidade, importa esquecer rapidamente o passado e buscar afoitamente o que é associado ao novo objeto de alcance, e que, por sua vez, implica em mais trabalho, mais economia. Para isso, nada importam detalhes da vida passada, imagens, lembranças, feições, porque não contribuem para alimentar os desejos de alcance de parcelas preciosas do paraíso disponível remetido ao futuro.
            A perspectiva futura, alargada com infinitas possibilidades novas, descarta ao campo da amnésia o dito, o prometido, o jurado e o assumido com plena responsabilidade. Assim, ninguém se importa com a desigualdade entre ricos e pobres, pois todos são potencialmente aptos e capazes de consumir coisas novas, sejam objetos, pessoas, identidades ou alterações no próprio imagético. Afinal, como tudo que não preencheu a felicidade desejada, ficar numa mesma condição, parece constituir caminho irreversível para virar lixo diante dos outros.
            Certamente poucas pessoas captam a preferência dada a aspectos atraentes dos objetos apresentados para serem consumidos, desde corpo, imagem, fama, até o multifacetário mundo das novas invenções, pois ocorre, simultaneamente, uma insinuação de que é preciso ser mais rápido que os demais a fim de brilhar, pelo menos por um instante, como herói que alcançou felicidade em amplitude maior.
            A estreita relação entre novidade e esquecimento constitui certamente o fator decisivo da sensível perda de memória em qualquer faixa etária da vida. O hábito cotidiano de rapidamente esquecer o que causou aborrecimento por não preencher a expectativa alimentada, absorve todas as energias para produzir mais a fim de poder alcançar o novo foco a prometer mais felicidade. Por isso a bússola do cérebro, já não aponta mais para recordações e memórias recriadoras da razão da existência, mas, indica precipuamente o único foco de crescimento econômico, que requer sangue, suor, e o máximo do que o débil corpo humano consegue render na produção, pois, com seu grande mito, obriga indistintamente a todos para que comprem mais e esqueçam o aborrecimento deixado pela frustração da aquisição da última compra.
            A grande máquina do sistema consegue produzir contínuas e novas ofertas ao consumo, e, aliada ao recurso da publicidade, consegue nivelar a todos no mesmo desejo sem memória. Nesta protelação constante da felicidade almejada, a vida se encurta e a razão da existência, é furtada por quem não devolve nada.

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